Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
578/18.2T8VVD.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITO DE PERSONALIDADE
TUTELA DO DIREITO À HONRA
OFENSA À MEMORIA DE FALECIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/22/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Da conjugação do disposto no artº 66º, nº1, 68º, nº 1 e 70º nº 1 e 71º, nº 1, todos do CC, interpretados à luz do disposto no artº 9º do CC, é possível concluir que, embora a personalidade cesse com a morte do titular dos direitos, alguns direitos de personalidade – ofensa ilícita e ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral - gozam ainda de protecção para além da sua morte, o que resulta da adoção da expressão igualmente no nº 1 do artº 71º, por reporte ao artº 70º, nº 1. Teve a lei por fim salvaguardar alguns direitos que integravam a personalidade jurídica pelo respeito pela memória dos falecidos.
Sendo os factos constantes dos versos em causa verdadeiros, ocorridos no tempo e lugar descritos, do conhecimento público, destinando-se o escrito a dar a conhecer histórias da freguesia, visando perpetuar alguns acontecimentos de relevo ocorridos na freguesia, faz sentido a alusão aos factos, pois os crimes são parte da história da freguesia, podendo assim afirmar-se o interesse público dos factos contados nos versos em causa, não se verificando ofensa ilícita da memória de pessoa falecida.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

C. N., intentou a presente acção declarativa comum contra A. C., pedindo a condenação deste no pagamento de uma indemnização não inferior a 30.000,01 €.
Alegou, em síntese, ter o R. escrito um livro, com o título “A. C. - Histórias ...”, constituído por um conjunto de histórias verídicas sobre a freguesia de ..., concelho de …. Uma dessas histórias, em verso, refere-se ao homicídio do tio da A. pelo pai desta, ocorrido há mais de 33 anos. Por força desse crime, o pai da A., falecido antes da publicação do livro, foi condenado a 19 anos de prisão. Tal facto constituiu um evento traumatizante que obrigou a A. a acompanhamento psiquiátrico, tendo vindo a apresentar melhorias. Contudo, por força da publicação do dito livro, a A. viu-se obrigada a recorrer de novo às consultas de psiquiatria, não tendo conseguido restabelecer o seu estado emocional, físico e mental.
O R. contestou, por impugnação, invocando ter tido a autorização prévia da mãe da A. à publicação do texto sobre o pai desta. Mais invocou a licitude da sua conduta, à luz dos princípios constitucionais da liberdade de expressão e de criação cultural.
Foi proferido despacho saneador.
Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento e a final foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente.

A A. não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, concluindo as suas alegações do seguinte modo:

I. Não pode a recorrente conformar-se com decisão recorrida, quer pelo facto da sentença considerar que não existe qualquer ofensa à honra, bom nome do pai da recorrente e, consequentemente, não se justificar uma compressão à liberdade de expressão, quer por considerar não assistir qualquer direito indemnizatório à A pelo ressarcimento de qualquer dano em nome próprio.

Da ofensa à honra e ao bom nome

II. No caso sub judice, veio a ora recorrente alegar uma ofensa à honra e ao bom nome do falecido, ofensa aos seus direitos de personalidade.
III. E, neste caso, a forma como o Réu relatou o crime constitui uma ofensa ao bom nome e à honra do falecido pai da A. Esta forma de relato do acontecimento influenciou a imagem que os familiares tinham do falecido, principalmente aqueles que não conheciam a história.
IV. Apesar do texto se referir a um acontecimento real, o mesmo está ludibriado de forma a criar medo e terror no leitor.
V. Mais, o tom de tristeza que o autor do texto descreve no final do poema não pode atenuar a forma como o relatou o crime e a imagem que fez transparecer do “M.”. De facto, com a escrita do texto recordou-se a memória dos intervenientes e do acontecimento: os filhos do “M.” recordaram o acontecimento traumático das suas vidas, que o seu pai matou o tio, relembraram o tempo de prisão do pai; os netos do “M.”, que não sabiam a história, ficaram com uma imagem deturpada do avô.
VI. Como tal, existe no texto, um ataque à pessoa ou ao carácter do pai da A., pela forma como é escrito, que acabou por consubstanciar num ataque à sua família, que não pretendiam recordar o episódio ou que nem o conheciam.
VII. Pelo que, sempre teria o tribunal a quo que concluir pela ofensa à honra, reputação ou bom nome do pai da recorrente.
VIII. A forma como o Réu descreve o acontecimento ultrapassa, em larga medida, o direito à informação. Pois, os factos não foram relatados, no livro, de forma adequada e moderada, isto é, extrapolando o necessário à divulgação do homicídio.
IX. Nem se vislumbra qualquer intenção pedagógica na divulgação deste texto e desta forma, pois o pai da A. foi condenado a uma pena de prisão, que cumpriu, o processo crime foi arquivado, não existem qualquer necessidade de prevenção geral ou especial adicional, ou intuito pedagógico da divulgação, depois de 33 anos da data deste crime.
X. Nem se compreende como considera o tribunal a quo que o relato de um homicídio entre pessoas da mesma família pode ser do interesse público em termos culturais para a história da freguesia de .... Há apenas um aproveitamento deste acontecimento para fins lucrativos (venda do livro).
XI. Pelo que, confirmando-se a existência de uma ofensa à honra e ao bom nome, esta deve ser subordinada ao princípio geral consignado art.º 483, não só quanto aos requisitos fundamentais da ilicitude, mas também relativamente à culpabilidade.
XII. O que está em causa é a responsabilidade civil do Réu por, através de escrito publicado, ter ofendido direitos de personalidade do falecido. O ato ilícito é a afirmação dos factos capazes de prejudicar o prestígio e o bom nome do autor, pois conhecia a natureza melindrosa dos acontecimentos escritos
XIII. Ora, o texto escrito abalou a honra e o prestígio do falecido perante os familiares que não conheciam esta história e o bom nome em que ele era tido no meio social em que viveu.
XIV. Concluindo, atendendo à matéria de facto provada, tem forçosamente de se concluir pela ofensa à honra, reputação ou bom nome do pai da recorrente, justificando-se a atribuição de uma indemnização para compensar os danos não patrimoniais sofridos pela recorrente pela ofensa à honra do seu pai.

Colisão dos direitos

XV. Sucede porém que, devem ser conciliados, na medida do possível, os direitos de informação e livre expressão e criação, por um lado, e à honra e ao bom nome e reputação, por outro.
XVI. No confronto desses direitos, o da honra e o da informação/criação, um deles terá de prevalecer, não obstante serem de hierarquia semelhante no enquadramento da colisão de direitos prevista no art.º 335 do CC.
XVII. A colisão desses direitos deve, em princípio, resolver-se pela prevalência daquele direito de personalidade. Só assim não será quando, em concreto, concorram circunstâncias suscetíveis de, à luz de bem entendido interesse público, justificar a adequação da solução oposta, sendo sempre ilícito o excesso e exigindo-se o respeito por um princípio, não apenas de verdade, necessidade e adequação, mas também de proporcionalidade ou razoabilidade.
XVIII. Porém, atendendo ao já expendido, o texto publicado constitui uma ofensa à honra e bom nome do pai da recorrente, não existindo, como já visto, qualquer utilidade pública na sua divulgação, muito menos na forma como foi divulgada. Pelo que, deve ser aplicada, in casu, uma restrição à liberdade de expressão e criação artística e cultural do R.

Da Legitimidade

XIX. Considerando que no texto publicado pelo Réu existe uma ofensa à honra e bom nome do falecido pai da A. e da sua família, e que tal ofensa justifica uma restrição à liberdade de expressão e de criação do Réu, sempre se diga que, a recorrente, filha do ofendido, tem legitimidade para peticionar uma indemnização por danos não patrimoniais. Vejamos,
XX. Da conjugação dos art.º 71º, nº 1 e 70º, nº 2, do CC decorre que pode ser pedida ao lesante, indemnização por danos não patrimoniais por ofensa a pessoa falecida, radicando a legitimidade no cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido.
XXI. A recorrente tem, por isso, legitimidade para peticionar uma indemnização por danos não patrimoniais, por ofensa à memória do seu pai.
XXII. Nestes termos, atendendo aos fundamentos invocados, a sentença recorrida acarreta uma violação da lei substantiva, do previsto no art.º 71.º e também no art.º 484.º do CC, um erro de julgamento na interpretação e subsunção dos factos ao direito aplicável, o que conduz a uma inexacta qualificação jurídica dos factos dados como provados, pois deve considerar-se que há, in casu, uma ofensa à honra e bom nome do falecido pai da A., o que implica uma restrição à liberdade de expressão e de criação do Réu e, consequentemente, tem a A. direito a ser ressarcida pelos danos não patrimoniais que resultam desta ofensa.
Termos em que, e nos melhores de direito que VV. Exas. doutamente suprirão, deverá ser procedente o presente recurso e, consequentemente, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que declare procedente a pretensão da A.

A parte contrária apresentou contra-alegações que concluíu do seguinte modo:

1ª – A douta sentença impugnada não violou qualquer norma jurídica.
2ª- As normas jurídicas invocadas na douta sentença, sem erro na sua determinação, mostram-se corretamente aplicadas e interpretadas.
3ª – A douta sentença em mérito deve manter-se inalterada por não se verificar qualquer fundamento que pudesse determinar a sua alteração ou anulação.
4º - Nenhuma das conclusões formuladas na apelação merece provimento.
5ª – Deverá, consequentemente, manter-se o julgado e a apelação declarada totalmente improcedente.

II – Objeto do recurso

Considerando que:

. o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões a decidir são as seguintes:

. se o escrito do R. constitui uma ofensa à honra do falecido pai da A. ;
. se assim se entender, se no confronto com o direito de liberdade de expressão, deve o direito de personalidade prevalecer;
. em caso afirmativo, se assiste à A., enquanto filha do falecido retratado no escrito do R., direito a uma indemnização pelos danos não patrimoniais resultantes da ofensa à honra e ao bom nome do seu pai.

III – Fundamentação

Na primeira instância foram considerados provados e não provados os seguintes factos:

A.1. FACTOS PROVADOS

1. O R. é autor e editor do livro intitulado “A. C. - Histórias ...[art.º 1.º da p.i.].
2. Este foi publicado em Junho de 2017, com uma tiragem de 800 exemplares impressos pela “Gráfica Y - Artes Gráficas, Lda.[art.º 2.º da p.i.].
3. O livro supra citado é constituído por um conjunto de histórias verídicas, escrito na íntegra em verso [art.º 3.º da p.i.].
4. As histórias são todas sobre a freguesia de ..., sediada no concelho de …, distrito de Braga [art.º 4.º da p.i.].
5. Uma das histórias que consta no livro do R. cita um homicídio que ocorreu em ..., entre dois familiares, mais concretamente o pai da A., M. M., apelidado por todos os que o conheciam por “M.”, e o seu tio, conhecido e apelidado de “X” [art.º 7.º da p.i.].
6. O homicídio relatado num dos poemas do livro aconteceu em 1984 [art.º 9.º da p.i.].
7. O pai da A. foi condenado a uma pena de prisão efectiva de 12 anos e um mês [art.º 10.º da p.i.].
8. Este foi um acontecimento traumatizante e difícil de ultrapassar para a A. e a sua família [art.º 11.º da p.i.].
9. Foram precisos vários anos para que a A. recuperasse do trauma, da ignomínia e do opróbrio que sentiu [art.º 12.º da p.i.].
10. O R., antes da publicação do livro, dirigiu-se à residência da mãe da A., e esposa do Sr. M. M., e solicitou o nome completo e uma fotografia do Sr. M. M., para que fossem publicados na sua obra [art.º 14.º da p.i.].
11. Alguns bisnetos e netos do Sr. M. M. desconheciam por completo o acontecimento [art.º 15.º da p.i.].
12. Tendo, assim, tido conhecimento de tal acontecimento pelos comentários surgidos na família após a publicação do respectivo livro [art.º 16.º da p.i.].
13. O conhecimento do crime influenciou a imagem que os seus familiares, não sabedores do que se tinha sucedido, tinham do seu avô, perturbando-os nesse sentido [art.º 17.º da p.i.].
14. Apesar de o crime ser de conhecimento público, a família, por opção, tentou esconder e esquecer o sucedido [art.º 18.º da p.i.].
15. A A., filha do Sr. M. M., depois do referido em 5, 6 e 7, começou a ser acompanhada pela especialidade médica de psiquiatria [art.º 19.º da p.i.].
16. É o seguinte o texto escrito pelo R. no livro aludido em 1:
Ó ...
Terra de muita gentileza
Deram-se aqui episódios
Que causaram muita tristeza
Já vai há 33 anos
E foi à beira da escola
O M. matou o X
Com um tiro de pistola

Como isto aconteceu
E eles eram cunhados
Foi num domingo à tarde
Estavam muito zangados
Mandou-o para a eternidade
Mas fez uma cena feia
O X foi para o cemitério
E o M. para a cadeia
Nem vos digo nem vos conto
O homem perdeu a tola
As crianças ficaram com medo
Não queriam ir para a escola[arts. 7.º e 24.º da p.i.].
17. O Sr. M. M. faleceu a -.11.2008 [art.º 26.º da p.i.].
18. O R. solicitou autorização, por cautela, a, pelo menos alguns, “actores sociais” que nele figuram, ou seus sucessores [art.º 17.º da contestação].
19. Editado o livro, pelo menos alguns dos vivos manifestaram ao R., por via directa e indirecta, o seu contentamento e satisfação [art.º 18.º da contestação].
20. Os filhos do “M.”, M. F., L. F. e P. C., consentiram na publicação do texto e da fotografia [art.º 23.º da contestação].
21. O facto relatado em 16 tornou-se de conhecimento público, designadamente de todos os moradores da freguesia de ... e da área territorial de … [art.º 28.º da contestação].
22. A pena de prisão aplicada ao pai das A. bem como os factos em que se baseou tornaram-se do conhecimento público [art.º 29.º da contestação].
23. O homicídio praticado pelo pai da A. ocorreu próximo da entrada da escola primária de ..., em local de passagem de crianças em idade de frequência escolar [art.º 42.º da contestação].
24. O lugar, as circunstâncias e o modo como foi praticado o homicídio causaram na filha do R., ao tempo em idade escolar, perturbação e terror, recusando-se a passar no lugar onde ocorreu o homicídio e a frequentar a escola [art.º 44.º da contestação].
25. O texto seguinte ao referido em 16, intitulado “Em memória do M. G.”, refere-se ainda ao homicídio referido em 5, nos seguintes termos:
“Toda a gente se admirou
Com aquele desacato
Foi no dia 6 de Maio
Do ano 1984
Foi no dia 6 de Maio
Este triste acontecimento
Resolvi escrever isto
Para não ficar no esquecimento” [doc.].
*
A.2. FACTOS NÃO PROVADOS

a) Art.º 10.º da p.i. [provado apenas o que consta do facto 7].
b) Art.º 14.º da p.i. [provado apenas o que consta do facto 10].
c) Art.º 16.º da p.i. [provado apenas o que consta do facto 12].
d) Art.º 17.º da p.i. [provado apenas o que consta do facto 13].
e) Arts. 20.º, 21 e 22.º da p.i.
f) Art.º 17.º da contestação [provado apenas o que consta do facto 18].
g) Art.º 18.º da contestação [provado apenas o que consta do facto 19].
h) Art.º 20.º da contestação [provado apenas o que consta do facto 10].
i) Arts. 21.º, 22.º e 24.º da contestação.
j) Art.º 29.º da contestação [provado apenas o que consta do facto 22].
k) Art.º 42.º da contestação [provado apenas o que consta do facto 23].
l) Art.º 44.º da contestação [provado apenas o que consta do facto 24].
m) Arts. 65.º e 65.º (2.º) da contestação.

O presente recurso é restrito à matéria de direito.

Está em causa o texto escrito em verso pelo R., mencionado nos pontos 16 e 25 dos factos provados, no âmbito de um livro denominado “A. C. – Histórias ...” que é constituído por um conjunto de histórias verídicas, escritas em verso, ocorridas na freguesia de ..., concelho de ….
Defende a apelante que a forma como o R. relatou o crime ocorrido em 1984, cujo autor foi o seu pai, M. M., descrevendo-o como um assassino que “perdeu a tola”, capaz até de assustar as crianças que ficaram com medo e não queriam ir para a escola, sem enquadrar o contexto em que os factos ocorreram – discussão familiar com agressões físicas de ambas as partes - faz transparecer através do texto que naquele dia, o seu pai, conhecido como “M.” matou o “X” porque lhe apeteceu, tal e qual um “monstro assassino”.
Em seu entender, o R. ao relatar o sucedido é sarcástico, chegando ao ponto de ludibriar, desrespeitando seriamente a honra de pessoa já falecida – o seu pai – e de toda a sua família. Como tal existe no texto um ataque à pessoa ou ao carácter do seu pai, que acabou por consubstanciar um ataque à sua família. Tendo sido provados os factos constantes dos pontos 8, 9, 13, 14 e 15 dos factos provados, sempre teria o tribunal por concluir pela ofensa à honra, reputação ou bom nome do pai da recorrente.
A A. ora apelante fundamentou a presente ação na violação pelo R., com a publicação dos identificados versos, dos artigos 70º, nº 1 e 71º, nº 1 e 2, do CC.
Está em causa no caso presente a eventual violação do direito à honra. O artº 71º nº 1 do CC refere que os direitos de personalidade gozam igualmente de proteção depois da morte do respectivo titular.
Tem sido considerado nos tribunais, traduzir-se a honra da pessoa no elenco de valores éticos de cada uma, em que avultam o carácter, a lealdade, a probidade, a retidão, ou seja, a dignidade subjectiva. E, por outro, traduzir-se, na vertente da consideração social, no merecimento da pessoa no meio social em termos de bom nome, de confiança, de estima, de reputação e de dignidade objectiva (cfr. Ac. do STJ de 18.10.2007, proc. 07B3555(1). E nas palavras do Ac. do STJ de 12-09-2006 - Revista n.º 2238/06 - 6.ª Secção - Azevedo Ramos (Relator) o direito à honra inclui o direito ao bom nome e reputação, o simples decoro e o crédito pessoal.
“Todas as pessoas têm direito à honra pelo simples facto de existirem, isto é, de serem pessoas. É um direito inerente à qualidade e à dignidade humana. Mas as pessoas podem perder a honra ou sofrer o seu detrimento em virtude de vicissitudes que tenham como consequência a perda ou diminuição do respeito e consideração que a pessoa tenha por si própria ou de que goze na sociedade.
As causas de perda ou do detrimento da honra – de desonra – são, em termos muito gerais, acções da autoria da própria pessoa ou que lhe sejam imputadas, e que sejam consideradas reprováveis na ordem ética vigente, quer ao nível da própria pessoa, quer ao nível da sociedade.” (Pedro Pais de Vasconcelos, “Direito de Personalidade”. -Almedina 2006 – pág. 76, citado no Ac. do STJ de 30.09.2008, proc.08A2452).
A doutrina está dividida a propósito da interpretação dos nºs 1 e 2 do artigo 71º do CC ou seja, quanto às questões de saber, por um lado, se a protecção que envolvem se reporta ainda a direitos de personalidade das pessoas falecidas ou das pessoas a que se refere o nº 2 do artº 71º. E ainda, se as pessoas a que se refere o artº 71º, nº 2 têm ou não direito a indemnização ou compensação no quadro da responsabilidade civil, ou apenas a faculdade de requererem em juízo as providências a que se refere a parte final do nº 2 do artº 70º do CC.
“Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, volume I, Coimbra, 1987, página 105, e Diogo Leite de Campos, “Lições de Direitos de Personalidade”, Coimbra, 1995, páginas 44 e 45, entendem, os primeiros que em certa medida a protecção em causa constitui um desvio à regra do artigo 68º do Código Civil, e o último que a personalidade se prolonga para depois da morte, e defendem os parentes e herdeiros do falecido um interesse deste, em nome dele, e não um interesse próprio.

Diverso é o entendimento de José de Oliveira Ascensão, “Direito Civil, Teoria Geral, volume I, Introdução, As Pessoas, Os Bens”, Coimbra, 1998, páginas 89 a 91, de Luís A. Carvalho Fernandes, “Teoria Geral do Direito Civil, Lisboa, 1995, páginas 179 a 181, e de Heinrich Ewald Horster. “A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra, 1992, páginas 259 a 263.
O primeiro entende que o prolongamento para além da morte apenas ocorre em relação ao valor pessoal e que a protecção da lei se reporta apenas à memória do falecido, e que não há direito a indemnização nem para o finado nem para as pessoas a que se reporta o nº 2 do artigo 71º do Código Civil. O segundo, por seu turno, entende que a lei protege o interesse das pessoas previstas no artigo 71º, nº 2, do Código Civil, em função da dignidade do falecido, mas que não têm direito a indemnização, limitando-se a tutela às providências mencionadas naquele preceito, e o terceiro considera que as aludidas pessoas exercem um direito próprio no interesse de outrem, mas que não têm direito a indemnização.
De modo diverso dos últimos mencionados autores entendem Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de Sousa, “Direito Geral de Personalidade”, Coimbra, 1995, páginas 10 a 19, Pedro Pais de Vasconcelos, “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra, 2007, páginas 86 e 87 e “Direito de Personalidade”, Coimbra, 2006, páginas 118 a 123, Carlos Alberto Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, Coimbra, 2005, páginas 206 a 213, António Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, Coimbra, 2004, páginas 461 a 467, e João de Castro Mendes, “Teoria Geral do Direito Civil”, volume I, Lisboa, 1978 páginas 109 a 111.

Estes últimos autores consideram que a personalidade cessa com a morte da pessoa; mas enquanto o primeiro considera que alguns dos bens nela integrados permanecem no mundo das relações jurídicas e são autonomamente protegidos em termos de tutela depois da morte, os restantes interpretam a lei no sentido de que a tutela legal se refere aos direitos das pessoas previstas no nº 2 do artigo 71º do Código Civil, em cuja titularidade se inscrevem os direitos de personalidade.
Acresce que todos eles entendem que as mencionadas pessoas têm direito a indemnização ou compensação por virtude da ofensa à memória do falecido, verificados os respectivos pressupostos”.(cfr Ac. do STJ de 18.10.2007, proc. 07B3555, de onde foi retirado o extracto transcrito, destinado a enquadrar as questões que o artº 71º do CC suscita e que pela riqueza bibliográfica se transcreveu).


Vejamos:

A personalidade jurídica é adquirida com o nascimento completo e com vida e cessa com a morte (artigos 66º, nº 1 e 68º, nº 1 do CC). Não obstante, como se referiu já, o nº 1 do artº 71º do CC estabelece que os direitos de personalidade gozam ainda de protecção após a morte do seu titular.
Da conjugação do disposto no artº 66º, nº1, 68º, nº 1 e 70º nº 1 e 71º, nº 1, todos do CC, interpretados à luz do disposto no artº 9º do CC, é possível concluir que, embora a personalidade cesse com a morte do titular dos direitos, alguns direitos de personalidade – ofensa ilícita e ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral - gozam ainda de protecção para além da sua morte, o que resulta da adoção da expressão igualmente no nº 1 do artº 71º, por reporte ao artº 70º, nº 1. Teve a lei por fim salvaguardar alguns direitos que integravam a personalidade jurídica pelo respeito pela memória dos falecidos. Trata-se, pois de um desvio à regra do artº 68º, nº 1 do CC (cfr. referem Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, já acima citados).
Como se explica no Ac. do STJ de 24.05.2012, proc. 69/09.2TBMUR.P1.S1 (2), a lei estabelece uma permanência dos direitos de personalidade do defunto após a sua morte, no artº 71º, nº 1 do CC., “designadamente interesses próprios afirmados ou potenciados em vida do defunto, visando-se a protecção das pessoas falecidas contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à respectiva personalidade, física ou moral, que exista em vida e permaneça após a morte. A personalidade física e moral do falecido, enquanto bem jurídico, é objecto dos direitos de personalidade em causa”. Visa-se a protecção das pessoas falecidas contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à respectiva personalidade, física ou moral, que exista em vida e permaneça após a morte. Tais direitos respeitam aos interesses dessas pessoas em vida e não ao cadáver ou às pessoas a quem a lei atribui legitimidade para os exercer (cfr. se defende no citado .Ac do STJ de 24.05.2012).
Não se pode olvidar que a reputação de uma pessoa leva uma vida a construir, mas para a destruir bastam dias e até mesmo horas ou minutos, perdurando na memória das pessoas o juízo negativo que em determinado momento é formado acerca de factos, pessoas ou coisas (cfr. se refere no citado Ac. do STJ de 18.10.2007, proferido no proc. 07B3555).
O direito ao bom nome além de consagração na lei ordinária, recebeu também consagração constitucional e supra nacional.
A Constituição da República Portuguesa (CRP) garante, no capítulo dos direitos, liberdades e garantias, além do mais, a protecção à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar - art.º 26.º, n.º 1.
O artº 12.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aplicável por força do disposto no artº 8º da CRP, dispõe que - “ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei”.
Assim, a protecção da honra, direito de personalidade que a A. entende ter sido violado, mereceu consagração na lei ordinária, na lei constitucional e ainda na supra nacional.
Por outro, há que ter presente que a publicação da autoria do R. encontra igualmente tutela constitucional na liberdade de expressão e informação, prevista genericamente no art.º 37.º da CRP e na específica liberdade de criação cultural e artística, prevista no art.º 42.º da CRP. Ambas as normas se encontram incluídas no capítulo dos direitos, liberdades e garantias pessoais, com início no artº 24º (capítulo I do título II – Direitos, liberdades e garantias).
Também o art.º 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que “todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
E o art.º 10.º, n.º 1, 1ª parte, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) determina que “qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras”.

A liberdade de expressão, apesar de ser um pilar do sistema político e cultural democrático, está sujeita a algumas restrições. A CEDH prevê-as no art.º 10.º, n.º 2, cuja redação é a seguinte:

o exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.

A CRP tutela, quer o direito à honra, quer o direito à liberdade de expressão e informação, sem estabelecer hierarquia entre eles. No que respeita aos direitos fundamentais, haverá colisão ou conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição numa determinada situação concreta (real ou hipotética). A esfera de protecção de um direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma ou princípio constitucional. (cfr. Ac. do STJ de 24.05.2012, proc. 69/09.2TBMUR.P1.S1).
Por força dos arts. 8.º e 16.º, n.º 1, da Lei Fundamental, a CEDH situa-se em plano superior ao das leis ordinárias internas. Esta não tutela, no plano geral, o direito à honra, a ele se reportando apenas como possível integrante das restrições à liberdade de expressão enunciadas no art. 10.º, n.º 2.
No entendimento do Ac. do STJ de 30-06-2011 - Revista n.º 1272/04.7TBBCL.G1.S1 - 2.ª Secção - João Bernardo (Relator), o intérprete deve seguir o caminho consistente, não em partir da tutela do direito à honra e considerar os casos de eventuais ressalvas, mas em partir do direito à livre expressão e averiguar se têm lugar algumas das excepções do nº 2 do artº 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E “na interpretação daquele art. 10.º é de acatar, pelos tribunais internos, a orientação jurisprudencial que, muito reiteradamente, o TEDH vem seguindo e que se caracteriza, no essencial, pelo seguinte: - a liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa; - as excepções constantes deste n.º 2 devem ser interpretadas de modo restrito; tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade.” (3)
De acordo com o TEDH, aqueles que criam, executam, distribuem ou exibem obras de arte contribuem para o intercâmbio de ideias e opiniões, que é essencial para uma sociedade democrática. Por esse motivo, os Estados estão obrigados a não permitirem intromissões excessivas ou desproporcionadas da liberdade de expressão [Acórdãos referentes aos casos Karatas v. Turkey, Processo n.º 23168/94, e Vereinigung Bildender Kunstler v. Austria, Processo n.º 68354/01, disponíveis em http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-180282 e http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-79213, respectivamente (4)].

O texto em causa, publicado em Junho de 2017, com uma tiragem de 800 exemplares, descreve a ocorrência de um crime de homicídio ocorrido na freguesia de …, em 1984, ou seja, 33 anos antes. O texto refere-se a um acontecimento que ocorreu realmente e não são indicados os nomes dos intervenientes, mas apenas as alcunhas pelas quais eram conhecidos no meio, alcunhas que eram conhecidas de todos na altura. A referência às alcunhas, em vez da aposição dos seus nomes acaba por reduzir a possibilidade de identificação dos intervenientes, pelo menos pelos leitores mais novos.
Na sentença recorrida entendeu-se que o texto em questão não constituía uma qualquer violação do direito à honra do falecido pai da A..

Escreveu-se a propósito na sentença recorrida:
Resulta da análise do texto do R. que o mesmo descreve um crime ocorrido na freguesia de ... 33 anos antes da sua publicação. O texto refere-se, pois, a um acontecimento real, quer quanto às personagens, ao tempo e ao local. Não são ali referidos os nomes de família dos intervenientes - homicida e vítima -, mas antes as suas alcunhas.
Quanto ao tratamento que é dado ao evento, regista-se que o tom do escritor é de tristeza e lamento - “Deram-se aqui episódios, Que causaram muita tristeza”. Não é notório qualquer ataque à pessoa ou ao carácter do pai da A., tal como não existe qualquer ataque a esta ou à sua família. O que também ressalta é a intenção de recordar a memória dos intervenientes e - “Foi no dia 6 de Maio, Este triste acontecimento, Resolvi escrever isto, Para não ficar no esquecimento” - retirar uma conclusão em jeito de “moral da história”, sublinhando que ambos os intervenientes perderam com a zanga, um, a vida, o outro, a liberdade: “Mandou-o para a eternidade, Mas fez uma cena feia, O X foi para o cemitério, E o M. para a cadeia”. A intenção pedagógica dirigida ao leitor afigura-se evidente.
De resto, a forma do texto, os recursos estilísticos utilizados e a própria linguagem não se apresentam excessivas, no sentido de poderem denegrir a imagem das personagens.
Com este tratamento, o texto integra-se perfeitamente na colectânea de histórias mais ou menos rocambolescas que constituem o livro do R. É possível afirmar o seu interesse público em termos culturais para a história da freguesia de ..., localidade eminentemente rural, onde acontecimentos deste tipo perduram na memória dos vivos, até pelo conhecimento e grande ligação entre os habitantes destes meios pequenos - contrariamente ao que sucede nas grandes cidades. No caso vertente, tal acontecimento foi do conhecimento público na freguesia, no concelho e até na capital do distrito, tendo feito a primeira página de um dos diários da cidade de …, o “Correio ...”.
E temos de concordar com a análise e conclusão obtida na decisão recorrida.
Não se nos afigura que o R. ao escrever no texto em questão que o “homem perdeu a tola” tivesse criado no destinatário a convicção de que o pai matou o tio porque lhe apeteceu, tal qual um monstro assassino, como defende a apelante. A expressão perdeu a tola tem como significado, numa escrita informal, como é o caso, que a pessoa perdeu a cabeça ou o juízo, cfr. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/[tola .
Ao contrário do que refere a apelante, o texto não deixa de mencionar o clima existente entre o M. e o X ao referir que “estavam muito zangados” e que no âmbito dessa zanga o M. perdeu a cabeça ou o juízo e matou o cunhado.
A alusão a “as crianças ficaram com medo” e “não queriam ir para a escola”, tem a ver com o sítio onde foi cometido o crime, próximo da entrada da escola primária de ..., em local de passagem de crianças em idade escolar (cfr. facto 23) e a experiência que o R. teve com a própria filha que receava voltar à escola (facto 24).
A forma como é relatado o acontecimento que é real quer quanto às personagens quer quanto ao homicídio perpretado, não é de modo a criar medo e terror no leitor. O “M.” não é retratado como um assassino feroz, mas sim como alguém que no âmbito de uma discussão com os ânimos aquecidos, perdeu a cabeça/perdeu a razão e acabou por matar o confrontante. E este não é um retrato destinado a gerar terror e medo no leitor. Quanto muito, incompreensão e não aceitação de tal comportamento, porque o facto de os ânimos se terem exaltado – estavam muito zangados - não pode justificar um homicídio. É indiscutível que os caminhos das discussões não são sempre lineares, sendo também do conhecimento geral, dada a sua frequência, que , no calor delas, possa haver elevação da voz, algumas ofensas por palavras, gestos ou até mesmo agressões, mas ainda que os ânimos estejam exaltados, e possa ter havido agressões físicas de parte a parte, como alega a apelante, nenhuma dessas condutas justifica um homicídio.
Diz a apelante que o tom de tristeza que a sentença diz emergir do texto não pode atenuar a forma como o Réu relatou o crime e a imagem que fez transparecer do M. e recordou aos vivos os acontecimentos: os filhos do M. recordaram o acontecimento traumático das suas vidas, relembraram o tempo de prisão do pai e os netos que não sabiam a história ficaram com uma imagem deturpada do avô.
Compreende-se que a A. queira esquecer os acontecimentos que a marcaram e que a traumatizaram, tendo sido necessários vários anos para que recuperasse do trauma, da ignomínia e do opróbio que sentiu e que desejasse que o caso caísse no esquecimento e aí se mantivesse, como também se referiu na sentença recorrida, sendo também perfeitamente compreensível que o tenha ocultado dos familiares mais novos e dos que só nasceram depois do evento marcante. Mas tendo sido um caso verídico e que teve grande repercussão na altura no seio da freguesia, e até se tornou conhecido dos moradores da área territorial de …, é sempre possível que alguém se lembre e fale do que aconteceu em 1984 e se lhe refira, pois que não decorreram tantos anos que as pessoas que eram vivas naquela altura já tivessem todas falecido.

Alega ainda a apelante que a forma como o Réu descreve o acontecimento ultrapassa, em larga medida, o direito à informação, pois os factos não foram relatados, no livro, de forma adequada e moderada, isto é, extrapolando o necessário à divulgação do homicídio nem se vislumbrando qualquer intenção pedagógica na divulgação deste texto. O seu pai foi condenado a uma pena de prisão, que cumpriu, o processo crime foi arquivado, não existindo qualquer necessidade de prevenção geral ou especial adicional, ou intuito pedagógico da divulgação, depois de 33 anos da data deste crime, não constituindo o relato de um homicídio entre pessoas da mesma família uma informação do interesse público em termos culturais para a história da freguesia de .... Por estas razões não qualquer interesse em chamar a atenção para factos ocorridos há 33 anos.

Tem-se entendido no confronto do direito à honra com o direito de liberdade de expressão, exercido através da imprensa (que não é o caso dos autos, mas que tem também aqui aplicação), se há um qualquer interesse público a prosseguir, haverá eventualmente que privilegiar o direito à informação e a liberdade de expressão em detrimento de outros direitos individuais; se o interesse de quem informa se situa no puro domínio do privado, sem qualquer dimensão pública, o direito à integridade pessoal e ao bom nome e reputação não pode ser sacrificado para salvaguarda de uma egoística liberdade de expressão e de informação. 14-01-2010 - Revista n.º 1869/06.0TVPRT.S1 - 7.ª Secção - Pires da Rosa (Relator). No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 27-01-2010 - Revista n.º 48/04.6TBVNG.S1 - 6.ª Secção - Silva Salazar (Relator) onde se refere que “Embora a liberdade de imprensa deva respeitar, no seu exercício, o direito fundamental do bom nome e da reputação, o jornalista não está impedido de noticiar factos verdadeiros ou que tenha como verdadeiros em séria convicção, desde que justificados pelo interesse público na sua divulgação, podendo este direito prevalecer sobre aquele, desde que adequadamente exercido, nomeadamente mediante exercício de um esforço de objectividade com recurso a fontes de informação fidedignas por forma a testar e controlar a veracidade dos factos”.

Na sentença recorrida entendeu-se ser possível afirmar o interesse público em termos culturais para a história da freguesia de ... da ocorrência do homicídio, “localidade eminentemente rural, onde acontecimentos destes perduram na memória dos vivos, até pelo conhecimento e grande ligação entre os habitantes destes meios pequenos – contrariamente ao que sucede nas grandes cidades. “ Efetivamente, como também se refere na sentença recorrida este acontecimento foi do conhecimento público, bastante divulgado na freguesia, no concelho e até na capital do distrito, tendo aparecido na 1ª página de um dos diários da cidade de …, “O Correio ...” que se encontra junto aos autos.

Não se pode olvidar que os factos são verdadeiros, ocorreram no tempo e lugar descritos, e foram do conhecimento público, e que, destinando-se o escrito a dar a conhecer histórias da freguesia, visando perpetuar alguns acontecimentos de relevo ocorridos na freguesia, faz sentido a alusão aos factos, pois os crimes são parte da história da freguesia, podendo assim afirmar-se o interesse público dos factos contados nos versos em causa, os quais são apresentados com tristeza e não em tom jocoso.
E no caso, o modo como os factos são retratados não constituem uma ofensa ao bom nome de pessoa falecida e como tal, não se exige qualquer restrição ao direito de liberdade de expressão do R.. E não tendo havido ilícito, não pode surgir o direito a indemnização, ficando assim prejudicadas as demais questões suscitadas. Não se deixa, no entanto de referir, que mesmo que se entendesse ter ocorrido a referida violação e que o direito de livre expressão, deveria ter sido restringido, não é pacífico que assistisse à A. o direito a qualquer indemnização, como já acima se aludiu, fazendo referência a diversos entendimentos doutrinais. Na jurisprudência, a título de exemplo, Ac. do STJ de 18.10.2007, proferido no processo 07B3555, já citado (no mesmo sentido Ac. do STJ de 04.11.2008, revista nº 2342/08, 1ª seção, relator Paulo Sá), onde se entendeu que o nº 2 do artigo 71º do CC não atribui às pessoas a que se reporta um direito próprio de indemnização lato sensu, mas tão só a legitimidade de requerer as providências previstas no nº 2 do artigo 70º, ambos do Código Civil, pelo que embora no caso em apreciação, o texto publicado numa revista violasse a honra e a consideração devida ao falecido pai dos recorrentes, estes não tinham o direito de exigir aos seus autores uma compensação por danos não patrimoniais. Em sentido contrário, Acs. do STJ de 25.05.2006, Revista 715/06, 7ª seção e de 15.05.2013, proc. 2612/07.2TVLSB.L1.S.
É de manter, consequentemente, a bem estruturada e fundamentada sentença recorrida.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, mantendo consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Not.
Guimarães, 22 de outubro de 2020

Helena Melo
Eduardo Azevedo
Maria João Matos



1. acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados, sem indicação expressa da fonte. Ver também a edição do Centro de Estudos Judiciários, 2017, acessível no seu sítio, denominados Tutela Legal da Personalidade que contém na parte final um elenco de decisões do STJ sobre a temática.
2. Igualmente citado na decisão recorrida.
3. Ver a propósito da amplitude da liberdade de expressão, nomeadamente os acórdãos do TEDH citados no Ac. do de 30.06.2011, acima referido, designadamente, em diversas ações contra o Estado Português e os acórdãos citados na sentença recorrida:(Caso Couderc and Hachette Filipacchi Associés v. France, Proc. nº 40454/07, 92, disponível em http://hudoch.echr.coe.int/eng?i=001-158861); acórdão proferido no Caso Lopes Gomes da Silva v. Portugal, Proc.º 37698/97, in European Court of Human Rights, Reports of Judgements and Decisions, 2000-X, 101 e ss.] TEDH [Caso M.L. and W.W. v. Germany, Processos ns. 60798/10 e 65599/10, disponível em http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-183947] e o Tribunal Constitucional Federal Alemão, numa decisão histórica de 1973 [o Caso Lebach, com tradução inglesa disponível em https://germanlawarchive.iuscomp.org/?p=62],
4. Citados na decisão recorrida.