Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
28/18.4YRGMR
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: ESCUSA
PRESSUPOSTOS LEGAIS
INDEFERIMENTO
ARTº 43º
Nº 4
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: ESCUSA
Decisão: PEDIDO INDEFERIDO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A circunstância de, em consequência do princípio do juiz natural, um concreto pedaço de vida ser apreciado em momentos distintos, em processos separados, mas em que está em causa o julgamento de arguidos diferentes, não constitui motivo sério e grave por forma a gerar dúvidas no cidadão médio sobre a imparcialidade do juiz no julgamento que se faça em último lugar.

II) É o que sucede no caso dos autos, pois que os factos invocados não constituem motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Exmº Senhor Juiz requerente, pelo que não se mostram verificados os pressupostos de escusa ao abrigo do artº 43º, nº 4, do CPP, pelo que se impõe o indeferimento do pedido de escusa.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. O Exº Senhor Juiz João, a exercer funções no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Guimarães – J3, veio, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 43° n°s 1 e 4 e 45° n° 1 al. a), ambos do Código de Processo Penal, requerer o presente incidente de escusa, com vista à sua não intervenção no processo n° 659/17.0T8GMR.
2. No sentido de fundamentar o seu pedido, o requerente alega, no essencial, o seguinte:
2.1- Os presentes autos (processo n° 659/17.0T8GMR) tiveram origem na separação de processo ocorrida no âmbito dos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) 15/13.9PEGMR, nos termos do disposto no artigo 30°, n° 1, alíneas b) e c), do CPP, processo no qual os arguidos José e Manuel foram acusados da prática, em coautoria, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204°, n° 2, alínea e), do Código Penal.
2.2- Como não foi possível notificar o arguido José das datas designadas para realização da audiência de julgamento, foi então determinado, conforme já referido, a separação de processos a fim daquele arguido ser julgado em separado, dando a certidão extraída origem aos autos n° 659/17.0T8GMR.
2.3- Sucede que o signatário, naturalmente, presidiu ao julgamento do arguido Manuel, tendo proferido sentença condenatória do mesmo, na qual expressamente se consignou a participação do citado José no facto ilícito, razão por que o arguido Manuel foi condenado em coautoria.
2.4- Ora, face a esta sucessão de factos, entende o requerente haver motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, correndo, assim, risco de ser considerada suspeita a sua intervenção na qualidade de juiz no julgamento do arguido José.
2.5- Com efeito, tendo sido já discutido no processo 15/13.9PEGMR o mesmo pedaço de vida, e tendo o requerente já formado a convicção sobre o sucedido, designadamente quanto à participação do arguido José nos factos, entende que tal circunstância é suficiente para criar desconfiança sobre a sua imparcialidade nos presentes autos, dado que as partes sabem já a convicção formada pelo julgador no âmbito do processo original.
3. Foram juntos documentos comprovativos dos factos alegados.
4. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1. Consideram-se provados, por documentos, os seguintes factos:

1.1- O requerente exerce funções, na qualidade de Juiz de Direito, no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Guimarães – J3;
1.2- No Processo Comum (Tribunal Singular) 15/13.9PEGMR, os arguidos José e Manuel foram acusados da prática, em coautoria, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204°, n° 2, alínea e), do Código Penal.
1.3- Como não foi possível notificar o arguido José das datas designadas para realização da audiência de julgamento, foi então determinado, nos termos do disposto no artigo 30°, n° 1, alíneas b) e c), do CPP a separação de processos a fim daquele arguido ser julgado em separado, dando origem aos autos n° 659/17.0T8GMR, cabendo ao requerente presidir à respetiva audiência de julgamento e, naturalmente, proceder à elaboração da respetiva sentença.
1.4- No aludido processo 15/13.9PEGMR, procedeu-se à realização da audiência de julgamento, a qual foi presidida pelo ora requerente na qualidade de juiz titular do processo, tendo já sido proferida sentença na qual faz-se referência à participação do arguido José, motivo pelo qual o arguido Manuel foi condenado em coautoria.
2. Vejamos a pretensão do requerente.
O Exº Senhor Juiz formulou pedido de escusa por forma a não intervir no processo comum, com intervenção de tribunal singular n° 659/17.0T8GMR que lhe foi distribuído para julgamento, baseando-se, nomeadamente, no disposto no artigo 43º do C.P.Penal.

Este preceito legal, na parte que releva para a questão em apreço, tem a seguinte redação:

1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
4 - O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.os 1 e 2.”

Em face deste preceito legal, verifica-se, desde logo, que, ao contrário do que sucedia no código de processo penal anterior ao vigente, não foi seguida a técnica legislativa de enumeração das causas de suspeição, tendo-se optado por uma fórmula genérica que utiliza conceitos indeterminados, a “existência de motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.
A questão da suspeição do juiz relaciona-se com o princípio constitucional da independência dos tribunais (artigo 203º da CRP) e a imparcialidade dos juízes, sendo seu corolário o princípio do juiz natural, segundo o qual intervirá na causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência legal e anteriormente estabelecidas (1).

O princípio do juiz natural encontra-se previsto no artigo 32º, nº 9 da CRP e foi por esta adotado essencialmente como garantia da liberdade e do direito de defesa do arguido, mas admite derrogações, podendo ser afastado quando outros princípios ou regras, porventura de maior ou igual dignidade, o ponham em causa., como sucede, v.g., quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício da sua função (2).

A jurisprudência do TEDH (3), apoiada no art. 6.º n.º1 , da CEDH e no artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem - que a jurisprudência portuguesa tem seguido (4) - tem vindo a defender que a imparcialidade do tribunal deve ser avaliada numa perspetiva subjetiva, ou seja no sentido de determinar o que pensa o juiz que intervém num tribunal, no seu foro interior nessa circunstância e se ele esconde qualquer razão para favorecer algumas das partes; e numa perspetiva objetiva, ou seja relativa às aparências suscetíveis de serem avaliadas pelos destinatários da decisão como provocando o receio de risco da existência de algum prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si (5).

Acresce que se tem também entendido que a imparcialidade subjetiva se presume até prova em contrário; e que, sendo assim, a imparcialidade objetiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e de abstração na formulação de conceitos apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise em concreto das funções e dos atos processuais do juiz.

Na doutrina nacional, Cavaleiro de Ferreira (6) já salientava que “Importa considerar sobretudo que, em relação ao processo, o juiz possa ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados, sendo este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adotar, para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza; a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios, mas de admitir ou de não admitir o risco de não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da sua suspeição.”

Assim, a seriedade e a gravidade do motivo, exigidas por lei, não são valoradas exclusivamente na perspetiva do requerente, mas fundamentalmente pela impressão que concretamente possam causar na imagem de imparcialidade do homem médio suposto pela ordem jurídica, cfr. Ac. TRC de 10-07-1996, CJ, XXI, T4, pág.62 e Ac. TRL de 9-03-2006, CJ, XXXI, 2, pág.133.

No caso vertente, a questão colocada pelo Exº Senhor Juiz requerente é que, segundo as regras da competência do tribunal, deverá presidir à audiência de julgamento e, consequentemente, proceder à elaboração da respetiva sentença, no processo com intervenção de tribunal singular n° 659/17.0T8GMR, no qual é arguido José.

Este processo resulta da separação ordenada no processo comum, com intervenção de tribunal Singular nº 15/13.9PEGMR, no qual eram inicialmente arguidos José e Manuel, ambos acusados da prática, em coautoria, de um crime de furto qualificado p. e p. pelo artigo 204º, nº 2 al. e) do C. Penal. O requerente, neste processo, presidiu à audiência de julgamento, tendo elaborado a respetiva sentença, na qual foi condenado o arguido Manuel. Acresce que na sentença proferida foi expressamente consignada a participação do arguido José no facto ilícito, razão por que o arguido Manuel foi condenado em coautoria.

Ora, face a esta sucessão de factos, entende o requerente haver motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, correndo, assim, risco de ser considerada suspeita a sua intervenção na qualidade de juiz no julgamento do arguido José.
Com efeito, tendo sido já discutido no processo 15/13.9PEGMR o mesmo pedaço de vida, e tendo o requerente já formado a convicção sobre o sucedido, designadamente quanto à participação do arguido José nos factos, entende que tal circunstância é suficiente para criar desconfiança sobre a sua imparcialidade nos presentes autos, dado que as partes sabem já a convicção formada pelo julgador no âmbito do processo original.

Ora, adiantamos, desde já, que não podemos concordar com a argumentação expendida pelo Exº Senhor Juiz requerente.
De facto, quando o juiz formula um pedido de escusa o que está em causa é possibilidade do não reconhecimento público da sua imparcialidade e não qualquer impressão subjetiva que o mesmo possa ter. Não está aqui em causa a imparcialidade subjetiva, a qual, aliás, se presume em contrário e que a atitude processual do Exº Senhor Juiz requerente faz acentuar, posto que demonstrou uma elevada seriedade intelectual e ética.

Como decorre do que dissemos supra, o princípio do juiz natural apenas pode ser derrogado quando a seriedade e a gravidade do motivo causador do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz conduza a que o cidadão médio possa, de forma compreensível, dela duvidar.
Por outras palavras, a seriedade e a gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz só são suscetíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objetivamente consideradas.

Por isso, não é suficiente o mero convencimento, e muito menos o risco desse convencimento, subjetivo das “partes”, ou do próprio Senhor Juiz, para que tenhamos por verificada a ocorrência de suspeição.

No caso o que está em causa é somente o conhecimento que um juiz obteve em virtude de ter realizado um julgamento anterior, o qual não poderá ter o efeito de o influenciar a decisão a proferir. Pelo menos assim o espera, a bem da Justiça, a generalidade dos cidadãos, que são destinatários das decisões dos tribunais.
Efetivamente, como bem se refere no Ac RC de 26.04.2007, processo 56/07.5YRCBR, acessível em www.dgsi.pt proferido em caso semelhante ao presente,“…o simples receio ou temor de que o juiz no seu subconsciente já tenha formado um juízo sobre o thema decidendum não constitui fundamento válido para a sua recusa e no caso dos autos, nem sequer aqueles poderão ocorrer na mente de um cidadão médio, já que o mínimo que se pode exigir é que um juiz não se deixe influenciar num processo por prova produzida noutro”.

Em suma, no caso vertente estão em causa processos distintos ainda que relacionados, pois que, como refere o Exª Senhor Juiz requerente, está em causa a apreciação do mesmo pedaço de vida, com a ressalva de que a responsabilidade penal e civil é evidentemente individual, sendo que no processo nº 15/13.9PEGMR esteve em causa a apreciação da responsabilidade do arguido Manuel e no processo nº 659/17.0T8GMR, está agora em causa a apreciação da responsabilidade do arguido José.

A circunstância de, em consequência do princípio do juiz natural, o referido pedaço de vida ser apreciado em momentos distintos, em processos separados, mas em que está em causa o julgamento de arguidos diferentes, não constitui motivo sério e grave por forma a gerar dúvidas no cidadão médio sobre a imparcialidade do juiz no julgamento que se faça em último lugar.

Por conseguinte, os factos invocados não constituem motivo sério e grave adequado a geral desconfiança sobre a imparcialidade do Exº Senhor Juiz requerente, pelo que não se mostra verificado os pressupostos do pedido de escusa do artigo 43º, nº 4 do C.P.Penal, pelo que terá de ser indeferido o pedido de escusa.

III- DISPOSTIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em indeferir o pedido de escusa formulado pelo Exº Senhor Juiz João para intervir no processo nº 659/17.0T8GMR, do Juízo Local Criminal de Guimarães – J3.
Sem custas.

Guimarães, 20.02.2018
(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2 do C.P.P.)

(Armando da Rocha Azevedo - Relator)
(Clarisse Machado S. Gonçalves - Adjunta)

1. Sobre as dimensões que o princípio do juiz natural comporta, vide J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição revista e ampliada, 1984, págs. 218-219.
2. Assim, vide Ac. STJ de 25.01.2001, processo 00P3709, acessível em www.dgsi.pt.
3. Mouraz Lopes, A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no Processo Penal Português, Coimbra Editora, 2005, pág. 86 e segs.
4. Assim, vide, entre outros, o Ac. STJ de 20.10.2010, processo 140/10.8YFLSB, acessível em www.dgsi.pt.
5. A importância das aparências ou da exteriorização da função jurisdicional é evidenciada no adágio anglo-saxónico “justice must not only be done; it must also be seen to be done”. O exercício de facto de determinadas funções, como as de juiz, impõem em absoluto uma total transparência no exercício dessas funções. Não basta ser, é preciso parecer, cfr. Mouraz Lopes, ob. e loc. cit.
6. In Curso de Processo Penal, I, pág.237-239.