Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
487/21.8T8VCT-A.G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO
PROVAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- Com a entrada em vigor da Lei no 117/2019 de 13 de setembro a
reclamação contra a relação de bens já não constitui um incidente do processo de
inventário, inserindo-se na marcha regular do processo em causa.
- Assim, não obstante a indicação das provas dever ser feita com os
requerimentos e respostas (v. art. 1105o, no 2 do C. P. Civil), nos casos em que o
processo comporte uma fase instrutória (v. art. 1109o, no 3 do C. P. Civil), com a
designação de data para inquirição das testemunhas arroladas pelos interessados, a
apresentação dos documentos pode ser efetuada até 20 dias antes da data em que se
realize tal inquirição, ao abrigo do disposto no no 2 do art. 423o do C. P. Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório:

AA instaurou processo de inventário por morte de seus pais BB e CC. Foi designado cabeça-de casal DD. Na sequência da apresentação por esta da relação de bens, os interessados DD e EE apresentara, separadamente, em 16/12/21 articulado de resposta.
O cabeça de casal pronunciou-se sobre tais articulados em 22/4/22.
Em 22/5/22 a interessada EE apresentou requerimento a juntar inúmeros documentos que tinha protestado juntar aquando da apresentação da sua resposta.
Por despacho de 31/5/22 foi designada a audiência prévia para 22/6/22.

Pronunciando-se sobre o requerimento junto em 22/5/22, a Exmª Juiz de primeira instância proferiu o seguinte despacho:

“Não se admitem os documentos juntos pela interessada EE, apesar de a referida interessada os ter protestado juntar aquando da apresentação da reclamação em 16.12.2021, tal não é legalmente admissível, visto que as provas das reclamações, tem que ser apresentadas aquando da apresentação das mesmas.

Assim, por extemporâneos nos termos do artigo 1105º, n.º 2, do CPC, não se admitem os documentos ora juntos (passados 5 meses da apresentação da reclamação ) pela mencionada interessada, determinando-se o seu desentranhamento, após trânsito.”

Inconformada a Interessada recorreu, formulando as seguintes Conclusões:

1ª.- A interessada EE, em 22 de maio de 2022, no âmbito do incidente de reclamação à relação de bens, juntou aos autos ...07 documentos que tinha protestado juntar aos autos.
2ª- Na data em que os documentos foram juntos aos autos (22 de maio de 2022), nem sequer se encontrava agendada qualquer data para a inquirição de testemunhas, ou qualquer outra diligência de prova.
3ª-Pelo que salvo o devido respeito, na data em que a Interessada, juntou aos autos os documentos, estava a luz do disposto no nº 2 do Artigo 423º do Código de Processo Civil, perfeitamente dentro do prazo.
4ª- E nesse pressuposto, os mesmos tinham, obrigatoriamente, de ser admitidos, tanto mais que esta tinha protestado juntar em sede de incidente de reclamação.
5ª- A sua não admissão configura, salvo o devido respeito, uma violação, grave, pelo Tribunal “a quo” do princípio da procura da verdade material com vista à justa composição do litígio, norteado pela ideia de efetiva justiça:
6ª- Ao não respeitar o supra exposto, o douto despacho recorrido violou, além do mais o disposto nos Artigos 423º nº 2º 1105º nº 2 e 1123º todos do Código Civil.

Nestes termos e nos mais de direito, que serão doutamente supridos por V. Exas. deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o douto despacho proferido, substituindo-se por outro que admita a junção aos autos dos documentos apresentados pela interessada EE, tudo de acordo com o supra exposto.
Com o que se fará
JUSTIÇA.
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Foram apresentadas contra-alegações pelo cabeça-de-casal no sentido da improcedência do recurso.
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Questão a decidir:
- Analisar se os documentos apresentados podem ser admitidos
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Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Os factos com interesse para a decisão da causa são os que constam do relatório da presente decisão.
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O Direito:

Em 1 de janeiro de 2020 entrou em vigor a Lei nº 117/2019 de 13 de setembro que alterou o regime do processo de inventário.

Tal como nos dizem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres (in O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, pág. 8) “O novo modelo do processo de inventário assenta em fases processuais relativamente estanques e consagra um princípio de concentração dado que fixa para cada ato das partes um momento próprio para a sua realização.”

Explicam estes autores que, no modelo ora instituído, o processo de inventário para fazer cessar a comunhão hereditária, comporta as seguintes fases:
- Uma fase dos articulados na qual as partes, para além de requererem instauração do processo, têm de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respetivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, ativo e passivo, que constitui objeto da sucessão. Esta fase abrange a subfase inicial (arts. 1097º a 1002º) e a subfase da oposição (arts. 1104º a 1107º).

No articulado de oposição devem os interessados impugnar concentradamente todas as questões que podem condicionar a partilha, nomeadamente, apresentar reclamação à relação de bens (v. art. 1104º do C. P. Civil).
- A fase de saneamento, na qual o juiz, após a realização das diligências necessárias – entre as quais se inclui a possibilidade de realizar uma audiência prévia – deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar e também proferir despacho sobre a forma da partilha.
- A fase da partilha onde ocorrerá a conferência de interessados na qual se devem realizar todas as diligências que culminam na realização da partilha.

No caso, estamos claramente na fase dos articulados, subfase da oposição/contestação, em que os interessados, nomeadamente, reclamaram da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal.

Nos anteriores regimes do processo de inventário a reclamação contra a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal era desenhada como um incidente da instância do inventário a que se aplicava a tramitação própria dos incidentes, regulada nos arts. 302º a 304º do Código de Processo Civil anteriormente vigente e, posteriormente nos arts. 292º a 295º do atual Código de Processo Civil.

Atualmente, tal como resulta do que acima foi dito, a reclamação contra a relação de bens já não constitui um incidente do processo de inventário, inserindo-se na marcha regular do processo em causa.

Ora, por via do disposto no art. 549º, nº 1 do C. P. Civil, à tramitação do inventário são aplicáveis as disposições da parte geral desse Código, bem como as regras do processo civil de declaração que se mostrem compatíveis com o processo de inventário judicial. Assim, é aplicável ao caso concreto, com as necessárias adaptações o disposto no nº 2 do art. 423º do mesmo Código.

O processo de inventário judicial não comporta uma fase de julgamento, pelo que o prazo previsto no mencionado art. 423º, nº 2 não pode ter como marco a audiência final. No entanto, nos casos em que, como no presente, em que o processo comporte uma fase instrutória (v. art. 1109º, nº 3 do C. P. Civil), com a designação de data para inquirição das testemunhas arroladas pelos interessados, a apresentação dos documentos deve ter como limite, não a apresentação do articulado respetivo, mas sim a data fixada para tal inquirição.

É certo que o novo regime do processo de inventário visa uma tramitação mais eficaz e mais célere dos processos, no entanto, o entendimento acima exposto em nada colide com o objetivo do novo modelo procedimental já que a observância do prazo previsto no art. 423º, nº 2, relativamente à data de inquirição de testemunhas, permitirá que a apresentação dos documentos ao abrigo desse preceito e as eventuais pronúncias sobre os mesmos, a apresentar pelos restantes interessados, ocorra antes da fase da partilha.

Deste modo, não obstante a indicação das provas dever ser feita com os requerimentos e respostas (v. art. 1105º, nº 2 do C. P. Civil), os documentos poderão ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a inquirição de testemunhas, na fase instrutória do processo, caso o processo a comporte, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pode oferecer com o articulado.

Deste modo, a junção dos documentos deve ser admitida, devendo apenas a Exmª Juiz verificar se é de aplicar ou não a multa prevista no mencionado art. 423º, nº 2.
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Decisão:

Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrido.
Guimarães, 12 de janeiro de 2023

Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira
José Cravo