Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1266/23.3T8GMR.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
PODER INQUISITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - O juiz deve assegurar um processo equitativo, convidando as partes a suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada nos seus articulados, em fase prévia à audiência prévia ou no decorrer desta.
2 – Trata-se de um verdadeiro dever legal do juiz, traduzindo-se num despacho de aperfeiçoamento vinculado, no sentido de identificar os aspetos merecedores de correção.
3 - A omissão desse despacho é suscetível de gerar nulidade processual por omissão de ato que influi na decisão da causa (artigo 195.º do CPC), que deverá ser apreciada no âmbito do recurso interposto.
4 - Estando a nulidade coberta por decisão judicial que sancionou a respetiva omissão, o meio próprio para a arguir é o recurso competente, uma vez que a nulidade processual apenas ganha relevo quando tal se projeta negativamente na decisão que é proferida, sendo a questão apreciada em sede de interposição de recurso.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

AA e marido BB deduziram ação declarativa contra CC pedindo que sejam declarados inexistentes quaisquer direitos de propriedade de que se arroga o réu sobre o prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial.
Para o efeito, alegam que a autora e o réu são irmãos. Que os autores são proprietários de um prédio urbano, que identificam, que confronta a norte com um prédio do réu e este a sul com o prédio dos autores. Que a autora tem permitido ao réu aceder ao prédio de que é dono, utilizando para o efeito parte do logradouro situado na extrema norte do seu prédio. Que o réu, de um momento para o outro e sem que nada o fizesse esperar, passou a arrogar-se publicamente titular de um direito de propriedade sobre a referida área do prédio pertencente aos autores, o que os obriga a recorrer a juízo para que seja declarada a inexistência de qualquer direito por parte do réu sobre o prédio pertencente aos autores.
Contestou o réu, alegando que a faixa de terreno em discussão é parte integrante do imóvel de que é proprietário e acesso exclusivo à sua própria casa, tendo o imóvel sido atribuído a si por Partilha Parcial por acordo dos bens pertencentes à massa da herança do pai, correndo atualmente Inventário no Juízo Local Cível de Guimarães, por falta de consenso generalizado sobre a partilha. Invoca, ainda, a inexistência de posse necessária à aquisição por usucapião, por parte dos autores, a errada descrição predial do seu prédio no registo, no que concerne à área do mesmo e a realização, por si, de todas as despesas de manutenção e limpeza da área aqui em discussão, sendo que a utilização do imóvel pelo réu, desde que o adquiriu, foi levada a cabo sem oposição de quem quer que fosse e à vista de todos, sendo que, quer o réu, quer os seus antecessores sempre fizeram sua aquela parcela de terreno, com pleno conhecimento dos autores que até concordaram com elas, verificando-se a utilização de material de calçada de cor e tipo diferentes para cada uma das entradas.
Em reconvenção, o réu pede que seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre a parcela no montante de 209 m2 e, por via da mesma, fixar-se a área total da sua propriedade em 1722 m2 e, caso assim não se entenda, que se proceda à demarcação dos prédios confrontantes.
Os autores replicaram, entendendo que a reconvenção é inadmissível ou, sem prescindir, que os pedidos são incompatíveis. No mais, impugnaram os factos articulados pelo réu.
Os autores foram convidados a aperfeiçoarem a sua petição inicial, “descrevendo a parcela/espaço mencionada no artigo 12.º do petitório por referência a área e dimensões (largura e comprimento)”, o que estes fizeram, com o acrescento de dois artigos em que identificam uma área de cerca de 176 m2 (21,29 m de comprimento e 8,26 m de largura), com resposta do réu a impugnar o alegado.

Foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Porque entendo estar em condições para apreciar de imediato o mérito da causa, para realização de uma audiência prévia com as finalidades previstas no artigo 591.º/1/als. a) e b) CPC designo o próximo dia 13.11.2023, pelas 11h30, sem prejuízo do disposto no art. 151.º/2 CPC”.
Teve lugar a audiência prévia e, tendo-se frustrado a tentativa de conciliação, pela Sra. Juíza foi dada a palavra aos mandatários para produzirem as suas alegações, por entender ser possível conhecer de imediato do mérito da causa, o que ambos prescindiram.
Foi proferido saneador-sentença, onde não se admitiu o pedido reconvencional e a ação foi julgada procedente, declarando-se que o réu não tem qualquer direito de propriedade sobre o prédio urbano situado na Rua ..., composto por casa de ... e logradouro, com a área total de 1650 m2, descrito na CRP ... sob o n.º ...18 e inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...98.º.

O réu interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

I. O presente Recurso versa sobre matéria de Direito, nos termos infra consignados, incidindo sobre o Despacho Saneador proferido, concretamente na parte em que proferiu sentença, julgando por procedente a ação apresentada pelos Recorridos.
De facto,
II. O Tribunal a quo, desconsiderou, por completo, o requerimento probatório apresentado pelo Recorrente e pelos Recorridos e revelou-se, em determinados aspetos, contraditória com o explanado nos autos, colocando, assim, em causa a garantia da estabilidade jurídica.
III. Face à complexidade do litígio, sem quebra do sempre devido respeito, não estava o Tribunal a quo em condições de conhecer de imediato do mérito da causa, pelo que na ótica do Recorrente, o Tribunal a quo incorreu num erro de julgamento da matéria de Direito ao declarar a procedência da ação nos termos sustentados pelos Recorridos, o que motiva o presente Recurso.

DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO

A. DA IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO IMEDIATO DO MÉRITO DA CAUSA

IV. A decisão recorrida bastou-se com a convicção de que o Recorrente não alegou factos suficientes que permitam concluir pela sua aquisição da área em discussão, pelo que entendeu o Tribunal a quo que a ação teria necessariamente de proceder.
Sucede que,
V. foram alegados factos pelo Recorrente que poderiam facilmente afastar o entendimento seguido pelo Tribunal a quo, nomeadamente que o mesmo sempre fez uso da área em discussão, assim como todos os anteriores proprietários do imóvel, pelo que era indubitável que este sempre seria o verdadeiro e único proprietário da área em discussão por força da figura de usucapião, encontrando-se preenchidos, de forma plena e completa, os requisitos de tal regime, factos esses que foram, simplesmente, desconsiderados – a saber, por exemplo, os artigos 35.º, 41.º,42.º a 46.º, 48.º, 59.º, 62.º, 70.º a 160.º da Contestação e, ainda, os artigos 10.º a 13.º e 17.º a 21.º do Requerimento com referência Citius n.º 15038756.
VI. Demonstrou, igualmente, que os Recorridos sempre reconheceram que tal área pertencia ao aqui Recorrente, porque de facto lhe pertence.

Como se não fosse bastante,
VII. A questão primordial no caso sub judice não é a de compreender a quem pertence, verdadeiramente, a área de 1650m2, mas antes a de esclarecer se a área em discussão se encontra parcial ou totalmente abrangida pela área registada a favor dos Recorridos ou, a contrario, se se encontra abrangida pela área erroneamente registada do imóvel do Recorrente.
VIII. Foi o Tribunal a quo confrontado com uma planta apresentada pelos Recorridos junto da sua Petição Inicial que abrange a área em discussão, mas que fixa, todavia, a área do imóvel no total de 1.779m2 e já não de 1650m2.
IX. Portanto, os Recorridos não demonstraram que a área em discussão se encontra, parcial ou totalmente, abrangida pela área que se encontra efetivamente registada a seu favor.
Mas não só,
X. Verificou-se a existência de divergência adicional e em relação à qual Tribunal a quo não se pronunciou, na medida em que a diferença entre a área registada e a área indicada na mesma planta se traduz no total de 129m2 e alegam os Recorridos, na Petição Inicial aperfeiçoada, que a área em discussão se fixa no total de 176m2.
Mas mais,
XI. dado é o tal estado e incerteza dos Recorridos, que no requerimento probatório por si apresentado, requereram a inspeção ao local em sede de audiência de julgamento.
XII. Por sua vez, também o Recorrente no âmbito do seu requerimento probatório, e tendo em vista a composição definitiva do litígio, requereu o seguinte:
“III) PROVA POR INSPEÇÃO JUDICIAL:
Nos termos do artigo 490.º do C.P.C., requer-se Inspeção Judicial ao local dos artigos em causa, por forma a confirmar a existência ou não de delimitação entre os imóveis em discussão nos presentes autos e para provar os factos vertidos nos artigos 43.º; 90.º a 98.º¸104.º a 109.º; 118.º a 123.º; 139.º; 140.º; 142.º a 148.º; 153.º a 157.º; 160.º; 168.º a 172.º; 181.º; 192.º a 198.º e 201.º a 204.º da presente Contestação.
IV) PROVA PERICIAL:
Segundo o disposto no artigo 388.º do C.C. e dos artigos 467.º e 475.º, ambos do C.P.C., requer-se que seja realizada Perícia aos prédios com os artigos matriciais ...98 e ...03, descritos na Conservatória do Registo Predial, Comercial e Automóveis ... sob os números ...38 e ...91 – propriedade dos Autores e do Réu, respetivamente, devendo a referida perícia responder às seguintes questões:
1. Qual a área real dos terrenos?
2. A quem pertence a Entrada/Avenida?
3. Existem marcos delimitadores dos terrenos/artigos confinantes dos Autores e do Réu?”
XIII. Face a tal estado de incerteza, a ação sub judice carecia, necessariamente, de produção de prova que permitisse compor o litígio com elevada segurança jurídica, pelo que sem a mesma se entenda que a decisão recorrida se apresenta como prematura.
Nesta senda,
XIV. uma vez que a conjugação dos artigos 425.º e 651.º, n.º 1 do CPC, admite a junção de documentos, a título excecional, em sede de recurso e que não foi permitido ao Recorrente exercer o seu direito do contraditório antes de ter sido proferida a Sentença, a mesma configura uma decisão surpresa.
XV. Revelando-se a junção de documentos em sede recursal admissível face ao julgamento a quo, de acordo com o artigo 425.º e o artigo 651.º, n.º 1, ambos do CPC, é possível concluir do levantamento topográfico junto agora pelo Recorrente que a área em discussão se reporta a um total de 203m2 e não de 176m2, conforme alegado pelos Recorridos, e através da consulta de imagens satélites do imóvel à data de 2013, é possível averiguar que a área em discussão já pertencia e era utilizada pelos anteriores proprietários,  conforme alegado pelo Recorrente.
Em jeito de súmula,
XVI. o espírito da lei vertido no artigo 595.º do CPC visa assegurar que o tribunal só possa conhecer de imediato do mérito da causa se existir uma muito razoável margem de segurança quanto à solução a proferir, pelo que tal conhecimento imediato reveste caráter excecional.
XVII. Existindo na factualidade vertida pelas partes soluções diferentes quanto à questão a decidir, deveria ter sido dada às mesmas a possibilidade de as discutirem e de reunirem provas com vista ao acolhimento de uma dessas soluções plausíveis de direito, uma vez que nesta fase processual ainda nem tinha sido produzida prova, atento o disposto no artigo 423.º, n.º 2 e n.º 3, sem ignorar o previsto no artigo 411.º do CPC.
XVIII. A decisão do processo na fase do saneador só poderá suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência, e, in casu, estão cabalmente demonstradas as dúvidas que ainda persistem.
XIX. Portanto, devia o Tribunal a quo abster-se de conhecer, na fase de saneamento, do mérito da causa.
XX. Desse modo, requer-se que seja declarada a nulidade do Despacho Saneador-Sentença e a reabertura da audiência para julgamento e decisão de tal matéria controvertida para a boa decisão da causa e composição definitiva do litígio.

B. DA NULIDADE POR OMISSÃO DO DIREITO AO CONTRADITÓRIO DO RÉU (ORA RECORRENTE)
XXI. O Recorrente deveria ter sido notificado para exercer o direito ao contraditório antes de proferido o Saneador-Sentença, o qual consiste num ato preparatório do mesmo.
XXII.    Não tendo sido promovido qualquer debate sobre quaisquer factos da matéria vertida nos autos, não poderia o Tribunal a quo ter proferido, sem mais, a decisão de que aqui se recorre, sem permitir às partes pronunciarem-se sobre os factos que deu como provados, a qual consubstancia uma decisão surpresa, proibida pelo artigo 3.º, n.º 3 do CPC.
XXIII.   Omitido o Tribunal a quo a prática de um ato que a lei prescreve, nos termos do artigo 195.º, n.º 1 do CPC, tal decisão está inquinada por uma nulidade processual por violação dos princípios do contraditório, previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, e da boa fé processual, prevista nos termos do artigo 8.º do CPC.
Subsidiariamente,
XXIV.  caso não se entenda que a existência de uma “decisão surpresa” é uma nulidade processual, sempre se deverá considerar que a nulidade processual por violação do princípio do contraditório é consumida pela nulidade do Saneador-Sentença por excesso de pronúncia, prevista nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC.
XXV. Na medida em que sem a prévia audição do Recorrente não pode o Tribunal a quo conhecer dos fundamentos que utilizou na sua decisão, estamos perante vícios intrínsecos na prolação do saneador-sentença a quo, designadamente perante uma notória nulidade do saneador-sentença por excesso de pronúncia, que desde já se argui com as cominações legais advenientes.
XXVI. Desse modo, deve o Douta Despacho Saneador-Sentença recorrido ser considerado nulo, por excesso de pronúncia, ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por violação do n.º 1 do artigo 609.º do mesmo diploma.

C. DA NULIDADE DO DESPACHO SANEADOR-SENTENÇA A QUO POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
XXVII. O Tribunal a quo não apreciou determinada factualidade descrita pelo Recorrente na sua Contestação, a qual consiste em factos essenciais ao apuramento da verdade material, à boa e justa composição definitiva do litígio e, inerentemente, à decisão da causa, pelo não poderiam os mesmos ter sido pura e simplesmente desconsiderados.
XXVIII. Desde logo, o Recorrente invocou e provou na sua Contestação, mediante factos nela vertidos, que:
“Ademais, sempre reconheceram que o proprietário desse imóvel, bem como da área aqui sindicada, é o Réu (…) o próprio Autor BB, mediante email de 22 de dezembro de 2021, enviado à Sra. DD, na qualidade de Arquiteta, expressamente reconhece que o levantamento topográfico enviado pelo Réu corresponde, na íntegra, à propriedade do mesmo uma vez que diz o seguinte:
“Boa tarde DD.
Envio em anexo o levantamento topográfico da casa do meu sogro. Ligue-me quando receber este email pf.”
A “casa do meu sogro” é, naturalmente, o imóvel que agora pertence ao Réu, e que anteriormente pertencia ao seu pai, sogro do Autor BB.
Ou seja, o Autor expressamente reconhece que a área do imóvel do Réu não só se encontra mal registada, uma vez que não configura apenas o total de 1595m2, mas ainda que a área aqui debatida se insere de facto na propriedade do Réu.
Também por mensagem privada, via Whatsapp, enviada a 17 de fevereiro de 2021 pelo Autor BB ao Réu, o primeiro dirige-se a este mencionando expressamente que o portão que dá acesso à Entrada é do Réu, dizendo:
“O teu portão está a abrir à mão?
Parece existir uma delimitação implícita da propriedade dos Autores e do Réu, visível mediante a alteração explícita e notória de cor, tipo e material utilizado na calçada presente no exterior de ambos os imóveis, em concreto na área correspondente à entrada do Réu, demonstrando a liberdade de escolha das partes no que concerne à sua propriedade integrante, própria e característica dos direitos atribuídos a um verdadeiro proprietário.
Pelo que as partes implicitamente concordam que a parcela aqui em discussão é abrangida, efetivamente, pela área pertencente ao Réu e não pela área pertencente aos Autores.
A este propósito e a título exemplificativo, os Autores nunca procederam à manutenção, limpeza e conservação do espaço exterior em área que exceda aquele limite, bem como nunca fizeram uso do mesmo para estacionar os seus carros, o que é percetível mediante interpretação do Documento n.º ...0, do qual resulta que o Réu estaciona o seu veículo na área a ele pertencente (que é a área aqui em discussão) e que os Autores estacionam os seus veículos automóveis sempre para além da delimitação que notoriamente parece implicitamente existir.
Ressalva-se, igualmente, que os Autores nunca utilizaram aquela área para guardar qualquer outro bem seu.
Assim, da conduta dos Autores resulta que estes aceitam pacificamente e de forma tácita que tal parcela não lhes pertence.
Razão pela qual é imprescindível ao Réu o acesso à sua entrada, a qual se encontra em discussão nos autos sub judice, caso contrário este encontrar-se-ia impedido de habitar na sua própria casa.
Cada um dos imóveis detém caixa de correio postal com o respetivo número de polícia de cada imóvel. O que reforça, evidentemente, a autonomia e independência de ambos os imóveis, bem como a indispensabilidade do reconhecimento da propriedade da Entrada como sua, uma vez que só assim poderá o Réu fazer uso de uma caixa de correio postal a si pertencente.
Admitir o contrário ao supra exposto, resultaria no impedimento do Réu em aceder ao seu próprio imóvel, bem na interdição do mesmo de rececionar qualquer comunicação via correio postal!” -artigos 48.º, 137.º, 138.º, 140.º, 141.º, 145.º, 146.º, 147.º, 149.º a 152.º, 154.º a 157.º da Contestação.
XXIX.  O Tribunal a quo não se pronunciou sobre estas questões legitimamente invocadas pelo Recorrente, violando, assim, o dever previsto no artigo 608.º, n.º 2 do CPC, pelo que terá de se concluir pela verificação de nulidade por omissão de pronúncia.
XXX. Portanto, a decisão recorrida encontra-se em expressa violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) CPC, pelo que se impõe a declaração de tal nulidade e a reabertura da audiência para julgamento e decisão de tal matéria controvertida para a boa decisão da causa e composição definitiva do litígio.

D. DA NULIDADE PROCESSUAL POR OMISSÃO DO DEVER DE COOPERAÇÃO/EXCESSO DE PRONÚNCIA
XXXI.  Entende o Tribunal a quo que:
“Ora, quanto à parcela em causa, o R. limitou-se a alegar ter realizado obras que pagou na totalidade, sem oposição dos AA. (arts. 129.º e 130.º), que a utiliza para entrar e sair da sua propriedade e que procede à sua limpeza e manutenção (art. 83.º) e que quer ele quer os seus antecessores sempre fizeram daquela parcela de terreno coisa sua (art. 121.º). Nada mais é alegado, mormente factos reportados aos caracteres da posse (boa ou má fé; violenta ou pacífica; pública ou secreta e, essencialmente, duração) necessários à aquisição da propriedade de um bem por usucapião.
Como se viu acima, essa alegação (e demonstração) era essencial para que a presente ação pudesse ser julgada improcedente.
Não o tendo feito o R., a ação intentada não poderá deixar de proceder.”.
XXXII. Do artigo 590.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4 do CPC resulta que o poder do juiz de convidar as partes a aperfeiçoar os seus articulados quando estes revelem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada não é um poder discricionário, mas antes um poder-dever, um poder vinculado.
XXXIII. A existir alguma insuficiência, o que não se concede, a ausência de convite ao aperfeiçoamento configura a omissão de um ato que a lei prescreve, a qual acaba por inquinar o saneador-sentença, ferindo-o de nulidade ao abrigo do artigo 195.º, n.º 1 do CPC.
In casu,
XXXIV. a decisão de que aqui se recorre poderia ter sido evitada se o Tribunal a quo tivesse, anteriormente, dirigido um convite ao aperfeiçoamento dos articulados apresentados pelo Recorrente.
XXXV. A presente situação é especialmente onerosa porquanto o Tribunal a quo para além de omitir a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento relativo aos articulados apresentados pelo Recorrente, extraiu da pretensa insuficiência/deficiência dos mesmos efeitos que se projetaram na decisão de mérito imediata, especialmente em sede de saneador, pelo que conheceu de matéria que, face à omissão do dever de cooperação, não deveria conhecer.
Assim sendo,
XXXVI. A omissão de tal Despacho, sendo uma nulidade processual porquanto se trata de um ato que a lei prescreve, conforme alude o artigo 195.º, n.º 1 do CPC, influi no exame e decisão da causa, acabando por afetar com o vício da nulidade do próprio saneador-sentença.
XXXVII. Por esse motivo, sempre terá de se dizer que estamos perante uma nulidade do saneador-sentença por excesso de pronúncia ao abrigo do artigo 615.º, n.º1,alínea d) do CPC.
XXXVIII. Desse modo, deve o Douto Despacho Saneador-Sentença recorrido ser considerado nulo por excesso de pronúncia ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º, por violação do artigo 195.º, n.º 1 e do artigo 590.º, n.º 2, alínea b), n.º 3 e n.º 4, todos do CPC.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, que Vossa Excelência doutamente suprirá, deverá o presente Recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, ser declarado nulo o Despacho Saneador-Sentença a quo, com as demais consequências legais.
Só assim se fará a costumeira JUSTIÇA!

Os autores contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
No despacho de admissão do recurso, a Sra. Juíza pronunciou-se quanto às nulidades invocadas, considerando não se verificarem as mesmas.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver traduzem-se em saber se o tribunal podia conhecer imediatamente do mérito da causa no saneador, sem instrução do processo, designadamente, caso assim o entendesse, convidando a parte a aperfeiçoar o seu articulado; se foi omitido o direito ao contraditório e se ocorre nulidade do despacho saneador por omissão de pronúncia e/ou por excesso de pronúncia.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:
Das certidões prediais juntas aos autos como doc. n.º ... junta com a p.i. e doc. n.º ... junto com a contestação resulta provado que:
- Encontra-se registado a favor dos AA. pela Ap. ...81 de 04.01.2017 a aquisição, por doação, do direito de propriedade incidente sobre o prédio urbano situado na Rua ..., composto por casa de ... e logradouro, com a área total de 1650 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...18 e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. ...98.º;
- Encontra-se registado a favor do R. pela Ap. ...75 de 05.08.2020 a aquisição, por partilha, do direito de propriedade incidente sobre o prédio urbano situado no Lugar ..., composto por casa de cave em parte, ... e ... andar em parte logradouro, com a área total de 1595 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...05 e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. ...03.º.
Por acordo está igualmente assente que os prédios em causa confrontam entre si.

Vejamos, então, se o apelante tem razão.
Na sentença recorrida considerou-se que o réu não alegou factos suficientes que consubstanciassem a aquisição da parcela em causa por usucapião, pelo que a ação (de simples apreciação negativa) sempre teria que proceder.
Nos presentes autos, estamos perante uma ação de simples apreciação negativa que, conforme decorre do disposto no artigo 10.º, n.ºs 2 e 3, alínea a) do Código de Processo Civil, têm por fim obter unicamente a declaração da inexistência de um direito ou facto. Nesta formulação negativa “recairá sobre o réu o ónus da prova da existência do direito ou do facto que o autor veio questionar, assim se compreendendo, nestes casos, a manutenção do articulado de réplica, que permite ao autor responder à matéria que for alegada pelo réu na contestação (artigo 584.º, n.º 2 do CPC)” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, CPC Anotado, vol. I, pág. 39.
É incontestável que o réu, enredando-se em conclusões sobre o seu direito de propriedade, não é assertivo quanto à demonstração da sua posse sobre a faixa de terreno em questão, designadamente da sua aquisição por usucapião, sendo certo que a procedência de uma ação de reivindicação pressupõe a alegação e prova de factos relativos a um modo originário de aquisição.
Alega o réu que, desde a partilha do imóvel a seu favor, passou a possuir, a usar e a fruir plenamente o mesmo, salvaguardando a manutenção e limpeza do mesmo e suportado sozinho todas as despesas, como a manutenção e limpeza do jardim – artigos 112.º a 115.º da contestação – sendo que a utilização do imóvel pelo réu foi levada a cabo sem oposição de quem quer que fosse e à vista de todos – artigo 119.º da contestação – concluindo que “quer o réu, quer os antecessores do direito de propriedade sobre o aludido prédio sempre fizeram daquela parcela de terreno sua” e, para o efeito, demonstrando que  a anterior entrada construída quando o de cujos era o proprietário do imóvel, se encontra exatamente igual à que hoje existe, limitando-se o réu a usufruir dela – artigos 121.º a 123.º da contestação – e continua, fazendo referência às obras de conservação do imóvel e da área aqui em causa, e assegurando que os autores tinham pleno conhecimento das mesmas e até concordaram expressamente com elas, não se tendo nunca oposto às mesmas – artigos 124.º a 130.º da contestação. Mais à frente, conclui que o réu sempre considerou aquela parcela como sendo sua, assim como o fizeram os antecessores do direito de propriedade – artigos 143.º e 144.º da contestação.
Ora, em face de tal alegação insuficiente ou imprecisa, deveria o juiz ter convidado a parte a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido – artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b) e 4 do CPC.
Com efeito, em fase anterior à audiência prévia – artigo 590.º, n.º 2 b) e n.º 4 do CPC – ou na própria audiência prévia – artigo 591.º, n.º 1 c) do CPC – cabe ao juiz providenciar pelo suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto e que ainda subsista ou se torne patente na sequência do debate entre as partes.
Veja-se, até, que a Sra. Juíza já havia feito uso de tal poder, que se manifesta como um verdadeiro dever legal do juiz (despacho de aperfeiçoamento vinculado, no dizer de Autores e obra citada, pág. 678), convidando os autores a aperfeiçoarem a sua petição inicial, pelo que não se entende porque não usou do mesmo poder/dever relativamente ao articulado do réu, assim assegurando um processo equitativo, conforme decorre do disposto no artigo 547.º do CPC e está expressamente previsto nos artigos 590.º, n.º 2 b) e n.º 4 e 591.º, n.º 1 c), ambos do CPC.
A solução do convite ao aperfeiçoamento teve a sua origem no reforço dos poderes inquisitórios do juiz, vai buscar o seu fundamento à ideia da prevalência da decisão de mérito sobre puras decisões de forma.
Como refere Antunes Varela, in RLJ, ano 130.º, pág. 195, nota 83: “mais do que um poder do juiz, prevê-se um dever oficial de agir”. Pretende-se impedir que o conhecimento do mérito da causa ou a justa composição do litígio sejam prejudicados por razões de pura forma, designadamente, entre outras e para o que aqui releva, relacionadas com a deficiente, insuficiente ou imprecisa articulação da matéria de facto – veja-se Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II volume, 4.ª edição revista e actualizada, pág. 69.
Concede-se ao juiz o poder de proferir uma decisão convidando as partes a suprir insuficiências na exposição ou concretização da matéria de facto. “Trata-se de um poder-dever ou de um poder funcional a desencadear pelo juiz sempre que seja confrontado com uma situação que, não sendo remediada, conduza a uma decisão prejudicial à parte causadora das insuficiências ou imprecisões em qualquer dos articulados” – Abrantes Geraldes, in obra citada, pág. 73.
Tem-se em vista, designadamente, a falta de factos que contendem com as condições de procedência da ação (insuficiência), ou apenas imprecisões da matéria de facto ligadas à deficiente concretização da matéria factual, afirmações de pendor conclusivo ou suscitando dúvidas de interpretação, entre outras. Deve ter-se em vista cercear uma litigância precipitada nas conclusões e aligeirada nas asserções fáticas – CPC Anotado já citado, pág. 679 – convidando-se o réu a completar a sua defesa, alegando os demais factos omitidos com vista à subsunção na norma jurídica de que o réu pretende prevalecer-se (pág. 680).

Não tendo a Sra. Juíza despachado no sentido de providenciar pelo aperfeiçoamento da contestação, e tratando-se de um poder vinculado e não discricionário do juiz, a omissão desse despacho é suscetível de gerar nulidade processual por omissão de ato que influi na decisão da causa (artigo 195.º do CPC), que deverá ser apreciada no âmbito do recurso interposto. Com efeito, estando a nulidade coberta por decisão judicial que sancionou a respetiva omissão, o meio próprio para a arguir é o recurso competente, uma vez que a nulidade processual apenas ganha relevo quando tal se projeta negativamente na decisão que é proferida, sendo a questão apreciada em sede de interposição de recurso – cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes e outros, in CPC Anotado, vol. I, pág. 683, com citação de jurisprudência concordante.
Procede, assim, a apelação, nesta parte, ficando prejudicado o conhecimento das restantes conclusões.
No caso dos autos, deverá, assim, convidar-se o réu a suprir a insuficiência detetada na exposição da matéria de facto, fixando-se prazo para apresentação de articulado em que se complete o inicialmente produzido, devendo a parte ser esclarecida, no despacho a proferir, sobre as deficiências detetadas e a forma de as suprir.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se o saneador-sentença na parte em que apreciou o mérito da causa e concluiu pela procedência da ação, que deverá ser substituído por despacho que convide o réu a suprir a insuficiência detetada na exposição da matéria de facto, fixando-se prazo para apresentação de articulado em que se complete o inicialmente produzido, devendo a parte ser esclarecida, no despacho a proferir, sobre as deficiências detetadas e a forma de as suprir.
Custas pelos apelados.
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Guimarães, 21 de março de 2024

Ana Cristina Duarte
Afonso Cabral de Andrade
Paulo Reis