Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3284/12.8TJVNF.G1
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO FACULTATIVO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
PERDA DE VEÍCULO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Ao aplicar o Direito, o tribunal é livre na interpretação e aplicação de um contrato de seguro facultativo celebrado e invocado entre as partes, e em vigor na data do dano.
2. A cobertura de um seguro facultativo por colisão do veículo (danos próprios) abrange necessariamente os danos emergentes da manobra que o respetivo condutor teve que realizar, adequadamente, para evitar a colisão iminente com outro veículo que circula em contramão.
3. A perda total de um veículo, na sequência de danos sobrevindos em acidente de viação passa pelo cumprimento dos ónus de alegação e prova dos factos conducentes a essa classificação --- que deles deve ser extraída, positiva ou negativamente, na sentença --- com o respeito devido pelo contraditório que assiste à parte contrária.
4. Provado que “a A. ficou privada do uso do veículo, que utilizava diariamente na prossecução da sua atividade, que é o transporte rodoviário de mercadorias, de 16 de Outubro de 2009, até à data em que a ré declinou a sua responsabilidade, a 12 de Janeiro de 2010”, tal facto constitui uma ofensa ao direito de propriedade da demandante e, como tal, representa um dano indemnizável.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
T.., LDA., sociedade comercial por quotas, com sede em .., Arruda dos Vinhos, instaurou acção declarativa de condenação para efectivação da responsabilidade civil emergente de acidente de viação, com processo comum, na forma ordinária, contra I.., S.A., atualmente .. – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.[1], com sede .. Lisboa, alegando que é proprietária do semi-reboque utilizado no veículo trator de mercadorias que contratara à F.., Lda., conduzido por conta e no interesse desta no transporte de mercadoria, nas circunstâncias em que, num entroncamento, o respetivo condutor teve que fazer uma travagem brusca para evitar uma colisão com um veículo automóvel que ocupava a via destinada ao sentido de marcha do trator e se colocou em fuga, sendo, por isso, desconhecido.
Na sequência daquela travagem, o atrelado sofreu vários danos materiais resultantes da deslocação da carga, cujo custo de reparação é da responsabilidade da R. por força do contrato de seguro então em vigor, assim como o prejuízo emergente da paralisação do veículo que utilizava diariamente na prossecução da sua atividade.
Terminou com o seguinte pedido:
«Nestes termos e nos mais de direito supridos por V.Ex.a, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, em consequência, ser a R. condenada no pagamento à A. da indemnização a título de danos patrimoniais no montante de €.:38.248,32, acrescida dos respectivos juros legais, desde a citação até integral pagamento.» (sic)
Citada, a R. contestou a ação.
Aceitou a vigência do contrato de seguro relativamente ao semi-reboque, bem como a cobertura dos danos sofridos por tal veículo e resultantes, além do mais, de choque, colisão e capotamento. Invocou os limites da cobertura, designadamente a franquia estabelecida, a exclusão da responsabilidade por mau acondicionamento da carga, a exclusão do dever de reparar os danos em virtude de ter havido perda total do veículo e do dever de indemnizar por privação do uso do veículo.
Impugnou ainda, parcialmente, os factos alegados na petição inicial e concluiu pela sua absolvição do pedido.
A A. replicou quanto às referidas matérias de exceção, terminando pela reafirmação do pedido de condenação da R. nos termos da petição inicial.
Teve lugar a audiência preliminar, onde foi proferido despacho saneador tabelar seguido de factos assentes e de base instrutória, de que não houve reclamações.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença fundamentada em matéria de facto e de Direito, cujo dispositivo tem o seguinte teor, ipsis verbis:
«Com fundamento no atrás exposto:
a) condeno a ré .. - Companhia de Seguros, S.A. a pagar à autora T.., lda a quantia de € 21.500,00 (já deduzida da franquia de € 500,00), acrescida de juros vencidos e vincendos desde a data da citação até integral e efetivo pagamento.
b) condeno a ré .. - Companhia de Seguros, S.A. a pagar à autora T.., lda a quantia que se vier a liquidar em posterior incidente de liquidação, referente ao prejuízo resultante para a autora, da privação do uso do veículo acidentado.
Custas por autor e ré, na proporção de 1/10 e 9/10, respetivamente.»

É desta decisão que apela a R., formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1. O acionamento do presente contrato funda-se (exclusivamente) na cobertura facultativa de danos no veículo – choque, colisão e capotamento (pág. 14 das cláusulas contratuias juntas aos autos em 23.02.2014).
2. Da factualidade provada resulta que o acidente dos autos consistiu numa travagem brusca, provocada pelo atravessamento de um veículo, sem que tenha havido qualquer choque ou colisão do veículo seguro contra qualquer outro veículo ou objeto ou corpo fixo ou em movimento, ou capotamento.
3. Assim, e não sendo o acidente dos autos subsumível ao enquadramento contratual exigível á responsabilização da Ré, impor-se-á a absolvição desta do pedido, sem mais.
4. Ainda que assim se não entendesse, sempre se dirá, cautelarmente que o valor da condenação referente aos danos sofridos pelo veículo seguro não corresponde ao contratualmente acordado.
5. Com efeito, e resultando da factualidade provada (resposta ao quesito 15) que o veículo seguro foi considerado uma perda total, o valor a indemnizar corresponde ao valor preceituado na cláusula 14ª – B – 2.2.2 (pág. 6 das cláusulas juntas aos autos), ou seja, previstos na Tabelas anexas de desvalorização – ou seja, € 8.500,00, atendendo a que os salvados ficaram em poder da A.
6. Será este, assim o valor a considerar para indemnização da perda total, e não o valor de € 22.000,00, correspondente ao custo orçamentado para a reparação, conforme resulta da sentença ora em recurso.
7. A tal valor haverá ainda que deduzir, nos termos contratualmente acordados, a franquia contratual de 2% sobre tal valor - € 170,00 – pelo que, o valor total a indemnizar a este título corresponderia a € 8.330,00.
8. Por último, e sempre sem conceder, discorda ainda a Recorrente da interpretação que a Meritíssima Juíz a quo fez da cláusula de exclusão atinente aos danos de privação de uso do veículo.
9. Com efeito, e desde logo, somos de opinião que, perante a factualidade, a este propósito, dada como provada – e que se restringe à estrita menção da privação do uso do veículo e respetivo período – não poderia, tão-pouco o Tribunal a quo te assumido que daí advieram despesas e, acrescidamente, ter condenado a Ré ao pagamento de tais despesas cuja determinação relegou para ulterior incidente de liquidação.
10. Na verdade, de tal factualidade não resulta, tão-pouco que dessa privação tenham advindo danos e, muito menos, que esses danos se traduzam em despesas (mormente de índole patrimonial).
11. E, nessa conformidade, não nos podemos conformar, desde logo, com a condenação no pagamento destas despesas (ainda que a sua determinação tenha sido relegada para momento ulterior) porquanto entendemos que inexiste, no caso, a prova de tais despesas, sendo certo que o incidente de liquidação pressuporia que estivesse já previamente assente a sua existência, restando apenas a definição do seu quantum, ou seja, a sua determinação.
12. Logo, e sem prejuízo do primeiro argumento acima exposto, sempre se imporia a absolvição da R. deste pedido.
13. De todo o modo, e ainda que assim se não entendesse, sempre se nos afigura que tais despesas consubstanciariam cumulativamente lucros cessantes, perda de benefícios e resultados que a Autora deixou de auferir por força da dita imobilização.
14. E, nessa medida, sempre estariam tais danos excluídos contratualmente, face ao teor da cláusula invocada na douta sentença.
15. Assim, nunca poderia com qualquer dos fundamentos, ser a Ré condenada no pagamento dos danos emergentes da privação do uso do veículo.
16. Decidindo-se em contrário violou-se, além do mais, o disposto nos arts. 406º do Cód. Civil e 615º nº 1 c) do Código de Processo Civil.» (sic)
Termos em que o R. recorrente defendeu a revogação da sentença.

A A. ofereceu contra-alegações, onde defendeu improcedência da apelação, com as seguintes conclusões:
«I – A decisão aqui em discussão é exemplar, quer no que concerne à matéria de facto, quer no que concerne à aplicação do direito; razões pelas quais deverá ser mantida nos seus precisos termos.
II – A Recorrente propugna a revogação da sentença, com base em três ordens de razões:
- Por um lado, refere que o acidente dos autos não é subsumível ao enquadramento contratual exigível para que a Ré seja responsabilizada, impondo-se por essa razão sem mais a absolvição desta do pedido.
- Por outro lado, defende que o valor da condenação referente aos danos sofridos pelo veículo seguro não corresponde ao contratualmente acordado.
- Por último, discorda da interpretação que a Meritíssima Juíz a quo fez da cláusula de exclusão atinente aos danos de privação de uso do veículo.
III- Porém, não lhe acede razão em qualquer uma delas, vejamos:
Contrariamente ao alegado, a questão agora levantada pela Recorrente não se enquadra no âmbito de aplicação do artigo 611.º do CPC, isto é, não se trata de factos jurídicos supervenientes.
IV- Ainda que assim não fosse, o acidente dos autos, sem sombra de dúvida, enquadra-se no contrato de seguro celebrado entre as partes, e os danos que dele advieram, devem ser ressarcidos pela Recorrente; aliás, da própria redacção das cláusulas contratuais é-se obrigado a concluir como concluiu a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo - O que a seguradora garante – “A indemnização dos danos sofridos pelo veículo seguro em consequência de acidente devido a causa súbita, fortuita e violenta, alheia à vontade do Tomador, Segurado ou Condutor, quer o veículo se encontre em circulação, quer imobilizado, quer em curso de transporte.”
V- Obviamente, não poderá colher a interpretação, aliás uma novidade das alegações, de que o acidente dos autos não consubstanciou qualquer choque, colisão ou capotamento.
VI – Por outro lado, e contrariamente ao pretendido pela Recorrente, não merece qualquer reparo a condenação desta no pagamento da quantia de €22.000,00, correspondente ao valor da reparação do veículo; em primeiro lugar, não estamos já em fase de resolução amigável da questão; em segundo lugar, a Recorrente não comunicou à Recorrida que considerava o veículo seguro uma perda total, nem o que quer que fosse relacionado com esta questão; por último, não alegou ou provou o que quer que fosse no que concerne à perda total, nem sequer havia ainda adiantado o valor do veículo, o que apenas veio a fazer agora nas alegações.
VII – Ora, assim sendo, obviamente andou bem o Tribunal ao decidir como decidiu, isto é, aplicando o regime geral.
VIII – Por último, também não acede razão à Recorrente no que concerne ao dano pela privação do uso do veículo; tal conclusão impõe-se da simples leitura do ponto 3.3 al i) das condições especiais da apólice – vide pág. 15, a cláusula em questão refere-se unicamente a “lucros cessantes, perda de benefícios ou de resultados.”
IX – Por outro lado, a matéria de facto provada no que se refere a esta questão é suficiente para concluir pela condenação da Recorrente conforme foi doutamente decidido na sentença.» (sic)
Pugnou, assim, pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação da R., acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido, delas retirando as devidas consequências, e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil .[2]
Somos chamados a decidir os seguintes temas:
1. O seguro e a cobertura do dano emergente do acidente;
2. Reparação do veículo ou indemnização pela sua perda total; e
3. Dever de indemnizar por privação do uso do veículo.
III.
É a seguinte a matéria de facto dada como provada na 1ª instância [3]:
Dos factos assentes:
a) No dia 16 de Outubro de 2009, cerca das 6:00 horas, na Rua da União, no local onde esta entronca com a estrada nacional nº 14 – Vila Nova de Famalicão, na área da comarca e concelho de Vila Nova de Famalicão, ocorreu um acidente de viação.
b) O local do acidente é um entroncamento, entre a Rua da União e a Estrada Nacional nº 14 (vide doc. nº 1).
c) O acidente ocorreu em pleno entroncamento das duas vias (vide doc. nº 1).
d) No momento do acidente o tempo estava seco.
e) No acidente foram intervenientes os seguintes veículos:
- O veículo A (assim identificado no doc. nº 1) trator de mercadorias de marca DAF, matrícula .. - RN, que tinha atrelado o semi-reboque de carga marca LECINENA, matrícula C-.., com câmara frigorífica.
- O veículo B, ligeiro de passageiros, cuja marca e matrícula se desconhece, em virtude de se ter posto em fuga.
f) O veículo A era conduzido por J.., no interesse e por conta da empresa F.., Lda., proprietária do trator de mercadorias referido supra, que por sua vez tinha sido subcontratada pela autora, proprietária do semi- reboque, para efetuar o transporte de mercadorias aqui em causa (docs. nº 1 e docs. n.ºs 2 e 3, juntos com a petição inicial).
g) O referido veículo, constituído assim por trator e semi-reboque, circulava na Rua da União, no sentido Sul/Norte, e pretendia entrar na estrada nacional n.º 14 para nela passar a circular no sentido Norte/Sul (vide doc. n.º 4 que se junta).
h) Circulava na sua mão de trânsito, junto à berma direita, atento o seu sentido de marcha.
i) Ao aproximar-se do entroncamento, deparou-se com o veículo B, na sua mão de trânsito, que circulava em contra-mão, pois pretendia entrar na Rua da União pela hemi-faixa direita atento o sentido de marcha do veículo A, tentando-o fazer por esse lado, justamente na linha em que se intercepta a Rua da União e a estrada Nacional nº 14, e assim cortando a linha de marcha do veículo A, cujo condutor foi totalmente surpreendido pela presença de mesmo na sua faixa de rodagem.
j) Para evitar o embate, o condutor do veículo A foi obrigado a efetuar uma travagem brusca.
l) Em consequência do que, a carga transportada no atrelado, composta por 300 carcaças de suíno (vide doc. n.º 5 junto com a petição inicial), saltou e danificou-se irremediavelmente, assim como danificou a câmara frigorífica com o embate desta na mesma.
m) Entre autora e ré foi celebrado um contrato de seguro, cuja apólice foi junta e se deve ter por reproduzida para todos os efeitos legais (Doc. nº1), mediante o qual foi transferido para a ré não só a cobertura da responsabilidade civil emergente da circulação do veículo semi-reboque com a matrícula C-.., bem como a cobertura dos danos sofridos por tal veículo e resultantes, além do mais, de choque, colisão e capotamento.
n) Tal como resulta da mencionada apólice junta tal cobertura tem um limite contratual de € 25.000,00, correspondente ao valor do veículo seguro.
o) E vigora com uma franquia, a cargo da sociedade tomadora do contrato (a aqui autora), e era a cobertura aqui em causa, no valor de 2% do capital máximo garantido, ou seja, € 500,00.
Da base instrutória:
Do quesito 1) A carga estava bem acondicionada.
Do quesito 2) A autora, enquanto transportadora, foi obrigada a reembolsar o dono da dita carga, bem como a suportar os danos sofridos no atrelado – destruição da frente e lateral esquerda da câmara frigorífica, que a tornaram inutilizável.
Do quesito 3) O valor da carga que teve de suportar foi de € 6.132,00 (seis mil cento e trinta e dois euros), e a reparação da câmara frigorífica orçamentada em €22.000,00 (vinte e dois mil euros), quantia a que acrescia Iva.
Do quesito 4) A reparação da câmara frigorífica implicava o seguinte:
- Colocação de uma porta traseira, com duas folhas, providas de dobradiças que permitissem uma abertura a 270º, com fechos de inox e fechaduras do tipo revolvente;
- Colocação de Iluminação interior e exterior;
- Colocação de sistema de segurança nas portas, para quando abertas;
- Colocação de traseira em inox;
- Acabamentos a perfis de polyester;
- Colocação de esgotos de drenagem, equipados com sifões;
- Colocação de guarda-lamas em polyester;
- Colocação de estribo de acesso ao interior da caixa;
- Colocação de uma altura de lambrim em cada painel (R/P);
- Colocação de batentes de borracha;
- Colocação de resguardo para ciclistas;
- Aproveitamento do fundo existente em polyester;
- Colocação de duas calhas aeroquip em cada painel;
- Colocação de duas barras telescópicas;
- Desmontagem e montagem de aparelho de frio.
Do quesito 6) O conjunto dos veículos, pese embora danificado o semi-reboque nos termos supra referidos, podia circular sem carga; pelo que foi retirada a carga danificada com o auxílio de um veículo propriedade do destinatário da carga – I.., S.A., chamada ao local, e o pesado deslocou-se para a sede da autora.
Do quesito 7) Como consequência direta e necessária da travagem brusca que o condutor do veículo A, foi obrigado a fazer para evitar o embate, o mesmo veículo, propriedade da aqui autora, ficou inutilizado, sofreu os danos mencionados no artigo 12.º, cuja reparação foi orçamentada em €22.000,00 (vinte e dois mil euros).
Do quesito 8) A seguradora aqui ré só em 12.01.2010 (vide doc. n.º 8 que se junta) informou a autora que declinava a sua responsabilidade no pagamento dos danos resultantes do sinistro, que desde logo lhe foram reclamados.
Do quesito 9) Além dos referidos danos a autora ficou privada do uso do veículo, que utilizava diariamente na prossecução da sua atividade, que é o transporte rodoviário de mercadorias, de 16 de Outubro de 2009, até à data em que a ré declinou a sua responsabilidade, a 12 de Janeiro de 2010.
Do quesito 10) O veículo seguro (que é um semi-reboque com caixa frigorífica) transportava peças inteiras de carne em ganchos presos ao tecto.
Do quesito 14) O valor orçamentado, entre os serviços técnicos da ré e o representante da oficina escolhida pela autora, para a reparação do semi-reboque ascendia a € 19.902,11 (IVA incluído).
Do quesito 15) Ora, ascendendo o capital seguro, a € 25.000,00, por força do clausulado contratual, o veículo seguro foi considerado uma perda total.
Foi ali considerada não provada a seguinte matéria[4]:
Do quesito 5) O veículo B, que circulava em contra mão, seguramente ao ter-se apercebido da manobra de recurso do veículo A (travagem brusca) pôs-se em fuga.
Do quesito 9) e que ascendiam a € 16.248,32.
Do quesito 11) Sem que, contudo tal carne se encontrasse devida e minimamente condicionada.
Do quesito 12) Com a descrita travagem brusca e com o desvio repentino para a direita do veículo seguro (que, no seu conjunto, é veículo articulado composto por tractor e semirreboque) - tal como, de resto, bem se descreve nos arts. 9º; 10º e 11º da petição inicial - toda a mercadoria transportada deslizou dentro da caixa frigorífica.
Do quesito 13) Acabando, por força de todo o peso do seu conjunto, por se concentrar na parte lateral esquerda da caixa frigorífica que, assim rompeu, tal como melhor resulta das fotografias juntas e que ora se devem ter por reproduzidas para todos os efeitos legais (Doc. nº2).
Do quesito 15) facto este oportunamente comunicado à autora, em 7 de Dezembro de 2009.
*
Ab initio est ordiendum.
A recorrente suscita apenas questões de Direito.
1. O seguro e a cobertura do dano emergente do acidente
Alega a R., na apelação, que, conforme resulta do clausulado do contrato de seguro, a seguradora apenas garante os danos sofridos pelo veículo seguro em consequência de choque, colisão ou capotamento nos estritos termos definidos na cláusula 1ª da cobertura.
Consta daquela cláusula o seguinte:
“Para efeito desta cobertura, entende-se por:
1.1. Choque – embate do veículo seguro contra qualquer corpo fixo, ou sofrido pelo veículo quando imobilizado;
1.2. Colisão – embate do veículo seguro com qualquer outro corpo em movimento;
1.3. Capotamento – situação em que o veículo seguro perde a sua posição normal (e não resulte de Choque ou Colisão)”.
Os casos de exclusão da garantia da cobertura configuram-se como factos impeditivos do direito do segurado à indemnização, cujo ónus de alegação e de prova compete a quem deles se pretende aproveitar - in casu, a seguradora – por força do art.º 342º, nº 2, do Código Civil.
Acrescenta a R. que, como o veículo seguro não sofreu qualquer choque, colisão ou capotamento, tal como definidas contratualmente, a apólice, relativa a danos próprios (cobertura facultativa), não cobre os danos em causa, provocados por simples travagem do veículo e consequente deslocação da respetiva carga.
Tem razão a recorrente quando alega também que esta é uma questão de Direito e que, como tal, na sua apreciação, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. É regra que resulta do art.º 5º, nº 3, assim como resultava já do art.º 664º do código de processo anterior.
Mas, se é certo que o juiz deve interpretar e aplicar o direito com a referida liberdade, seguindo o escopo da realização da justiça do caso concreto e produzindo uma decisão de mérito que atinja, tanto quanto possível, o ideal da justiça material, não é menos exato que o tribunal está limitado ao conhecimento das questões que as partes lhe colocam no processo, com cumprimento das respetivas regras, sejam elas de facto ou de Direito, ou cujo conhecimento oficioso a lei lhe imponha. Antes da interpretação e da aplicação do Direito pelo juiz, está a questão a resolver; ou seja, sem questão não há aplicação do Direito. É assim no atual Código de Processo Civil (art.º 608º, nº 2), como era no código por ele revogado (art.º 660º, nº 2), de tal modo que, num e noutro códigos, o conhecimento de questões de que o tribunal não possa tomar conhecimento gera nulidade da sentença (art.ºs 615º, nº 1, al. d) e 668º, nº 1, al. d), respetivamente).
Não podem olvidar-se os princípios da concentração da defesa na contestação e da preclusão (art.º 573º, nº 1). Toda a defesa deve ser deduzida naquela peça processual --- seja por exceção ou por impugnação --- sendo proibida uma defesa por fases, a não ser que se trate de uma exceção superveniente ou de que o tribunal deva conhecer oficiosamente (nº 2 do mesmo dispositivo processual)[5]. Assim acontecia já na vigência do Código de Processo Civil aprovado pelo Decreto-lei nº 44129 de 28 de Dezembro de 1961, em vigor à data em que a R. contestou a ação (12.11.2012) --- cf. respetivo art.º 489º.
Deveria a R. ter invocado na contestação as referidas cláusulas de exclusão da cobertura do seguro?
Estamos em crer que não.
Os factos suscetíveis de preencher aquelas cláusulas contratuais foram alegados pela A. na petição inicial. Como tal, estava a R. dispensada de os repetir. Na perspetiva da sua defesa, estão confessados pela demandante: o condutor do veículo fez uma travagem brusca e a carga transportada no atrelado, composta por 300 carcaças de suíno, pese embora estivesse bem acondicionada, saltou e danificou-se irremediavelmente, assim como danificou a câmara frigorífica com o embate desta na mesma.
Não foi alegado qualquer embate entre veículos, mas apenas uma travagem para evitar a colisão. Tanto bastaria para a R. defender a sua absolvição do pedido por mera interpretação e aplicação das cláusulas de exclusão previstas no contrato de seguro. Tais factos, alegados pela A. poderiam constituir, só por si, um impedimento do efeito jurídico pretendido pela demandante e, como tal, uma exceção perentória inominada, de conhecimento oficioso por a lei não exigir a sua invocação pela R. (art.ºs 493º, nº 3 e 496º do Código de Processo Civil vigente na data da contestação da ação).
Ao aplicar a lei e o contrato em vigor entre as partes, deve o juiz considerar os seus termos, independentemente da sua invocação, aplicando o Direito.
Isto mesmo parece ter entendido o tribunal recorrido quando, na sentença, refere:
“Ora, a nosso ver, e considerando a factualidade que se apurou, a autora alegou e provou o facto gerador (risco coberto) da responsabilidade civil contratual da ré seguradora. Por sua vez, a ré seguradora não demonstrou, como lhe competia (artº 342º, nº 2, do CC), que tais danos não estão cobertos pelo contrato de seguro celebrado entre as partes.
Significa isto que, também entendemos que estes danos havidos pela autora, tomadora do seguro em causa, estão cobertos (risco) pelo contrato de seguro celebrado pelas partes.
Assim, nesta parte, o pedido deduzido pela autora será julgado procedente.”
Considerou, assim, o tribunal que a R. não demonstrou factos de onde se pudesse extrair a exclusão da sua responsabilidade civil pelos efeitos danosos do acidente e, como tal, impunha-se a respetiva condenação. Ou melhor, ante os factos provados, o tribunal entendeu que não havia motivos para excluir a responsabilidade da R., designadamente à luz da apólice contratada.
O objeto do recurso não se confunde com o objeto do litígio e, por regra, o recurso ordinário é recurso de revisão ou de reponderação da decisão recorrida. É um meio processual que visa reapreciar uma decisão proferida num certo quadro factual e não a obtenção de uma decisão sobre uma questão que ainda não havia sido suscitada e que não seja de conhecimento oficioso. Os recursos justificam-se para que um tribunal hierarquicamente superior reaprecie uma questão já vista pelo tribunal hierarquicamente inferior. Trata-se de uma reponderação de questões concretas de facto ou de Direito já conhecidas pelo tribunal a quo, assim se garantindo ao cidadão um duplo grau de apreciação jurisdicional.[6] Não podem ser suscitadas questões novas nos recursos, questões que o tribunal recorrido não pudesse e não devesse ter apreciado.
Todavia, ainda que a R. não tivesse, expressamente, invocado na contestação que a sua responsabilidade civil estava excluída nos termos do contrato, como observámos, o tribunal não podia deixar de o interpretar e aplicar ao caso, averiguando designadamente se a responsabilidade da R. estava excluída por alguma das suas cláusulas, como fez efetivamente, embora de uma forma muito abreviada e até conclusiva. E se conheceu dessa matéria, como devia, em sede de aplicação do Direito, não é essa agora, em sede de apelação, uma questão nova e de que este tribunal de recurso possa deixar de dela conhecer, também em sede de interpretação e aplicação do Direito, até por se tratar de factos que poderão integrar uma exceção perentória cujo conhecimento é oficioso, cuja invocação a lei não torna dependente da vontade das partes.
Vejamos, então.
Resultam das condições especiais do seguro de responsabilidade facultativo, coo vimos já, as seguintes definições:
«1.1. Choque – embate do veículo seguro contra qualquer corpo fixo, ou sofrido pelo veículo quando imobilizado;
1.2. Colisão – embate do veículo seguro com qualquer outro corpo em movimento;
1.3. Capotamento – situação em que o veículo seguro perde a sua posição normal (e não resulte de Choque ou Colisão).»

Na definição literal do contrato de seguro, não ocorreu, no caso, capotamento, choque ou colisão. Os danos no veículo resultaram de uma travagem brusca e da deslocação da carga que transportava, em consequência daquela travagem. O veículo não embateu em qualquer corpo imobilizado ou em movimento, não foi embatido a partir do exterior e não perdeu a sua posição normal (de rodados para baixo).
Porém, o contrato não exige que os danos sobrevenham exclusivamente na sequência de um qualquer acontecimento enquadrável num daqueles tipos.
Do ponto 2 das respetivas condições especiais, consta o direito «a indemnização dos danos sofridos pelo veículo seguro em consequência de acidente devido a causa súbita, fortuita e violenta, alheia à vontade do Tomador, Segurado ou condutor, quer o veículo se encontre em circulação, quer imobilizado quer em curso de transporte.
Ficam expressamente abrangidos, os danos devidos a choque, colisão e capotamento incluindo a quebra de vidros.»
A expressa alusão a choque, colisão e capotamento significa apenas que tais situações se incluem na responsabilidade da cobertura, reforça a abrangência daquelas situações, e não a exclusão do inverso ou do que por tais figuras não está abrangido; se assim fosse, não seria necessárias a primeira parte da referida cláusula contratual (ponto 2.).
O veículo seguro transitava na sua mão de trânsito, junto à berma direita, atento o seu sentido de marcha. Ao aproximar-se do entroncamento, deparou-se com o outro veículo na sua mão de trânsito, a circular em contramão. Para evitar o embate, o condutor daquele veículo foi obrigado a efetuar uma travagem brusca que provocou a deslocação a carga e os danos na câmara frigorífica (itens h), i), j) e l) dos factos provados).
É inequívoca a inclusão da situação de facto provada no âmbito daquela cobertura. A travagem efetuada pelo condutor do veículo seguro não foi abusiva, despropositada ou desnecessária; foi forçada pelo perigo concretamente causado pelo veículo com que aquele se deparou na sua mão de trânsito, impedindo a sua passagem. Foi devida a uma causa súbita, inesperada, imprevisível, alheia à vontade do condutor do veículo seguro e constituiu um comportamento adequado a evitar a colisão.
Do subsequente ponto 3 da apólice constam as cláusulas de exclusão da garantia do seguros, nada apontando ali para a exclusão a responsabilidade em situações como a que nos ocupa.
Mas ainda que tal seguro facultativo cobrisse apenas as situações de choque, capotamento ou colisão, nem por isso se poderia ter por excluída a responsabilidade da R., já que os danos emergiram para evitar uma colisão, cujos efeitos seriam, segundo as regras da experiência, muito provavelmente, mais graves do que os que se verificaram, sendo absolutamente consentido e justificado o esforço que o condutor efetuou para a evitar.
Só por absurdo se admite que uma seguradora suporte os danos de uma colisão e não responda pelos danos necessários a preveni-la em face da sua iminência, como que fomentando e respondendo por mal maior, por todos indesejável. Na responsabilidade por colisão, contratualmente assumida pela R., está necessariamente incluída a responsabilidade pela conduta do condutor do veículo seguro necessária a prevenir ou a evitar a colisão iminente.
Improcede, assim, a primeira questão da apelação.
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2. Reparação do veículo ou indemnização pela sua perda total
Alega a R. que, tendo sido considerado o veículo como perda total, a indemnização não pode ser fixada em função do orçamento realizado para a sua reparação. Daí que a sentença deveria ter atendido às tabelas anexas de desvalorização e obtido a quantia de € 8.500,00 por os salvados terem ficado em poder da A., e não devia ter fixado a indemnização de € 22.000,00 correspondente ao custo da reparação.
Considera que, àquele valor de € 8.500,00, ainda há que deduzir a quantia equivalente a 2% (€ 170,00) correspondente à franquia contratada, fixando-se esta indemnização em € 8.330,00.
Pois bem.
Analisada a contestação, percebe-se que o veículo seguro foi considerado perda total pela R. seguradora. Foi ela que alegou esse facto naquela sua peça processual (ponto 14), tendo acrescentado que comunicou à A. essa qualificação do dano no dia 9.12.2009. Porém, a R. não logrou provar tal comunicação, ou seja, não provou que o facto de ter considerado a perda total chegou ao conhecimento da A. antes da notificação da contestação (parte do quesito 15º) e, muito menos, que concordaram nessa conclusão.
Por outro lado, da prova daquela “consideração” não resulta o facto provado “perda total do veículo” que, de resto, sempre seria conclusivo.
Dispõe o art.º 566º, nº 1, do Código Civil que “a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”.
A reposição natural tem foro de prioridade; faculta ao lesado uma tutela mais perfeita do seu direito. Impõe-se ao devedor, que só pode contrariá-la invocando as circunstâncias previstas no art.º 566.º, n.º 1, do Código Civil (mostrando que a reconstituição natural não é possível ou que é excessivamente onerosa para ele).
Deve entender-se que a restauração in natura é excessivamente onerosa para o devedor quando houver uma manifesta e flagrante desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural importa para o devedor. A onerosidade deve apreciar-se em termos amplos, considerando-se inclusivamente legítimos interesses de ordem moral ou sentimental, de tal modo que, para se concluir pela excessiva onerosidade da reparação de um veículo não basta atender ao valor venal do veículo, sendo ainda necessário considerar o valor de uso do seu proprietário. Um veículo muito usado e com um valor comercial muito diminuto pode, não obstante, satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor comercial, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades, não reconstituindo a situação que o lesado teria se não fosse o facto gerador do dano. Daí que, a excessiva onerosidade se deva aferir, não pela diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas entre aquele preço e o valor que o veículo representa dentro do património do lesado, o valor patrimonial do veículo.
Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 20.4.2010 [7], “só existe excessiva onerosidade para o devedor quando se lhe impõe um encargo desmedido, que atente gravemente contra os princípios da boa fé, traduzindo uma grande desproporção entre o interesse do lesado e o custo da reparação natural para o responsável”.
Sendo a restauração natural imposta no interesse de ambas as partes, como modo normal de indemnização, se o credor reclama a restauração natural, é ao devedor que pretenda contrapor-lhe a indemnização pecuniária que cabe alegar e provar que a restauração natural resulta excessivamente onerosa para ele. Resulta da regra geral consagrada no art.º 342º do Código Civil, que ao credor cabe a prova do princípio, que é a restauração natural, e ao devedor a prova da exceção, ou seja, que a restauração natural é excessivamente onerosa para si.
Aplicando o critério legal enunciado (primado da reparação in natura) a uma situação de indemnização por acidente de viação, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu em acórdão de 4.12.2007 [8], cujo sumário se transcreve, que à seguradora cumpre a prova da excessiva onerosidade, suscetível de afastar o princípio em causa, e que a mesma tem em conta dois fatores: o preço da reparação e o valor, não o venal, mas o patrimonial [9]:
“1 - Em matéria da obrigação de indemnização por danos o princípio, a regra, é a restauração natural; a excepção é a indemnização por equivalente.
2 - Aplicando à situação as regras básicas do ónus da prova, ao Autor cabe a prova do princípio, à Ré cabe a prova da excepção.
3 - Ao autor, que viu o seu automóvel danificado em acidente de viação, cabe a prova do em quanto importa a sua reparação, restaurando in natura o veículo danificado; à Ré seguradora, que acha essa reparação excessivamente onerosa, cabe a prova disso mesmo - que a reparação é não apenas onerosa, mas excessivamente onerosa.
4 - Um dos pólos da determinação da excessiva onerosidade é o preço da reparação; o outro não é o valor venal do veículo mas o seu valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado.
5 - Se a ré seguradora quer beneficiar da excepção não lhe basta «encostar-se» ao valor venal; antes precisa de alegar e provar que o autor podia adquirir no mercado, e por que preço, um outro veículo que igualmente lhe satisfizesse as suas necessidades «danificadas»”.
O critério previsto no art.º 41º do Decreto-lei nº 291/2007, de 21 de agosto (Lei do Seguro Obrigatório) não se sobrepõe ao critério previsto no Código Civil. Entende-se que serve apenas a configuração da “proposta razoável” de acordo entre seguradora e lesado no âmbito dos acidentes de viação para as situações e perda total do veículo. Destina-se a agilizar o acertamento extrajudicial da responsabilidade. Tal entendimento resulta desde logo da sua integração sistemática - Cap. III “Da regularização dos sinistros” – disciplinando o legislador no capítulo em causa (art.ºs 31º a 46º) as regras para apresentação por parte do responsável pela indemnização, da “proposta razoável” prevista nos artigos 38º e 39º. [10]
Na vigência do Decreto-lei nº 291/2007 de 21 de agosto, tal como já acontecia quando vigorava o Decreto-lei nº 83/2006, o critério de definição de “perda total” revela-se apenas aplicável no âmbito da regularização extrajudicial do conflito através do procedimento de apresentação da “proposta razoável” prevista nos artigos 38º e 39º, “não podendo, em sede de discussão judicial, generalizar-se a sua aplicação de forma a sobrepor-se, ou a revogar, os princípios decorrentes do confronto do art.º 562.º com o n.º 1 do artigo 566.º do Código Civil, nomeadamente no que se refere ao ónus que impende sobre a seguradora (ou de quem a substitui), de provar a excessiva onerosidade, suscetível de afastar o princípio da reparação in natura, considerando dois fatores: o preço da reparação e o valor, não o venal, mas o patrimonial, como já observámos.[11]
Se não houver acordo, e se houver necessidade de recorrer às vias judiciais, a determinação da espécie e do quantum da indemnização passam a ser regulados pelos regras e princípios gerais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnização, entre os quais avultam, de um lado, o princípio da reparação in natura e, de outro, o princípio da reparação integral do dano, ficando afastada a aplicação dos critérios previstos no Capítulo III do Decreto-lei nº 291/2007, designadamente o art.º 41º.
Não estão provados factos que permitam seguir o critério geral do art.º 566º, nº 1, do Código Civil, designadamente a idade, quilómetros percorridos, valor do uso ou utilidade para o lesado e o estado do veículo à data do acidente de viação, ou mesmo a situação em que se encontraria na data da discussão em 1ª instância ou em qualquer outro momento, acaso o acidente não tivesse ocorrido, atendendo à normalidade das coisas.
No caso em apreço, depois de, no art.º 2º da apólice, se prever, como objeto das garantias do seguro, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo automóvel (seguro obrigatório), previu o art.º 3º do mesmo instrumento o alargamento das coberturas do contrato de seguro a outros riscos ou garantias (coberturas facultativas), de harmonia com as coberturas e exclusões constantes das Condições Especiais que foram contratadas, ali se prevendo o seguro por danos próprios no veículo.
Tratando-se de um seguro facultativo, a recorrente invoca a aplicação do contrato, designadamente o art.º 14º-B–2.2.2. (pág. 6 das cláusulas contratuais gerais) para justificar a perda total do veículo e não a definição do art.º 41º da Lei do Seguro Obrigatório.
É sabido que o contrato de seguro impera a liberdade contratual, tendo caráter supletivo as regras constantes do regime aprovado pela Lei do Contrato de Seguro (Decreto-lei nº 72/2008, de 16 de abril), com os limites indicados naquela lei e os decorrentes da lei geral. Já no âmbito de aplicação do art.º 427º do Código Comercial, o contrato de seguro se regulava primordialmente pelas estipulações da respetiva apólice.
Segundo o referido ponto 2.2.2., “em caso de actualização do valor seguro do veículo convencionada de acordo com tabelas de desvalorização mensal, o valor seguro do veículo nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato considera-se – para efeitos de determinação do valor da indemnização a pagar em caso de perda total – automática e sucessivamente alterado de acordo com a tabela de desvalorizações periódicas que será aplicável em função do tipo de veículo e respectivo enquadramento nas classes tarifárias em vigor. Neste caso, os critérios de actualização do valor do veículo – a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total – adoptados na elaboração das referidas tabelas de desvalorizações periódicas automáticas e anexas às Condições Contratuais são o valor em novo, tal como definido no artigo 1º, das Condições Gerais, e a idade das viaturas face ao ano e mês de 1ª matrícula.”
“A parte cuja pretensão processual não pode ter sucesso sem a aplicação de determinada norma jurídica suporta o ónus da alegação e da prova de que os elementos da facti species dessa norma se verificaram de facto na situação” ou, abreviadamente que “cada parte tem de alegar e provar os pressupostos da norma que a favorece”. [12]
Da al. n) dos factos provados consta que a apólice concede uma cobertura com um teto de € 25.000,00, correspondente ao valor do veículo seguro.
Ficou provado também que o custo da reparação foi orçamentado em € 22.000,00, valor este que é inferior àquele.
Diz-nos agora, nas alegações de recurso que, à data do acidente --- 16.10.2009 --- e nos termos da tabela de desvalorização periódica automática para os veículos pesados, anexa às condições contratuais, o valor da perda total se fica pela quantia de € 8.500,00. [13]
Os factos provados não explicam nem confirmam aquele valor. Mesmo que se conclua pela aplicação pura e simples das tabelas previstas na apólice, os factos provados são insuficientes ao enquadramento da situação, faltando elementos essenciais para o efeito, como seja a idade do veículo, desde logo na própria contestação.
Diferente de se considerar haver uma perda total de um veículo nos factos provados (seja pela seguradora, seja por qualquer outro interessado) é estarem efetivamente alegados factos concretos (princípio do dispositivo/alegação) que permitam a discussão da questão, incluindo a aplicação das tabelas que agora invoca, desde logo em 1ª instância e, após, a prova [14], de onde extrairia o tribunal aquela conclusão.
Note-se que até o valor da perda total considerada pela R. só foi por ela indicado nas alegações do recurso.
Ao agir com as referidas limitações, a R. violou o princípio do contraditório e o disposto no então vigente art.º 264º, nº 1, do Código de Processo Civil (revogado). E o tribunal não pode, por falta de elementos de facto, concluir pela perda total do veículo.
O que, verdadeiramente, está provado é que resulta da apólice que a cobertura do seguro tem um limite contratual de € 25.000,00, correspondente ao valor do veículo seguro e que a reparação dos danos no veículo foi orçamentada em € 22.000,00, valor este inferior ao valor daquela avaliação, justificando-se --- na falta de prova de factos conducentes à perda total --- a reparação do veículo, designadamente à luz do art.º 566º do Código Civil, por não ter sido feita prova de que a mesma é excessivamente onerosa para a R. seguradora.
Improcede também esta segunda questão da apelação.
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3. Dever de indemnizar por privação do uso do veículo
Passou, finalmente, a recorrente a discordar “da interpretação que a M.ma Juiz a quo fez da cláusula de exclusão atinente aos danos de privação de uso do veículo”. Na sua perspetiva, a factualidade provada restringe-se à estrita menção da privação do uso do veículo e respetivo período e, por isso, não podia o tribunal assumir que daí advieram despesas, condenando a R. no seu pagamento, relegando a sua quantificação para ulterior incidente de liquidação. Tal incidente pressuporia que ficasse já assente a existência do prejuízo, restando apenas a definição do seu montante.
A R. acrescenta que, em qualquer caso, a cláusula 3.3. al. i) das condições especiais do contrato de seguro afasta a reparação de tais despesas “por consubstanciarem cumulativamente lucros cessantes, perda de benefícios e resultados que a Autora deixou de auferir por força da dita imobilização”.
Extrai-se da referida cláusula contratual que a seguradora não garante os danos que “consistam em lucros cessantes, perda de benefícios ou de resultados advindos ao tomador do seguro ou ao segurado em virtude de privação de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro, em resultado do acidente”.
Diz-se na sentença que «a cláusula em questão refere-se a “lucros cessantes, perda de benefícios ou de resultados” e não a despesas que tenham sido suportadas pela privação do uso em resultado do acidente, aquilo de que se trata no caso dos autos. Com efeito, a quantia peticionada pela autora a título de privação do uso do veículo, não se refere a quaisquer lucros cessantes, a perda de benefícios ou de resultados, mas antes a despesas que teve de suportar para substituir o veículo em questão, e que por si todos os dias era utilizado na sua atividade comercial».
Pois bem…, dos factos provados consta simplesmente, muito simplesmente, que “além dos referidos danos [15], a A. ficou privada do uso do veículo, que utilizava diariamente na prossecução da sua atividade, que é o transporte rodoviário de mercadorias, de 16 de Outubro de 2009, até à data em que a ré declinou a sua responsabilidade, a 12 de Janeiro de 2010”.
Nem este facto, nem a oportuna liquidação incidental determinada no dispositivo da sentença contrariam a citada cláusula de exclusão de responsabilidade da R., como vamos ver.
Sob o artigo 20º da petição inicial, a A. alegou que ficou privada do uso do veículo que utilizava diariamente na prossecução da sua atividade, que é o transporte rodoviário de mercadorias, cujo prejuízo ascendiam a € 16.248,32, à data em que a R. declinou a sua responsabilidade, prejuízo que tem sido suportado pela A. Acrescentou que “o referido montante foi alcançado através do número de dias de paralisação do veículo, calculados desde a data do acidente, de 16 de Outubro de 2009, até à data em que a R. declinou a sua responsabilidade, a 12 de Janeiro de 2010, à razão de €184,64 por dia (88 dias X €184,64)”.
Não concretizou, não explicou, o real significado da quantia diária de € 184,64 utilizada no cálculo que efetuou. Será o que deixou de auferir (lucro cessante) por causa da paralisação do veículo? Será que consiste no valor que teve que gastar no aluguer de outro veículo?
Não sabemos, é certo. Mas também não tem interesse para este processo porque tal facto foi dado como não provado (parte do quesito 9 da base instrutória).
Obviamente que, acaso se admita a oportuna liquidação, esta não pode contemplar prejuízos cuja reparação esteja excluída pela referida cláusula contratual, como sejam os danos que “consistam em lucros cessantes, perda de benefícios ou de resultados advindos ao tomador do seguro ou ao segurado em virtude de privação de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro, em resultado do acidente”. Tal interpretação só poderá concretizar-se quando se identifiquem exatamente os danos em causa. O art.º 609º, nº 2, do Código de Processo Civil pressupõe o apuramento da existência de dano ou danos [16].
O que se nos impõe saber aqui é se há elementos de facto provados que permitam a oportuna liquidação incidental ou se, pela sua falta, não há sequer que relegar a questão da sua determinação para momento ulterior.
Não há indemnização sem dano. Este é um dos pressupostos indispensáveis da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar (art.ºs 483º e seg.s e 562º e seg.s do Código Civil).
Será a privação do uso de um veículo que se utilizava diariamente no exercício da atividade comercial da A., sociedade comercial, um dano, só por si, indemnizável?
Na verdade, não estão provados outros factos de onde se concluir a existência de outros danos, nem sequer sob a forma de despesas que a A. tivesse alegado, sendo certo que até deduziu um pedido líquido.
O lesante ou a seguradora responsável nos termos do contrato de seguro, deve reparar todos os prejuízos causados ao lesado que merecerem a tutela do direito de modo a colocá-lo na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão.
Temos para nós que a privação do uso de veículo poderá constituir uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. A privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito. [17]
No caso, a ofensa ao direito de uso e fruição inerente ao direito de propriedade da A. configura-se com a sua indisponibilidade de uso daquele veículo num determinado período de tempo, vendo-se impossibilitada de o utilizar diariamente --- como vinha fazendo antes da data do acidente --- na sua atividade comercial.
Com efeito, não só ocorre aquele dano patrimonial, como também se constituiu a R. no dever de o reparar.
A determinação do quantum indemnizatório foi relegada para oportuna liquidação e, não sendo esta uma questão do recurso, transitou em julgado (art.º 635º, nº 5, do Código de Processo Civil), não cabendo aqui decidir qual o valor a atribuir à A. àquele título nem a forma de o encontrar (equidade ou apuramento de prejuízos que venham a ser concretizados na liquidação).
Desta feita, improcede também esta questão objeto do recurso.
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A recorrente cita, nas conclusões das alegações, o art.º 615º, nº 1, al. c), do Código de Processo Civil, ou seja, um fundamento de nulidade da sentença.[18] Todavia, nem nas alegações nem na respetiva síntese conclusiva aduz qualquer argumentação que justifique aquela citação, pelo que se tem a mesma como inconsequente.
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SUMÁRIO (art.º 63º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. Ao aplicar o Direito, o tribunal é livre na interpretação e aplicação de um contrato de seguro facultativo celebrado e invocado entre as partes, e em vigor na data do dano.
2. A cobertura de um seguro facultativo por colisão do veículo (danos próprios) abrange necessariamente os danos emergentes da manobra que o respetivo condutor teve que realizar, adequadamente, para evitar a colisão iminente com outro veículo que circula em contramão.
3. A perda total de um veículo, na sequência de danos sobrevindos em acidente de viação passa pelo cumprimento dos ónus de alegação e prova dos factos conducentes a essa classificação --- que deles deve ser extraída, positiva ou negativamente, na sentença --- com o respeito devido pelo contraditório que assiste à parte contrária.
4. Provado que “a A. ficou privada do uso do veículo, que utilizava diariamente na prossecução da sua atividade, que é o transporte rodoviário de mercadorias, de 16 de Outubro de 2009, até à data em que a ré declinou a sua responsabilidade, a 12 de Janeiro de 2010”, tal facto constitui uma ofensa ao direito de propriedade da demandante e, como tal, representa um dano indemnizável.
IV.
Pelo exposto, de facto e de Direito, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas da apelação pela R. recorrente.
Guimarães, 21 de maio de 2015
Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida
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[1] Por fusão e alteração da denominação social.
[2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[3] Por transcrição.
[4] Por transcrição.
[5] A possibilidade de continuar a desenvolver essa defesa para além dessa fase, mas por factos anteriores, conduziria à invalidação do benefício trazido pela sentença à parte vencedora, quiçá, à destruição do caso julgado criando as condições para a perturbação, ineficácia e invalidade persistente das decisões, sem estabilidade nem segurança no direito.
[6] Na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.7.2007 e da Relação de Coimbra de 14.12.2006, cujo sumário se transcreve em Abílio Neto, Código de Processo Civil anot. 21º edição, pág. 1002 e ainda ac. STJ de 28.4.2010, proc. 2619/05.4TTLSB, ac. STJ de 3.02.2011, proc. 29/04.0TBBRSD, ac. STJ de 12.5.2011, proc. 886/2001.C2.S1 e ac. Rel. de Coimbra de 29.5.2012, proc. 37/11.4TBMDR.C1, todos in www.gde.mj.pt, e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª Edição, pág. 153 a 158.
[7] Colectânea de Jurisprudência, T. II, pág. 115. No mesmo sentido, acórdão da mesma Relação de 16.09.2014, proc. 1594/11.0TBFIG.C1, in www.dgsi.pt.
[8] Proc. n.º 06B4219, in www.dgsi.pt.
[9] No mesmo sentido, acórdão do STJ, de 12.02.2004, proc. n.º 03A4468, in www.dgsi.pt.
[10] Acórdão da Relação de Coimbra de 15.11.2011, proc. 91/09.9TBALB.C1, in www.dgsi.pt.
[11] Acórdão da Relação de Coimbra de 09.01.2012, proc. 153/11.2TJCBR.C1, in www.dgsi.pt., que aqui seguimos de perto.
[12] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de …., citando Rosenberg apud Pedro Múrias, Por uma distribuição fundamentada do ónus de prova, Lisboa, 2000, p. 43-44.
[13] E também não sabemos se a eventual desvalorização do veículo foi acompanhada de progressiva redução dos prémios, embora para aqui não releve especialmente.
[14] O ónus da prova é precedido do ónus de alegação, este deve ser cumprido com a afirmação dos factos.
[15] Os danos resultantes da perda da carga e os danos materiais sofrido no semirreboque.
[16] Entre outros, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.2007, proc. 07B210 e acórdão da Relação de Coimbra de 3.10.2006, proc. 497/2000.Cl, in www.dgsi.pt.
[17] Neste sentido, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2011, proc. 3922/07.2TBVCT.G1.S1 e de 08.05.2013, proc. 3036/04.9TBVLG.P1.S1, in www.dgsi.pt, citando-se, no segundo, outra jurisprudência, nomeadamente os acórdãos do mesmo Tribunal 5 de Julho de2007, proc. nº 07B1849, e de 10 de Setembro de 2009, proc. nº 376/09.4YLSB, também publicados na referida base de dados. Também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2008, Colectânea de Jurisprudência do S., T. I, pág. 90, citando Direito das Obrigações do Prof. Menezes Leitão, vol. I, pág. 317, Cadernos de Direito Privado, anotação do Prof. Júlio Gomes, nº 3, pág. 62 e Temas, do Desembargador Abrantes Geraldes, vol. 1, pág. 90 e 91. E ainda acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2005, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, XIII, III, pág. 151, onde se contém vasta recensão jurisprudencial no sentido sustentado, e o acórdão desta Relação de Guimarães de 11.11.2009, proc. 8860/06.5TBBRG.G1, in www.dgsi.pt.
Não olvidamos alguma jurisprudência, designadamente no Supremo Tribunal de Justiça --- de que são exemplo os acórdãos daquele Alto Tribunal de 16.9.2008, de 30.10.2008 e de 12.1.21012, in www.dgsi.pt --- no sentido do reforço das exigências de prova dos prejuízos emergentes da paralisação do veículo.
[18] "Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível"