Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
641/18.0T8VNF-C.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO
VENDA DE BENS/VENDA EXECUTIVA
DIREITO DO ADQUIRENTE DE EXIGIR A ENTREGA DA COISA CONTRA O DETENTOR
OBRIGAÇÃO DE ENTREGA DA COISA NA AÇÃO
INCIDENTE DE ENTREGA DE BENS ADQUIRIDOS NO PROCESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pela relatora):

I - Tal como no processo executivo (art.º 828º do CPC), também na liquidação em insolvência, mesmo que esta já se encontre finda, é de admitir que o adquirente venha aos autos exigir a entrega da coisa adquirida contra quem a detenha.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Nos autos de insolvência de “X - Faianças De ..., Lda.” (apenso da liquidação), veio “Y - Comércio e Serviços, Unipessoal, Lda.”, adquirente de bens vendidos no âmbito do referido processo, informar que ainda não lograra a entrega dos bens que lhe foram adjudicados, requerendo:

a) A notificação do Administrador Judicial (A.I.) para:
a. Com a antecedência de 15 dias e em coordenação com o Fiel Depositário – Sr. C. G. – agendar e proceder à imediata entrega dos bens à Requerente;
b. Após agendamento proceder à notificação à Requerente do dia e hora do início dos trabalhos de entrega dos bens;
b) A notificação ao Fiel Depositário – Sr. C. G. – informando-o:
a. De que será contactado pelo Exmo. Sr. Administrador Judicial a fim de marcar dia e hora para a entrega dos bens;
b. De que não poderá, de qualquer forma, impedir a entrega dos bens;
c. Que os trabalhos de remoção poderão demorar, no mínimo, 5 dias e no máximo 15 dias;
d. Que não cabe à Requerente qualquer limpeza do imóvel onde se encontram os bens;
c) A notificação do Exmo. Sr. Administrador Judicial e do Fiel Depositário de que o incumprimento da entrega dos bens configurará a prática de um crime de desobediência;

Mais se requer que seja a Requerente indemnizada pela Massa Insolvente no valor despendido com a deslocação dos dias 05 e 06 de Novembro de 2018, cuja factura se enviará ao AJ logo que se encontre na posse da Requerente.
Requer ainda que, no caso de ser verificado o desaparecimento de bens que compõem a verba adquirida, seja apurado o seu valor e o mesmo devolvido à Requerente.
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Notificados deste requerimento, responderam o A.I., bem como o actual e o anterior proprietários do imóvel onde os bens estão depositados.
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Na sequência foi proferido o seguinte despacho:

– «A liquidação encontra-se finda e todos os bens, incluindo os que estão identificados no requerimento de dezembro último, foram alienados a terceiro.
Assim, nada há a determinar neste processo.
Notifique os requerentes e o sr. AI e, após, arquive novamente este apenso
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Inconformada, a requerente interpôs o presente recurso de apelação, que instruiu com as pertinentes alegações em que formula as seguintes conclusões:

«I. O terceiro que está na posse dos bens apreendidos no âmbito dos autos de insolvência e que vieram a ser adquiridos pela recorrente (existindo título de transmissão, leia-se factura e recibo da massa insolvente), recusa-se a entregá-los.
II. Tendo a recorrente dado nota ao tribunal recorrido da oposição à entrega por parte do terceiro e tendo requerido que o Sr. Administrador procedesse à entrega dos bens, foi proferida decisão onde ficou consignado que nada havia a determinar nos autos.
III. Existindo título de transmissão dos bens, em posse de terceiro, a favor da recorrente e recusando-se o terceiro à sua entrega, vigora o regime plasmado no CPC, por força do art.º 17º, do CIRE.
IV. Nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs. 828º e 861º, ambos do CPC, compete ao Administrador da insolvência proceder à entrega dos bens à recorrente, bastando, para tanto, que o adquirente dê conta dos entraves que lhe são colocados pelo terceiro, como a recorrente deu.
V. Deveria o Tribunal a quo ter ordenado a notificação do Sr. Administrador da Insolvência para proceder à entrega dos bens, se necessário, com o auxílio da força pública e arrombamento de fechaduras – Cf. art.º 757º, n.º 3, do CPC, ex vi do art.º 772º, do CPC.
VI. Com todo o respeito, a decisão recorrida violou, além do mais, as seguintes normas legais: art.ºs 828º, 861º, 757º, n.º 3 e 772º, todos do CPC, ex vi do art.º 17º do CIRE.
VII. Neste mesmo sentido caminha a doutrina e a jurisprudência: - José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes (Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, Edição de 2003, pág. 593) quando indicam que o Art. 828º do CPC (anterior Art. 901º) “visou deixar claro que, encontrando o adquirente dificuldade em tomar posse da coisa corpórea adquirida, a entrega judicial tem lugar, a seu requerimento, no processo de execução” visando “tutelar os interesses do adquirente, proporcionando-lhe um meio específico contra o detentor ilegítimo da coisa adquirida”.
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20/11/2012, Proc. n.º 677/09.1TYVNG-F-P1, consultável em www.dgsi.pt, designadamente no que tange à inteira aplicabilidade dos art.ºs 828º e 861º do CPC (anteriores 901º e 930º) ao processo insolvimentar.

Com o que, deve ser revogada a decisão do Tribunal a quo, substituindo-se por outra que determine:

a) A notificação do Exmo. Sr. Administrador Judicial para:
a. Com a antecedência de 15 dias e em coordenação com o Fiel Depositário – Sr. C. G. – agendar e proceder à imediata entrega dos bens à Requerente;
b. Após agendamento proceder à notificação à Requerente do dia e hora do início dos trabalhos de entrega dos bens.»
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A recorrida (Massa Insolvente X - Faianças De ..., Lda.) contra-alegou.
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Tal recurso não foi admitido.
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Do despacho que não admitiu o recurso a recorrente reclamou para este Tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no art.º 643º nºs 1 e 3 do CPC.
A relatora decidiu atender a reclamação, admitindo o recurso, a subir de imediato, nos próprios autos (apenso C) e com efeito devolutivo.
Requisitou-se o apenso C ao Tribunal “a quo”, ex vi art.º 643º nº 6 do CPC, que nos foi oportunamente remetido.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que se reconduzem à verificação dos pressupostos da excepção do caso julgado.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos com interesse para a apreciação do presente recurso constam do relatório supra.

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

O processo de insolvência é um processo de execução universal, que tem como finalidade a satisfação de todos os credores de um devedor através, nomeadamente, da liquidação (venda) do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

A venda dos bens apreendidos que integram a massa insolvente é efectuada segundo as regras previstas no CIRE (artºs 158º a 168º), aplicando-se, em tudo quanto aí não se mostre previsto e que não contrarie as respectivas disposições, o regime da venda em processo executivo do Código de Processo Civil, ex vi artºs. 17º do CIRE e 549º do CPC .

Assim, no que tange à venda de bens e salvo as regras especificamente previstas no CIRE, aplica-se o disposto para a venda em processo de execução, assumindo o Liquidatário, “grosso modo”, a posição que na venda executiva compete ao agente de execução.

Nos termos do art.º 879º do CC “a compra e venda tem como efeitos essenciais:

a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;
b) A obrigação de entregar a coisa;
c) A obrigação de pagar o preço.

Impende sobre o vendedor a obrigação de entregar a coisa nos termos do art.º 882º do CC.
A venda em execução, ressalvadas as especificidades previstas no art.º 824º a 826º do CC, tem similares efeitos e prevê para as partes as mesmas obrigações.
Impende assim sobre o agente de execução a obrigação de entregar a coisa vendida e, por isso mesmo, também sobre o Liquidatário em processo de insolvência, impende a obrigação de entregar a coisa.
A propriedade da coisa e a titularidade do direito na venda civil transmite-se por mero efeito do contrato (art.º 408º do CC), que, na venda Judicial, antigamente se traduzia no título de adjudicação ou certidão do despacho de adjudicação e actualmente consiste na emissão e entrega do título de transmissão dos bens (art.º 827º do CPC).
A obrigação de entrega decorre das regras gerais e está especificamente prevista na Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto, que regulamenta vários aspectos das acções executivas cíveis e o regime dos depósitos públicos e equiparados e da venda de bens penhorados nestes depósitos (v.g. nos artºs 32º nº5, 34º nº 10).
Atento o disposto no art.º 150º nº 1 do CIRE, salvas as excepções previstas nos números seguintes, o Administrador da Insolvência apreende os bens e deles fica fiel depositário.
Também no processo executivo em regra o depositário é o agente de execução quando este é solicitador de execução (art.º 756º nº 1 do CPC), ressalvadas as especialidades aí previstas.
Quando o fiel depositário não é o agente de execução, impende sobre aquele o dever de apresentar os bens sempre que este lho exija (art.º 771º do CPC), nomeadamente quando tenha de proceder à entrega dos mesmos.
Sem prejuízo do disposto no citado artigo e das normas do Código Penal que punem as infracções cometidas pelo depositário, nomeadamente a não entrega dos bens quando para tal notificado, prevê ainda expressamente o CPC, no seu art.º 828º, que “o adquirente pode, com base no título de transmissão a que se refere o artigo anterior, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no artigo 861.º, devidamente adaptados”.

A propósito da história deste preceito e da sua interpretação, transcrevemos a seguir um excerto do acórdão do TRP de 5.12.2016 (1631/14.7TBGDM.P1) publicado em dgsi.pt (Desembargador Augusto Carvalho), com que concordamos:

– « (…) Ao artigo 901º corresponde o actual artigo 828º que manteve aquele, apenas com a actualização, decorrente da renumeração do novo C.P.C.

Ora, o actual artigo 828º, tal como o anterior artigo 901º, permite ao adquirente de bens em execução, com base no título de transmissão referido no artigo 827º, requerer o prosseguimento dessa execução, formulando pedido de entrega contra o detentor, nos termos prescritos no artigo 861º, todavia, sem que isso implique a instauração de uma nova execução para entrega de coisa certa.

É isso que defende Lebre de Freitas ao referir que «o artigo 828º concede ao adquirente dos bens penhorados o direito de requerer a sua entrega na própria execução. É assim enxertado, na acção executiva para pagamento de quantia certa, um pedido de execução para entrega de coisa certa, dirigido contra quem os detenha. Não se trata duma acção executiva para entrega de coisa certa nem da conversão duma execução para pagamento de quantia certa em execução para entrega de coisa certa.

(…) Para Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, 1998, pág. 418 (também perante a anterior redacção), a execução transforma-se numa execução para entrega de coisa certa, ideia que está certa se não significar uma verdadeira conversão (como as dos artigos 867º e 869º), mas apenas a utilização não exclusiva, da instância (pendente ou extinta) para essa finalidade (tão-pouco, por exemplo, a tomada de posse efectiva do bem penhorado, pelo depositário, implica qualquer conversão)». A Acção Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 421. (realce nosso)

Ou seja, no artigo 828º do C.P.C., permite-se que a execução para pagamento de quantia certa, em que um determinado bem foi adjudicado, prossiga para a entrega deste; o adquirente de bens em execução para pagamento de quantia certa pode, com base no título de transmissão referido no artigo 827º, requerer o prosseguimento dessa execução, formulando pedido de entrega contra o detentor, nos termos prescritos no artigo 861º, todavia, sem que isso implique a instauração de uma nova execução para entrega de coisa certa.»

Significa isto que, no âmbito do processo executivo, mesmo que a execução já esteja finda, é de admitir que o adquirente nos termos do art.º 828º do CPC venha exigir a entrega da coisa contra quem a detenha. Sem prejuízo do que se acha disposto sobre a obrigação de apresentação dos bens por quem se encontra investido como fiel depositário dos mesmos.

Sobre a aplicabilidade deste preceito à liquidação na insolvência já atrás discorremos. A questão foi igualmente decidida no sentido proposto pelo acórdão do TRP de 20.11.2012 (677/09.1TYVNG-F.P1) citado pela apelante.

Pelo exposto impõe-se a revogação do despacho recorrido que se recusou “in limine” a apreciar o requerimento da ora recorrente.

Não compete a este Tribunal de recurso decidir sobre o mérito de tal requerimento, uma vez que sobre ele não se debruçou a decisão recorrida, mas apenas sobre a sua admissibilidade e obrigação de o Tribunal recorrido o apreciar, instruir e decidir, efectivando a pretensão do requerente (entrega dos bens adquiridos no processo) independentemente do apenso da liquidação se encontrar findo.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido e, em sua substituição, admite-se o requerimento apresentado pelo adquirente dos bens, determinando-se o prosseguimento do incidente.
Custas da apelação pelos apelados.
Guimarães, 13-06-2019

Eva Almeida
Maria Amália Santos
Ana Cristina Duarte