Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
231/09.8TBVLN.G1
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/04/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CIVEL
Sumário: Peticionando-se a condenação no reconhecimento da inexistência de caminho ou direito de passagem ou de servidão, cabe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, ou seja, da existência do caminho, do direito ou da servidão.
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

M… e esposa C…, residentes no lugar…, Valença; e J… e esposa C…, residentes no lugar …, Valença, interpuseram recurso da sentença final.
Pedem a sua revogação, dando-se a acção por totalmente procedente com as legais consequências.
Formulam as seguintes conclusões:
1. O Meritíssimo Juiz “a quo” após a produção da prova procedeu oficiosamente à ampliação da base instrutória acrescentando o quesito 2-A, onde passou a constar: “A faixa de terreno a que se alude em 2 é parte integrante dos prédios descritos em A e B?”.
2. A ampliação da base instrutória é permitida até ao encerramento da discussão, pelo disposto na al. f), do nº 2, do art. 650º do CPC e balizada pelo art. 264º, cabendo ao juiz que preside à audiência, imperativamente, distinguir: a)- se os factos que pretende incluir na base instrutória são essenciais, só os pode incluir se tiverem sido alegados nos articulados; b) - se são instrumentais, pode incluí-los ainda que não tenham sido alegados; c) - se são essenciais, mas se limitam a concretizar ou complementar factos já alegados nos articulados, só pode incluí-los se a parte interessada manifestar interesse e for cumprido o contraditório.
3. Do douto despacho que determinou a ampliação não consta tal distinção, nem classificação dos factos.
4. Resulta da ata de julgamento que nenhuma das partes manifestou interesse na inclusão de tal quesito, apenas ficaram “cientes da mesma”.
5. O nº 3, do artº 264º, estipula que serão ainda considerados na decisão os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas ou das excepções deduzidas que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução e discussão da causa, desde que a parte interessada manifeste vontade de deles se aproveitar e à parte contrária e tenha sido facultado o exercício do contraditório.
6. Não consta dos autos qualquer manifestação de vontade de se aproveitar de tal ampliação e, tampouco, foi facultado o exercício do contraditório em relação a tal intenção e aproveitamento, porque a mesma, está claro, não foi manifestada (vide ata de 7 de Julho de 2011).
7. O douto despacho, que determinou a ampliação da base instrutória, carece de fundamentação, e não pode o Juiz, oficiosamente, substituir-se às partes na introdução na causa de novos factos essenciais, não podendo ser admitida tal ampliação.
Por outro lado,
8. A presente acção é simples apreciação negativa, nela os autores pretendem que se declare que os respectivos prédios não estão onerados com nenhuma servidão constituída a favor do prédio dos Réus, é isso que peticionam.
9. Assim, in casu, rege o n.º 1, do artigo 343.º do Código Civil, que inverte o regime-regra da produção da prova, pondo a cargo dos Réus o ónus da prova do direito em discussão.
10. Na acção negatória de servidão, "é ao réu que cabe provar a existência da servidão, por ser praticamente impossível provar que ela não se constituiu. O autor só terá de fazer a prova do seu direito de propriedade". (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, com a colaboração de M. HENRIQUE MESQUITA, Coimbra, 1987, p. 307.
11. Aos Autores apenas se impunha provar, como efectivamente o fizeram, a propriedade dos prédios por onde decorre a passagem.
12. Aos Réus competia provar que, sobre tais prédios, se encontrava constituída a favor do seu prédio uma qualquer servidão, ou outro qualquer direito de passagem, ou que o local de passagem não fazia parte integrante do prédio dos Autores.
13. Os Réus não só não alegaram que sobre os prédios dos Autores esteja constituída qualquer servidão de passagem a favor do prédio deles, e, por outro lado confessam que, quando procedem à passagem, atravessam os prédios dos Autores, sensivelmente a meio, resultando ainda provado que, com tal passagem os Réus não retiram qualquer utilidade para o seu prédio.
14. Face a tal factualidade, nunca esta acção de simples apreciação negativa poderia improceder, e os Réus ser absolvidos dos pedidos, por falta de prova, como acontece manifestamente nos autos.
15. Neste tipo de acções, a dúvida sobre a realidade dos factos, terá sempre, conforme resulta do art. 516.º do Código de Processo Civil (e 346.º do Código Civil), que resolver-se em desfavor do réu, que é a parte a quem o facto aproveita (v. acórdão do STJ, de 30. 01.03, CJSTJ, Ano XI, Tomo I, p. 68).
16. Os Réus terão que ser condenados a reconhecer que sobre os prédios dos Autores (art.º 1 e art.º 10 da P.I), não existe qualquer caminho, ou direito de passagem, ou de servidão, nem de pé, nem de carro, nem de tractor, a favor do prédio dos Réus ou de qualquer prédio.
17. Da prova produzida pelos Réus, não resulta que estes tenham um qualquer direito de passagem nos prédios dos autores, ou que o espaço onde decorre tal passagem não seja parte integrante dos prédios dos Autores, e era a estes a quem competia fazer tal prova e não aos Autores.
18. Da prova dos Réus resulta é que tal faixa está situada no interior dos prédios dos Autores, sensivelmente a meio, incorporada dentro dos limites de tais prédios, prédios estes que se encontram registados a favor dos Autores, e cuja presunção de registo invocaram e da qual beneficiam.
19. Está provado, por acordo que quando transitam nos termos descritos em 17), atravessam os prédios dos Autores, ou seja, fazem a sua passagem no interior dos mesmos e sobre os mesmos.
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
20. Versa o presente recurso, além da errada aplicação do direito, também sobre a decisão relativa à matéria de facto, nos termos do art.º 690.º A, do CPC, pois que se verifica o circunstancialismo previsto no n.º 1, do art.º 712.º do C.P.C.
21. Da douta sentença, e dos factos aí considerados provados, não resulta em nenhum momento, que a faixa de terreno por onde os Réus passam, não seja parte integrante dos prédios 1) e 7), embora tal questão tenha sido levantada no quesito 2-A, a que supra em C) nos referimos, o certo é que não era aos Autores a quem competia o ónus da prova de tal matéria.
22. O que está provado, porque os Réus assim o aceitaram, é que estes, ao passarem “nos termos descritos em 17), atravessam os prédios descritos em 1) e 7), sensivelmente ao meio, sendo que o prédio descrito em 13) não retira qualquer utilidade com a passagem pela faixa de terreno descrita em 17 (quesito 4º)” reconhecendo assim, que quando fazem a sua passagem a fazem no interior dos prédios do Autores e sobre os mesmos.
23. Tal facto confessado, por acordo, pelos Réus, é manifestamente oposto à resposta dada pelo Juiz ao quesito 2-A (cuja sua inclusão acima já se rebateu).
24. O quesito 2-A mereceu a seguinte resposta: “Não provado que a faixa de terreno em que se alude em 2º, seja parte integrante dos prédios descritos em A) e G)”.
25. Deve, em consequência, a decisão sobre a matéria de facto ser alterada, em conformidade e de acordo com o supra alegado, e o ponto 2-A (caso se entenda que se deve manter tal quesito), deve ser considerado provado, nos termos do art.º 690.º-A e n.º1 do Art.º 712.º ambos do CPC, isto, claro está, se for de entendimento manter tal ponto aditado à ultima da hora à base instrutória.
26. A sentença de que se recorre viola, pois, o disposto na al. f), do n.º 2, do art.º 650º do CPC e, ainda, o disposto no artigo 264º do mesmo diploma, e, ainda, artigos 342.º, n.º 2, 343.º, n.º 1, 350.º, n.º 1 do Código Civil; e os artigos 659.º, 668.º n.º 1 c) e d).
Não foram proferidas contra-alegações.
*
Exara-se, seguidamente, um breve resumo dos autos, a fim de melhor enquadrarmos as questões.
M… e esposa C…, e J… e esposa C…, instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra J… e V…, pedindo, a final, que pela sua procedência: (I) – Se declare que os primeiros Autores são legítimos proprietários e possuidores do prédio identificado no art.º 1 da petição, e os segundos Autores legítimos proprietários e possuidores do prédio identificado no art.º 10 da petição, condenando-se os Réus a reconhecer esse seu direito de propriedade. (II) - Sejam os Réus condenados a reconhecer que sobre os prédios dos Autores (art.º 1 e art.º 10 da P.I), não existe qualquer caminho, ou direito de passagem, ou de servidão, nem de pé, nem de carro, nem de tractor, a favor do prédio dos Réus ou de qualquer outro prédio; (III) – Sejam os Réus condenados a abster-se de violar, ofender, por qualquer forma, o direito de propriedade dos Autores, sobre os referidos prédios.
Para tanto, e sincopadamente, alega-se que os primeiros Autores, por sucessão testamentária, são donos e legítimos possuidores, de um prédio, sito na freguesia de…, omisso na matriz, sendo que, por virtude dessa sucessão testamentária, os Autores têm registado a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Valença (descrição n.º …) a totalidade do referido Prédio. Substanciam ainda posse conducente a usucapião sobre o mesmo. Por sua vez, os segundos Autores, por compra, são donos e legítimos possuidores de um prédio, sito na freguesia de …, inscrito na matriz rústica da freguesia de Verdoejo sob o artigo …, sendo que a respectiva aquisição, formalizada por escritura de compra e venda, se mostra registada a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Valença (descrição n.º …). Substanciam ainda posse conducente a usucapião sobre o mesmo. Por seu turno, alegam que os Réus são proprietários de um prédio rústico, que confronta a poente com o caminho, agora estrada camarária, que confronta a nascente com os dois prédios dos autores. Tal prédio dos Réus, onde se encontra edificada uma casa de morada, tem entrada directa para a dita estrada, ou caminho, com ela confrontando directamente a norte e a poente. Assim, os Réus, insistem, desde há uns meses para cá, em utilizar uma faixa de terreno que atravessa os dois prédios identificados em 1º e 10º desta petição, fazendo dela uma passagem entre a estrada camarária, ou caminho, que confronta a norte com o prédio identificado em 10º e a estrada, ou caminho que confronta a poente com o prédio identificado em 19º da PI. Os Autores já vedaram, no passado mês de Fevereiro de 2009, com paus e arame os seus prédios, para impedirem tal passagem abusiva, mas os Réus destruíram de imediato tais vedações. E continuam a passar, abusivamente, através dos dois prédios, onde não existe, nem nunca existiu qualquer caminho, nem de servidão, nem de outro qualquer tipo.
Os réus contestaram, aduzindo o réu J… não é dono nem possuidor do prédio substanciado como sendo de ambos os réus, pertencendo este em exclusivo ao réu V… e à sua esposa S…. No mais, não contestando o direito de propriedade dos AA. sobre os descritos prédios, sustentam porém que o caminho ajuizado sempre foi um caminho público, sendo o primitivo caminho que servia todas as propriedades da parte norte dos prédios dos AA. e RR. sendo que não havia outro até ser aberta a estrada que ladeia o prédio dos AA. pelo seu vento nascente.
Pedem a condenação dos AA. como litigantes de má fé.
Os AA. responderam, impugnando no fundamental a existência de qualquer caminho público.
Procedeu-se à realização de audiência discussão e julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença que (a) julgou a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência: (b) declarou e reconheceu que os autores M… e esposa C… são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no itens 1º, da matéria de facto dada como provada; (c) declarou e reconheceu que os autores J… e esposa C… são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no ponto 7º, da matéria de facto dada como provada;
(d) absolveu os réus do demais peticionado. (e) Julgou improcedente o pedido de condenação dos AA. como litigantes de má fé.
***
Por despacho proferido pela Relatora, decidiu-se não conhecer do objecto do recurso na parte relativa às conclusões 1 a 7 e 20 e ss., ali, por inutilidade, e aqui por violação do disposto no Artº 685ºB/1-b) do CPC.
Das conclusões que exarámos supra – nº 8 a 19 –, extrai-se a seguinte questão a decidir: cabe aos RR. provar que, sobre os prédios, se encontrava constituída uma servidão ou qualquer outro direito de passagem ou que o local de passagem não fazia parte integrante do prédio dos AA.?
***
Factos Provados:
1) Os primeiros Autores são “donos e legítimos possuidores”, do seguinte prédio rústico, sito na freguesia de…: “ Prédio Rústico, sito no lugar de …, composto de terreno de pinhal, com a área de 195 m2, a confrontar de norte com A…, sul J…, nascente caminho público e poente J…, omisso na matriz, tendo a sua inscrição sido requerida junto da Repartição de Finanças de Valença no dia 26 de Novembro de 2008”. [Alínea A), dos factos assentes].
2) A aquisição do direito de propriedade pleno e perfeito deste imóvel adveio aos autores, por sucessão testamentária, em que foi testadora A…. [Alínea B), dos factos assentes].
3) Por virtude dessa sucessão testamentária os autores têm registado a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Valença, descrição n.º… – a totalidade do referido Prédio. [Alínea C), dos factos assentes].
4) Os autores por si, e pela sua antecessora, há mais de 20 e 30 anos, vêm possuindo o imóvel de forma pública, pacífica, sem qualquer oposição, continua e ininterruptamente, na convicção segura do exercício dos seus poderes próprios e típicos do direito de propriedade. [Alínea D), dos factos assentes].
5) Tal como a sua antecessora A…, os autores vêm retirando todas as utilidades proporcionadas pelo dito prédio, cortando pinheiros, fazendo vedações, limpando e roçando mato, bem como, pagando as correspondentes contribuições e impostos. [Alínea E), dos factos assentes].
6) Tais actos têm sido concretizados ao longo dos últimos 20, 30 e mais anos, ininterruptamente, sem quebra de continuidade, ostensivamente, sem oposição de ninguém, com verdadeiro “animus domini”, pelos autores. [Alínea F), dos factos assentes].
7) Os segundos autores são donos e legítimos possuidores, do seguinte prédio rústico, sito na freguesia de …: “Prédio Rústico, denominado “Campo do Boucinho”, sito no lugar de …, composto de terreno de pinhal cultura e vinha, com a área de 510 m2, a confrontar de norte e nascente com caminho público, sul J… e poente ribeiro hidráulico, inscrito na matriz rústica da freguesia de… sob o artigo…. [Alínea G), dos factos assentes].
8) A aquisição do direito de propriedade plena deste imóvel adveio aos segundos autores, por escritura de compra e venda exarada de fls. 19 verso a vinte verso, do livro de notas para escrituras diversas, número 16 – C do Cartório Notarial de Valença. [Alínea H), dos factos assentes].
9) Por virtude dessa compra e venda os autores têm registado a seu favor, na Conservatória do Registo Predial de Valença – descrição n.º … a totalidade do referido prédio. [Alínea I), dos factos assentes].
10) Os autores por si, e pelos seus antecessores, S… e esposa M…, há mais de 20 e 30 anos, vêm possuindo o imóvel de forma pública, pacífica, sem qualquer oposição, continua e ininterruptamente, na convicção segura do exercício dos seus poderes próprios e típicos do direito de propriedade. [Alínea J), dos factos assentes].
11) Tal como os seus antecessores, os autores vêm retirando todas as utilidades proporcionadas pelo dito prédio, cortando pinheiros, fazendo vedações, limpando e roçando mato, bem como pagando as correspondentes contribuições e impostos, tratando a vinha e semeando e cortando erva. [Alínea L), dos factos assentes].
12) Tais actos têm sido concretizados ao longo dos últimos 20, 30 e mais anos, ininterruptamente, sem quebra de continuidade, ostensivamente, sem oposição de ninguém, com verdadeiro “animus domini”, pelos autores. [Alínea M), dos factos assentes].
13) Os réus V… e S… são proprietários de um prédio rústico, que confronta a poente com o caminho, agora estrada camarária, que confronta a nascente com os dois prédios dos autores supra identificados, onde se encontra edificada uma casa de morada, tem entrada directa para a dita estrada, ou caminho, com ela confrontando directamente a norte e a poente.
[Alínea N), dos factos assentes].
14) Os autores vedaram, no passado mês de Fevereiro de 2009, com paus e arame os seus prédios, para impedirem a passagem em questão nos autos. [Alínea O), dos factos assentes].
15) O prédio dos réus V… e S…, sempre confrontou e teve entrada directa para via pública. [Alínea P, dos factos assentes].
16) O prédio descrito em 13) é pertença exclusiva dos Réus V… e S…, não sendo igualmente do Réu J…. (quesito 1.º)
17) O réu V… utiliza uma faixa de terreno que atravessa os prédios descritos em 1) e 7), fazendo dela uma passagem a pé e de tractor, entre a estrada camarária, ou caminho, que confronta a nascente com os prédios descritos em 1) e 7), ou caminho que confronta a poente com o prédio dos Réus. (quesito 2º).
18) Os Réus, ao passarem nos termos descritos em 17), atravessam os prédios descritos em 1) e 7), sensivelmente ao meio, sendo que o prédio descrito em 13) não retira qualquer utilidade com a passagem pela faixa de terreno descrita em 17.º. (quesito 4º),
19) O prédio dos réus confronta directamente com a estrada camarária, ou caminho público, tendo entrada directa para a mesma, nas suas confrontações a norte e poente [quesito 5º].
20) A passagem em questão nos autos, sempre apresentou um trilho visível e marcado no pavimento. [quesito 6º].
21) …era o primitivo caminho que servia os prédios da parte norte dos prédios dos autores e réus, antes da abertura da estrada que ladeia os prédios dos autores, a nascente. [quesito 7º].
22) Nunca o solo da faixa de terreno a que se alude em 17.º foi aproveitada para qualquer utilidade pelos autores, que não o mero trânsito». [Quesito 8].
***
A questão que nos ocupa reporta-se ao ónus da prova e ás consequências que dele advém para a decisão final.
Pretendem os Recrtes. que, estando-se em presença de uma acção de simples apreciação negativa – acção negatória de servidão –, é aos RR. que compete provar que, sobre os prédios, está constituída uma servidão ou qualquer outro direito de passagem ou que o local de passagem não fazia parte integrante do prédio dos AA..
Na presente acção, para além do reconhecimento do direito de propriedade sobre prédios confinantes, peticionou-se a condenação dos RR. a reconhecer que, sobre os prédios dos AA. não existe qualquer caminho ou direito de passagem, ou servidão, nem de pé, nem de carro, nem de tractor, a favor do prédio daqueles ou de qualquer outro.
Reconhecidos os invocados direitos de propriedade por parte dos AA., julgou-se, porém, a acção improcedente na parte relativa ao pedido de que acima demos notícia.
Para tanto argumentou-se da forma seguinte:
“Porém, já quanto à delimitação física das coisas (prédios) sobre as quais incidem os direitos de propriedade vindos de reconhecer, e no que ao caso interessa, se o tracto de terreno verdadeiramente em disputa (descrito em 17), dos factos provados), que atravessa dos prédios descritos em 1) e 7), do universo fáctico da causa, integra ou não tais prédios, diríamos que a pretensão dos autores terá de necessariamente soçobrar, dado que os mesmos, ao contrário do que lhes competia (artigo 342.º/1, do Código Civil), não lograram demonstrar que a faixa de terreno a que se alude em 17.º, do universo fáctico da causa, seja parte integrante dos sobreditos respectivos prédios.
Isto é, sendo certo que vem dado como provado que o réu V… utiliza uma faixa de terreno que atravessa os prédios descritos em 1) e 7), fazendo dela uma passagem a pé e de tractor, entre a estrada camarária, ou caminho, que confronta a nascente com os prédios descritos em 1) e 7), ou caminho que confronta a poente com o prédio dos Réus, não lograram os AA. demonstrar que tal faixa de terreno seja parte integrante dos prédios ajuizados.
Com efeito, entende-se que, independente de o universo fáctico da causa não consentir que se conclua que se trata de um caminho público – posto que na verdade os réus não alegaram materialidade suficiente a tal desiderato – cf. nota infra – vindo apenas dado como provado a esse respeito que a passagem em questão nos autos, sempre apresentou um trilho visível e marcado no pavimento, sendo que era o primitivo caminho que servia os prédios da parte norte dos prédios dos autores e réus, antes da abertura da estrada que ladeia os prédios dos autores, a nascente – a verdade é que a prova da delimitação física dos prédios cabia aos autores (artigo 342.º/1, do Código Civil).
Nesta medida, e com relação a uma faixa de terreno que atravessa os prédios descritos em 1) e 7) do universo da causa, entre a estrada camarária, ou caminho, que confronta a nascente com os prédios descritos em 1) e 7), ou caminho que confronta a poente com o prédio dos Réus, improcede o pedido pelos AA. sob as alíneas B) e C) do petitório.”
Parece-nos que a sentença confundiu as questões, porquanto não vemos que tenha sido peticionado o reconhecimento do direito de propriedade sobre a dita faixa de terreno.
A faixa de terreno a que a sentença se reporta vem alegada, é certo, pelos AA. nos Artº 21º e ss. da sua petição inicial, como atravessando os seus prédios e para afirmar que os RR. insistem em utilizá-la, fazendo dela um caminho ou passagem para o seu prédio.
É, pois, absolutamente relevante para a compreensão das pretensões invocadas, mas não constitui objecto das mesmas.
A pretensão em causa e que a sentença recusou era de condenação no reconhecimento da inexistência do caminho ou direito de passagem ou de servidão. Nesta parte, estamos, pois, em presença de uma acção de simples apreciação negativa, tal como vem definida no Artº 4º/2-a) do CPC.
Ora, para estas acções, dispõe o Artº 343º/1 do CC, que cabe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.
Pires de Lima e Antunes Varela exemplificam mesmo com a acção negatória de servidão, afirmando que “é ao réu que cabe provar a existência da servidão... O autor só terá que fazer a prova do seu direito de propriedade” (Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª Ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, 305).
Assiste, assim, razão aos Recrtes. em tudo quanto afirmam no concernente ao ónus da prova.
Cabe, pois, verificar se, em face da matéria fáctica cuja prova se obteve, aquele pedido deve proceder, ou seja, se os RR. não cumpriram o ónus que sobre eles incide.
Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (Artº 1543º do CC).
As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família (Artº 1547º/1 do CC).
A matéria fáctica cuja prova se obteve não configura a existência de qualquer servidão.
Por outro lado, a sentença afastou a existência de um caminho público, sem que alguma das partes se tivesse insurgido.
Por outro ainda, não se vê que qualquer direito de passagem se tenha constituído sobre o prédio dos AA..
Pelo que, na ausência da prova cujo ónus estava a cargo dos RR., e ao abrigo do disposto no Artº 516º do CPC, se impõe dar procedência ao recurso.
*
***
*
Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência, e na revogação parcial da sentença, julga-se a acção totalmente procedente.
Custas pelos RR..
Notifique.
*
MANUELA BENTO FIALHO
EDGAR GOUVEIA VALENTE
ANTÓNIO BEÇA PEREIRA