Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
323/11.3TMBRG-A.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: ARROLAMENTO
INCIDENTE DA AÇÃO DE DIVÓRCIO
PRELIMINAR DO INVENTÁRIO
PERICULUM IN MORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) A circunstância de se afirmar que o arrolamento é intentado como incidente de divórcio, que já se encontrava proferido por sentença, transitada em julgado, nessa ocasião, não é impeditivo que se considere que o mesmo é preliminar do processo de inventário para partilha dos bens do casal;
2) O arrolamento não se esgota na ação de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efetuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens;
3) Justifica-se a aplicação do regime especial previsto no artigo 409º do NCPC ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio, como preliminar do inventário instaurado para partilha, porquanto, nesses casos, ocorre situação igualmente merecedora de tutela especial, justificando o desvio às regras gerais na tramitação da providência, no que se refere à dispensa de alegação e demonstração de um dos seus requisitos: o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) M. F. veio intentar procedimento cautelar de arrolamento contra J. S., como incidente da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, onde conclui pedindo que:
1) Seja julgado procedente o presente procedimento cautelar e, em consequência, seja decretado o arrolamento dos bens constantes da relação supra;
2) Que a providência seja decretada sem audiência do requerido, para não comprometer a sua finalidade, nos termos do artigo 36º do CPC.

Para tanto alega, em síntese, que contraiu casamento com o requerido em 10/04/1963, sem convenção antenupcial, no regime de comunhão geral de bens e, por sentença de 03/09/2012, transitada em julgado, que correu termos na 2ª secção do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi decretado o divórcio entre requerente e requerido, sendo que o acervo dos bens do casal se mantém indiviso, com exceção de uma parte dos bens imóveis do casal, sendo ainda a requerente e o requerido detentores de participações sociais em empresas, em comum, tendo este praticado atos de gestão danosa das sociedades, além de que, na constância do matrimónio, a requerente outorgou a favor do requerido uma procuração que lhe conferia todos os poderes para dispor do seu património, em seu nome, tendo a mesma receio que o requerido dissipe todo o património que ainda detêm em conjunto.
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B) Foi proferida a decisão com a referência 176769906, que julgou a providência cautelar procedente e, em consequência, ordenou o arrolamento:

- dos bens imóveis (verbas nº 1 a 11);
- das quotas (verbas nº 12 a 15).
Depositário das quotas: requerente e requerido cada um na proporção de metade do respetivo valor, designadamente a fim de não inviabilizar a sua utilização normal e evitar que um dos cônjuges administre os mesmos de forma a comprometer definitivamente os interesses patrimoniais do outro, o que se determina nos termos do disposto no art. 408º, nº 2, do CPCivil.
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C) Inconformado com esta decisão, veio o requerido J. S. interpor recurso, que foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (ref. 178324128).
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Nas alegações de recurso do apelante J. S., são formuladas as seguintes conclusões:

I. O presente recurso é interposto da sentença proferida em 2021.12.21, a qual julgou o procedimento cautelar interposto pela recorrida procedente e ordenou o arrolamento das verbas 1 a 15, nomeando como depositário das quotas o recorrente e a recorrida.
II. Salvo o devido respeito, a referida sentença padece de vários erros de julgamento, não podendo manter-se.
III. Desde logo, o presente procedimento cautelar de arrolamento foi instaurado pela recorrida, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 409º, nº 1, do Código de Processo Civil, “como incidente da ação de divórcio sem mútuo consentimento do outro cônjuge”, tendo o mesmo sido instaurado como apenso à referida ação.
IV. Na sentença recorrida, o Tribunal a quo considerou que o arrolamento em apreço surgiria, antes, como preliminar e como dependência do processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio, porquanto o matrimónio foi dissolvido em junho de 2012.
V. Considerou ainda que, não obstante, era de aplicar, in casu, o regime previsto no art.º 409º, do Código de Processo Civil, estando, por conseguinte, a recorrida dispensada de alegar e demonstrar o justo receio de extravio ou dissipação dos bens comuns do casal e o Tribunal de indagar tal receio, pois a lei presumiria, “iuris et de iure”, a sua existência.
VI. Contudo, não assiste razão ao Tribunal a quo.
VII. Em conformidade com o disposto no art.º 364º, do Código de Processo Civil, aplicável aos procedimentos cautelares especificados ex vi do art.º 376º, nº 1, o procedimento cautelar pode ser instaurado como preliminar ou incidente de uma ação, sendo sempre dependência de uma determinada causa (art.º 364º, nº 1, do Código de Processo Civil) e visando acautelar, provisoriamente, o direito que nela se pretende exercer.
VIII. No arrolamento especial, previsto no art.º 409º do Código de Processo Civil, prevê-se igualmente que este pode ser instaurado como preliminar ou incidente da ação de divórcio, o que pressupõe que a referida ainda não tenha sido proposta ou que esteja ainda pendente.
IX. Se a ação principal de que o procedimento cautelar é dependência já se encontra finda, nada há a acautelar e o procedimento cautelar é inútil, devendo ser julgado improcedente.
X. Ora, como se referiu, o presente procedimento cautelar foi instaurado como incidente da ação de divórcio e por apenso a esta ação, sendo que, como bem constatou o Tribunal a quo, a referida ação já terminou por sentença proferida em 06.06.2012, transitada em julgado.
XI. Atento o exposto, atenta a forma como o requerente configurou a relação material controvertida, o arrolamento requerido era originariamente inútil, pelo que deveria o Tribunal a quo ter indeferido o procedimento cautelar requerido e não ficcionar que o procedimento era afinal preliminar de uma outra ação judicial – de inventário –, distinta da ação de divórcio, e ainda a propor.
XII. Ainda que assim não se entendesse, não há dúvidas de que não estamos perante nenhuma das hipóteses previstas no art.º 409º do Código de Processo Civil,
XIII. Sendo certo que, contrariamente ao que entendeu o Tribunal a quo, não se afigura lícito aplicar o regime previsto para o arrolamento especial a situações nele não contempladas, concretamente, e no que aqui releva, ao arrolamento requerido enquanto preliminar de ação de inventário para partilha dos bens do ex-casal.
XIV. Com efeito, a norma constante do art.º 409º do Código de Processo Civil é uma norma excecional, insuscetível de aplicação analógica (art.º 11º do Código Civil).
XV. Acresce que, de acordo com o art.º 9º, nº 2 e 3, do Código Civil, “2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”.
XVI. Ora, o legislador identificou especificamente as ações em que, no arrolamento requerido como preliminar ou incidente destas, se dispensava a alegação e demonstração pelo requerente do justo receio extravio, ocultação ou dissipação de bens, não tendo nelas incluído a ação de inventário, de cuja existência não era, obviamente, desconhecedor.
XVII. Por outro lado, o regime excecional estabelecido no art.º 409º, do Código Civil, justifica-se pelo receio de que, antes ou na pendência da ação de divórcio, um dos cônjuges atue em prejuízo do outro, tendo presente que a ação de divórcio pressupõe, naturalmente, a existência de um litígio entre os cônjuges.
XVIII. Ora, se antes ou na pendência da ação de divórcio, em que é patente a existência de um conflito pessoal e litígio entre os cônjuges, o cônjuge não requer o arrolamento dos bens comuns,
XIX. A partir do momento em que o divórcio é decretado, e em que se encontram reunidas as condições para a efetivação da partilha dos bens comuns, ambos os cônjuges podendo requerer o inventário (art.º 1085º do Código de Processo Civil), o arrolamento apenas deve ser possível se o cônjuge alegar e demonstrar que há um justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, não havendo razões para presumi-lo e tutelar especialmente os ex-cônjuges nessa situação.
XX. Atento o exposto, o arrolamento requerido – a ser admissível, o que em caso algum se admite – estaria sujeito ao regime geral do art.º 403º, do Código de Processo Civil, do arrolamento geral.
XXI. Nos termos do aludido preceito e do art.º 405º do mesmo Código, incumbe ao requerente do arrolamento alegar e demonstrar: (i) os factos constitutivos do seu direito (certo ou eventual) aos bens; (ii) e os factos em que fundamenta o receio de extravio, dissipação ou ocultação daqueles bens (periculum in mora), os quais constituem requisitos cumulativos do decretamento da providência.
XXII. No que diz respeito ao periculum in mora, o requerente do arrolamento tem que alegar e demonstrar o fundado receio de extravio, dissipação ou ocultação dos bens em relação aos quais se arroga um direito e cujo arrolamento requer e não quaisquer outros.
XXIII. Por outro lado, o receio tem que ser objetivo e apoiar-se em factos concretos, não bastando simples dúvidas, conjeturas ou receios meramente subjetivos ou precipitados.
XXIV. Considerando o exposto, e a matéria de facto considerada assente pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, é manifesto que não se encontravam reunidos os pressupostos legais do decretamento da referida providência.
XXV. Acresce que, lido e relido o requerimento inicial, verifica-se que a Recorrida não alegou quaisquer factos que, sendo demonstrados, permitam concluir pela existência de um fundado receio de extravio, dissipação ou ocultação dos bens cujo arrolamento requer.
XXVI. A parca matéria alegada diz respeito às sociedades J. S., Lda. e J. F., Lda., a supostas situações referentes à mesma e a pretensos e genéricos atos de “delapidação” e “dissipação” de bens destas sociedades, bens esses em relação aos quais a recorrida não tem nenhum direito e que não são nenhum dos bens cujo arrolamento é requerido.
XXVII. Mesmo quanto aos referidos bens das referidas sociedades, também não há nenhum facto concreto e objetivo alegado de onde se possa concluir o justo receio, mas apenas e tão só considerações genéricas e conclusivas.
XXVIII. Contudo, como se referiu, tais bens nem sequer relevam para o caso, porquanto não são objeto do arrolamento, e é quanto a esses que o requerente tem que alegar e demonstrar o justo receio de extravio, dissipação ou ocultação.
XIX. E nada vem alegado relativamente ao receio de extravio, dissipação ou ocultação das quotas ou dos imóveis cujo arrolamento requer.
XX. Acresce que, não se vê como se possa dissipar, ocultar ou extraviar bens imóveis, que estão registados e, por outro lado, que são bens comuns.
XXI. Com efeito, a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre aqueles bens imóveis não podem realizar-se sem o consentimento da recorrida (art.º 1682-A, nº 1, alínea a), do Código Civil).
XXII. Por outro lado, no que diz respeito à putativa procuração, não só a mesma não foi junta, como não existe, e mesmo que existisse a recorrida poderia sempre revogá-la (art.º 265º, nº 2, do Código Civil).
XXIII. Na falta de alegação de factos objetivos e concretos, suscetíveis preencher o requisito do justo receio de extravio, dissipação ou ocultação, sempre o requerimento inicial de arrolamento teria que ser liminarmente indeferido.
XXIV. Ainda que assim não se entendesse, o que em caso algum se admite, sempre o Tribunal a quo não poderia, no que diz respeito às quotas das sociedades, ter nomeado também a Recorrida como depositária.
XXV. É que a administração das quotas arroladas (verbas 12 a 15) não compete ao recorrente e à recorrida, nos termos do art.º 1678º, nº 3, 2ª parte, do Código Civil), mas exclusivamente ao recorrente, nos termos do art.º 8º, nº 2 e 3, do Código das Sociedades Comerciais e art.º 1678º, nº 2º, alínea e), do Código Civil.
XXVI. Com efeito, conforme decorre das certidões permanentes das referidas sociedades, que foram juntas pela recorrida com o requerimento inicial, o titular das referidas quotas arroladas é o recorrente, ainda que as mesmas integrem o património comum.
XXVII. Atento o exposto, possuidor das quotas arroladas, para efeitos do art.º 408º do Código de Processo Civil, é o recorrente,
XXVIII. Pelo que, ainda que se entendesse que estavam preenchidos os pressupostos do decretamento do arrolamento, o que em caso algum se admite, no que diz respeito às quotas das sociedades (verbas 12 a 15 da relação de bens constante do requerimento inicial), sempre deveria ter sido este nomeado exclusivamente depositário das mesmas.
XXIX. A sentença recorrida violou os art.ºs 364º, 403º, 405º, 409º, nº 1 do Código de Processo Civil, 8º, nº 2 e 3, do Código das Sociedades Comerciais, 9º, nº 2 e 3, 265º, 1682º-A, nº 1, al. a), e 1678º, nº 2, alínea e), do Código Civil.
XXX. Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser revogada a sentença proferida e substituída por outra que julgue totalmente improcedente o presente procedimento cautelar.
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Pela apelada M. F. foi apresentada resposta, onde formula as seguintes conclusões:

I. O art. 409º, nº 1, prevê a possibilidade de ser requerido o arrolamento de bens comuns ou de bens próprios do requerente, mas que se encontrem sob a administração do outro cônjuge.
II. Do citado preceito legal resulta igualmente que esta providência cautelar pode ser requerida como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, de divórcio, ou de declaração de nulidade ou anulação de casamento.
III. Em todo o caso, a corrente jurisprudencial maioritária, a qual compreende a mais recente, tem vindo a entender que este arrolamento pode igualmente ser requerido após o trânsito em julgado da sentença proferida nessa ação, na medida em que o efeito útil do arrolamento é o de garantir a conservação do património comum até à concretização da sua partilha.
IV. Porquanto, embora o processo de inventário não faça parte do elenco das ações indicadas no nº 1 do artigo 409º CPC, nele subsiste a conflitualidade dos ex-cônjuges, a qual poderá assumir uma forma tão premente quanto na ação de divórcio.
V. Como se constatou, o ac. Tribunal da Relação do Porto de 16.05.2016, proc. 7818/15.8T8VNG-A.P1 invocado pelo recorrente, rejeita tal aplicação analógica, em virtude de o caso em apreço se tratar de uma união de facto (e não de um casamento) e, portanto, revela-se inócuo na sua sustentação.
VI. A ação de divórcio faz presumir, desde logo, o de extravio, ocultação ou dissipação de bens.
VII. Pois que o que nele se pretende é, por um lado, a determinação da existência dos bens para que, no momento da partilha, seja evitada a sua possível ocultação e, por outro lado, a sua conservação, precavendo-se de dolosa ou negligente deterioração.
VIII. Assim, os fundamentos subjacentes ao arrolamento como preliminar ou incidente do processo de divórcio aplicam-se ao arrolamento como preliminar ou incidente do processo de inventário, ou seja, em ambos os casos presume-se o fundado receio de descaminho ou ocultação de bens, dada a conflituosidade dos cônjuges, tudo com vista a prevenir o desaparecimento do património conjugal e de modo a alcançar-se uma partilha justa.
IX. Por conseguinte, é de aplicar o disposto no art. 409º, nº 3, do C. P. Civil, ao arrolamento requerido, após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio, enquanto preliminar ou incidente do inventário instaurado subsequentemente para partilha dos bens comuns do dissolvido casal.
X. Importa ressalvar, em linha com o supra exposto, que o arrolamento em apreço não se encontra sujeito a prazo de caducidade previsto no art. 373º, nº 1, al. a) Código de Processo Civil.
XI. Isto é, o processo de inventário não tem de ser promovido no prazo de trinta dias após a notificação ao requerente do trânsito em julgado da decisão que haja decretado tal providência, razão pela qual o arrolamento subsiste até que seja convertido em descrição e relação de bens no processo de inventário.
XII. Trata-se, por isso, de um caso excecional previsto no nosso ordenamento jurídico, em que uma providência cautelar pode subsistir no tempo, sem sujeição a um prazo de caducidade.
XIII. Importa salientar que o arrolamento pode ter como objeto, para além dos bens próprios do requerente que se encontrem na posse do outro cônjuge, os bens do casal a ser partilhados e tem como finalidade garantir que tais bens existam no momento em que se efetue a partilha.
XIV. Para que esta providência cautelar possa ser decretada – e assim a recorrida o fez –, é suficiente o preenchimento cumulativo de dois requisitos: o cônjuge requerente deve provar que é ou que foi casado com o cônjuge requerido; cônjuge requerente deve demonstrar que existe a probabilidade séria de os bens que pretende arrolar serem comuns ou, pelo contrário, próprios, estando, os mesmos sob a administração do cônjuge requerido.
XV. Por outro lado, a especialidade deste arrolamento reside no facto de o seu decretamento não estar dependente da alegação e prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou de documentos, ou seja, não é necessária a demonstração de qualquer periculum in mora (artigo 409º, nº 3)
XVI. Na verdade, como bem observa Lebre Freitas, - e assim o Tribunal a quo entendeu – “a situação de conflito que normalmente acompanha o tipo de situação em causa faz assim presumir, juris et de jure, o periculum in mora, quer no plano da prova, quer no da própria alegação”
XVII. a especialidade do arrolamento previsto no art. 409º, nº 1, traduzida na dispensa de alegação do periculum in mora, quando essa providência cautelar seja requerida como preliminar ou incidente de uma ação de separação judicial de pessoas e bens, de divórcio ou de declaração de nulidade ou de anulação do casamento, traduz-se, precisamente, no facto de o legislador presumir a existência de fundado receio de dissipação, oneração ou ocultação de bens neste tipo de conflitos conjugais.
XVIII. Ora, visando o arrolamento impedir a dissipação, o extravio ou a ocultação dos bens comuns do casal até que ocorra a sua partilha, afigura-se que o regime previsto no art. 409º, nº 1, deve ser igualmente aplicado, por interpretação analógica e extensiva, aos casos em que o arrolamento seja requerido como preliminar ou incidente do processo de inventário subsequente à dissolução patrimonial ou pessoal de vínculo conjugal, depois que é possível presumir que, mesmo após essa dissolução, a conflituosidade entre os ex-cônjuges continuará a existir até que se concretize e efetive a partilha do seu património comum.
XIX. Assim, não pode deixar de se reconhecer que a finalidade última deste tipo de arrolamentos não é tanto o desfecho da ação, mas os atos subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, onde sobressai a partilha do património comum.
XX. Porquanto, o arrolamento não se esgota na ação de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efetuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens.
XXI. Quanto à necessidade do arrolamento de natureza especial de bens imóveis afere-se que a natureza de bem imóvel comum deverá ser acautelada pois dela decorrerá para a Recorrida a inequívoca contitularidade do direito de propriedade sobre os mesmos.
XXII. Deste modo, para ocasionar uma efetiva tutela de tal direito de propriedade sobre o referido imóvel, há que proceder ao seu arrolamento que estará sujeito a registo obrigatório e do qual por sua vez decorrerão, como previsto nos arts. 1º e 5º deste mesmo diploma, os respetivos efeitos de publicidade e de oponibilidade a terceiros relativamente a qualquer oneração ou transmissão daquele imóvel que possa vir entretanto a ocorrer.
XXIII. Não tinha assim a recorrida de demonstrar ou provar o que quer que seja do demais alegado.
XXIV. No que respeita à aplicação do arrolamento com natureza especial às participações sociais e respetiva comunicabilidade e da análise do art. 8º CSC, No tocante às relações entre estes [cônjuges], não há motivo algum para que a quota não seja considerada inteiramente bem comum, sem qualquer restrição, e portanto sem distinção entre a qualidade de sócio e o valor económico. Nem sequer uma tal restrição fora das relações com a sociedade deriva do citado art. 8º nº 2, que repete-se, apenas estabelece a dita restrição no tocante às relações com a sociedade, para efeito de assegurar a estabilidade social, sem deixar de reconhecer a qualificação da participação social como comum do casal do cônjuge que nas relações com a sociedade intervém como sócio nem excluir a qualidade de sócio que, fora dessas relações, cabe também ao outro cônjuge!”
XXV. A interpretação proposta é também – vale a pena sublinhar – acompanhada pela mais elevada jurisprudência que recusou a tese segundo a qual apenas se comunicaria o valor económico da quota e defendendo que a quota deve ser descrita na relação de bens «por inteiro»
XXVI. O art. 8º, nº 2 CSC estabelece que “quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade (ou seja apenas nas relações com a sociedade), aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal”.
XXVII. A verdade é que não existe, contudo, nenhuma norma especial prevista no Código das Sociedades Comerciais aplicável à hipótese de se verificar uma crise matrimonial que provoque a dissolução do matrimónio por divórcio e é precisamente nestas ocasiões que tendem ao correr atos que podem prejudicar os direitos do outro cônjuge.
XXVIII. O regime especialmente consagrado no CSC para a administração de participações sociais detidas pelos cônjuges apenas se aplica aos casos (porventura mais generalizados) em que as mesmas integram a comunhão conjugal de bens, o que desde logo pressupõe que os cônjuges se encontrem casados num regime de comunhão, “geral” ou de “adquiridos”.
XXIX. Não bastando que a participação social integre a comunhão conjugal de bens para que se aplique o regime especial de administração de bem comum consagrado no nº 2 do art. 8º do CSC: É também condição necessária que só um dos cônjuges tenha intervindo no respetivo negócio aquisitivo.
XXX. Mas revela-se preponderante ir mais longe, para a justa aplicação do direito ao caso em concreto e a verdade é que não existe, contudo, nenhuma norma especial prevista no Código das Sociedades Comerciais aplicável à hipótese de se verificar uma crise matrimonial que provoque a dissolução do matrimónio por divórcio e é precisamente nestas ocasiões que tendem ao correr atos que podem prejudicar os direitos do outro cônjuge.
XXXI. Pelo que revela-se necessário questionar e refletir sobre como proteger os seus direitos - os direitos do cônjuge meeiro - quando, em situação de crise, o outro aja de modo a tentar aumentar o seu património próprio em detrimento do património comum? Ou quando tome decisões que diminuam o valor da quota para obter melhores condições na divisão do património no momento da partilha? (…)
XXXII. Caso contrário estar-se-á, então, apenas a garantir o direito a um valor, não se protegendo o direito à quota enquanto tal.
XXXIII. Quando os efeitos da dissolução do casamento forem eficazes, o regime jurídico a aplicar deverá ser o da contitularidade da quota, que é o regime previsto «em geral para todas as situações de indivisão», já que é esta precisamente a «situação da quota enquanto não for partilhada»
XXXIV. E facilmente a recorrida se revê nesta tese porquanto, a apreciação da matéria ora discutida, é essencialmente do foro civil, só este se encontrando munido dos meios suficientes para acautelar devidamente e na sua abrangência, a aplicação adequada do Direito, não podendo em hipótese alguma ser a mesma afastada das demais legislações, em virtude de as mesmas se revelarem – apenas e só – conexas.
XXXV. Não se pode atribuir ao cônjuge daquele que figura como sócio na sociedade o direito à quota e aos dividendos, nem se pode dizer que se trata de um bem comum, pertencente a ambos os cônjuges, e não se conceder meios para garantia desses direitos. Aceitá-lo seria esvaziar a Lei e impedir a realização do Direito!
XXXVI. Já no que respeita à posição de recorrida e recorrente enquanto depositários das quotas, cada um na proporção de metade do respetivo valor, sendo decretado o arrolamento, as funções de depositário serão exercidas, em regra pelo cônjuge que estiver na posse dos bens, mas esta regra, à semelhança das demais, assume exceções e princípios-limite, in casu: o da incompatibilidade com a finalidade da providência cautelar de arrolamento.
XXXVII. Como a douta sentença ora em crise corretamente explanou, esta medida tem como finalidade a não viabilização da sua utilização normal e evitar que um dos cônjuges administre os mesmos de forma a comprometer definitivamente os interesses patrimoniais do outro.
XXXVIII. Nas suas alegações e fundamentos, o recorrente deambula entre o recurso da decisão e o deduzir de oposição, todavia, estes são meios autónomos e devidamente tipificados pelo que sempre o recorrente teria forma de a ela se opor, carreando meios de prova que revertessem o decidido, de forma a que os mesmos fossem devidamente apreciados, o que não o fez.

Termina entendendo que deverá a apelação ser julgada improcedente, e, consequentemente, confirmada a decisão proferida pelo Tribunal a quo com todos efeitos legais, justamente porque não violou quaisquer preceitos legais, "maxime" os mencionados pelo recorrente.
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E) Foram colhidos os vistos legais.
F) As questões a decidir na apelação são as de saber:
1) Se é aplicável à situação dos autos o disposto no artigo 409º NCPC;
2) Se deverá ser alterada a decisão recorrida, julgando-se improcedente o presente procedimento cautelar.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Considera-se provada a seguinte matéria de facto:
1. Requerente M. F. e requerido J. S. contraíram entre si casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia - de abril de 1963, tendo sido decretado o divórcio por sentença proferida em 06.06.2012, transitada em julgado.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
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C) O apelante discorda da decisão do tribunal a quo que aplicou o disposto no artigo 409º NCPC à situação dos autos, considerando que o arrolamento surge como preliminar e dependência do processo de inventário.
Vejamos.
A requerente veio intentar procedimento cautelar de arrolamento contra a requerida, em 16/12/2021, como incidente da ação de divórcio sem consentimento, sendo certo que requerente e requerido se divorciaram em 2012.
Verdadeiramente não se pode conceber que se considere como incidente da ação de divórcio um arrolamento que é intentado decorridos mais de nove anos após terminar aquela ação, uma vez que, finda a ação, o procedimento deixa de ser incidente daquela ação, podendo sê-lo de outra a intentar ou já intentada, mas não finda.
De resto, mal se compreenderia que uma providência cautelar, que é provisória, porque se destina a durar até à prolação de uma decisão definitiva, lhe pudesse sobreviver.
Como refere Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2016, a páginas 125-126, “a provisoriedade da tutela cautelar decorre, fundamentalmente, do facto de esta se encontrar concebida para, em princípio, durar apenas pelo período de tempo estritamente necessário até que seja proferida uma decisão definitiva na ação principal de que aquela depende, ou seja, as providências cautelares têm uma natureza precária e uma “duração temporal limitada”, pois carecem de ser confirmadas num juízo principal, sob pena de caducidade. Por conseguinte, a vigência temporal da tutela cautelar encontra-se subordinada à pendência do processo de que aquela, em regra, depende.”
O tribunal a quo entendeu – e bem – que no caso dos autos não estamos perante um incidente da ação de divórcio, tendo em conta que o casamento entre requerente e requerido foi dissolvido em junho de 2012, pelo que entendeu que o arrolamento em questão surge como preliminar e dependência do processo de inventário para partilha do património comum do casal.
A questão é a de saber se podia fazê-lo.
O apelante entende que não dado que o arrolamento foi instaurado como incidente da ação de divórcio, e uma vez que a ação já havia terminado em 2012, o arrolamento era originalmente inútil e deveria ter sido julgado improcedente e não ficcionar que era, afinal, preliminar de uma outra ação judicial – de inventário – distinta da ação de divórcio.
Entende o apelante que, ainda que assim não se entendesse, não estamos perante nenhuma das hipóteses previstas no artigo 409º NCPC, dado que a norma em questão tem natureza excecional, pelo que não é suscetível de aplicação analógica.
Vejamos.
Quanto à alegada inutilidade original do arrolamento que deveria determinar a sua improcedência, importa notar que na Exposição de Motivos constante da Proposta de Lei nº 113/XII se refere que “São implementadas medidas de simplificação processual e de reforço dos instrumentos de defesa contra o exercício de faculdades dilatórias.
A celeridade processual, indispensável à legitimação dos tribunais perante a comunidade e instrumento indispensável à realização de uma das fundamentais dimensões do direito fundamental de acesso à justiça, passa necessariamente por uma nova cultura judiciária, envolvendo todos os participantes no processo, para a qual deverá contribuir decisivamente um novo modelo de processo civil, simples e flexível, despojado de injustificados formalismos e floreados adjetivos, centrado decisivamente na análise e resolução das questões essenciais ligadas ao mérito da causa. A consagração de um modelo deste tipo contribuirá decisivamente para inviabilizar e desvalorizar comportamentos processuais arcaicos, assentes na velha praxis de que as formalidades devem prevalecer sobre a substância do litígio e dificultar, condicionar ou distorcer a decisão de mérito.”
Como se refere no Código de Processo Civil Anotado, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Volume I, 2ª Edição, a páginas 34, em anotação ao artigo 6º NCPC, “sem embargo dos casos em que é imprescindível a iniciativa das partes, cabe ao juiz dirigir ativamente o processo para que sejam alcançados os seus objetivos fundamentais com celeridade e eficácia, obstar ao uso ilegítimo de mecanismos processuais e evitar ou sancionar comportamentos que se revelem dilatórios. Esse poder de gestão processual envolve ainda o esforço, que deve ser comparticipado pelas partes, no sentido de se conseguir a maior simplificação e agilização possível, tudo com vista a que seja proferida decisão final que, apreciando o mérito, garanta a justa composição do litígio. Se é verdade que a natureza litigiosa do processo dificulta a prossecução de tais objetivos, não é menos certo que a consagração do dever de gestão processual se impõe ao juiz em primeiro lugar e deve por este ser refletido na tramitação processual por forma a aproximar, tanto quanto possível, o resultado alcançado dos propósitos do legislador. Para o reforço do poder/dever de gestão processual que compete ao juiz confluem as normas do artigo 547º (adequação formal) e o regime mais claro que consta do artigo 590º (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª Edição, páginas 29 e segs). Nesta sede, existe um largo campo de manobra para o juiz impor às partes condutas que obstem a pretendidos efeitos dilatórios ou para adotar medidas que se traduzam na simplificação e agilização processual e mesmo, em certos casos, na adequação formal prevista no artigo 547º (STJ 19-11-15, 2864/12).”
Conforme se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 31/01/2019, no processo 3640/18.8T8VCT.G1, relatado pelo Desembargador Paulo Reis, disponível em www.dgsi.pt, “Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles, sendo este dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas e consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens - cf. artigos 403º e 406º do CPC. Neste domínio, acrescentam ainda os artigos 404º e 405º do CPC, o arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos, devendo o requerente fazer prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação devendo ainda, caso o direito relativo aos bens dependa de ação proposta ou a propor, convencer o Tribunal da provável procedência do pedido correspondente. O juiz ordenará as providências se adquirir a convicção de que, sem o arrolamento, o interesse do requerente corre risco sério.

Por outro lado, o artigo 409º, do CPC com a epígrafe “Arrolamentos especiais” prevê, no seu nº 3, não ser aplicável o disposto no nº 1 do artigo 403º do CPC aos arrolamentos previstos nos nºs 1 e 2 do preceito, ou seja, dispensa da necessidade de alegação e de prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, ou de documentos, nos seguintes casos:
- arrolamento, requerido por qualquer dos cônjuges, de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro, como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento (nº 1);
- arrolamento de bens abandonados, por estar ausente o seu titular, por estar jacente a herança, ou por outro motivo, e tornando-se necessário acautelar a perda ou deterioração (nº 2).”

Ponderando o âmbito e a finalidade de tal dispensa, esclarecem a propósito José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 198): «A situação de conflito que normalmente acompanha o tipo de situação em causa faz assim “presumir”, juris et de jure, o periculum in mora, quer no plano da prova, quer no da própria alegação (…), poupando, aliás, mais um motivo de discussão entre os cônjuges. Mas a dispensa não é extensível ao fumus boni juris, pelo que o cônjuge requerente tem de provar que é casado com o requerido e que há séria probabilidade de os bens a arrolar serem comuns, ou serem seus, mas estarem sob a administração do outro cônjuge (…), entendendo-se também que o requerente está igualmente dispensado de demonstrar a probabilidade da procedência da ação proposta ou a propor (…)»”.
Na situação de que trata o referido acórdão, também não se tratava de um incidente de ação de divórcio, uma vez que o matrimónio em questão havia sido dissolvido anteriormente e não tinha sido efetuada a partilha do património comum do casal, entendendo-se que o arrolamento surge como preliminar e como dependência de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio.
E prossegue o citado aresto afirmando que “a questão de saber se a dispensa da verificação do requisito previsto no nº 1 do artigo 403º do CPC (periculum in mora), estatuída no artigo 409º, nº 3, CPC se aplica ao arrolamento requerido por ex-cônjuge como preliminar ou incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio tem sido objeto de controvérsia jurisprudencial, invocando a (ali) recorrente, no sentido da posição que defende, o Ac. do TRP de 17-11-2009 (relator: Maria Eiró) p. 2186/06.1TBVCD-A.P1, e o Ac. do TRL de 18-09-2014 (relator: Teresa Pais) p. 2170/14.1TBSXL.L1-8, ambos publicados em www.dgsi.pt (Em sentido idêntico, cf. ainda, entre outros: Ac. do T RL de 19-12-2013 (relator: Graça Amaral), p. 7669/12.1TCLRS-C.L1-7; Ac. do TRL de 10-03-2016 (relator: Ezagüy Martins), p. 169/13.4TMFUN-A-L1-2; Ac. do TRL de 28-06-2018 (relator: António Valente), p. 21568/17.7T8SNT.L1-8; todos publicados em www.dgsi.pt).
Em sentido divergente, encontramos o Ac. do TRL de 17-07-2000 (relator: Sampaio Beja) p. 070091 cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt, e o Ac. do TRP de 2-05-2005 (relator: Sousa Lameira) publicado em www.dgsi.pt.
Ora, conforme se refere no Ac. do TRE de 19-11-2015 (Relator: Bernardo Domingos; p. 1423/15.6T8STR.E1 disponível em www.dgsi.pt) “Embora o legislador tenha concebido os arrolamentos especiais previstos no art.º 409º, nº 1, do CPC, como preliminares ou incidentes das ações aí referidas, não pode deixar de se reconhecer que a finalidade última deste tipo de arrolamentos não é tanto o desfecho da ação, mas os atos subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, onde sobressai a partilha do património comum. O arrolamento não se esgota na ação de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efetuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens”.
Em face dos argumentos antes enunciados justifica-se cabalmente a aplicação do regime especial previsto no artigo 409º do CPC ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio e enquanto preliminar do inventário instaurado para partilha, porquanto, nesses casos, ocorre situação igualmente merecedora de tutela especial, justificando o desvio às regras gerais na tramitação da providência, ou seja, no que se reporta à dispensabilidade de alegação e demonstração de um dos seus requisitos: o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens (Cf. Ac. do TRL de 18-09-2014 antes citado).
Acresce que, tal como se elucida no Ac. do TRL de 10-03-2016, antes citado, dir-se-á então que a norma do artigo 409º, nº 3 “sem contrariar substancialmente o princípio (…) contido” na regra geral do artigo 403º, nº 1, “a adapta a um domínio particular”.
Confrontando-nos pois, no artigo 409º, nº 3 – e diversamente do julgado na decisão recorrida – com uma regra especial, como tal passível de aplicação analógica, quando na situação nela prevista e no caso omisso exista “um núcleo fundamental (…) que exige a mesma estatuição.”, cfr. artigo 10º do Código Civil.
O que ocorre tendencialmente no arrolamento de bens por dependência de ação de divórcio…e no arrolamento de bens depois de decretado o divórcio, por dependência de inventário (especial) em consequência daquele.
A este propósito, sublinha Marco Carvalho Gonçalves (Providências Cautelares Conservatórias: Questões Práticas Atuais”, 16-03-2018), “visando o arrolamento conservar os bens comuns do casal até que se verifique a sua partilha, afigura-se que o regime previsto no art. 409º, nº 1, deve igualmente ser aplicado, por interpretação analógica e extensiva, aos casos em que o arrolamento seja requerido como preliminar ou incidente do processo de inventário subsequente à dissolução patrimonial ou pessoal do vínculo conjugal, pois que é possível presumir que, mesmo após essa dissolução, a conflituosidade entre os ex-cônjuges continuará a existir até à concretização da partilha do património comum”.
Daí que seja de sufragar o entendimento no sentido de que a dispensa da verificação do requisito previsto no nº 1 do artigo 403º do CPC (periculum in mora), estatuída no artigo 409º, nº 3, CPC é aplicável ao arrolamento requerido por ex-cônjuge como preliminar ou incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio.”
A tese defendida no acórdão referido, na prática, faz uma aplicação analógica do disposto o artigo 409º NCPC à situação do arrolamento requerido como preliminar do processo de inventário.
Importa, porém, atender-se ao disposto no artigo 11º do Código Civil onde se estabelece que “as normas excecionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva”.
Importa, assim, apurar qual a natureza da norma constante do artigo 409º NCPC.
A este propósito refere Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, a páginas 94 e segs, que “as normas gerais constituem o direito-regra, ou seja, estabelecem o regime-regra para o setor de relações que regulam; ao passo que as normas excecionais, representando um ius singulare, limitam-se a uma parte restrita daquele setor de relações ou factos, consagrando neste setor restrito, por razões privativas dele, um regime oposto àquele regime-regra.
( … )
Por força do artigo 11º, as normas excecionais não comportam aplicação analógica. Para se ter uma norma por excecional para efeitos deste artigo será necessário verificar se se está ou não perante um verdadeiro ius singulare, isto é, perante um regime oposto ao regime-regra e diretamente determinado por razões indissoluvelmente ligadas ao tipo de casos que a norma excecional contempla.”
E prossegue “ … as normas especiais (ou de direito especial) não consagram uma disciplina diretamente oposta à do direito comum; consagram todavia uma disciplina nova ou diferente para círculos mais restritos de pessoas, coisas ou relações …”
Aplicando esta classificação ao artigo 409º NCPC, desde logo resulta da epígrafe deste normativo que se trata de arrolamentos especiais.
Com efeito, como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 10/03/2016, relatado pelo Desembargador Ezagüy Martins, no processo 169/13.4TMFUN-A-L1-2, disponível em www.dgsi.pt, “Como anotam José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto [“Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, págs. 172, 173] – no domínio do anterior Código de Processo Civil, mas também aqui com plena atualidade – no caso do sobredito arrolamento especial, “A situação de conflito que normalmente acompanha o tipo de situação em causa faz assim presumir, juris et de jure, o periculum in mora; poupando, aliás, mais um motivo de discussão entre os cônjuges. Mas a dispensa não é extensível ao fumus boni juris, pelo que o cônjuge requerente terá provar que é casado com o requerido e que há a séria probabilidade de os bens a arroIar serem comuns, ou serem seus, mas estarem sob a administração do outro cônjuge.”.
Temos para nós que a norma do artigo 409º, nº 3, do Código de Processo Civil, não tem natureza excecional no confronto da norma do artigo 403º, nº 1, do mesmo Código.
Antes se tratando, e como a própria epígrafe do artigo aponta, de uma norma especial, na sua relação com a do citado artigo 403º.
Com efeito, para que de norma excecional se devesse falar, importaria que à regra geral estabelecida no artigo 403º, nº 1, se opusesse, no artigo 409º, nº 3, uma outra “necessariamente de âmbito mais restrito” – o que é o caso – e que contrariasse a “valoração ínsita” na primeira, “para prosseguir finalidades particulares”, [Oliveira Ascensão, “O Direito, Introdução e Teoria Geral”, 13ª Ed., Almedina, 2006, págs. 448, 449] o que já se não verifica.
Com efeito, e como vimos, a lei não prescinde, enquanto razão justificativa da providência do artigo 409º, do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens.
O que se passa, repete-se, é que em atenção à situação de conflito que normalmente acompanha o particular tipo de situação em causa, presume, juris et de jure, a objetivação de tal justo receio.
Dir-se-á então que a norma do artigo 409º, nº 3 “sem contrariar substancialmente o princípio (…) contido” na regra geral do artigo 403º, nº 1, “a adapta a um domínio particular” [Idem, pág. 303].
Confrontando-nos, pois, no artigo 409º, nº 3 – […] – com uma regra especial, como tal passível de aplicação analógica, quando na situação nela prevista e no caso omisso exista “um núcleo fundamental (…) que exige a mesma estatuição” [Idem, pág. 447] cfr. artigo 10º do Código Civil.
O que ocorre tendencialmente no arrolamento de bens por dependência de ação de divórcio…e no arrolamento de bens depois de decretado o divórcio, por dependência de inventário (especial) em consequência daquele.”
Assim sendo, terá de se concluir que a circunstância de se afirmar que o arrolamento é intentado como incidente de divórcio, que já se encontrava proferido por sentença, transitada em julgado, nessa ocasião, não é impeditivo que se considere que o mesmo é preliminar do processo de inventário para partilha dos bens do casal, como deve ser, de acordo com o dever de gestão processual, acima referenciado.
Por outro lado, a finalidade última deste tipo de arrolamentos não é tanto o desfecho da ação, mas os atos subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, onde sobressai a partilha do património comum, permanecendo o perigo de dissipação, extravio ou ocultação dos bens do casal, para mais quando voluntariamente não acordaram na sua partilha, daí que se justifique a o desvio às regras gerais da tramitação da providência dispensando-se a alegação e demonstração do justo receio do extravio, ocultação ou dissipação de bens, sendo certo que a norma do artigo 409º NCPC é uma norma especial e não excecional, no confronto com o regime geral do artigo 403º do mesmo diploma, motivo pelo qual não há impedimento à sua aplicação, por analogia.
Por todo o exposto, sem necessidade de ulteriores considerações, resulta que a apelação terá de improceder e, em consequência, confirmar-se a douta decisão recorrida.
Face ao decaimento total do recurso, as custas terão de ficar a cargo do apelante (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).
*
D) Em conclusão:

1) A circunstância de se afirmar que o arrolamento é intentado como incidente de divórcio, que já se encontrava proferido por sentença, transitada em julgado, nessa ocasião, não é impeditivo que se considere que o mesmo é preliminar do processo de inventário para partilha dos bens do casal;
2) O arrolamento não se esgota na ação de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efetuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens;
3) Justifica-se a aplicação do regime especial previsto no artigo 409º do NCPC ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio, como preliminar do inventário instaurado para partilha, porquanto, nesses casos, ocorre situação igualmente merecedora de tutela especial, justificando o desvio às regras gerais na tramitação da providência, no que se refere à dispensa de alegação e demonstração de um dos seus requisitos: o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens.
***
III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar-se a douta decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.
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Guimarães, 26/05/2022

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares
2ª Adjunta: Desembargadora Margarida de Almeida Fernandes