Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1942/16.7T8BRG.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
CONCEITO
CAUSA
CONDIÇÕES DE TRABALHO
ESFORÇO FÍSICO
CALOR EXCESSIVO
INSOLAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – É acidente de trabalho o evento súbito e imprevisto, que provoque lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador, que ocorra no tempo e no local de trabalho, por causa do trabalho.

II - O acidente de trabalho é constituído por uma cadeia de factos em que cada um dos respectivos elos deve estar entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento súbito deve estar relacionado com a relação de trabalho; a lesão, perturbação ou doença, deve resultar daquele evento; e finalmente a morte ou a incapacidade para o trabalho deverão resultar da lesão, perturbação funcional ou doença.

III – É de qualificar como acidente de trabalho o evento que ocorreu no local e no tempo de trabalho e que consistiu no esforço físico desenvolvido pelo sinistrado durante a descarga de móveis associado ao calor excessivo que se fazia sentir, o que lhe causou uma insolação, vindo a falecer.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

Frustrada a tentativa de conciliação, I. A., S. B. e D. A., esta representada pela primeira autora por ser menor de idade, residentes na Rua …, Braga, intentaram a presente ação especial emergente de acidente de trabalho contra COMPANHIA DE SEGUROS, SA., com sede na Rua …, no Porto, pedem que se reconheça como sendo de trabalho o acidente que vitimou o companheiro e pai das Autoras, respetivamente e consequentemente se condene a Ré a pagar:

a) À 1ª autora, uma pensão anual no valor de € 2.987,35 (dois mil novecentos e oitenta e sete euros e trinta e cinco cêntimos) até atingir a idade de reforma por velhice e no valor de € 3.983,14 (três mil novecentos e oitenta e três euros e catorze cêntimos) depois desta idade;
b) A cada uma das segunda e terceira autoras, uma pensão anual no valor de € 1.991,57 (mil novecentos e noventa e um euros e cinquenta e sete cêntimos);
c) A quantia de € 5.533,70 (cinco mil quinhentos e trinta e três euros e setenta cêntimos), a título de subsídio por morte, sendo o montante de € 2.766,85 (dois mil setecentos e sessenta e seis euros e oitenta e cinco cêntimos) para a primeira autora e o montante de € 1.383,42 (mil trezentos e oitenta e três euros e quarenta e dois cêntimos) para cada uma das segunda e terceira autoras;
d) À primeira autora, a quantia de € 4.759,63 (quatro mil setecentos e cinquenta e nove euros e sessenta e três cêntimos), a título de subsídio por despesas de funeral;
e) A quantia de € 15,00 (quinze euros), a título de despesas com deslocações obrigatórias no âmbito dos presentes autos; f) Os juros de mora a calcular à taxa legal supletiva até integral pagamento.
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A Ré contestou a acção não aceitando a caraterização do acidente como de trabalho, por entenderem que o sinistrado faleceu de morte natural, não havendo assim lugar à sua reparação.
Os Autos prosseguiram os seus normais trâmites, tendo sido proferida sentença que julgou a acção procedente e que terminou com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, decido julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condeno a ré a pagar:

1. Para a primeira autora, uma pensão anual no valor de € 2.987,35 (dois mil novecentos e oitenta e sete euros e trinta e cinco cêntimos) até atingir a idade de reforma por velhice e no valor de € 3.983,14 (três mil novecentos e oitenta e três euros e catorze cêntimos) depois desta idade;
2. Para cada uma das segunda e terceira autoras, uma pensão anual no valor de € 1.991,57 (mil novecentos e noventa e um euros e cinquenta e sete cêntimos);

3. Estas pensões são devidas desde o dia seguinte ao falecimento e a parte vencida é acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde esta data até integral pagamento;

4. A quantia de € 5.533,70 (cinco mil quinhentos e trinta e três euros e setenta cêntimos), a título de subsídio por morte, sendo o montante de € 2.766,85 (dois mil setecentos e sessenta e seis euros e oitenta e cinco cêntimos) para a primeira autora e o montante de € 1.383,42 (mil trezentos e oitenta e três euros e quarenta e dois cêntimos) para cada uma das segunda e terceira autoras, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde o dia seguinte ao falecimento até integral pagamento;

5. Para a primeira autora, a quantia de € 3.689,14 (três mil seiscentos e oitenta e nove euros e catorze cêntimos), a título de subsídio por despesas de funeral, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a tentativa de conciliação até integral pagamento;

6. A quantia de € 15,00 (quinze euros), a título de despesas com deslocações obrigatórias no âmbito dos presentes autos, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a tentativa de conciliação até integral pagamento.”

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A Ré inconformada interpôs recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:

1. Na enunciação normativa do regime legal de reparação dos acidentes de trabalho, a noção e a qualificação do “acidente de trabalho” é em si mesmo redundante, na medida em que não consagra a noção de acidente, acometendo-a antes ao resultado da decantação conseguida pela doutrina temática;
2. E define esta doutrina, como características básicas e transversais às diferentes, quantas vezes até divergentes, noções, que “acidente” é todo o evento danoso de natureza súbita e violenta e de causa exterior e estranha á vontade da vítima;
3. Daí que na consolidação do regime de prova da factualidade que se mostre capaz de qualificar em dado evento como típico acidente de trabalho, exige-se ad anteriori ao titular desse direito que, nos termos do regime geral previsto no artigo 342º, nº 1 do Código Civil, demonstre a ocorrência de acidente “tout court”;
4. O Mmo. Juiz “a quo”, no entendimento que verteu na sentença, assume notório vício de falta de fundamentação, no sentido que qualificou a factualidade alegada como “causa de pedir” como sendo típico “acidente de trabalho” sem cuidar de, em 1ª linha, imputar aos requerentes desse direito a prova da ocorrência de acidente “tout court”;
5. Com isso e por via disso, o Mmo. Juíz a quo corporizou grosseiro desvio ao poder-dever de alcançar a justiça material à prova que se exigia produzida e, com isso, rejeitou a correcta hermenêutica e sana interpretação dos excepcionais preceitos normativos, consubstanciando aresto com patente “erro de interpretação” e grosseiro desvio ás regras do Direito;
Impondo-se, consequentemente, a revogação da douta sentença do Tribunal “a quo”, de molde a dar como não provado a ocorrência de acidente “tout court” e, por via disso, a improcedência da acção e a falência do direito à reparação, absolvendo-se a Recorrente.
TERMOS em que se requer a Vªs Excªs decidam de conformidade com o aqui alegado.”
As Autoras apresentaram resposta ao recurso pugnando pela sua improcedência.
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Recebido o recurso foi dado cumprimento ao disposto no artigo 87º n.º 3 do CPT, tendo o Exmo Procurador-Geral Adjunto dado o seu parecer no sentido do não provimento da apelação.
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Cumprido o disposto na 1ª parte do n.º 2 do artigo657º do C.P.C. foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente (artigos 653º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nela não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, que aqui se não detetam.
No recurso interposto pela Ré/Apelante sobre a sentença recorrida, coloca-se à apreciação deste Tribunal da Relação uma única questão:
- Apurar se o evento sofrido pela infeliz vítima é de qualificar como de trabalho.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Em 1ª instância deram-se os seguintes factos como provados:

1. O sinistrado J. B. exercia a actividade profissional de venda a retalho, colocação e montagem de móveis de cozinha e sala por conta própria;
2. No dia 8 de Agosto de 2015, pelas 11.00 horas, o sinistrado faleceu;
3. O falecimento do sinistrado ocorreu em Villemoirieu, França;
4. No 8 de Agosto de 2015, o sinistrado estava a descarregar móveis de cozinha que se encontravam num camião para colocar na residência de um cliente;
5. Naquela altura estava um calor intenso;
6. O sinistrado apresentava uma transpiração fora do comum, mesmo considerando o calor intenso que se fazia sentir;
7. O sinistrado continuou a descarregar os móveis afirmando que estava atrasado e tinha que montar a cozinha na residência do cliente naquele dia;
8. O sinistrado estava a descarregar os móveis de cozinha de forma rápida, designadamente não fazendo qualquer pausa;
9. O sinistrado estava a descarregar os móveis de cozinha sem o auxílio de outras pessoas e estava a desempenhar um esforço excessivo;
10. A certa altura, o sinistrado começou a afirmar que sentia tonturas e má disposição;
11. No momento em que pretendia fazer uma pausa para repousar, o sinistrado faleceu e caiu inanimado no chão;
12. O sinistrado padecia de obesidade, diabetes e hipertensão;
13. O falecimento do sinistrado foi provocado por um golpe de calor ou insolação em consequência da obesidade, diabetes e hipertensão de que padecia, conjugadas com o calor intenso que se fazia sentir e o esforço excessivo que estava a desempenhar;
14. A autora I. A. Barros vivia com o sinistrado como se tratasse de marido e mulher;
15. As autoras S. B. e D. A. eram filhas do sinistrado e da autora I. A.;
16. Estas autoras nasceram, respectivamente, nos dias 18 de Junho de 1992 e 12 de Janeiro de 2000;
17. As autoras despenderam a quantia de € 15,00 em deslocações obrigatórias no âmbito dos presentes autos;
18. Na altura do falecimento, o sinistrado auferia a retribuição anual de € 9.957,84;
19. A responsabilidade por acidentes de trabalho com o sinistrado estava transferida para a ré por contrato de seguro titulado pela apólice nº …, válido e eficaz na altura do falecimento;
20. Este contrato de seguro cobria a retribuição anual de € 9.957,84.

IV - APRECIAÇÃO DO RECURSO
Da qualificação do acidente como de trabalho

Antes de mais importa deixar consignado que temos por incontroverso que tendo os factos em apreciação ocorrido em 8 de Agosto de 2015, os mesmos deverão ser apreciados, em matéria de reparação de acidentes de trabalho, à luz do disposto na Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (doravante NLAT), que no seu artigo 188.º determina que a lei entra em vigor em 1 de Janeiro de 2010, aplicando-se aos acidentes ocorridos após essa data.
O artigo 8.º da NLAT delimita o conceito de acidente de trabalho como sendo aquele que se verifica no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte (n.º 1).
O referido conceito corresponde ao que estabelecia o artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13-09 (anterior lei dos acidentes de trabalho), bem como a Base V da ainda anterior lei dos acidentes de trabalho (Lei n.º 2127, de 3 de Agosto de 1965 LAT).
Como vem sendo afirmado quer na doutrina, quer na jurisprudência, para que se reconheça um acidente de trabalho importa verificar (a) um elemento espacial, em regra, o local de trabalho, (b) um elemento temporal, em regra, correspondente ao tempo de trabalho e (c) um elemento causal, ou seja, o nexo de causa e efeito entre, por um lado, o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença e, por outro lado, entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
Daqui podemos desde já afirmar que o nexo causal entre a prestação do trabalho e o acidente não constitui um requisito do conceito de acidente, pois o único nexo de causal previsto no citado preceito é o nexo entre o acidente e a lesão corporal, perturbação funcional ou doença esse sim tem de se verificar, para que se possa qualificar o acidente como de trabalho.
Perante os pontos de facto 1, 2, 4, 10 e 11 dos factos provados não podemos deixar de considerar que o evento em consequência do qual o sinistrado veio a falecer ocorreu, no tempo e local de trabalho.
No caso não se questiona sequer a existência destes dois primeiros elementos, ou seja o facto de o evento ter ocorrido no tempo e no local de trabalho, já que sucedeu quando o sinistrado que trabalhava por conta própria na colocação e montagem de móveis de cozinha e sala, se encontrava precisamente a descarregar móveis de cozinha em casa de um cliente (local de trabalho) para seguidamente proceder à sua montagem, no seu horário normal de trabalho (tempo de trabalho), visto que tal ocorreu pelas 11.00 horas.
A questão fulcral que importa apreciar é a de saber se o falecimento do sinistrado se ficou a dever a causa natural ou a acidente de trabalho, importando por isso fazer algumas considerações sobre o nexo de causalidade nos acidentes de trabalho, já que o art.º 10.º da NLAT prescreve que, “A lesão constatada no local e no tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no artigo anterior presume-se consequência de acidente de trabalho”
Do teor do citado normativo resulta a dispensa ao sinistrado ou beneficiário da prova relativa ao nexo de causalidade entre o acidente e a lesão, no entanto, aqueles têm de demonstrar a ocorrência do evento em si.
Na verdade, a simples constatação da morte de um trabalhador no local e tempo de trabalho não faz presumir a existência de um acidente de trabalho, não dispensando os interessados da sua prova efetiva da ocorrência do “acidente”.
Acresce dizer que aquele nexo de causalidade exprime apenas a relação de causalidade directa ou indirecta, entre o acidente e as suas consequências, ou seja entre o evento e a lesão perturbação funcional ou doença e não propriamente, uma relação de causalidade entre o trabalho e o acidente.
Como uniformemente tem sido defendido pelo Supremos Tribunal de Justiça, designadamente no recente acórdão de 1/06/017, proferido no Proc. n.º 919/11.3TTCBRA.C1.S1 (relator Ferreira Pinto) e sustentado pela generalidade da doutrina, a presunção de causalidade, estabelecida no citado artigo 10.º tem apenas o alcance de libertar os sinistrados ou os seus beneficiários da prova do nexo de causalidade entre o acidente e o dano físico ou psíquico reconhecido na sequência do evento infortunístico, não os libertando, do ónus de provar a verificação do próprio evento causador das lesões.
Como refere Pedro Romano Martinez, “Direito do Trabalho”, 2ª Ed., Almedina, 2005, pp.816, nota 2ª. “não se trata de uma presunção da existência do acidente, mas antes uma presunção de que existe nexo causal entre o acidente e a lesão ocorrida”.
Ora, não tendo o legislador definido o que deve entender-se por acidente de trabalho, tendo apenas fornecido alguns critérios tais como o lugar e tempo de trabalho e o nexo de causalidade e sendo certo que que para além destes pressupostos importa que ocorra um evento que possa ser considerado como “acidente”, teremos de o definir
Quando falamos em evento relevante para a qualificação de acidente de trabalho, falamos de um evento naturalístico, ou uma causa exterior – estranha à constituição orgânica da vítima -, súbito (que actua num espaço de tempo breve) e que produza uma acção lesiva do corpo humano (v. Carlos Alegre, Acidentes de trabalho e Doenças Profissionais, 2ª ed., pags. 34 e segs.).
Trata-se assim de ocorrência anormal, em geral súbita, pelo menos de curta duração ou limitada que acarreta uma lesão à integridade ou à saúde do corpo humano
Com efeito um esforço excessivo que origina uma lesão no corpo é, em si mesmo, uma causa exterior, estranha à constituição orgânica da vítima e súbita, já que actua num espaço de tempo breve.
Constituirá acidente qualquer “facto”, ainda que não violento, um acontecimento súbito exterior ao lesado, lesivo do corpo deste. vd. Martinez, Pedro Romano, “Direito do Trabalho”, 2ª Ed., Almedina, 2005, pp. 797 ss. e continuando refere ainda o seguinte: “um dos pressupostos básicos para a existência de responsabilidade civil é o facto, que em termos de responsabilidade delitual terá que ser um facto humano“. Na responsabilidade sem culpa, o facto humano poderá “ser substituído por uma situação jurídica objetiva que esteve na origem dos danos. Na realidade, como o facto gerador da responsabilidade não se baseia numa atuação culposa e ilícita, basta que se identifique uma situação geradora de dano. Na responsabilidade civil emergente de acidente de trabalho, o facto gerador nem sempre corresponderá a uma conduta humana; sendo a responsabilidade objetiva, o que desencadeia o dano é o acidente de trabalho.
Pode, assim, concluir-se que o facto gerador da responsabilidade objetiva do empregador é o acidente de trabalho”.
São assim complexas e enumeras as causas dos acidentes de trabalho, tendo-se presente que trata-se sempre de um acontecimento não intencionalmente provocado, de caráter anormal, súbito e inesperado, gerador de consequências danosas no corpo ou na saúde, imputável ao trabalho, no exercício de uma atividade profissional, ou por causa dela, de que é vitima um trabalhador.
“O acidente de trabalho é pois uma cadeia de factos em cada um dos respectivos elos têm de estar entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento naturalístico tem de estar relacionado com a relação de trabalho; a lesão, perturbação ou doença terão de resultar daquele evento; e finalmente, a morte ou a incapacidade para o trabalho deverão resultar da lesão, perturbação funcional ou doença. De tal forma que se esse elo causal se interromper em algum dos momentos do encadeado fáctico atrás descrito, não poderemos sequer falar – pelo menos em relação àquela morte ou àquela incapacidade - em acidente de trabalho. Razão porque esse “nexo causal” entre a relação de trabalho e a morte ou incapacidade (desdobrável em vários elos causais intermédios), deve, ele também, considerar-se como elemento integrador essencial do conceito legal de “acidente de trabalho” (cfr.Vítor Ribeiro, Acidentes de Trabalho, Reflexões e Notas Práticas, pág. 218.)
Do exposto se conclui que é acidente de trabalho o evento súbito, imprevisto, que provoque lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador, que ocorra no tempo e no local de trabalho, por causa do trabalho.
No caso em apreço insurge-se a recorrente relativamente ao facto de apesar de não ter sido feita a prova da ocorrência de um acidente, já que não se provou a ocorrência de qualquer evento danoso de natureza súbita e violenta e de causa exterior e estranha à vontade da vítima, ainda assim tribunal a quo, qualificou o acidente como de trabalho.
Salvo o devido respeito por opinião em contrário não podemos dar razão à Recorrente.

Com efeito, no caso em apreço, as autoras lograram provar que ocorreram algumas circunstâncias que exteriormente vieram a determinar o falecimento do sinistrado.
Ao contrário do defendido pela recorrente, não temos dúvidas em afirmar em face da matéria de facto provada que o falecimento do sinistrado ocorreu por intervenção exterior não tendo sido o culminar de um processo endógeno. Não se tratou de uma ocorrência que pudesse ter surgido em qualquer momento e em qualquer lugar independentemente de estar a trabalhar ou em descanso, como habitualmente sucede em situações de morte súbita.

Mas vejamos a factualidade provada:
Provou-se o seguinte:

1. O sinistrado J. B. exercia a actividade profissional de venda a retalho, colocação e montagem de móveis de cozinha e sala por conta própria;
2. No dia 8 de Agosto de 2015, pelas 11.00 horas, o sinistrado faleceu;
3. O falecimento do sinistrado ocorreu em Villemoirieu, França;
4. No 8 de Agosto de 2015, o sinistrado estava a descarregar móveis de cozinha que se encontravam num camião para colocar na residência de um cliente;
5. Naquela altura estava um calor intenso;
6. O sinistrado apresentava uma transpiração fora do comum, mesmo considerando o calor intenso que se fazia sentir;
7. O sinistrado continuou a descarregar os móveis afirmando que estava atrasado e tinha que montar a cozinha na residência do cliente naquele dia;
8. O sinistrado estava a descarregar os móveis de cozinha de forma rápida, designadamente não fazendo qualquer pausa;
9. O sinistrado estava a descarregar os móveis de cozinha sem o auxílio de outras pessoas e estava a desempenhar um esforço excessivo;
10. A certa altura, o sinistrado começou a afirmar que sentia tonturas e má disposição;
11. No momento em que pretendia fazer uma pausa para repousar, o sinistrado faleceu e caiu inanimado no chão;
12. O sinistrado padecia de obesidade, diabetes e hipertensão;
13. O falecimento do sinistrado foi provocado por um golpe de calor ou insolação em consequência da obesidade, diabetes e hipertensão de que padecia, conjugadas com o calor intenso que se fazia sentir e o esforço excessivo que estava a desempenhar;
Dos factos provados resulta manifesto que apesar do sinistrado padecer de obesidade, diabetes e hipertensão o seu falecimento não se ficou a dever apenas a estes factores, mas sim a estes conjugados com outros, designadamente com o calor intenso que se fazia sentir na altura e com o esforço excessivo que desenvolveu na execução do trabalho que se encontrava a realizar, o que lhe provocou uma insolação.
Com efeito resulta dos factos provados que o falecimento do sinistrado ocorreu devido ao esforço excessivo levado a cabo, ao desempenhar sozinho a tarefa de descarregar móveis de cozinha (quando exercia o seu trabalho), conjugado com o calor intenso que se fazia sentir ainda que associado à obesidade, diabetes e hipertensão de que padecia, o que lhe provocou má disposição vindo a falecer de imediato.
Tal como se consignou de forma acertiva a este propósito na sentença recorrida “Atendendo a esta factualidade, entendemos que ficou demonstrada uma relação entre a actividade laboral e o falecimento do sinistrado. O sinistrado padecia de doenças que contribuíram para o seu falecimento, tal como acontece na generalidade das mortes provocadas por enfarte agudo do miocárdio ou acidente vascular cerebral. Contudo, o seu falecimento foi igualmente uma consequência do calor intenso que se fazia sentir e do esforço excessivo que estava a desempenhar, o que impõe que se afirme que existiu uma relação com o trabalho. Verdadeiramente, foram estas as causas próximas do falecimento do sinistrado, sem as quais muito provavelmente este não teria ocorrido.”
Está assim em estabelecida a relação entre a actividade laboral que o sinistrado na altura desempenhava e a lesão (insolação), que associada a outros factores lhe veio a determinar a morte.
Em suma, os elementos de facto conhecidos são suficientes para nos permitirem concluir que a morte do sinistrado foi precipitada por uma causa estranha à constituição orgânica da vítima que se manifestou de modo súbito e violento (intenso esforço físico que a sua actividade profissional lhe exigiu (causa exógena), associado aos demais factores apurados) pelo que mais não resta do que concluir pela existência, no caso dos autos, de um acidente de trabalho.
É assim de qualificar como acidente de trabalho o evento que ocorreu no local e no tempo de trabalho e que consistiu no esforço físico desenvolvido pelo sinistrado durante a descarga de móveis associado ao calor excessivo que se fazia sentir, o que lhe causou uma insolação, vindo a falecer, assim se confirmando a decisão recorrida e improcedente o recurso de apelação interposto pela Ré

V – DECISÃO

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87º do C.P.T. e 663º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso de apelação interposto por COMPANHIA DE SEGUROS, SA., confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Guimarães, 4 de Outubro de 2017

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins

Sumário – artigo 663º n.º 7 do C.P.C.

I – É acidente de trabalho o evento súbito e imprevisto, que provoque lesão na saúde ou na integridade física do trabalhador, que ocorra no tempo e no local de trabalho, por causa do trabalho.
II - O acidente de trabalho é constituído por uma cadeia de factos em que cada um dos respectivos elos deve estar entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento súbito deve estar relacionado com a relação de trabalho; a lesão, perturbação ou doença, deve resultar daquele evento; e finalmente a morte ou a incapacidade para o trabalho deverão resultar da lesão, perturbação funcional ou doença.
III – É de qualificar como acidente de trabalho o evento que ocorreu no local e no tempo de trabalho e que consistiu no esforço físico desenvolvido pelo sinistrado durante a descarga de móveis associado ao calor excessivo que se fazia sentir, o que lhe causou uma insolação, vindo a falecer.

Vera Sottomayor