Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1424/22.8T8GMR.-A.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: INVENTÁRIO
BENS DOADOS
COLAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Qualquer verba que seja doada pelo autor da sucessão a um dos filhos deve depois, em sede de inventário, ser relacionada. É o que se chama colação, regulada no art. 2104º,1 CC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível ... - Juiz ..., corre termos processo de inventário em que o interessado AA veio reclamar da relação de bens apresentada pelo seu irmão e cabeça de casal BB, pugnando pela sua alteração; para tanto, alegando excesso e a falta de bens relacionados (um crédito que não existe e bens móveis e rendas que existem).
Indicou meios de prova.
           
O Cabeça de Casal respondeu, mantendo o crédito relacionado, reconhecendo a falta de alguns bens móveis, negando a existência de outros e relegando para prestação de contas a questão das rendas.
Indicou meios de prova.
O incidente foi recebido e designada data para a produção de prova.

Após, a 16.10.2023 foi proferida sentença que julgou o incidente de reclamação à relação de bens parcialmente procedente e, por via disso, decidiu:

a) Condenar o Cabeça de Casal a relacionar os bens id. em 1 dos factos provados;
b) Condenar o Cabeça de Casal a corrigir a descrição das verbas 46, 47 e 49 conforme factos provados 2 a 4;
c) Condenar o Cabeça de Casal a eliminar da relação de bens a verba n.º 1 onde se relaciona um crédito da herança sobre o Interessado AA;
d) Absolver o Cabeça de Casal do demais peticionado.

No mais, condenou Reclamante e Cabeça de Casal no pagamento das custas devidas pela presente acção, na proporção do respectivo decaimento (10%-90%).
           
BB, o cabeça de casal nos autos, não se conformando com tal decisão, veio da mesma interpor recurso, ao abrigo do disposto no art. 644º,1,a CPC, recurso esse de apelação, que foi recebido com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo – cfr. artigos 629º,1, 630º, a contrario sensu, 631º,1, 638º,1, 641º,1, 644º,1, alínea a), 645º,2, 647º,1, e 1123º,1,2, alínea b), todos do Código de Processo Civil.

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

A) A simples afirmação «Impugna-se o teor do documento» não configura uma real impugnação da letra ou assinatura ou da genuinidade do documento, pelo que dizer aquilo ou nada é a mesma coisa.
B) A letra e assinatura «consideram-se verdadeiras» quando reconhecidas ou não impugnadas.
C) Em face da prova produzida é obrigatório concluir que o documento foi elaborado pelo Autor da herança, CC e assinado a posteriori, pelo reclamante AA e pelo seu cônjuge DD (vide depoimento do interessado AA, minutos 00:14:24, 00:14:44, 00:16:46 e 00:18:35, acima transcrito artigo 17º, da testemunha DD, minutos 00:01:20, 00:02:21 e 00:02:57, acima transcrito artigo 18º e da testemunha EE, minutos 00:05:13, acima transcrito artigo 19º.)
Impunha-se, pois, dar como provada a matéria do ponto B dos factos dados como não provados, ou seja, que a declaração junta como documento ... com a relação de bens foi da manuscrita pelo de cujus CC que, posteriormente, a apresentou e fez assinar pelo reclamante AA e pelo seu cônjuge DD.
D) Da não impugnação do documento pelo interessado AA, alegando que foi forjado ou que não é genuíno, decorre considerar-se reconhecida a autoria do documento (art.º 374.º), que as declarações dele constantes são reais (art.º 376.º, n.º 1).
E) Mas, a verdade é que a assinatura do documento foi reconhecida pelo AA como sendo sua (vide depoimento do interessado AA, minutos 00:14:24, 00:14:44, 00:16:46 e 00:18:35, acima transcrito artigo 29º, da testemunha DD, minutos 00:01:20, 00:02:21 e 00:02:57, acima transcrito artigo 30º e da testemunha EE, minutos 00:05:13, acima transcrito artigo 31º).
F) Ora, consideram-se provados os factos compreendidos na declaração na medida em que sejam contrários aos interesses do declarante (art.º 376.º, n. 2).
G) A consideração da prova plena dos factos constantes da declaração deverá basear-se nas regras da confissão, enquanto meio de prova, pelo que, tendo sido feita à parte contrária ou a quem a representa, tem força probatória plena, nos termos do disposto nos artigos 358º, n.º 2 e 373º, ambos do Código Civil.
H) Recai, pois, sobre o confitente, neste caso o reclamante e não sobre o cabeça de casal, o ónus da prova da inveracidade da declaração confessória, pelo que errou a douta sentença ao entender que “assim, cabia a este demonstrar que o documento era verdadeiro… o que não aconteceu…”
I) A prova da inveracidade, defronta-se com as limitações ao nível do direito probatório material no que concerne à apresentação de prova testemunhal ou ao uso de presunções judiais (arts. 393.º, n.º 2, e 351.º), mas somente admissíveis quando existir outro meio de prova, maxime documental.
J) É sempre ónus da parte contra quem o documento é apresentado, neste caso o reclamante AA alegar e provar os vícios que impedem a utilização do documento como meio de prova com força probatória plena.
K) O documento junto pelo cabeça de casal com a relação de bens é claríssimo quanto ao seu conteúdo, não havendo outra interpretação possível senão extrair do mesmo que o reclamante AA e mulher se consideram devedores perante os autores da herança da quantia de 80.000,00 Euros.
L) Acresce que, quer as declarações do reclamante, quer da demais prova testemunhal resulta que essa quantia foi, efectivamente recebida pelo reclamante e seu cônjuge (vide depoimento do interessado AA, minutos 00:17:24, 00:18:45, 00 19:25, acima transcrito artigo 58º, da testemunha DD, minutos 00:02:16 e 00:02:57, acima transcrito artigo 58º e da testemunha EE, minutos 00:03:45, 00:04:28, 00:04:43 e 00:05:13, acima transcrito artigo 59º). Errou, pois, a douta sentença ao dar como não provado que “C. Os inventariados entregaram dinheiro ao interessado AA e mulher e estes obrigaram-se a restituir-lhes tal dinheiro.” devendo dar-se como provado que o de cujus CC entregou ao interessado AA e mulher DD, a quantia de 80.000,00 Euros, quantia essa de que se confessaram devedores.
M) O recebimento por parte do reclamante AA da quantia de 80.000,00 Euros, que lhe foi entregue pelo pai, quantia de que se reconheceu devedor e a circunstância de o co-interessado poder ter recebido do mesmo pai a quantia de 100.000,00 Euros são coisas bem distintas.
N) Quantias que tenham sido doadas aos dois descendentes do Autor da herança devem, caso sejam relacionadas, ser restituídos à massa da herança, para igualação da partilha.
O) Quer se considere que estamos perante um mútuo, como resulta claramente da declaração, quer de uma doação, como o configura o reclamante e o cônjuge nos seus depoimentos, que não na reclamação, sempre teria esse valor que ser, como foi relacionado.
Termos em que, revogando-se a douta sentença, substituindo-se por outra que mantenha a relação de bens, tal qual foi apresentada, no que concerne à verba n.º 1, correspondente ao crédito no valor de 80.000,00 Euros (oitenta mil euros), sobre o interessado AA e mulher DD, referente a mútuo realizado pelos autores da herança em 20 de Setembro de 2002 far-se-á inteira e sã JUSTIÇA!

O recorrido contra-alegou, dizendo, em síntese, o seguinte:
O Recorrente também sabe que os inventariados quiseram, ainda em vida, ajudar financeiramente cada um dos seus dois filhos, mas sempre de forma igualitária, na aquisição que cada um fez de um apartamento, sendo o do interessado BB na Rua ..., ... (que ainda lhe pertence desde e que o mesmo tem arrendado), e o do aqui reclamante na Travessa ...., ..., ..., onde ainda hoje reside.
Caso tivesse existido um mútuo e de valor tão substancial (€ 80.000,00) teria sido outorgada a competente escritura pública (artigo 1143º do Código Civil), o que não sucedeu, pela simples razão de que os inventariados não emprestaram quaisquer quantias ao aqui recorrido e à cônjuge.
Como ficou bem patente na sentença, quer o depoimento do aqui recorrido, quer o da sua mulher e, em especial, o da tia e madrinha do cabeça-de-casal foram claros e objectivos e, por isso, credíveis, em afirmar que não houve qualquer empréstimo, pois o que os pais, sogros e parentes quiseram foi ajudar ambos os filhos e por igual, tendo ajudado o AA com a entrega sem contrapartidas com € 80.000,00 e o BB com €100.000,00 (titulando este a compra de um apartamento, porque os inventariados a esse tempo já só viviam de reformas e tinham que ser financiados para que a ajuda se concretizasse).
Por todo o exposto, na falta de prova cabal, a não prova da veracidade do documento e, outrossim, por prova suficiente, a não prova da existência de um mútuo entre os inventariados e o aqui recorrido.
Falecem, assim, as conclusões A a O do recorrente, não merecendo a sentença proferida qualquer censura, pelo que a mesma deverá ser integralmente mantida.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a única questão a decidir consiste em saber se a verba nº 1 do activo da relação de bens deve manter-se ou ser retirada.

III
A sentença considerou provados os seguintes factos:

1. À data do óbito da mãe dos Interessados, esta tinha:

a) 1 serviço de chã banhado a prata com 5 peças (tabuleiro com asa + cafeiteira + bule + leiteira + açucareiro), sem valor apurado mas estimado em € 1.500;
b) 1 centro de lesa com pé de prata, no valor estimado de € 200,00;
c) decorações diversas, tais como pratos de parede e “meninos” de porcelana, no valor estimado de € 200,00;
e) 2 televisões, no valor estimado de € 300,00;
f) vários cortes/tábuas de tecidos para confecção de vestuário, no valor estimado de € 300,00;
g) Diversas roupas têxteis lar, tal como toalhas bordadas pela inventariada.
2. A verba n.º 49 consiste em 3/34 da fração autónoma sita na Praça ..., União de Freguesias ..., ... e ..., correspondente a cave ampla destinada a garagem, designada pela letra ..., inscrita na matriz sob os n.º ...35 e ...60, descrita na CRPredial ... sob o n.º ...54, com o valor patrimonial de € 5.621,82.
3. A verba n.º ...6 consta na matriz com o valor patrimonial de € 128.735,00;
4. A verba n.º ...7 consta na matriz com o valor patrimonial de € 86.130,00;

E foram considerados Não Provados:

A. Aquando do óbito da inventariada, esta tinha:
a. 2 dentes de elefante em marfim, no valor estimado de €300,00, que foram levados pelo Interessado AA em vida da mãe
b. 2 máquinas de costura, no valor estimado de €200,00
c. 2 casacos de pelo atrakhan (um preto e um bege) no valor de € 1.000,00
d. 1 casaco de pêlo cumprido (vison), no valor estimado de € 2.000,00
e. Diversas peças em ouro, tais como pulseiras, anéis e um trancelim, no valor estimado de € 2.500,00.
B. A autoria da declaração, dizeres e conteúdo, junta sob doc. n.º ... com a relação de bens.
C. Os inventariados entregaram dinheiro ao interessado AA e mulher e estes obrigaram-se a restituir-lhes tal dinheiro.

IV
Conhecendo do recurso.

Como é sabido, há regras apertadas para poder impugnar a decisão sobre matéria de facto, que constam do art. 640º CPC.
No caso concreto, o recorrente indica de forma clara quais os pontos de facto que considera mal julgados e quais as respostas que entende que o Tribunal deveria ter dado aos mesmos, e indica em concreto os meios de prova que em seu entender deveriam ter levado a decisão diversa.
Podemos pois conhecer desta parte do recurso.
Vejamos.
Está em causa neste recurso a verba nº 1 do activo da herança, assim relacionada: “crédito no valor de 80.000,00 Euros (oitenta mil euros) em 20 de Setembro de 2002, sobre o interessado AA e mulher DD, referente a mútuo realizado pelos autores da herança” (Doc....)
A discordância do recorrente está circunscrita aos pontos B e C dos factos não provados, que ele entende que têm de ser considerados provados.

Recordemos os mesmos:
“B. A autoria da declaração, dizeres e conteúdo, junta sob doc. n.º ... com a relação de bens.
C. Os inventariados entregaram dinheiro ao interessado AA e mulher e estes obrigaram-se a restituir-lhes tal dinheiro”.

Em primeiro lugar, vejamos a fundamentação do Tribunal recorrido para ter dado estes factos como não provados.
Escreve o Tribunal: “quanto ao alegado mútuo e direito de crédito relacionado, tal circunstancialismo mereceu resposta negativa seja porque o documento que o indiciava ter sido expressamente impugnado em toda a sua extensão pelo interessado AA, rejeitando qualquer participação nele, e a parte que o apresentou, o Cabeça de Casal BB, não ter logrado fazer prova da sua veracidade (art.º 374.º do CC). É certo que a mulher do interessado AA, DD, confirmou que assinou papeis ao tempo da mudança de apartamento, admitindo ter sido aquele, porém, manifestou desconhecer o seu concreto conteúdo, o que foi corroborado pelo interessado AA. Note-se, ainda, que, para fazer valer a inversão do ónus da prova prevista pelo art.º 458.º do mesmo Diploma Legal, relevava a demonstração da veracidade da declaração junta aos autos. Sem prejuízo, quer o depoimento de AA como o da sua mulher e, em especial, o da sua tia e madrinha do Cabeça de Casal foram claros e objectivos e, por isso, credíveis, em afirmar que não houve qualquer empréstimo, pois o que os pais, sogros e parentes quiseram ajudar ambos os filhos e por igual, tendo ajudado quer o AA com a entrega sem contrapartidas com € 80.000,00 e o BB com €100.000,00 (titulando este a compra de um apartamento, porque os inventariados a esse tempo já só viviam de reformas e tinham que ser financiados para que a ajuda se concretizasse). Contrariamente à objectividade e clareza destes depoimentos, foi o depoimento do Cabeça de Casal, que se mostrou manifestamente interessado e não suportado ou corroborado em nenhum meio de prova, podendo-o ter sido (desde logo, pelo depoimento das suas ex-mulheres, por exemplo, ou da empregada da casa onde a mãe vivia…). Por conseguinte, na falta de prova cabal, a não prova da veracidade do documento e, outrossim, por prova suficiente, a não prova da existência de um mútuo entre os inventariados e o interessado AA”.

Quanto ao documento onde o recorrente assenta a sua pretensão, o mesmo consiste numa declaração manuscrita, com o seguinte teor:

Declaração
Declaramos que devemos 16.000.000$00 (80.000 €) aos meus Pais e Sogros, respectivamente.
Este dinheiro entra em conta na herança de Família.
No caso de falecimento de CC e de FF, continua esta declaração a ser válida.
Esta quantia em dinheiro não vence juros.

..., 20 de Setembro de 2002

* AA
* DD

Para além do documento propriamente dito, a prova que foi produzida resumiu-se ao depoimento de parte de BB, o cabeça de casal, AA, o reclamante, depoimento da esposa deste, DD, e ainda de EE, tia de ambos.
O cabeça de casal, naturalmente, confirmou o que fez constar da relação de bens. Afirmou que houve um empréstimo dos pais ao seu irmão, em 2002, de 80.000 euros. O pai chamou-os lá para irem assinar o documento, ele e a esposa. E eles foram lá a casa e assinaram, a contragosto, mas assinaram. Mais disse que o irmão precisava de dinheiro para comprar outro apartamento para ir morar, porque os pais venderam o imóvel onde ele residia. Quanto à fracção onde ele próprio reside, declarou que fez a escritura em 2001, com recurso a crédito, e os pais foram seus fiadores, embora não o tenham ajudado a pagar as mensalidades.
Já o reclamante, AA, disse, em resumo, o seguinte: “essa declaração é um mero pró-forma, eu nem sabia o que estava a assinar, eu nem li detalhadamente, foi na sequência da compra de um apartamento para o meu irmão feita pelos meus pais, o apartamento dos meus pais estava a precisar de obras, e os meus pais entenderam vender o apartamento, e facultaram-me essa importância como contrapartida da compra do apartamento para o meu irmão. Ou seja, deram-me esse dinheiro. Assinei de boa-fé. A letra no documento é do meu pai. Quando assinei o documento já tinha recebido os 80.000 euros. Não vi mal nenhum, ele disse: assina aqui, e eu assinei. Quis deixar bem claro que não se tratava de um empréstimo, foi a contrapartida de ter comprado um apartamento ao seu irmão.
Quanto ao imóvel onde o seu irmão e cabeça de casal reside, declarou que eram os pais de ambos que pagavam as prestações do crédito usado na sua aquisição.
Foi ouvida a esposa do reclamante, DD, que declarou, em síntese, que “como o sogro já tinha oferecido um apartamento ao seu cunhado, ele vendeu o apartamento onde eles moravam e com esse dinheiro deram entrada para um apartamento novo. Essa declaração nós assinámos de boa-fé, e ele disse que isso era um papelinho que ficava para mostrar que vocês já têm uma parte da herança”. Mais acrescentou que o apartamento do cabeça de casal tem vindo a ser pago pelos seus sogros até à data de hoje, ou seja, continua a ser através das reformas da sogra que o cabeça de casal paga o apartamento, que até foi mais caro que os € 80.000,00.
E finalmente foi ouvida como testemunha EE, irmã da falecida mão dos dois interessados, e madrinha do cabeça de casal BB: esta testemunha entrou logo como se costuma dizer, “a matar”, dizendo a abrir que “o BB não é correcto, é vigarista, quer roubar o irmão, e isto não é correcto”.
Concretizando, declarou que o cunhado desabafava com ela; ele tinha um apartamento e quando o AA casou deixou-o ir para lá viver. Mas ele precisava de obras, então o cunhado deixou-os vender o apartamento e deu os 80 mil euros para dar entrada de um apartamento maior. Que eles compraram. Ele já tinha comprado um apartamento para o BB no valor de 100.000 euros para ficarem mais ou menos equiparados.
Quanto ao documento junto aos autos e supra-referido, declarou que o cunhado deu esse papel a assinar ao filho porque tinha medo que lhe acontecesse alguma coisa e o AA já tinha os 80.000 garantidos e o BB ficava com o apartamento por pagar.
Refere também que era o seu cunhado quem estava a pagar o crédito bancário do apartamento do BB.

Após este resumo de toda a prova produzida, uma primeira conclusão podemos já retirar. Tem razão o recorrente quando diz que a alínea B dos factos não provados deve passar a ser um facto provado. E com efeito, todas as pessoas ouvidas foram unânimes em dizer que quem teve a ideia de fazer aquele documento foi o pai dos interessados e ora de cuius. Assim, cremos poder afirmar que a autoria da declaração, dizeres e conteúdo, junta sob doc. n.º ... com a relação de bens, é do pai dos interessados, e o reclamante e esposa assinaram pelo seu punho o mesmo, como eles próprios reconheceram.
Coisa diversa é a interpretação a dar a tal documento.
Estamos perante um documento particular (art. 363º,1,2 CC).
E sabemos que a assinatura desse documento está reconhecida pelas pessoas a quem foi imputada, o ora reclamante e a sua esposa (art. 374º,1 CC). É o valor probatório formal.
Mas agora interessa saber o valor probatório material.

Como escreve Luís Filipe Pires de Sousa, in Direito Probatório Material, fls. 163, “o documento particular prova plenamente que a pessoa a quem é atribuído fez as declarações dele constantes, ou seja, a força probatória respeita somente à materialidade das declarações feitas no documento”.
Continua o mesmo autor: “provada a materialidade das declarações, há-que aquilatar em que medida é que as declarações vinculam o seu autor. Ou seja, há que distinguir entre as regras que regem a eficácia da prova documental e as regras que dispõem sobre a eficácia da prova documental e as regras que dispõem sobre a eficácia da prova documental em razão da declaração documentada. Conforme refere Vaz Serra, a eficácia probatória diz respeito somente à materialidade das declarações neles feitas ou dos factos neles referidos, não aos efeitos jurídicos que essas declarações ou factos possam produzir. Ora, dispor que os factos se consideram exactos na medida em que forem contrários aos interesses do autor do documento (…) não é estatuir acerca da força probatória do documento, mas acerca da eficácia dos factos nele mencionados”.

Escreve ainda o mesmo autor: “no que tange aos documentos particulares, rege o princípio da indivisibilidade segundo o qual os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (contra se: factos prejudiciais), sendo a declaração indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão (arts. 376º,2 e 360º). Ou seja, o valor probatório material dos factos documentados restringe-se àqueles que sejam desfavoráveis ao declarante porquanto, tratando-se de declarações de ciência, ninguém pode ser testemunha em causa própria e, tratando-se de declarações de vontade, ninguém poder constituir um título a seu favor. É necessário que os factos declarados sejam desfavoráveis ao declarante já no momento em que o escrito é produzido, sem o que a declaração dele constante não pode ser tida como proferida em contrário aos interesses do declarante (Acórdão do STJ de 7.3.2019, Rosa Coelho, 2293/10)”.
E, para terminar a citação deste autor, “a força probatória plena estabelecida no art. 376º,2 apenas se reporta inter partes, ou seja, nas relações entre declarante e declaratário, mas não no confronto de terceiros” (Acórdãos do STJ de 29.10.2019, Graça Amaral, 1012/15, Acórdão do TRL de 16/10/2014, Anabela Calafate, 179/06).
É também sabido que a força probatória plena qualificada não prova que as declarações são verdadeiras ou que não estão inquinadas por vícios da vontade.

Aplicando estas regras legais ao caso em apreço, o que concluir ?
Primeiro que é um adquirido que o reclamante e esposa assinaram aquele documento supra-referido, e logo, subscreveram as declarações nele constantes.
Mas podemos saí dar o salto para a conclusão que o recorrente pretende que seja retirada, que o reclamante e esposa se consideram devedores perante os autores da herança da quantia de 80.000,00 Euros ? Ou que estamos perante um contrato de mútuo entre o autor da herança e o seu filho ?
Cremos que não.
Em primeiro lugar, temos de ter presente que a força probatória plena estabelecida no art. 376º,2 apenas se reporta inter-partes, ou seja, nas relações entre declarante e declaratário, mas não no confronto de terceiros”. No caso destes autos estamos claramente perante um caso extra-partes, ou seja, é um terceiro a querer valer-se das declarações.
Sucedendo porém que reclamante e esposa assumiram ter assinado tal documento, a questão agora é saber como interpretar o conteúdo do mesmo.
Atentas as declarações prestadas, e o próprio teor literal do documento, cremos poder excluir liminarmente que se trate de um contrato de mútuo celebrado entre o autor do documento e os seus subscritores. A declaração de que devem aquela quantia aos pais e sogros entra em choque automático com a declaração seguinte, de aquele dinheiro entrar em conta na herança da família.
Como declararam o reclamante e a esposa, a recepção daquele valor de € 80.000,00 foi a contrapartida de ter comprado um apartamento ao seu irmão.
Mais ainda declarou a testemunha EE, que disse que o seu cunhado lhe disse que já tinha comprado um apartamento para o BB no valor de 100.000 euros. E quanto ao documento junto aos autos, declarou que o cunhado deu esse papel a assinar ao filho porque tinha medo que lhe acontecesse alguma coisa e o AA já tinha os 80.000 garantidos e o BB ficava com o apartamento por pagar.

Mas não se pode dizer que a sentença recorrida tenha interpretado mal a prova: veja-se este segmento da fundamentação:
Sem prejuízo, quer o depoimento de AA como o da sua mulher e, em especial, o da sua tia e madrinha do Cabeça de Casal foram claros e objectivos e, por isso, credíveis, em afirmar que não houve qualquer empréstimo, pois o que os pais, sogros e parentes quiseram ajudar ambos os filhos e por igual, tendo ajudado quer o AA com a entrega sem contrapartidas com € 80.000,00 e o BB com €100.000,00 (titulando este a compra de um apartamento, porque os inventariados a esse tempo já só viviam de reformas e tinham que ser financiados para que a ajuda se concretizasse)”.
Concordamos integralmente com esta afirmação da sentença recorrida. 
Só que, salvo melhor opinião, daí não decorre a não prova do facto que estamos a analisar. Pelo contrário, foi incontroverso da prova produzida que o reclamante e a esposa assinaram o documento ... junto com a relação de bens. E isso tem de constar dos factos provados.

Resumindo e concluindo:
A alínea B dos factos não provados passa a ser facto provado com a seguinte redacção: “a declaração junta como documento ... com a relação de bens foi manuscrita pelo de cujus CC que, posteriormente, a apresentou e fez assinar pelo reclamante AA e pelo seu cônjuge DD”.

Já a alínea C dos factos não provados mantém-se como não provada, porque do que já referimos é pacífico que não foi combinada entre o autor da herança e o seu filho a devolução daquele dinheiro.
Pelo contrário, do que resultou de toda a prova produzida, aquela verba, bem como o valor do apartamento do cabeça de casal cujo empréstimo tem vindo a ser pago com dinheiro do autor da herança, foram uma forma de partilha em vida pelos dois filhos.

Assim, os factos provados são estes:

1. À data do óbito da mãe dos Interessados, esta tinha:
a) 1 serviço de chã banhado a prata com 5 peças (tabuleiro com asa + cafeiteira + bule + leiteira + açucareiro), sem valor apurado mas estimado em € 1.500;
b) 1 centro de lesa com pé de prata, no valor estimado de € 200,00;
c) decorações diversas, tais como pratos de parede e “meninos” de porcelana, no valor estimado de € 200,00;
e) 2 televisões, no valor estimado de € 300,00;
f) vários cortes/tábuas de tecidos para confecção de vestuário, no valor estimado de € 300,00;
g) Diversas roupas têxteis lar, tal como toalhas bordadas pela inventariada.
2. A verba n.º 49 consiste em 3/34 da fração autónoma sita na Praça ..., União de Freguesias ..., ... e ..., correspondente a cave ampla destinada a garagem, designada pela letra ..., inscrita na matriz sob os n.º ...35 e ...60, descrita na CRPredial ... sob o n.º ...54, com o valor patrimonial de € 5.621,82.
3. A verba n.º ...6 consta na matriz com o valor patrimonial de € 128.735,00;
4. A verba n.º ...7 consta na matriz com o valor patrimonial de € 86.130,00;
5. A declaração junta como documento ... com a relação de bens foi manuscrita pelo de cujus CC que, posteriormente, a apresentou e fez assinar pelo reclamante AA e pelo seu cônjuge DD.

Julgamento da matéria de direito

Recordemos o que é que o cabeça de casal relacionou como activo da herança:
“DIREITOS DE CRÉDITO
VERBA Nº 1.º
Crédito no valor de 80.000,00 Euros (oitenta mil euros) em 20 de Setembro de 2002, sobre o interessado AA e mulher DD, referente a mútuo realizado pelos autores da herança (Doc....)”

A sentença recorrida concluiu que a verba 1 do activo devia ser eliminada, por não ter dado qualquer relevo ao documento ... junto com a relação de bens.
As coisas agora, porém, mudaram, pois vimos que tal documento foi assinado pelos interessados e tem relevo para os autos.
A questão jurídica agora é só uma: deveria aquela verba de € 80.000,00 ser incluída na relação de bens ? E nos termos em que o foi ?

Vejamos o que nos diz a lei.

Dispõe o art. 2104º,1 CC que os descendentes que pretendem entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este: esta restituição tem o nome de colação.
E o nº 2 acrescenta que são havidas como doação, para efeitos de colação, as despesas referidas no artigo 2110º.

Por sua vez o art. 2110º,1 CC dispõe que está sujeito a colação tudo quanto o falecido tiver despendido gratuitamente em proveito dos descendentes.

Como se pode ler na anotação ao art. 2104º (CC anotado de Pires de Lima e Antunes Varela), “a colação (como logo se infere do étimo de raiz latina – conferir- donde a palavra deriva) é a restituição (as mais das vezes apenas em valor, não em espécie ou substância), feita pelos descendentes, dos bens ou valores que o ascendente lhes doou, quando pretendem entrar na sucessão deste. A colação tem por fim a igualação, na partilha, do descendente donatário com os demais descendentes do autor da herança”.
Por isso é que Domingos Carvalho de Sá (Do inventário, descrever, avaliar e partir, 8ª edição, fls. 118) escreve que o cabeça de casal deverá relacionar todos os bens e direitos de conteúdo patrimonial pertencentes à herança, quer os que ele próprio administra directamente, quer os que se encontrem em poder de co-herdeiros ou de terceiros, quer os bens doados, estes no caso de existirem herdeiros legitimários”.
Já estamos, pois, em condições de responder à questão que nos foi colocada: o cabeça de casal BB devia ter incluído na relação de bens a quantia de € 80.000,00, não como dívida do seu irmão AA à herança, decorrente de um contrato de mútuo, mas sim como doação que foi feita pelo pai a este último. Assim como deve igualmente relacionar as doações que lhe tenham sido feitas a si, em vida dos pais, a fim de ser igualizada a partilha entre os dois.
Em conclusão, o presente recurso deve ser julgado parcialmente procedente, devendo ser alterada a alínea c) do segmento decisório, nos termos acabados de descrever.
           
V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso parcialmente procedente, e em consequência determina que o cabeça de casal reformule a verba nº 1, deixando de incluir na mesma uma dívida do interessado AA à herança, decorrente de contrato de mútuo, e passe a descrevê-la como montante que foi doado a esse interessado pelo de cuius.
Mantém-se o restante da sentença recorrida.

Custas por recorrente e recorrido, em partes iguais (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 8.2.2024
 
Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Maria dos Anjos Melo Nogueira)
2º Adjunto (Carla Maria da Silva Sousa Oliveira)