Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
119/14.4T8VLN-A.G1
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
VERBAS DAS RECEITAS E DAS DESPESAS
DISCRIMINAÇÃO E INDIVIDUALIZAÇÃO
INCORRECÇÃO CONTABILÍSTICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

I. A rejeição das contas apresentadas pelo réu (nos termos e com os efeitos previstos nos artigos 944º, n.º 2 e 943º, n.ºs 1 e 2 do CPC) só se justificará quando a omissão das formalidades legalmente previstas para a sua apresentação impedir se alcance a finalidade precípua do processo de prestação de contas: determinar o quantitativo que uma parte deve à outra, após prévio (e necessário) encontro das verbas das receitas e das despesas, com discriminação e individualização das fontes das primeiras e causas das segundas (assim como respectivos montantes).
II. Não devem rejeitar-se as contas apresentadas por inobservância do disposto no n.º 1 do art. 944º do CPC se, apesar da sua maior ou menor incorrecção contabilística, da sua maior ou menor incompletude na especificação das fontes de receitas e causas de despesas, as mesmas habilitarem a discussão (com cabal cumprimento do contraditório – o que pressupõe a respectiva inteligibilidade) que o processo de prestação de contas pressupõe, sendo no mínimo adequadas e idóneas a alicerçar o julgamento do que deve ser incluído nas receitas e do que se justifique ser havido como despesa, em vista de se determinar o saldo devedor/credor (sempre ponderando a especificidade do caso concreto e a fonte da obrigação de prestar contas).
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

Na acção especial de prestação de contas que P. F. instaurou contra A. J., pedindo a prestação de contas por parte deste, foi decidido (decisão de 20/05/2019, confirmada por acórdão desta Relação de Guimarães de 7/11/2019), ao abrigo do disposto no artigo 942.º, n.º 3, 1.ª parte, e n.º 5, do CPC, estar o réu obrigado a prestar contas, ordenando-se a sua notificação para o fazer no prazo de vinte dias, sob pena de não lhe ser permitido contestar as que o autor viesse a apresentar.
Apresentou o réu as contas que, referia, correspondiam aos movimentos a débito e a crédito ocorridos no período temporal a considerar, contas que o autor se aprestou a contestar, além do mais defendendo dever o réu ser convidado a corrigi-las, apresentando-as em forma de conta corrente, com especificação das receitas e despesas, identificação dos valores mobiliários comprados e vendidos, respectivas datas e valores, com menção do respectivo saldo, sempre com junção dos competentes documentos justificativos.
Proferido despacho determinando a sua notificação para, no prazo de 15 dias, corrigir as contas apresentadas, em conformidade com o disposto no art. 944º, n.º 1 do CPC, apresentou o réu as contas em forma que, em seu entender, cumpria o determinado (e legalmente prescrito), juntando também os documentos demonstrativos.

Tal expediente, contendo as contas apresentadas pelo réu, exibe-se na seguinte forma:
- o expediente é designado com a menção ‘Conta corrente P. F. (B) e A. J. (A)’;
- desenvolve-se o expediente em cinco colunas (cada uma delas se desenrolando depois, na vertical, em linhas): na primeira é mencionada a data de cada informação expendida nas colunas seguintes, na segunda é consignado o que pode designar-se por um descritivo ou indicação do movimento, nas terceira e quarta colunas são consignados montantes monetários (a terceira em dólares e a quarta em euros), assinalados (cada um de tais montantes) com os símbolos matemáticos do mais (+) e do menos (-), fazendo a quinta referência ao saldo,
- as datas de referência vão desde 25/08/2017 (data inicial) a 29/02/2019 (data final), indicando-se todas as demais datas em que há referência a movimentos ou à indicação do saldo;
- nas referências aos movimentos (segunda coluna ) encontram-se indicações como ‘abertura de conta sócio A’, ‘entrada capital sócio B’ e outras menções mais específicas e menos pormenorizadas como C IBM 00355, C IBM 00355 / Selo e C IBM 00355 Com (exemplos encontrados nas primeiras seis linhas da referida segunda coluna),
- em cada uma das linhas, a seguir à menção da data e da indicação/especificação do movimento ou operação, é indicado um montante, seguido dum sinal matemático (+ ou -)
- com regularidade mensal (desde 30/09/2017, o primeiro, a 29/02/2019, o último) é apresentado, por referência ao último dia do mês em causa, um valor de saldo sob a designação de ‘Posição da Carteira de Títulos’ (o primeiro saldo ascende, em 30/09/2019 ao valor de 143.909,07 e o último, em 29/02/2019, o valor de 3.770,00).
Determinada a sua notificação para os termos do art. 945º, n.º 1 do CPC, veio o autor contestar as contas apresentadas, sustentando, além do mais (e no que à economia da presente apelação interessa), deverem as mesmas ser rejeitadas, por inobservância do disposto no art. 944º, n.º 1 do CPC, já que constituem o teor do extracto de conta bancária onde movimentava (o réu) os fundos disponibilizados (pelo autor), não contendo informação relevante, como seja o resultado dos investimentos feitos em acções, indicação dos valores despendidos na aquisição de títulos, variação da sua cotação e proveitos obtidos com a respectiva venda, limitando-se o réu a indicar cronologicamente os movimentos constantes do extracto que junta com as contas: não identifica o número de acções compradas e vendidas em cada momento, o respectivo valor nominal e o resultado líquido (diferença entre o preço de aquisição e de venda) nem faz constar o saldo resultante de cada operação, fazendo constar no final de cada mês uma alegada «posição da carteira de títulos».

Foi então proferido o seguinte despacho:
‘Nos termos do art. 944º, nº 2 do C.P.C., segunda parte, se o Réu apresentar as contas de forma irregular ou insuficiente, deverá ser convidado, oficiosamente ou por reclamação do autor, a corrigir a desconformidade dessa apresentação, sendo que o incumprimento da decisão determinará a rejeição das contas, seguindo-se a apresentação das mesmas pelo Autor.
Se apresentar as contas em forma de conta-corrente, regular e validamente, pode o autor contestá-las no prazo de 30 dias, seguindo-se os termos, subsequentes à contestação, do processo comum declarativo - art. 945º, nº 1 do CPC.
Nos presentes autos, considerando que o Réu, A. J., pretendeu, apresentar as contas devidas pela sua administração, e considerando, ainda, que o Réu não cumpriu os requisitos formais exigidos pelo art. 944º, nº 1, nomeadamente a apresentação das contas em conta corrente e a especificação da proveniência das receitas e da aplicação das despesas, foi proferido despacho a convidar o Réu para, em 15 dias, corrigir a inobservância do disposto no art. 944.º, nº 1 do C.P.C.
Regularmente notificado do despacho, o Réu apresentou em 15.06.2020 as contas “corrigidas”.
O Autor por requerimento de 03.09.2020 veio alegar que as contas apresentadas pelo Réu se encontram novamente sem respeitar, o disposto no n.º 1 do art. 944º do CPC, pelo que se digne rejeitar as contas apresentadas pelo Réu, notificando-se o Autor para apresentá-las, sob a forma de conta corrente, no prazo de 30 dias, conforme estabelecido nos n.º 1 e 2 do artigo 943.º do CPC.

Vejamos.

O artigo 944.º do CPC estipula que:
1- As contas que o réu deva prestar são apresentadas em forma de conta-corrente e nelas se especifica a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respetivo saldo.
2- A inobservância do disposto no número anterior, quando não corrigida no prazo que for fixado oficiosamente ou mediante reclamação do autor, pode determinar a rejeição das contas, seguindo-se o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo anterior.
3- As contas são apresentadas em duplicado e instruídas com os documentos justificativos.
4- A inscrição nas contas das verbas de receita faz prova contra o réu.

Nas contas agora apresentadas o Réu reproduzir o teor do extrato da conta bancária, adicionando-lhe as despesas e honorários de que alega ser credor, não fazendo constar das contas apresentadas o número de ações compradas e vendidas em cada momento, o respetivo valor nominal e o resultado líquido das referidas, incluindo as despesas bancárias e fiscais inerentes, concluindo com o saldo disponível.
Nas contas agora apresentadas não resulta a especificação da proveniência das receitas e da aplicação das despesas.
Acresce que o Réu não faz constar das contas apresentadas o saldo que resulta de cada uma das operações.
Decorre do supra exposto, que as contas apresentadas não cumprem os requisitos legalmente impostos, no art. 944º, nº 1 do CPC, tendo o Réu já sido convidado para as corrigir pelo que rejeito a apresentação das contas apresentadas pelo Réu.
Estabelece o n.º 2 do artigo 944.º do CPC que a inobservância do formalismo exigido para a apresentação de contas pode determinar a rejeição das contas, seguindo-se o disposto nos nºs. 1 e 2 do artigo anterior.

Por sua vez, o art. 943º, nº 1 e 2 do CPC, estipula que:

1- Quando o réu não apresente as contas dentro do prazo devido, pode o autor apresentá-las, sob a forma de conta corrente, nos 30 dias subsequentes à notificação da falta de apresentação, ou requerer prorrogação do prazo para as apresentar.
2- O réu não é admitido a contestar as contas apresentadas, que são julgadas segundo o prudente arbítrio do julgador, depois de obtidas as informações e feitas as averiguações convenientes, podendo ser incumbida pessoa idónea de dar parecer sobre todas ou parte das verbas inscritas pelo autor.
Pelo supra exposto, rejeito as contas apresentadas pelo Réu e ordeno a notificação do Autor para apresentá-las, sob a forma de conta corrente, no prazo de 30 dias, e as quais o Réu não poderá contestar, conforme estabelecido nos nºs. 1 e 2 do artigo 943.º do CPC.
*
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas decide-se rejeitar as contas apresentadas pelo Réu A. J.., por não respeitar o disposto no artigo 944º, nº 1 do CPC, nos termos do artigo 944º, nº 2 do CPC..
*
Notifique, notificando o Autor P. F., para apresentar as contas exigidas, sob a forma corrente, no prazo de 30 dias, nos termos e para os efeitos do art. 943.º, nº 1 e 2 do C.P.C.

Inconformado, apela o réu, pretendo a revogação de tal decisão e substituição por outra que admita as contas apresentadas, terminando as suas alegações formulando as conclusões que se transcrevem:

1ª- O réu procedeu a elaboração de uma conta corrente na qual verteu todos os movimentos a débito e crédito que ocorreram desde Setembro de 2017 até fevereiro de 2019,
2ª- Nessa conta corrente o réu lançou em cinco colunas, a primeira referente á data da despesas e da receita, a segunda ao descritivo da receita ou da despesas, a terceira com o valor da despesas e receita realizada em dólares, a quarta com a receita e despesa em euros, assinalada com a símbolo + / - conforme fosse despesa ou receita e a quinta coluna com o saldo mensal das operações ocorridas.
3ª- Juntou com tal detalhada, extensa e completa conta, como documentações de suporte, todos os documentos demonstrativos das despesas incorridas e das receitas obtidas, designadamente extratos bancários de todas as operações realizadas, e bem assim recibo de quitações das despesas com remunerações devidas.
4ª- Podemos assim concluir que, ao contrário do que foi entendimento do tribunal “a quo” tal conta dá cabal cumprimento o disposto no 944º, nº 1 do CPC, quando refere que « As contas são apresentadas em forma de conta-corrente e nelas se especifica a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respetivo saldo.
5ª- Ora resulta à saciedade que das contas apresentadas conjugadas com os documentos que as suportam, os quais nelas se consideraram integralmente reproduzidos, consta de forma especificada a proveniência das receitas, a aplicação das despesas e o respectivo saldo,
6ª- Resulta dessas contas todas as aplicações e/ou aquisições de produtos financeiros ao longo do tempo, como despesas especificadas pela natureza dos investimentos determinados pela sua designação tal como resulta dos extratos bancários, designações de cariz internacional, o respectivo preço e a menção da operação a débito assinalado pelo símbolo menos (-)
7ª- Resulta dessas contas todas as despesas com juros e despesas bancárias, decorrentes dessas aplicações e/ou aquisições de produtos financeiros ao longo do tempo, como despesas especificadas sob a designação “despesas bancárias” o respectivo valor e a menção da operação a debito assinalado pelo símbolo menos (-)
8ª- Resulta dessas contas outras despesas incorridas com remunerações dos serviços como despesas especificadas sob a designação ‘retribuição sócio’ ou ainda ‘comissão de assessoria’ o respectivo valor e a menção da operação a debito assinalado pelo símbolo menos (-)
9ª- Resulta dessas contas todas as aplicações e/ou aquisições de produtos financeiros ao longo do tempo, como despesas especificadas pela natureza dos investimentos determinados pela sua designação tal como resulta dos extratos bancários, designações de cariz internacional, o respectivo preço e a menção da operação a debito assinalado pelo símbolo menos (-)
10ª- Resulta dessas contas todas as receitas obtidas com a venda e/ou resgate das aplicações realizadas, ao longo do tempo, como receitas especificadas pelo natureza dos produtos financeiros alienados determinados pela sua designação tal como resulta dos extratos bancários, designações de cariz internacional, o respectivo preço da venda e a menção da operação a crédito assinalado pelo símbolo mais (+),
11ª- Assim, temos que dessas contas resulta evidenciado a proveniência da receita, a concreta aplicação das despesas e o saldo mensal dessas operações.
12ª- Repare-se que dada a quantidade operações realizadas, o reu considerou que o saldo das operações realizadas, entre despesas e receitas, deveria obedecer a uma periodicidade mensal, não exigido o normativo legal qualquer outro concreto critério para evidencia esse saldo.
13ª- Foram assim estas a exaustivas contas elaboradas e apresentadas em juízo, todavia, o tribunal “a quo” veio a considerar injustificadamente que essas contas não davam cumprimento às exigências legais, decisão que o Apelante considera infundada e não consentida pelo disposto no art. 944º, nº 1 CPC.
14ª- A Prestação de Contas sob a forma de Conta-Corrente é uma forma simples de escrituração de transacções, em rubricas de (deve e haver), (débitos e créditos), que releva a situação patrimonial de uma conta em cada momento, ou num determinado período de tempo, através do saldo resultante das entradas/receitas/créditos e das saídas/despesas/débitos. Este tipo de escrituração deve ser efectuado num só documento.
15ª- A apresentação das contas sob a forma de conta corrente destina-se á representação do movimento patrimonial e monetário, a exposição sintética de todos os dados e movimentos monetários da actividade do reu. Deste modo a lei não impõe como consequência inevitável e inexorável a rejeição das contas. De salientar que é entendimento pacífico que a não apresentação das contas sob a forma de conta-corrente ou a incompletude desta, pode determinar a sua rejeição mas não determina obrigatoriamente essa rejeição. O preceito legal afirma literalmente “pode determinar” e não “determina”
16ª- Ora, sem conceder ainda que as contas não tenham sido apresentadas segundo a forma que a lei aconselha (a forma de conta-corrente) ou esta estivesse incompleta, isso não impunha obrigatoriamente a rejeição dessa conta, uma vez que é possível determinar-se e avaliar-se o saldo final da gestão do réu.
17ª- Pelo exposto a douta decisão recorrida afigura-se excessiva e injusta ao considerar que as contas apresentadas pelo réu não estavam suficientemente discriminadas, porque não faziam referência á “ao numero de acções compradas ou vendidas em cada momento, o respetivo valor nominal e o resultado líquido das referidas acções, incluindo as despesas bancárias e fiscais inerentes, concluindo com o saldo disponível”.
18ª- Ora a conta apresentada, alem do mais descreve o concreto investimento feito em cada dia, e o seu valor, bem como a concreta venda realizada e o valor recebido, apurando o saldo mensal de tais operações, tudo concretamente suportado pelos extratos bancários emitidos pelas instituições financeiras que serviram de intermediária nessas operações.
19ª- Em conclusão considera o Apelante que, não podia o tribunal “a quo” ter rejeitado as contas apresentadas, as quais cumprem cabalmente as exigências legais do art. 944º, nº 1 CPC, Nesse sentido Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/11/2017 in www.dgsi.pt; no Ac da Relação do Porto de 28/05/2007 in www. dgsi.pt e no Acórdão da Relação de Lisboa de 24.03.1976, in Col. Jur., 1976, 2° - 461.
20ª- Em conclusão, considera o Apelante que a douta decisão recorrida opera uma errada interpretação e aplicação do disposto no art. 944º nº 1 do CPC, pelo que a mesma deverá ser revogada e substituída por outra que julgue válidas as contas apresentadas e como tal sejam admitidas, como é de justiça.
Contra-alegou o autor em defesa do despacho recorrido, concluindo pela improcedência da apelação.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Da delimitação do objecto do recurso

Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, n.º 2, 5º, n.º 3, 635º, n.ºs 4 e 5 e 639, n.º 1, do CPC), a questão a decidir reconduz-se a apreciar se as contas apresentadas pelo réu respeitam ou não a forma legalmente prescrita (artigo 944º, n.º 1 do CPC) e se se justifica (ou não) a respectiva rejeição, com os efeitos previstos nos artigos 944º, n.º 2 e 943º, n.º 1 e 2 do CPC).
*
FUNDAMENTAÇÃO
*
Fundamentação de facto

A matéria factual a ponderar é a que resulta exposta no relatório que precede.
*
Fundamentação de direito

Substantivamente, a obrigação de prestar contas entronca em obrigação de carácter mais geral, a obrigação de informação, consagrada no art. 573º do CC, obrigação que se desenvolve em consonância com a intensificação das relações de cooperação entre os homens, característica da chamada socialização do direito – informação que se traduz na exposição de uma dada situação de facto, seja qual for o seu objecto e que se esgota na comunicação de factos objectivos, sem qualquer valoração (1).
A acção especial de prestação de contas é uma das formas de exercício de tal direito de informação, constituindo a obrigação de prestar contas, estruturalmente, uma obrigação de informação que existe sempre que o titular dum direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (artigo 573º do Código Civil) (2) e cujo fim é o de estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.’ (3)
Não existindo necessariamente em todas as situações em que existe obrigação de informação, a obrigação de prestar contas (que não tem carácter genérico – não se reduz a um simples dever de informação sobre o objecto do direito de outrem) integra obrigação de informação detalhada das receitas e das despesas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documentos (4).
Esta finalidade do processo de prestação de prestação de contas (a definição de um saldo e a determinação da situação de crédito ou de débito) evidencia-se na forma legalmente exigida para a apresentação das contas (art. 944º, n.º 1 do CPC) – as contas ‘devem ser apresentadas sob a forma gráfica de conta-corrente, a qual se decompõe em receitas, despesas e saldo’ (5).
As ‘contas apresentam a expressão ou forma gráfica de conta corrente, quando em colunas separadas se inscrevem as verbas de receita, as verbas da despesa, e o saldo resultante do confronto entre umas e outras’, inserindo-se as verbas de receita em coluna subordinada à epígrafe Haver e as ‘verbas de despesa em coluna encimada pela palavra Deve’ (6).
A lei exige ao réu (parte final do n.º 1 do art. 944º do CPC) a especificação da proveniência das receitas e a aplicação das despesas – a intenção é a de incumbir o réu de ‘descriminar e individualizar as diferentes fontes de receita e as diferentes causas de despesa’ (7) –, não satisfazendo o preceito as contas que se limitem a dar nota dos totais de receita e despesa, respectivamente (com alusão ao saldo resultante), pois é ‘indispensável discriminar as diferentes verbas de receita e despesa; há que indicar separadamente como se obteve a totalidade da receita, quais as quantias que se foram recebendo e donde provieram; assim como é forçoso declarar quais as diferentes despesas que se fizeram e a que fim se aplicaram as verbas respectivas.’ (8)
A prestação de contas sob a forma de conta corrente constitui, pois, uma ‘forma simples de escrituração de transacções, em rubricas de deve e haver (débitos e créditos), que releva a situação patrimonial de uma conta em cada momento, ou num determinado período de tempo, através do saldo resultante das entradas/receitas/créditos e das saídas/despesas/débitos’ – apresentar as contas sob a ‘forma de conta-corrente é uma das formas de contabilidade, é uma das artes de escriturar as contas.’ (9)
A previsão legal, ao aludir à forma da conta-corrente, remete para uma ‘forma gráfica de contabilidade’, um ‘determinado método de dar a conhecer as operações de crédito e débito entre duas pessoas.’ (10)
Visa-se, com a apresentação das contas em forma de conta corrente, ‘a representação do movimento patrimonial e monetário, a exposição sintética de todo os dados e movimentos’ (11) de uma determinada actividade em período demarcado de tempo – pretende-se ‘facilitar a análise dos dados que são levados para o processo, sendo que o objectivo final do processo é o determinar o quantitativo que uma parte deve à outra’ (12).
A inobservância da forma de conta corrente na apresentação das contas, podendo dar suporte à sua rejeição (art. 944º, n.º 2 do CPC), não constitui, porém, causa inexorável de rejeição – a ‘lei não impõe como consequência inevitável e inexorável a rejeição das contas’ apresentadas em desconformidade com o preceituado no art. 944º, n.º 1 do CPC; podendo tal desconformidade determinar a sua rejeição, certo é que não tem como consequência necessária e obrigatória essa rejeição (13).
A sanção cominada no n.º 2 do art. 944º do CPC (rejeição das contas apresentadas pelo réu e, face à remissão para os n.ºs 1 e 2 do art. 943º do CPC, devolução da sua apresentação ao autor, sem possibilidade de contestação pelo réu) deve reservar-se para as situações em que o ‘escrito’ apresentado configure um simulacro ou uma mistificação, em que não possa ser o ‘escrito’ oferecido encarado como prestação de contas sérias – coisa diversa da apresentação dum escrito com forma e figura de contas, embora não organizado segundo o estilo da conta corrente (14).
Apresentadas as contas de forma menos perfeita, sob o ponto de vista das artes contabilísticas, haverá que aquilatar se a forma utilizada, ainda assim, permite apurar as receitas e despesas (o deve e o haver), bem como o saldo global a fim de apurar o que uma deve à outra e, tal sucedendo, não se justificará, pela mera inobservância da forma da conta corrente, a rejeição das contas (15).
A rejeição das contas (nos termos e com os efeitos previstos nos artigos 944º, n.º 2 e 943º, n.ºs 1 e 2 do CPC) só se justificará, pois, quando a omissão das formalidades legalmente previstas para a sua apresentação impedir se alcance a finalidade precípua do processo de prestação de contas: determinar o quantitativo que uma parte deve à outra, após prévio (e necessário) encontro das verbas das receitas e das despesas, com discriminação e individualização das fontes das primeiras e causas das segundas (assim como respectivos montantes) – rejeição que não se justificará se apesar da sua maior ou menor incorrecção contabilística, da sua maior ou menor incompletude na especificação das fontes de receitas e causas de despesas, elas habilitarem a discussão (com cabal cumprimento do contraditório – o que pressupõe a respectiva inteligibilidade) que o processo de prestação de contas pressupõe, sendo no mínimo adequadas e idóneas a alicerçar o julgamento do que deve ser incluído nas receitas e do que se justifique ser havido como despesa, em vista de se determinar o saldo devedor/credor (sempre ponderando a especificidade do caso concreto e a fonte da obrigação de prestar contas).
Possibilitando as contas apresentadas a determinação do quantitativo que uma parte deve à outra, não devem as mesmas ser rejeitadas, antes se impondo que sobre as mesmas, produzida a instrução que ao caso couber, recaia julgamento, apreciando da exactidão e justeza das receitas e das despesas apresentadas (discriminadas e individualizadas todas, incluindo respectivos montantes) – e eventualmente contestadas pela contraparte, nos termos do art. 945º, n.º 2 do CPC.
Na situação dos autos, o aspecto que interessa relevar é o de que as contas apresentadas apresentam as receitas, as despesas e o saldo.
Apresentam as receitas, pois que inscritas, além daquelas cuja designação evidencia a sua origem e natureza – como as resultantes da abertura de conta pelo sócio A (assim é nas referidas contas identificado o réu apelante), com um montante a crédito (atento o sinal matemático de mais [+] que se segue à menção do montante em questão), e da entrada de capital do sócio B (assim é nas contas identificado o autor apelado), também com especificação do montante a creditar (a seguir ao montante é colocado o sinal matemático de mais [+]) – também outras, cuja natureza e origem carecerá de melhor concretização (por a sua designação, algo encriptada, não permitir, de forma directa, apreender a génese do provento), como (exemplificando, sem qualquer carácter exaustivo) as inscritas em 4/10/2017, sob as designações de ‘V Visa Inc Class A Shs 00345’ e ‘V Glbl X Silver Miners 00608’, nos valores, respectivamente, de 2.112,00USD e 2.978,11USD, as inscritas em 12/10/2017 e 13/10/2017, sob as designações de ‘V Qualcomm Inc 00365’, no valor de 10.720,00 USD e ‘V Compass Minerals Int 00426’, no valor de 6.630,00USD, a inscrita em 16/10/2017, sob a designação de ‘V Vgd Reit ETF 00493’, no valor de 4.225,00USD, a inscrita em 25/10/2017, sob a designação ‘V Nike Inc Class B 00428’, no valor de 2.692,50USD, a inscrita em 26/10/2017 sob a designação ‘153498 Operação Cambial Spot’, no valor de 7.037,40USD, a inscrita em 30/10/2017, sob a designação de ‘V CVS Health Corp 00533’, no valor de 7.608,01USD, a inscrita em 25/06/2018, sob a designação ‘’V LightBridge Corp 00472’, no valor de 20.600,00USD, as inscritas em 29/06/2018, sob as designações de ‘V W&T OffShore Inc 00308’ e ‘V Chesapeake Energy Co 00326’, nos valores, respectivamente, de 53.509,40USD e de 11.968,00USD, a inscrita em 8/06/2018, sob a designação de ‘P1806080407OP TrfBiGlobalT’, no valor de 2.500,00€, a inscrita em 13/06/2018, sob a designação de ‘P1806130220OP TrfBiGlobalT’, no valor de 1.850,00€, a inscrita em 30/07/2018, sob a designação ‘V BMW AG 00416’, no valor de 20.702,50€, a inscrita em 31/07/2018, sob a designação ‘V Barrick Gold Corp 00338’, no valor de 41.514,86USD, a inscrita em 24/08/2018, sob a designação de ‘V BMW AG 00087’, no valor de 16.383,38€, a inscrita em 9/01/2019, sob a designação ‘V Advance Micro Device 00513’, no valor de 11.335,50USD, as inscritas em 14/01/2019, sob as designações ‘V Advance Micro Device 00263’ e ‘V Tilray Inc Cl 2 00418’, nos valores, respectivamente, de 13.351,57USD e de 10.479,51USD e a inscrita em 16/01/2019, sob a designação ‘V Tilray Inc Cl 2 00218’, no valor de 14.115,61USD (valores, todos eles, inscritos como créditos, pois seguidos do símbolo matemático do mais [+]).
A apresentação das receitas (note-se que o mesmo vale a propósito das despesas) mostra-se exaustivamente discriminada no que concerne à referência diária e à operação em questão.
As despesas mostram-se inscritas do mesmo modo que as receitas – umas sob designação que permite melhor percepção da sua natureza e (como as que se referem à retribuição do réu, ou às despesas de selo e de comissão devidas por operações relativas ao mercado de acções), outras sob designação que nada sugere quanto às respectivas causas, aludindo apenas a um código ou referência (permitindo intuir-se apenas que se tratará de operações de compra/venda de acções – o que justifica a menção à comissão e às despesas de selagem), como é o caso (e limitaremos a exemplificação a algumas das indicadas no mês de Setembro de 2017) das inscritas em 8/09/2017, sob a designação ‘C IBM 00335’, no valor de 14.560,00USD (a que respeita a despesa de selagem de 0,70USD e de 14,47USD de comissão), em 19/9/2017, sob a designação ‘C General Electric Co 00366’, no valor de 11.924,95USD (a que respeita a despesa de selagem de 0,60USD e de 14,95USD de comissão), em 22/09/2017, sob as designações de ‘C iPath S&P 500 VIX S/00251’ e ‘C Vgd Reit ETF 00438’, no valor, respectivamente, de 8.160,00USD e de 12.615,00USD, em 25/09/2017 sob a designação de ‘C Apple Inc 00471’, ‘C Glbl X Silver Miners 00455’ e ‘C Procter & Gamble 00453’, nos valores, respectivamente, de 7.675,00USD, 6.620,00USD e 5562,00USD, e em 26/09/2019, sob a designação ‘C GoPro Inc Class A 00297’, no valor de 5.625,00USD (valores, todos eles, inscritos como débitos, pois seguidos do símbolo matemático do menos [-]).
O saldo é apresentado a uma cadência mensal, bem como no final das contas, sob a menção ‘Posição da Carteira de Títulos’.
Cumpram ou não as contas assim apresentadas pelo réu apelante as [todas] regras contabilísticas, não pode negar-se que elas são aptas e idóneas a alicerçar e suportar a discussão sobre as verbas que hão-de ser havidas como receitas (incluindo apreciar e apurar se outras verbas existem que não foram inscritas) e das que hão-de ser computadas com despesas (levadas a débito – incluindo apurar da justeza da remuneração do réu), em vista de determinar o saldo devedor/credor final, além de permitirem a concretização do que constitui cada uma das concretas operações inscritas (seja ao nível da despesa – v.g., eventual aquisição de acções –, seja ao nível da receita – p. ex., eventual alienação de acções em carteira).
Procede, pois, a apelação, impondo-se a revogação do despacho recorrido.
*
DECISÃO
*
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, em revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que, considerando que o réu apresentou contas, determine o prosseguimento da causa, em conformidade com os termos do processo comum declarativo subsequentes à contestação (art. 945º, n.º 1 do CPC), em vista da respectiva apreciação e julgamento.
Custas da apelação pelo apelado (vencido no recurso).
*
Guimarães, 20/05/2021
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)



1. Luís Filipe Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 3ª Edição, Almedina, pp. 131/132 (citando Antunes Varela, na RLJ, Ano 123º, p. 63).
2. Acórdão do STJ de 1/07/2003 (Afonso Correia), no sítio www.dgsi.pt. Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II (Processo de Execução, Processos Especiais e Processo de Inventário Judicial), 2020, Reimpressão, p. 388.
3. Luís Filipe Sousa, Processos Especiais (…), p. 133 e acórdãos do STJ de 3/02/2005 (Salvador da Costa) e de 9/02/2006 (Araújo de Barros), no sítio www.dgsi.pt. Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II (…), p. 388.
4. Acórdãos da Relação de Coimbra de 14/05/2013 (Henrique Antunes) e da Relação de Guimarães de 17/10/2019 (Margarida de Almeida Fernandes), no sítio www.dgsi.pt e, relativamente a todas as asserções do parágrafo, Luís Filipe Sousa, Processos Especiais (…), p. 133.
5. Luís Filipe Sousa, Processos Especiais (…), p. 171.
6. Alberto dos Reis, Processos Especiais, Volume I, Reimpressão, 1982, p. 315.
7. Alberto dos Reis, Processos Especiais, Volume I (…), p. 315.
8. Alberto dos Reis, Processos Especiais, Volume I (…), p. 315. Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II (…), p. 393.
9. Acórdão do STJ de 9/11/2017 (Sousa Lameira) e acórdão da Relação do Porto de 28/05/2007 (Sousa Lameira), no sítio www.dgsi.pt; no mesmo sentido, Luís Filipe Sousa, Processos Especiais (…), p. 174 e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II (…), p. 393.
10. Acórdão da Relação de Lisboa de 24/03/1976, na Colectânea de Jurisprudência, 1976, tomo 2, p. 461 e, citando-o, o acórdão do STJ de 9/11/2017 (Sousa Lameira).
11. Citado acórdão do STJ de 9/11/2017 (Sousa Lameira).
12. Luís Filipe Sousa, Processos Especiais (…), p. 174.
13. Citados acórdãos do STJ de 9/11/2017 (Sousa Lameira) e da Relação do Porto de 28/05/2007 (Sousa Lameira) e acórdão da Relação do Porto de 14/12/2017 (Carlos Portela), também no sítio www.dgsi.pt, Luís Filipe Sousa, Processos Especiais (…), p. 174 e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II (…), p. 393.
14. Alberto dos Reis, Processos Especiais, Volume I (…), p. 316.
15. Luís Filipe Sousa, Processos Especiais (…), p. 174 e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II (…), pp. 393/394.