Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
178/20.7GBMR.G1
Relator: ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
DEBATE INSTRUTÓRIO
INTERVENÇÃO DO JUIZ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- Ainda que não de forma tão pungente como a que impera na fase da audiência de discussão e julgamento, a fase de instrução é enformada pelo princípio do contraditório, em particular o debate instrutório que antecede a decisão do juiz de instrução. Outrossim também estará sujeita ao princípio da imediação da prova oral sempre que esta seja produzida ou repetida perante o juiz de instrução.
II- Daí que deva ser o juiz que presidiu ao debate instrutório e assistiu à argumentação dialética dos sujeitos processuais sobre as questões, de facto e de direito, pertinentes para a decisão instrutória a proferir tal decisão.
III- Não tendo sido anulado o debate instrutório, tinha que ser o juiz que a ele presidiu a reformular a decisão instrutória que proferiu em conformidade com o determinado pelo tribunal superior, pelo que não podia ser outro juiz, alheio ao dito debate instrutório, a proferir nova decisão, sob pena de desrespeito da decisão do Tribunal superior, sendo, ademais, essa a solução que melhor contribuirá para evitar decisões contraditórias e, até, antagónicas perante o mesmo cenário probatório, como acabou por suceder no caso vertente, situação particularmente indesejável pelos óbvios reflexos negativos nos destinatários das decisões judiciais, suscitando sentimentos de incredulidade e suspeição.
IV- Todavia, caso haja impedimento definitivo por parte do Ex.mo Juiz que presidiu ao debate instrutório, por morte ou impossibilidade permanente, de reformular a decisão nos moldes ordenados pelo tribunal superior, então o Ex.mo Juiz que proferiu a decisão ora recorrida terá que designar data para repetição do debate instrutório, a que presidirá, com observância do princípio do contraditório, só após podendo proferir nova decisão.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. - RELATÓRIO

1. - No âmbito do processo n.º 178/20...., do Juízo de Instrução Criminal ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., em 27.03.2023, foi proferida decisão instrutória, mediante a qual, a final, foi decidido [transcrição[1]]:
«…ao abrigo do preceituado no disposto no artigo 308.º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal, e verificando que os autos não contêm elementos suficientes de que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, (…) não pronunciar AA, pela prática dos factos descritos no RAI de fls. 210-214.
(…)
Ao abrigo do preceituado no disposto no artigo 308.º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal, e verificando que os autos contêm elementos suficientes de que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena, (…) pronunciar BB pela prática dos factos descritos no RAI de fls. 210-214, que dou por inteiramente reproduzido, quer quanto aos fundamentos de facto, quer quanto aos fundamentos de direito, para todos os efeitos legais e que determinam a prática de um crime de subtração de menor, p. e p. pelos art.º 249.º, nº1, al. c), do Código Penal.»
2. - Não se conformando com tal decisão, veio o Ministério Público interpor recurso, nos termos que constam do respetivo requerimento e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, formulando, no termo da motivação, as seguintes conclusões e petitório:
«1. Inconformado com o arquivamento do inquérito que corria termos contra os arguidos BB e AA, pela alegada prática de factos integradores de crime de subtracção de menor, p. e p. pelo art. 249º, nº1, al. c) do C. Penal, o assistente CC requereu a abertura da instrução.
2. Foi proferida uma primeira decisão instrutória de não pronúncia, que, em sede de recurso (interposto pelo assistente apenas na parte relativa à não pronúncia da arguida BB), o tribunal ad quem considerou ferida de irregularidade, tendo o processo sido devolvido para nova decisão instrutória.
3. Um outro juiz que não o autor da primeira decisão, proferiu despacho de pronúncia da arguida, imputando-lhe a prática do sinalizado crime.
4. A instrução, tal como decorre das disposições combinadas dos arts. 287º, nº1, 289º, nº1 e 290º, nº1 do C. P. Penal, tem carácter contraditório, tem lugar quando for requerida pelo arguido que pretenda invalidar a decisão de acusação, ou pelo assistente que deseje contrariar a decisão de não acusação e é composta, obrigatoriamente, por um debate instrutório oral e contraditório.
5. Na situação apreciada, no seguimento do acórdão do tribunal ad quem, apresentava-se duas soluções alternativas: ou a nova decisão era proferida pelo juiz que presidiu ao debate instrutório e foi, de resto, o autor da decisão primitiva, ou, então, a nova decisão era dita pelo juiz que o sucedeu, mas com precedência de novo debate instrutório.
6. A decisão instrutória não se basta com a simples produção dos meios de prova, pois que lhe acresce uma análise crítica do juiz que presidiu ao debate instrutório, análise essa que inclui o contributo oral dos intervenientes.
7. No debate instrutório e de acordo com a lei processual penal, vigoram os princípios gerais da oralidade e do contraditório, pelo que a decisão instrutória terá de ser proferida por quem assistiu a todos os actos de instrução e discussão praticados durante o debate instrutório.
8. Esta foi a posição expressamente assumida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no Acórdão de 19.05.14 (proc. nº 512/08.8TAGMR.G3), acessível em www.dgsi.pt.
9. A decisão sob recurso, na medida em que foi proferida por juiz que não presidiu ao debate instrutório, enferma de nulidade insanável, nos termos do art. 119º, al. a) do C. P. Penal.
10. Na decisão recorrida, o tribunal, louvando-se nos elementos documentais existentes no processo, bem como nas declarações prestadas pelo assistente, deu como suficientemente indiciados os factos que vinham descritos no
RAI.
11. Razão pela qual concluiu existirem indícios suficientes da verificação dos elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de subtracção de menor, na modalidade considerada na al. c) do nº1 do C. Penal.
12. Para além de estar ferida de nulidade, a decisão instrutória padece de falhas na apreciação da prova, bem como de incompleições na interpretação e integração das normas jurídicas contidas nos arts. 249º, nº1, al. c) do C. Penal e 283º, nº2 e 308º, nºs 1 e 2 do C. P. Penal.
13. Avaliando ponderada, conjugada e criticamente o conjunto da prova adquirida, não pode concluir-se que assomem suficientemente demonstrados os elementos objectivos e subjectivos do crime de subtracção de menor.
14. Incorre na prática do crime p. e p. pelo 249º, nº 1, al. c) do C. Penal, todo aquele que, de um modo repetido e injustificado, não cumprir o regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais, ao recusar, atrasar ou dificultar significativamente a sua entrega ou acolhimento.
15. A conduta típica do agente, por forma a que possa ter-se por verificado o ilícito penal em presença, há-de ser dolosa e consistir sempre na recusa, atraso ou dificultação significativa da entrega ou do acolhimento de menor, desde que tal aconteça de modo repetido e injustificado.
16. Não resulta validamente indiciado que a arguida tenha actuado injustificadamente e/ou que tenha agido com a consciência e a vontade de praticar o crime.
17. De harmonia com a prova indiciária adquirida, a arguida actuou com o único propósito de proteger o menor, respeitando a sua vontade e determinação, que a própria assumiu como como sérias, maturadas e legítimas, independentemente da idade.
18. A alegada não facilitação ou impossibilitação, por parte da arguida, de contactos entre o assistente e o menor, não foi animada do propósito de incumprir.
19. Perante o dilema de cumprir o judicialmente determinado ou proteger a integridade mental do filho, optou a assistente por respeitar a vontade do filho, consistente na firme e esclarecida recusa de não querer ser entregue ao assistente.
20. No pensamento da arguida, sustentado pela reacção psicológica do menor no quadro de relacionamento com o assistente, o cumprimento das responsabilidades parentais era pernicioso para o próprio menor.
21. Cada caso tem as suas singularidades e cambiantes, e nem sempre a exuberância das situações de incumprimento, de recusa de entrega de filho menor, tem associada a intenção de incumprir, a consciência e a vontade, ainda que moldada na sua forma mais frágil de dolo eventual, de praticar o crime.
22. A avaliação feita pelos tribunais de família sobre situações como aquelas sob consideração, atende, prevalentemente, aos actos objectivos, a dados observáveis do comportamento exterior objectivado.
23. Por sua vez, a avaliação penal tem que atender não apenas aos elementos visíveis dos episódios ocorridos, mas, outrossim, aos complexos e multiformes fenómenos subjectivos associados, que ultrapassam e estão muito para além da parte visível do filme dos acontecimentos.
24. Decorre de todo o contexto alcançável pela globalidade dos elementos documentais juntos aos autos, que a arguida considerou que, em atenção à muito particular condição psicológica de seu filho menor, não poderia, sem a, colaboração ou vontade deste, cumprir o que fora determinado pelo tribunal.
25. A arguida, no seu mais profundo intimo, na avaliação dos acontecimentos, tinha uma justificação para o seu comportamento.
26. No limite, da prova existente nos autos, resultam inequivocamente, dúvidas sérias de que a conduta da arguida seja criminosa.
27. Apreciando criticamente toda a prova, concluímos que inexistem, à luz do critério imposto pelo nº2 do art. 283º do C. P. Penal, indícios suficientes da verificação dos elementos objectivos e subjectivos do crime de subtracção de menor, devendo a arguida ser despronunciada
28. No especial contexto dos autos e por referência à prova adquirida, se o processo for impulsionado para julgamento, aí, nessa sede e momento, a probabilidade de absolvição da arguida é superior à de condenação.
29. A decisão sob recurso é violadora, entre o mais, do disposto nos arts. 249º, nº1, al. c) do C. Penal e 283º, nº2 e 308º, nºs 1 e 2 do C. P. Penal.

Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que vossas excelências doutamente suprirão, deve o recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão posta em crise, e determinando-se a prolação de nova decisão instrutória, a proferir pelo juiz que presidiu ao debate instrutório, ou, então, pelo juiz que ocupou o lugar do primeiro, desde que essa decisão seja precedida da realização de novo debate instrutório.
Mais se requer, subsidiariamente, no caso de improceder a invocada nulidade, seja proferida decisão de não pronúncia relativamente à arguida.»

3. - O assistente, CC, respondeu ao recurso, concluindo, a final, que «deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se a douta decisão instrutória de pronúncia».
4. - Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, acompanhando os fundamentos do recurso do Ministério Público em primeira instância, emitiu parecer consonante, no sentido de que merece provimento.
5. - Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta.
6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
*
II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. - Decorre do preceituado no artigo 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal que o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões – deduzidas por artigos –, já que é nelas que o recorrente sintetiza as razões – expostas na motivação – da sua discordância com a decisão recorrida.
Contudo, o tribunal de recurso está, ainda, obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afetem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do mesmo diploma, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito [cfr. Acórdão do Plenário das Secções do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, e Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20.10.2005[2]].
O objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior são, assim, definidos e delimitados pelas referidas questões, umas, suscitadas pelo recorrente, e, outras, de conhecimento oficioso[3].

Assim, no presente recurso perfilam-se as seguintes questões a apreciar e decidir:

- Nulidade da decisão recorrida;
- (In)existência de indícios suficientes para pronunciar a arguida pelo crime de subtração de menor.

2. – São as seguintes as incidências processuais com relevo para a apreciação das enunciadas questões:
2.1 - Tendo sido proferido despacho de arquivamento do inquérito que corria termos contra os arguidos BB e AA, pela alegada prática de factos integradores de crime de subtração de menor, previsto e punível pelo artigo 249º, n.º 1, al. c), do Código Penal, o assistente, CC, requereu a abertura da instrução.
2.2 - Admitida a instrução, em 08.07.2022 o Ex.mo Sr. Juiz DD presidiu ao debate instrutório e proferiu decisão instrutória de não pronúncia relativamente a ambos os arguidos.
2.3 - O assistente interpôs recurso dessa decisão instrutória, apenas na parte relativa à não pronúncia da arguida BB.
2.4 - Por acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 06.02.2023, foi decidido «conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente, declarando inválido o despacho de não pronúncia recorrido, devendo ser proferida nova decisão instrutória, com enumeração dos factos indiciados e dos factos não indicados e inerente análise crítica da prova, extraindo-se daí as necessárias consequências jurídicas».
2.5 - Na sequência do decidido pelo tribunal superior, após a baixa dos autos à 1.ª instância, em 27.03.2023 o Ex.mo Sr. Juiz EE proferiu a seguinte decisão instrutória [ora recorrida], que tem o seguinte teor:
«Em obediência ao douto acórdão da Relação de Guimarães cumpre proferir:
DECISÃO INSTRUTÓRIA1
1 Todos os realces (sublinhados, negritos, itálicos, letra menor, inserções entre parênteses ou travessões, etc.) são da responsabilidade do signatário da presente decisão.

1. RELATÓRIO

2. Declaro encerrada a instrução.
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3. O Tribunal é competente, as partes são legítimas e não existem nulidades, questões prévias ou incidentais que cumpra apreciar.
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4. Não se conformando com o despacho de arquivamento o assistente CC requereu a abertura de instrução – cf. fls. 210-214 - imputado factos suscetíveis de integrarem a prática de um crime de subtração de menor, p. e p. pelos art.º 249.º, nº1, al. c), do Código Penal, praticados pelos arguidos BB E AA.
7. A presente instrução foi declarada aberta por despacho.
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8. Teve lugar o debate instrutório, com observância dos requisitos legais.
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9. Não se mostra necessário proceder a qualquer outra diligência instrutória que não retarde inadmissivelmente o decurso da instrução.
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10. DA INSTRUÇÃO

De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 286.º do Código Processo Penal (CPP), a “instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Nos seus requerimentos de abertura de instrução, o assistente pretende colocar em crise a decisão do MINISTÉRIO PÚBLICO de arquivar o inquérito.
Haverá, então, que determinar se, da prova recolhida no inquérito, resultam  ou não  sinais da existência de factos integradores da prática do referido crime e que consubstanciem uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena  art. 308.º, n.º 1, e 283.º, n.º 2, do CPP.
Saliente-se, no entanto, que a fase de instrução não visa um juízo sobre o mérito, mas tão-só a apreciação judicial da legalidade da acusação  assim, GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Vol. III, Lisboa 1994, p. 168. O arguido não solicita ao tribunal um juízo sobre o mérito da acusação, tão-só sobre a existência dos pressupostos exigidos para que a causa seja submetida a julgamento.
Este entendimento  de qual a função da instrução  foi reforçado com a consagração da norma vertida no art. 291.º do CPP. Tal norma revela a opção do legislador no sentido de a instrução ser um mecanismo de controlo da decisão do MINISTÉRIO PÚBLICO de submeter ou não a causa a julgamento e não um suplemento autónomo de investigação  cfr., neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, «Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do CPP», in RPCC, Ano 8, Fasc. 2.º, pág. 211. Na instrução não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes e tão-só indícios, sinais, de que um crime foi  ou não  cometido por determinado arguido. Deste modo, a natureza indiciária da prova que nesta fase é exigida, significa que apenas se hão-de recolher elementos probatórios da prática do crime e da responsabilidade do arguido, sendo irrelevantes os elementos que apenas sirvam para a graduação da responsabilidade relativamente ao crime em causa, enquanto não importem uma alteração substancial.
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11. FACTOS INDICIARIAMENTE DEMONSTRADOS

11.1. Face aos elementos de prova constantes no inquérito e no que se considera relevante para análise da questão sub judice, resultam suficientemente indiciados os factos descritos no RAI do assistente CC de fls. 210-214.
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Restante matéria revelou-se conclusiva, irrelevante e/ou matéria de direito.
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12. MOTIVAÇÃO DO TRIBUNAL
Na verdade, para aferirmos dos factos supra referidos e que resultaram indiciariamente provados e não provados, foi relevante o conjunto de indícios recolhidos em sede de inquérito, tudo analisado de forma crítica e conjugado, sem deixarmos de parte os juízos de experiência comum.
A factualidade indiciariamente demonstrada resulta da valoração da prova documental, designadamente, o auto de notícia de fls. 5-7 [apenso A], fls. 4-6 e aditamento de fls. 20-21, 27-28, 45-46, 58-60, 65-66, 166-167 e a troca de mensagens entre arguida e assistente junta a fls. 103-111 e 167-183, documentação respeitante ao processo 233/13.... e respetivos apensos junto a fls. 111v-114, 121-131, 139-148, 184-185, 186-191; em conjugação com as declarações do assistente CC [cf. fls. 102], vertido em sede de inquérito, que demonstraram conhecimento direto dos factos, por se tratar do assistente, e que confirmo em conjugação com a supra aludida prova documental, os incumprimentos na entrega do filho por parte da arguida, dando conta ainda das circunstâncias em que os incumprimentos tiveram lugar.
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13. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-CRIMINAL
13.1. No que concerne à presente instrução, investigam-se factos abstratamente subsumíveis na norma que pune o crime de subtracção de menor, pelo que importa, assim, apurar se existem indícios da prática de tal crime.
Estabelece o artigo 249.º, do Código Penal, sob a epígrafe «subtração de menor», que:
«1 - Quem:
a) Subtrair menor;
b) Por meio de violência ou de ameaça com mal importante determinar menor a fugir; ou
c) De um modo repetido e injustificado, não cumprir o regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais, ao recusar, atrasar ou dificultar significativamente a sua entrega ou acolhimento;
é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
2 - Nos casos previstos na alínea c) do n.º 1, a pena é especialmente atenuada quando a conduta do agente tiver sido condicionada pelo respeito pela vontade do menor com idade superior a 12 anos.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.».
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O crime de «subtracção de menores», na nova redacção da al. c) do n.º 1 do art. 249.º do CP, introduzida pela Lei 61/2008, de 31-10, afasta-se inteiramente da estrutura e construção típicas das als. a), b) e c) (na anterior redacção), divergindo mesmo do significado semântico que enquadrava consistentemente a construção tradicional da estrutura típica. No enquadramento de tipicidade, a al. c) do n.º 1 do art. 249.º na actual formulação não traduz nem expõe manifestamente uma «subtracção», mas apenas uma rejeição do cumprimento, ou no rigor, o incumprimento das obrigações decorrentes do regime fixado ou acordado de regulação das responsabilidades parentais de menores: a formulação típica não representa nem prevê uma retirada ou ocultação do menor, ou recusa de entrega à pessoa que exerça o poder paternal, constituindo apenas, em determinadas circunstancias, o estabelecimento de uma forma instrumental e funcional de injunção ao cumprimento de obrigações decorrentes do regime de responsabilidade parentais, no rigor, uma modalidade constitutivamente aproximada de uma desobediência.
Mas, sendo assim, o princípio de subsidiariedade de intervenção do direito penal que supõe a carência de tutela penal de determinado comportamento que afecte bens e valores com relevo axiológico constitucional?
Não poderá, sem afectar o princípio da proporcionalidade, sustentar a criminalização e o sancionamento penal de um puro e simples incumprimento de um regime sobre direitos civis que tem meios próprios de injunção e coerção ao cumprimento.
Por isso, a «subtracção» ou o não cumprimento, com o sentido da al. c), só deve e pode ter sentido quando se refira a situações de ultima ratio, e os meios normalmente adequados para fazer respeitar o cumprimento das obrigações parentais não se revelam eficazes.
É nesta perspectiva que os elementos da tipicidade do crime do art. 249.º, n.º 1, al. c), do CP, na redacção da Lei 61/2008, devem ser interpretados e integrados.
A actual redacção do art. 249.º, n.º 1, al. c), do CP, interpretada logo pela construção da tipicidade, visa acorrer às situações em que a recusa, atraso ou criação de dificuldades sensíveis na entrega ou acolhimento do menor, se faz, por exemplo, através da fuga para o estrangeiro de um dos vinculados pelo regime de regulação das responsabilidades parentais, ou através de comportamentos ou abstenções de semelhante dimensão, com graves prejuízos para a estabilidade e os direitos dos menores; é em tais circunstâncias que se impõe, não uma exigência de abstenção dos Estados face às relações jurídico-familiares, mas também deveres de conteúdo positivo, fazendo impender sobre os Estados o dever de criar mecanismos legais expeditos para o cumprimento.
Conhecidas as críticas a que a intervenção penal está sujeita nesta área, a lei penal não se pode satisfazer com uma qualquer forma ou modalidade de incumprimento; exige, por isso, logo pela descrição do tipo e como elemento da tipicidade, um incumprimento qualificado, não se satisfazendo, por uma projecção quantitativa, com uma única hipótese de incumprimento, mas sim, ao invés, exigindo que seja «repetido».
Classificando o incumprimento como «injustificado», o legislador utiliza a noção desligada dos tipos justificadores em sentido técnico-jurídico, alargando-a a outras realidades e circunstâncias que se impõem na definição como elementos do tipo e não como causa de exclusão da ilicitude: «repetido» e «injustificado» são expressões da realidade que apontam para projecções simultaneamente materiais e de valoração, como índices de gravidade e de insuportabilidade da rejeição ao cumprimento de deveres, que justificam a dimensão penal do não cumprimento do «regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais»; «recusar, atrasar ou dificultar significativamente» são acções que apenas podem assumir dimensão típica se constituírem comportamentos repetidos, isto é, reiterados e recorrentes, densificando quantitativamente, e pela quantidade e persistência, qualitativamente, a gravidade in se e as consequências do não cumprimento do regime estabelecido.
Feita esta breve incursão acerca dos crimes, resta verificar se in casu estão verificados todos os pressupostos objetivos e subjetivos do tipo.
De facto, e como anteriormente decidido, da leitura e interpretação dos elementos do tipo do art. 249.º, n.º 1, al. c), do CP, os factos indiciados não integram, nem se aproximam do limiar de tipicidade descrito na norma penal, no que ao arguido AA diz respeito. Aliás, o parece resultar dos factos imputados é o mero cumprimento da ordem ou determinação dada pela arguida.
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Em relação à arguida BB, resulta do requerimento de abertura de instrução, designadamente, dos artigos 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 23.º, 24.º que a Arguida, em face do acordo estabelecido quanto ao regime para a convivência do menor alcançado na regulação do exercício das responsabilidades parentais, tinha a obrigação judicialmente determinada de entregar o filho ao pai e que não cumpriu com essa mesma obrigação, recusando a entrega de uma forma repetida e injustificada. Sendo certo que a justificação apresentada pela arguida, afirmando que o menor se recusa a conviver com o pai, não é válida, como, aliás, decidiu o Juízo de Família e Menores em face dos repetidos incumprimentos.
Resultam ainda indiciariamente demonstrados os elementos subjetivos do tipo, conforme decorre dos pontos 28.º a 31.º do aludido RAI.
Assim, entendemos que os elementos constantes dos autos permitem-nos concluir que existem indícios suficientes dos elementos típicos do crime referenciado, que permitem, ao nível da imputação objetiva e subjetiva, promover a ação penal.
Ora, como defende CARLOS ADÉRITO TEIXEIRA2, o referido juízo de indiciação suficiente deve ter por equivalente o juízo de condenação em julgamento. Diferindo, todavia, o contexto probatório em que a convicção se afirma, uma vez que o referido juízo na fase de instrução difere do da fase de julgamento, pois com a adição do imprescindível contraditório, da imediação da prova e do princípio da investigação bem pode uma anterioridade cronológica revelar-se uma inferioridade lógica.
2 “«Indícios suficientes»: parâmetro de racionalidade e «instância» de legitimação concreta do poder-dever de acusar”, Revista do CEJ, N.º 1, 2º Semestre de 2004, pág. 189.
Não perdendo de vista que o juízo a realizar no presente momento processual tem natureza necessariamente indiciária e visa a comprovação da atividade processual desenvolvida em fase de inquérito por parte do seu titular, no caso, o Assistente, e transpondo as considerações necessariamente jurídicas que acabámos de fazer - para o plano dos factos que se nos apresentam, mais uma vez, repita-se, de forma indiciária, o Tribunal, tal como já se referiu supra, entende que existem razões para sustentar a posição assumida pelo assistente, ao considerar estarem preenchidos os pressupostos da prática do crime de subtração de menor.
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15. DECISÃO
Pelo exposto, e ao abrigo do preceituado no disposto no artigo 308.º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal, e verificando que os autos não contêm elementos suficientes de que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, decido não pronunciar AA, pela prática dos factos descritos no RAI de fls. 210-214.
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Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC – art. 515.º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal, art. 8º, nºs 1 e 9, do RCP, e tabela III a ele anexa, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
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Declaro cessada a medida de coação aplicada – cf. art. 214.º, nº1, al. b), do CPP.
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Ao abrigo do preceituado no disposto no artigo 308.º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal, e verificando que os autos contêm elementos suficientes de que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena, decido pronunciar BB pela prática dos factos descritos no RAI de fls. 210-214, que dou por inteiramente reproduzido, quer quanto aos fundamentos de facto, quer quanto aos fundamentos de direito, para todos os efeitos legais e que determinam a prática de um crime de subtração de menor, p. e p. pelos art.º 249.º, nº1, al. c), do Código Penal.
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Prova, a dos autos, designadamente, o auto de notícia de fls. 5-7 [apenso A], fls. 4-6 e aditamento de fls. 20-21, 27-28, 45-46, 58-60, 65-66, 166-167 e a troca de mensagens entre arguida e assistente junta a fls. 103-111 e 167-183, documentação respeitante ao processo 233/13.... e respetivos apensos junto a fls. 111v-114, 121-131, 139-148, 184-185, 186-191 e, ainda, a indicada no RAI a fls. 214.
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Medida de coação
Não se verificando qualquer das circunstâncias de que o art.º 204 do C.P.P. faz depender a aplicação de outra medida de coação, devem a arguida aguardar os ulteriores trâmites processuais sujeito às medidas já aplicadas nos autos - TIR.
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Custas a fixar a final, devendo ser tida em conta, em caso de condenação, a fase de instrução - arts. 513.º, nºs 1 a 3, do CPP, 8.º, nº9, do RCP, e tabela III anexa ao mesmo.
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Notifique, comunique e anote na pasta própria.
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Oportunamente, remeta os autos à distribuição para julgamento em processo COMUM, com intervenção do tribunal SINGULAR.»

3. - Apreciação do recurso
3.1 - Conforme decorre do preceituado no artigo 286º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, a instrução constitui uma fase jurisdicional (facultativa) que se destina, exclusivamente, à comprovação judicial das decisões de acusação ou de arquivamento formuladas pelo Ministério Público, no fim do inquérito[4]  – discordando da decisão do Ministério Público, o arguido ou o assistente submetem a questão ao juiz de instrução, que se configura como guardião dos direitos, liberdades e garantias no decurso das fases preliminares do processo.
O juiz de instrução vai, então, apreciar, de forma autónoma, o objeto do processo que é submetido ao seu crivo, praticando, se necessário, a requerimento dos sujeitos processuais ou por iniciativa própria, as diligências [de prova] que se mostrem pertinentes para a formação da sua convicção tendo em perspetiva a decisão final que se lhe impõe proferir – de submeter ou não a causa a julgamento – e realiza o debate instrutório, que visa permitir aos sujeitos processuais a discussão perante aquele, de forma oral e contraditória, sobre se, no decurso da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento.
Em traços largos, temos o seguinte desenho do âmbito e finalidades da fase de instrução – inicia-se com o requerimento de abertura de instrução, desenvolve-se com as diligências instrutórias [requeridas pelos sujeitos processuais ou determinadas oficiosamente], quando a elas haja lugar, encerra-se com o debate instrutório e culmina com a prolação de despacho de pronúncia ou de não pronúncia, consoante o juiz conclua que existem, ou não, nos autos, indícios de facto e elementos de direito suficientes, que justifiquem a submissão do arguido a julgamento.
Mais concretamente, seguindo o iter processual ditado pela lei, a direção da instrução compete ao juiz de instrução [288º] e é formada pelo conjunto dos atos que aquele entenda dever levar a cabo, necessários à realização das respetivas finalidades [290º, n.º 1] – sendo os atos de instrução efetuados pela ordem que reputar mais conveniente para o apuramento da verdade, indeferindo os [requeridos] que entenda não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e praticando ou ordenando oficiosamente aqueles que considerar úteis, sendo que os atos e diligências de prova praticados no inquérito só são repetidos no caso de não terem sido observadas as formalidades legais ou, tendo sido requeridos, quando a sua repetição se revelar indispensável à realização das finalidades da instrução [291º] – e, obrigatoriamente, por um debate instrutório, oral e contraditório, com observância da regra da continuidade, no qual podem participar o Ministério Público, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado, mas não as partes civis [289º e 304º]. O debate instrutório visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento, seguindo a disciplina estabelecida nos artigos 301º e 302º, sendo que, antes de encerrar o debate, o juiz concede de novo a palavra ao Ministério Público, ao advogado do assistente e ao defensor para que estes, querendo, formulem em síntese as suas conclusões sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios recolhidos e sobre questões de direito de que dependa o sentido da decisão instrutória. Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou despacho de não pronúncia [artigo 307º, n.ºs 1 e 3].
É, pois, inquestionável que, ainda que não de forma tão pungente como a que impera na fase da audiência de discussão e julgamento [cfr. 327º], por razões óbvias, uma vez que é nesta que se conhece definitivamente – sem prejuízo do direito de recurso – da (in)existência de responsabilidade penal e civil imputadas ao arguido, a instrução é enformada pelo princípio do contraditório, em particular na fase do debate instrutório que antecede a decisão do juiz de instrução. Outrossim também estará sujeita ao princípio da imediação da prova oral sempre que esta seja produzida ou repetida perante o juiz de instrução.
Daí que, ainda que ainda que a lei não refira que lhe é correspondentemente aplicável o princípio da plenitude da assistência dos juízes previsto para a fase da audiência de julgamento [cfr. artigo 328º] – ao contrário do que sucede  com o princípio da continuidade, que o artigo 304º diz ser correspondentemente aplicável ao debate instrutório –, afigura-se de meridiana clareza que deve ser o juiz que presidiu ao debate instrutório e assistiu à argumentação dialética dos sujeitos processuais sobre as questões, de facto e de direito, pertinentes para a decisão instrutória a proferir tal decisão.
A este respeito, embora perfilhando diferente entendimento quanto ao campo de aplicação daqueles princípios, exarou-se no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.05.2014 [proferido no processo 512/08.8TAGMR.G3][5]:
«(…) não existe nenhum fundamento legal que imponha que o Juiz que inicia e desenvolve a instrução deva ser o mesmo que a venha a ultimar, proferindo a decisão instrutória.
(…)
Há, no entanto, que sublinhar, o regime específico aplicável ao debate instrutório que além de obrigatório, representa o culminar de toda a fase preparatória do processo penal. Por definição, o debate alicerça-se numa estrutura contraditória, como meio de defesa por si só, realizado como é sob a direcção (artº 301º CPP) e na presença do juiz, com a presença e a participação das partes, as quais, no seu decurso, poderão inclusivamente requerer “a produção de provas indiciárias suplementares que se proponham apresentar, durante o debate, sobre questões concretas controversas (artº 302º CPP). Aí se dá tradução à exigência contida no nº 5 do artº 32º, da CRP..
Consagra-se para o debate instrutório um contraditório pleno, que o legislador quis que sempre tivesse lugar, em que é assegurada a oralidade, imediação e continuidade, operando uma retroacção do contraditório em audiência, no dizer de J. A. Barreiros, op. Citada, pág. 129, nota 34. O debate instrutório é um acto obrigatório e tem lugar mesmo que não haja mais quaisquer actos instrutórios a realizar, podendo tornar-se o acto exclusivo, único a praticar. (Cfr. Ac. RL de 15.1.2000, Proc. 506/00, Rel. Santos Monteiro). (sublinhado nosso)».
Também no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.10.1994 e na decisão sumária do Tribunal da Relação de Évora de 05.05.2015 [proferida no processo 60/15.0YREVR][6], se decidiu que «o debate instrutório só realiza a sua finalidade legal, presentes que sejam os princípios da continuidade e da oralidade, se houver identidade de juiz, isto é, se o juiz que proferir a decisão instrutória for o mesmo que presidiu ao debate instrutório, sob pena de insuficiência de ato essencial da instrução, que é nulidade dependente de arguição - artigo 120º, nº 2, al. d), do C. P. Penal.»
Ora, no caso dos autos, conforme o iter processual supra descrito, em 08.07.2022 o Ex.mo Sr. Juiz DD presidiu ao debate instrutório e proferiu decisão instrutória de não pronúncia relativamente a ambos os arguidos, da qual foi interposto recurso pelo assistente, apenas na parte relativa à não pronúncia da arguida BB, tendo sido decidido, por acórdão deste Tribunal da Relação de 06.02.2023, «conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente, declarando inválido o despacho de não pronúncia recorrido, devendo ser proferida nova decisão instrutória, com enumeração dos factos indiciados e dos factos não indicados e inerente análise crítica da prova, extraindo-se daí as necessárias consequências jurídicas», em sequência do que, em 27.03.2023, o Ex.mo Sr. Juiz EE proferiu a decisão instrutória ora recorrida, mediante a qual decidiu pronunciar a arguida FF «pela prática dos factos descritos no RAI de fls. 210-214, (…), quer quanto aos fundamentos de facto, quer quanto aos fundamentos de direito, para todos os efeitos legais e que determinam a prática de um crime de subtração de menor, p. e p. pelos art.º 249.º, nº1, al. c), do Código Penal».
Ora, tendo em perspetiva o que supra analisámos, in casu, não tendo sido anulado o debate instrutório, tinha que ser o juiz que a ele presidiu a reformular a decisão instrutória que proferiu em conformidade com o determinado pelo tribunal superior, pelo que não podia ser outro juiz, alheio ao dito debate instrutório, a proferir nova decisão, sob pena de desrespeito da decisão do Tribunal superior.
Ademais, essa é a solução que melhor contribuirá para evitar decisões contraditórias e, até, antagónicas perante o mesmo cenário probatório, como acabou por suceder no caso vertente, situação particularmente indesejável pelos óbvios reflexos negativos nos destinatários das decisões judiciais, sejam os intervenientes no processo, sejam a comunidade em geral que delas toma conhecimento, que não as compreendem, suscitando sentimentos de incredulidade e suspeição.
Todavia, caso haja impedimento definitivo por parte do Ex.mo Juiz que presidiu ao debate instrutório, por morte ou impossibilidade permanente – o que desconhecemos –, de reformular a decisão nos moldes ordenados pelo tribunal superior, então o Ex.mo Juiz que proferiu a decisão ora recorrida terá que designar data para repetição do debate instrutório, a que presidirá, com observância do princípio do contraditório nos moldes supra explicitados, só após podendo proferir nova decisão.
Em decorrência do exposto, fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.
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III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar a decisão instrutória recorrida e determinar que:
- Seja proferida nova decisão instrutória, pelo Ex.mo juiz que presidiu ao debate instrutório, dando cumprimento ao determinado pelo acórdão deste Tribunal da Relação datado de 06.02.2023;
- Na eventualidade de aquele juiz estar impedido de o fazer, por morte ou impossibilidade permanente, deverá o Ex.mo juiz que proferiu a decisão ora revogada designar data para realização de debate instrutório, a que deverá presidir, só após podendo proferir nova decisão instrutória.
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Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta [artigos 515º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma].
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(Elaborado pela relatora, e revisto e assinado eletronicamente pelos signatários – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)

Guimarães, 31 de outubro de 2023

Isabel Gaio Ferreira de Castro[Relatora]
Paulo Correia Serafim[1.º Adjunto]
Armando Azevedo[2º Adjunto]



[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos e, nalguns casos, a alteração da formatação do texto e/ou da ortografia, da responsabilidade da relatora.
[2] Publicados no Diário da República, I.ª Série - A, de 19.10.1995 e 28.12.1995, respetivamente.
[3] Vide Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
[4] Cfr. José Souto de Moura, “Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito Processual Penal”, Almedina, 1989, pág. 125.
[5] Disponível para consulta em http://www.dgsi.pt
[6] Acessíveis para consulta, no primeiro caso apenas o sumário, em http://www.dgsi.pt