Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1230/12.8TBVVD-B.G1
Relator: PAULO DUARTE BARRETO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
MASSA INSOLVENTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
PENSÃO DE REFORMA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - A massa insolvente é uma realidade do processo de insolvência, constituída pelo conjunto dos bens apreendidos aos devedores a fim de satisfazer, em sede de liquidação, os créditos reconhecidos; o rendimento disponível, embora também se destine ao pagamento dos credores (aqueles cujo crédito não ficou satisfeito no processo de insolvência), é do pós insolvência, surge depois do encerramento do processo de insolvência.
II - A insolvência tem como finalidade a satisfação dos credores (art.º 1.º, n.º 1, do CIRE); a exoneração do passivo restante visa a reabilitação da vida económica do insolvente.
III - Em contrapartida da exoneração dos seus créditos, o devedor entrega todo o seu rendimento disponível, salvo as exclusões previstas no n.º 3, do art.º 239.º, do CIRE; o devedor age no seu interesse, pretende recomeçar a sua vida económica, libertando-se de todos os créditos que ainda não foram satisfeitos; a entrega do rendimento disponível resulta da iniciativa do devedor e insere-se num instituto que lhe é favorável; não há apreensão de bens, daí não se deva aqui indagar se os bens são ou não penhoráveis.
IV - A quantia fixada (500 €) é manifestamente insuficiente para garantir uma vida digna a este casal ou, dito de outro modo, a estas duas pessoas; entende-se como razoável e adequado o dobro do montante fixado pelo tribunal a quo para que estas pessoas vivam os actuais tempos difíceis com dignidade, satisfazendo as suas necessidades básicas, como sejam a de habitar uma casa com o mínimo de conforto, a de suportar as despesas do dia a dia, sem luxos, e a de ter acesso aos cuidados de saúde.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2.ª) do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório
J… e A…, na sequência da sua apresentação à insolvência, vieram requerer a exoneração do passivo restante.
A insolvência foi decretada por sentença de 09.10.2012 e a exoneração do passivo restante foi concedida, sendo determinado que o rendimento disponível a entregar ao fiduciário não inclui créditos cedidos a terceiros, nos termos do art.º 115.º do CIRE, nem o valor de quinhentos euros, nem o necessário para exercer actividade profissional que eventualmente venha a desenvolver.
Não se conformando com a decisão de fixar em 500 € o sustento minimamente digno, dela recorreram os Insolventes J… e A…, tendo formulado as seguintes conclusões:
“ 1. Tendo decidido, na sequência da concessão da exoneração do passivo restante, pela entrega ao fiduciário dos rendimentos dos Recorrentes, posteriores à declaração de insolvência - nomeadamente a pensão de reforma auferida pela Recorrente A… -, violou o douto tribunal recorrido o disposto, entre outros, nos arts. 46.º, nº 2 CIRE e 824º CPCivil.
2. De facto, o legislador implementou um regime, no âmbito do processo de insolvência de pessoa singular a concretamente no que trata dos bens a apreender para a massa insolvente -, que foi para além do regime especial relativo à impenhorabilidade do salário (ou reforma), constante do art. 824°, n° 1, al, c) CPC, afastando a apreensão, na totalidade e em qualquer medida, do produto do salário ou pensão de reforma.
3. Daqui resulta que o rendimento auferido pelo insolvente no decurso da vigência da exoneração do passivo restante, encontra-se fora do conjunto de bens susceptíveis de cessão à massa.
4. Neste sentido, aliás, se tem pronunciado a melhor jurisprudência - cfr., a título de exemplo, Ac. TRP, de 23/03/2009, Proc. nº 2384/06.BT JVNF-D.P1, Ac. TRP, de 26/03/2009, Proc. nº 1885/03.4TJVNF.P1, Ac. TRC, de 24/10/2006, Proc. nº 1017/03.9TBGRD-F.C1, Ac. TRL, de 16/11/2010, proc, nº 1030/10.0TJLSB-C.L1-7, e Ac. TRP, de 25/01/2011, proc. n.º 191/08.2TBSJM-H.P1.
5. A assim não suceder, reeditar-se-iam os efeitos patrimoniais das acções executivas, que a lei manda suspender após declaração de insolvência, privando os insolventes da sua única e exclusiva fonte de subsistência, e reduzindo o seu rendimento, o que não é legalmente permitido, nos termos das disposições conjuntas do CIRE e CPC.
6. Por outro lado, o art. 84° CIRE, que prevê a possibilidade de o insolvente receber um subsídio da massa, a título de alimentos, no caso de este não os poder angariar através do seu trabalho, constitui um forte argumento em abono da tese ora defendida. 7. Foi intenção do legislador, com a introdução daquela norma, incentivar o insolvente a obter rendimentos provenientes do seu trabalho, apenas concedendo a possibilidade de lhe vir a ser atribuído um subsídio, no caso de não ser possível obter esse provento pela via do salário/reforma.
8. Ora, tal desiderato atingir-se-á apenas se o insolvente puder dispor da totalidade dos rendimentos entretanto obtidos, que seriam poupados do dever de entrega à massa falida.
9. Caso estes se destinassem a integrar a massa, para além de constituir um desincentivo para o insolvente na busca de uma actividade e dos rendimentos dela oriundos, levá-lo-ia a optar, ou pelo menos a ponderar, pelo recebimento de um subsidio por carência de meios de subsistência, à custa dos rendimentos da massa, sem que partisse da sua actuação, e de uma atitude pró-activa, o recebimento de tais montantes.
10. Por outro lado, partindo do pressuposto de que o salário/pensão de reforma não pode, a partir da data da declaração de insolvência e até ao encerramento do processo, ser apreendido a favor da massa insolvente, tal como determina a melhor doutrina e jurisprudência, lógica não teria que essa apreensão - sob a forma de cessão do rendimento disponível, tal como determina o art. 239º CIRE-, passasse a poder ser determinada a partir do momento em que se inicia o prazo durante o qual o insolvente beneficia da exoneração do passivo restante.
11. Ora, tal hipótese, para além de configurar uma desarmonia gritante em todo o processo falimentar, tal como está concebido, resultaria num enorme desincentivo ao recurso ao instituto da exoneração do passivo restante, e um esvaziamento das virtualidades com que este se apresenta e foi instituído,
12. uma vez que seria potencialmente mais vantajoso para o insolvente não "beneficiar" da concessão de exoneração do passivo, pois embora visse liquidados todos os seus bens - o que sempre sucederia, com ou sem exoneração -, e se visse impossibilitado de adquirir quaisquer outros, poderia sempre ir auferindo um rendimento fixo, o que não ocorreria na hipótese contrária.
13. Atenta a manifesta desrazoabilidade de tal solução, podemos, também por esta razão, concluir pela inapreensibilidade do rendimento auferido pelos Recorrentes posteriormente à concessão da exoneração, nos termos das disposições conjugadas nos arts. 46º, 230º e 239º CIRE, ao contrário do que foi decidido no douto despacho recorrido.
14. Por fim, os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana - art. 1° CRP -, do direito ao recebimento de um salário - art. 59º, nº 1, al. a) CRP - e da tutela geral da personalidade - art. 70º, nº 1 CCivil - constituem igualmente um argumento sólido na defesa da tese da inapreensilbilidade dos rendimentos dos Recorrentes.
15. Na esteira daqueles princípios, a salvaguarda do que se considere razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do insolvente e do seu agregado familiar pressupõe, por si própria, a defesa da sua personalidade física e moral, bem como dos elementos do seu agregado familiar, do mesmo modo que o direito ao recebimento do salário é um direito do trabalhador com assento constitucional,
16. sendo que um e outro se reconduzem ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, que, em concreto, procuram assegurar.
17. Ora, a aplicação prática desses princípios, na presente situação, apenas se opera através da inapreensibilidade dos rendimentos dos Recorrentes, que uma vez mais se propugna.
18. Pelas todas as razões aduzidas, deverá concluir-se pela exclusão dos proventos auferidos pelos Recorrentes - após o início do prazo de concessão de exoneração do passivo restante -, do rendimento disponível a ser cedido ao fiduciário, atento o facto de estes montantes se encontrarem fora do conjunto dos bens e direitos susceptíveis de apreensão para a massa.
Sem prescindir,
19. Ainda que se entenda que os valores provenientes do salário/pensão de reforma dos Recorrentes - in casu a pensão de reforma da Recorrente A… - podem ser incluídos no rendimento disponível a entregar ao fiduciário, o que não se concede e apenas se aduz por mera cautela e dever de patrocínio, tal cessão, ainda assim, apenas poderá ser determinada no estrito cumprimento dos limites impostos pelos preceitos legais aplicáveis.
20. Especificamente, são aplicáveis à presente situação, com as necessárias alterações, as regras relativas à penhora de bens, previstas no Código de Processo Civil, nomeadamente no que tange às impenhorabilidades absolutas, relativas ou parciais, previstas nos arts, 822º e ss. CPC.
21. Neste mesmo sentido, o art. 46°, n.º 2 CIRE, impede a possibilidade de os bens impenhoráveis poderem vir a ser integrados na massa, o que apenas poderá ser afastado, tratando-se de bens sobre os quais não recaia uma impenhorabilidade absoluta, por vontade do insolvente.
22. Ora, no que aos rendimentos procedentes de uma pensão de reforma diz respeito, como é o caso em mérito nos autos, aplica-se a regra imperativa determinada no art. 824°, nº 1, al, b) CPC, que prevê a impenhorabilidade de 2/3 dessa prestação periódica, com o limite máximo equivalente a 3 salários mínimos nacionais à data de cada apreensão, tal como preceituado no nº 2 do mesmo artigo.
23. Da conjugação dos normativos citados, resulta evidente que ao insolvente não poderá ser imposta a entrega à massa do montante do equivalente a 2/3 do salário ou pensão - ou três salários mínimos, se aquele montante for superior, o que não é o caso -, mas somente o seu excesso.
24. Neste mesmo sentido se tem vindo a pronunciar a melhor jurisprudência - cfr., a título de exemplo, Ac. TRL, de 15/11/2011, Proc. nº 17860/11.2SNT-A.L1-7, Ac. TRL, de 15/11/2001, Proc. 17858/11.0T2SNT-A.L1-7, e Ac. TRL, de 08/11/2012, Proc. nº 1253/11.4TBOER-C.L1-8, que decidiu:
"Na determinação do montante concreto a excluir da cessão do rendimento disponível, nos termos e para o efeito do disposto no art. 239º, nº 3, al. b), sub-al. i) CIRE, à falta de outro critério legal, deve atender-se aos valores da impenhorabilídade dos rendimentos expressos no art. 824º CPC.” (sublinhado nosso)
25. Ora, no que aos presentes autos diz respeito, o douto despacho recorrido, ao determinar um montante de €500 como suficiente para o sustento minimamente digno do casal, não fez uma correcta apreciação dos preceitos legais aplicáveis,
26. pelo que, em conformidade, e nesta hipótese, deverá ser revogado, e determinada a não entrega por parte dos Recorrentes, no período de cinco anos após o encerramento do processo, em que vigorar a concessão de exoneração do passivo restante, do montante de €1320, correspondente a 2/3 da pensão de reforma devida à Recorrente A…, montante esse que é absolutamente impenhorável.
Ainda sem prescindir,
27. ainda que se venha a considerar válida a apreensão da pensão de reforma da Recorrente A…, em montante superior a 1/3 da mesma, o que uma vez mais não se concede, a douta sentença recorrida não poderia, em caso algum, ter determinado a retenção de apenas €500 mensais por parte do casal insolvente, pelo período de cinco anos, na vigência da exoneração do passivo restante concedida.
28. A doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender esmagadoramente que o mínimo considerado necessário para que uma pessoa possa obter um sustento condigno se traduz na atribuição ao insolvente de um montante corresponde ao salário mínimo nacional.
29. Ora, no caso em mérito, foram declaradas insolventes duas pessoas singulares, que são casadas entre si, mas que, antes de o serem, são seres humanos, individualmente considerados e perfeitamente autonomizáveis.
30. Neste sentido, a dignidade humana, tal como consagrada no art. 1° CRP, não é divisível ou compartilhável, devendo ser aferida e garantida individualmente,
31. o que não sucedeu nos presentes autos, uma vez que o douto despacho recorrido concedeu apenas, e em abstracto, a mera quantia de €250,00 a cada um dos insolventes, o que é manifestamente insuficiente para garantir uma vida condigna durante um mês.
32. Assim, havendo rendimentos do casal que o permitam, como é o caso, deverá determinar-se a atribuição de um rendimento que permita um sustento mínimo a cada um dos insolventes, correspondente a um salário mínimo nacional por cada um.
Acresce que,
33. a atribuição de um montante inferior ao ora propugnado faria com que a economia do casal se tornasse insustentável, e poderia colocar os Recorrentes abaixo de um padrão mínimo de dignidade social.
34. Assim, para além de terem de abandonar a casa de morada de família, que lhes pertence, e onde habitam, e, consequentemente, arrendar uma outra e pagar a respectiva renda, terão sempre de arcar com as despesas normais da economia doméstica, nomeadamente água, electricidade, telefone, condomínio, entre outros, para além das despesas com alimentação, vestuário, medicamentos e deslocações para tratamentos médicos.
35. Por sua vez, o insolvente J…, como já ficou comprovado nos autos, foi vítima de dois acidentes de viação, dos quais resultaram ferimentos graves numa das pernas, que o impossibilitam de trabalhar na sua profissão, e o impedirão de arranjar um emprego com um salário condigno, sendo expectável a manutenção da situação de desemprego, em que se encontra.
36. Para além disso, necessitará de se submeter a variados períodos de tratamento das graves sequelas decorrentes daqueles acidentes, nos quais terá de despender elevadas quantias.
37. Deste modo, a quantia de €500 mensais, instituída pelo douto tribunal a quo, não é susceptível de garantir aos insolventes uma vida minimamente digna, nos termos do disposto nos arts. 1° CRP e 239º CIRE, devendo, nesta hipótese subsidiária, o douto despacho recorrido ser revogado, e substituído por outro que, impondo a cessão do rendimento disponível dos Recorrentes, exclua desse montante o correspondente a dois salários mínimos nacionais, o que actualmente se cifraria na quantia de €970”.
Não houve contra alegações.
*
II – Fundamentação
O objecto de recurso afere-se do conteúdo das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º - A do Código de Processo Civil).
Isso significa que a sua apreciação deve centrar-se nas questões de facto e ou de direito nele sintetizadas e que são as seguintes:
- Matéria de direito (está em causa indagar se a pensão, ou parte dela, da insolvente deve excluída do rendimento disponível a que se refere o artigo 239.º, n.º 2, do CIRE, e, bem assim, se a quantia fixada para o casal – 500 € - é suficiente para garantir o sustento minimamente digno.
*
A insolvente A… aufere uma pensão da Caixa Geral de Aposentações no montante de 1,980,80 €.
Determina o artigo 46.º, n.º 1, do CIRE, que, salvo disposição em contrário, a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Mais consagra o n.º 2 do mesmo comando normativo, que os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.
Ora, o artigo 824.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil, fixa a impenhorabilidade de dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação.
Por conseguinte, face aos citados artigos 64.º, do CIRE, e 824.º, n.º 1, al. b), do CPC, dois terços da aposentação da Insolvente A… não podiam integrar a massa insolvente, por serem impenhoráveis e porque voluntariamente não foram nela integrados pela insolvente.
Importa, agora, conjugar esta conclusão com o instituto da exoneração do passivo restante.
Podemos ler no ponto 45 do preâmbulo da Lei que aprovou o CIRE:
“O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante’.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.
Esclareça-se que a aplicação deste regime é independente da de outros procedimentos extrajudiciais ou afins destinados ao tratamento do sobreendividamento de pessoas singulares, designadamente daqueles que relevem da legislação especial relativa a consumidores”.
O pedido da exoneração do passivo restante constitui, assim, uma reabilitação da vida económica do insolvente, sendo-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (art.º 235.º, do CIRE).
Este fresh start fica condicionado, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, a um período de cessão, no qual o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir se considera cedido a um fiduciário (art.º 239.º, n.º 2, do CIRE).
E o n.º 3, do art.º 239.º, indica quais os proventos que ficam excluídos daquele rendimento disponível.
Visto o enquadramento legal, importa desde logo considerar que massa insolvente e rendimento disponível são distintas realidades jurídicas.
A massa insolvente é uma realidade do processo de insolvência, constituída pelo conjunto dos bens apreendidos aos devedores a fim de satisfazer, em sede de liquidação, os créditos reconhecidos. O rendimento disponível, embora também se destine ao pagamento dos credores (aqueles cujo crédito não ficou satisfeito no processo de insolvência), é do pós insolvência, surge depois do encerramento do processo de insolvência.
Depois, os bens integram a massa insolvente por via da sua apreensão, enquanto no rendimento disponível é de cedência que se trata.
A insolvência tem como finalidade a satisfação dos credores (art.º 1.º, n.º 1, do CIRE). A exoneração do passivo restante visa a reabilitação da vida económica do insolvente.
Aqui chegados, sabemos já, o que é isento de penhora não pode ser integrado na massa insolvente, salvo se o devedor voluntariamente o apresentar. A apreensão em insolvência não ultrapassa a penhora em execução. Porém, no rendimento disponível não há uma apreensão, mas uma cessão. Em contrapartida da exoneração dos seus créditos, o devedor entrega todo o seu rendimento disponível, salvo as exclusões previstas no n.º 3, do art.º 239.º, do CIRE. O devedor age no seu interesse, pretende recomeçar a sua vida económica, libertando-se de todos os créditos que ainda não foram satisfeitos. A entrega do rendimento disponível resulta da iniciativa do devedor e insere--se num instituto que lhe é favorável. Não há apreensão de bens, daí não se deva aqui indagar se os bens são ou não penhoráveis.
E assim decaem as conclusões 1.ª a 26.ª da apelação, por não haver fundamento legal que exclua do rendimento disponível a totalidade da aposentação da Recorrente.
Resta a última questão abordada no recurso: os 500 € fixados pelo tribunal a quo não garantem o sustento mínimo garantido dos insolventes.
Têm razão os recorrentes. Trata-se de duas pessoas. Embora casal, têm despesas próprias, como médico-medicamentosas, vestuário, calçado, alimentação, telemóvel. Até mesmo em sede de despesas que podemos considerar comuns, como o consumo de água, luz, gás, certamente que duas pessoas gastam mais do que uma. Os Recorrentes têm 61 e 62 anos de idade, pertencendo a um escalão etário que já não é jovem, sendo maior a probabilidade de surgirem as doenças, com recurso a exames de diagnóstico e a consultas médicas, mesmo com carácter de prevenção. A quantia fixada é manifestamente insuficiente para garantir uma vida digna a este casal ou, dito de outro modo, a estas duas pessoas. Entende-se como razoável e adequado o dobro do montante fixado pelo tribunal a quo para que estas pessoas vivam os actuais tempos difíceis com dignidade, satisfazendo as suas necessidades básicas, como sejam a de habitar uma casa com o mínimo de conforto, a de suportar as despesas do dia a dia, sem luxos, e a de ter acesso aos cuidados de saúde.
Procede a apelação, fixando-se em 1.000 € (mil euros) o sustento minimamente digno a que se refere o art.º 239.º, n.º 3, do CIRE.
*
III – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente a apelação, e, em consequência, revoga-se parcialmente a decisão recorrida, fixando-se em 1.000 € (mil euros) o sustento minimamente digno a que se refere o art.º 239.º, n.º 3, do CIRE.
Sem custas.
Guimarães, 18 de Junho de 2013
Paulo Barreto
Filipe Caroço
António Santos