Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4373/22.6T8VNF.D.G1
Relator: MARIA EUGÉNIA PEDRO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO DO DEVEDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. O critério geral e abstracto de “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” previsto no art. 239º, nº3, al.i) do CIRE radica no princípio constitucional da dignidade da pessoas humana e deve ser densificado e aplicado casuisticamente em função do caso concreto e das circunstâncias do insolvente e do respectivo agregado familiar.
II. Considerando que a intenção do legislador ao fixar o regime do salário mínimo nacional legislador é assegurar a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, em princípio, o limite mínimo de exclusão dos rendimentos no âmbito da cessão de rendimentos pelo insolvente deve corresponder ao salário mínimo nacional vigente no período de cessão, pois o desiderato subjacente é idêntico.
III. Compete ao insolvente no momento em que formula o pedido de exoneração do passivo restante alegar a composição do seu agregado familiar e as despesas indispensáveis para o respectivo «sustento minimamente digno».
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CIVEL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

AA, divorciado, residente  no Largo ...,    ..., ..., apresentou-se à insolvência, pedindo além da declaração do seu estado de insolvência que lhe fosse  deferida a  exoneração do seu passivo restante,  declarando reunir os requisitos  para tal  e estar  disposto a cumprir as  condições legalmente exigidas.
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Foi proferida em 13.7.2022 sentença transitada em julgado que declarou a insolvência  do requerente.
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A Srª Administradora da Insolvência, no relatório a que se refere o art. 155.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), pronunciou-se pela prolação do despacho inicial de exoneração do passivo restante.
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Os créditos  reconhecidos  ascendem a € 212.305,22.
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Foi dispensada a realização da assembleia de credores para apreciação do relatório.
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Em 24.10.2022 determinou-se o prosseguimento dos autos para liquidação e  foi proferido despacho que admitiu liminarmente  o pedido de exoneração do passivo restante do insolvente, excluindo do âmbito da cessão o valor mensal correspondente a 1,2 SMN destinado ao seu sustento  minimamente digno,  cujo teor  se dá aqui por integralmente reproduzido.
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Inconformado com a decisão, na parte em que fixou  em 1,2 SMN  o montante afecto ao seu sustento, o insolvente  apresentou o presente recurso, finalizando as alegações com as  seguintes conclusões:

a) Vem o presente recurso interposto despacho liminar de exoneração do passivo restante e nomeação de fiduciário, proferido em 25/10/2022, decidindo-se em tal despacho, e, além do mais, que “conforme decorre da PI e dos documentos que a acompanham, bem como do relatório da Sra. Administradora da Insolvência, decide-se que o rendimento disponível que o insolvente deve ceder ao Fiduciário venha a auferir em montante mensal superior a 1,2 SMN/mês seja cedido ao fiduciário”,
b) Por presumir que o julgador de 1.º instância quis dizer todo o rendimento que exceder um salário mínimo nacional mais 20%, o apelante, por requerimento datado de 07/11/2022, com referência citius n.º ...07, requereu esclarecimento quando ao valor que terá efetivamente de ceder ao fiduciário junto do Tribunal de 1.ª instância,
c) Ao aceitar-se que o valor a ceder é todo aquele que exceder 1,2 SMN/mês, daria um valor mensal de € 852,00 (oitocentos e cinquenta e dois euros), para o aqui Apelante,
d) Sendo que deste valor € 165,00 (cento e sessenta e cinco euros) vão para o cartão refeição ( quantia essa que não dá para levantar) ficando o Apelante apenas com a quantia € 687,00, sem esquecer que ele tem uma filha menor da qual paga pensão de alimentos e despesas médicas, escolares e medicamentosas a meio com a ex-cônjuge.
e) O aqui Apelante não se pode conformar com tal despacho recorrido na parte que determina que o rendimento disponível que este tem de ceder ao Sr. Fiduciário será todo o montante que exceder 1,2 do salário mínimo nacional, ou seja, todo o valor que exceder a quantia mensal de € 852,00 (oitocentos e cinquenta e dois euros)
f) Revelando, tal despacho recorrido, na fixação do rendimento disponível a ceder, um verdadeiro autismo quanto aos documentos constantes do processo de Insolvência que justificam despesas médicas e saúde dele, pensão de alimentos à filha menor que, diga-se, como a inflação e o aumento cavalgante dos preços o valor da pensão de alimentos em Janeiro de 2023 vai aumentar consideravelmente,
g) Sem esquecer as despesas médicas, escolares e medicamentosas que o Apelante tem com a filha menor, leva a que este muitas vezes despenda de mais de €200,00 mensais para a filha.
h) O Apelante apresentou-se à Insolvência em 07/07/2022, requerendo a conceção do benefício da exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 236.º do CIRE. Por sentença proferida em 13/07/2022 já transitada em julgado, foi declarada a insolvência do aqui Apelante.
i) E em 25/10/2022 foi proferido despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo insolvente, aqui Apelante, e decidiu o seguinte: “ decide-se que o rendimento disponível que e venha a auferir em montante mensal superior a 1,2 SMN/mês seja cedido ao fiduciário, montante que permitirá assegurar que se mantenha o agregado familiar a viver em condições de normalidade e subsistência (..)”
j) O aqui apelante discorda cabalmente de tal despacho, ora recorrido, na parte em que determina que o rendimento disponível que este tem de ceder ao Sr. Fiduciário será todo o montante que exceder 1,20% do salário mínimo nacional, ou seja, todo o valor que exceder a quantia mensal de € 852,00 (oitocentos e cinquenta e dois euros), sem esquecer que dessa quantia € 165,00 vão para o cartão refeição,
k) Valor esse que o aqui apelante só poderá utilizar para pagamento de compras, o que leva a que fique com a quantia de € 687,00 sobre esta quantia tem de proceder ao pagamento da pensão de alimentos à filha e de todas aquelas despesas (médicas, medicamentosas e escolares) da filha menor.
l) A discordância com tal despacho funda-se no facto de que tal montante não permite assegurar ao apelante de viver nas mínimas condições de normalidade e subsistência, em gravíssima carência resultante de um mero infortúnio ocorrido na sua vida.
m) Colocando em causa o princípio da dignidade da pessoa humana do aqui Apelante e do seu agregado familiar.
n) Com o decretamento do divórcio, o Apelante passou a residir na casa da sua mãe, pessoa de muita avançada idade, a assumir sozinho todas as despesas inerentes ao quotidiano nomeadamente, e não exclusivamente, alimentação, vestuário, água, luz, gás, telecomunicações e saúde,
o) Despesas inerentes às suas deslocações para o Trabalho, que se traduzem em combustíveis e portagem. Suporta, ainda, despesas relacionadas com os tratamentos médicos e medicamentosos da sua mãe,
p) E ainda, mas não menos importante, o pagamento de uma pensão de alimentos à sua filha menor no valor que chega a ser € 200,00 (duzentos euros), mensais, e as vezes mais.
q) O que ao subtrair a quantia da pensão de alimentos, despesas da filha, o aqui Apelante fica com um valor para se sustentar, pagar todas as despesas do quotidiano e de saúde, na quantia aproximada de € 400,00 mensais,
r) Isso sem se olvidar que há meses que surgem despesas inesperadas, como a todos sucede, e o sofrimento é o de considerar “não há dinheiro para pagara”.
s) A aceitar-se o que consta em tal despacho recorrido, o que não se concede, ou seja, que o aqui apelante teria de entregar ao fiduciário todo o montante que exceder a quantia de € 852,00 este, em que 165,00 vão para o cartão refeição,
t) E com o pagamento da quantia da pensão de alimentos à filha e despesas dela, o Apelante fica em média com um valor de € 400,00 mensais,
u) E daquele restante quantitativo, têm o Apelante de fazer face as despensas correntes com a alimentação, água, luz, eletricidade, gás e telecomunicações no valor de €350,00, ficando a sobrar a ínfima quantia de € 50, 00/ 100,00 mensais
v) A tudo isto ainda acresce que tem o Apelante de fazer face a necessidades básicas, combustível e outras habituais a uma vida normal e humanizada em sociedade.
w) Ficando, de imediato, o Apelante em condições extremamente precárias, abaixo do nível de sobrevivência, no limiar de manifesta pobreza.
x) Colocando em causa a dignidade da pessoa humana, violadora dos mais elementares direitos de personalidade, constitucionalmente consagrados.
y) Ficando prejudicada a capacidade financeira do Apelante para sobreviver.
z) Pelo que, aqui chegados, fácil é a conclusão de que a quantia que sobra não permite ao Apelante sobrevier com dignidade. O princípio da dignidade humana perpassa a ordem jurídica e assume projeção normativa.
aa) A Constituição, no seu art.1º, refere ser Portugal uma República soberana, baseada na dignidade humana.
bb) A nível internacional, por exemplo e desde logo, o Tratado da União Europeia faz alusão ao património cultural, religioso e humanista da Europa de onde emanaram os valores universais que são os direitos invioláveis e inalteráveis da pessoa humana.
cc) A Carta das Nações Unidas reafirma a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana.
dd) São apenas exemplos de instrumentos internacionais onde se vislumbra a importância para os ordenamentos jurídicos da dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, do seu relevo orientador, nomeadamente ao poder jurisdicional, sendo um princípio geral do direito.
ee) A tutela da dignidade assenta não só no reconhecimento da liberdade da pessoa, mas em condições materiais básicas de subsistência, de modo a que ninguém possa ficar privado de bens essenciais à existência condigna em sociedade.
ff) No caso sub judice, estamos perante uma situação de débil e extrema dificuldade financeira que não pode deixar de ser tomada em consideração pela gravidade do concreto contexto económico do Apelante,
gg) A decisão ora posta em crise coarta a possibilidade de o Apelante prover ao seu sustento, pondo inclusivamente em causa a sua saúde e consequentemente a sua subsistência condigna.
hh) O que revela, a todas as luzes, a iniquidade da decisão recorrida que, não tem em conta a génese do instituto da exoneração do passivo restante, já que o despacho aqui em crise violou, além do mais, o art.º 13.º n.º 1 da CRP.
ii) Sendo que o montante fixo de um salário e 20% atento todas as despesas que estes tem mensalmente, não é suficiente para o sustento minimamente digno do Apelante e do seu agregado família, nos termos do art.º239.º n.º3 alíneas b) e i) do CIRE.
jj) Tal preceito legal determina “que deverão integrar o rendimento disponível para
cessão, todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com
exceção daqueles que sejam razoavelmente necessários para o sustento digno do
devedor e do seu agregado familiar, (..)”
kk) O despacho recorrido viola, assim, o preceituado no artigo 239º, nº 3, alínea b) do CIRE, e no art.º 13 da CRP, já que o montante nele fixado como valor a excluir da cessão é manifestamente insuficiente para assegurar o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do Apelante e do seu agradado familiar.
ll) Já que não ficam salvaguardas razões de humanidade nem direitos de personalidade do apelante, essencialmente o direito à saúde, pois que este não fica com rendimento disponível e necessário para satisfazer as necessidades vitais de saúde, despenas com a filha menor, muito menos da alimentação, vestuário, e calçado, e as despesas do quotidiano.
mm) O apelante tem despesas médicas e escolares com a filha menor que não são fixas, sendo expectável que as mesmas variem com as necessidades daquela pelo que, o fixado valor de 1,2 do SMN se afigura insuficiente,
nn) Pelo exposto, deveria ser fixado como pedimento disponível de, pelo menos, o equivalente a um salário e meio.
oo) Alguma jurisprudência recorre a fórmulas matemáticas, nomeadamente a escala de Oxford, fixada pela OCDE, para a determinação da capitação dos rendimentos don agregado familiar – em que o índice 1 é atribuído ao 1º adulto do agregado familiar, o índice 0,7, para os restantes adultos, atribuindo 0,5 por cada filho, outras decisões partem do valor equivalente a um salário mínimo por adulto do agregado e 0,5 por cada criança.
pp) A fixação de um rendimento indisponível não visa assegurar a manutenção do padrão de vida anterior à declaração de insolvência, mas apenas uma vivência minimamente condigna, de forma ao Apelante ajustar as despesas e os encargos e o seu nível de vida, em general e na medida do possível, à realidade em que se encontra.
qq) Sendo o critério a usar pelo julgador o da dignidade da pessoa humana.
rr) Anote-se que, se apenas for permitido ao Apelante sobreviver com o montante de € €852,00 mensais, tal não permitirá custear todas as despesas com a sua casa, saúde, pensão de alimentos da filha, despesas medicas e escolares desta, despesas com alimentação, vestuário, calçado e de combustível.
ss) Pois o rendimento disponível que ficou determinado no despacho recorrido não permite ao Apelante fazer face a todas aquelas despesas.
tt) O processo de insolvência com a exoneração do passivo restante tem de traduzir a prudência de acautelar, não só os interesses dos credores, mas também as mínimas condições humanas e de subsistência do Apelante e filha menor.
uu) Com efeito, e tendo presente a argumentação já expendida supra, deve, assim, concluir-se, que deverá tal despacho ora recorrido, ser revogado e proferido Acórdão que fixe um rendimento disponível que permita ao Apelante viver com dignidade, no respeito pelos critérios de equidade, ou seja, que se decida fixar como rendimento disponível para o Apelante uma quantia nunca inferior a um salário e meio, um para ele e meio para a filha menor, e não a constante do despacho recorrido. Como com toda a certeza, V/Exas., Venerandos Desembargadores decidirão, nessa conformidade, fazendo, como sempre a habitual e necessária justiça material.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como apelação com subida imediato em separado e com efeito meramente devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
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Foram colhidos os vistos legais.
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Nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objecto do processo
      
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do  recorrente, não podendo o Tribunal ad quem  conhecer de matérias nelas não incluídas,  sem  prejuízo das questões de  conhecimento oficioso - cfr. arts 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 e 2 do CPC.
Assim, o presente caso,   a questão a decidir  é  saber se o montante mensal de 1,2 SMN   é  ou não  adequado  ao sustento  minimamente digno do insolvente.
  
III. Fundamentação
 
A- Fundamentos de  facto

O Tribunal a quo, com base no relatório apresentado pela administradora da  insolvência, deu como provados os seguintes factos, que não foram objecto de impugnação:

1. O insolvente, nascido no dia .../.../1968, foi casado BB desde .../.../1991 a .../.../2011, data em que foi decretado o divórcio, pelo que, atualmente, é divorciado.
2. Deste casamento não teve filhos, no entanto o insolvente tem uma filha de um outro relacionamento, CC, atualmente com 15 anos.
3. A filha do insolvente reside com a mãe, no ..., sendo que o insolvente paga mensalmente a quantia de 130,00 euros a título de pensão de alimentos, assumido ainda, a meias com a mãe, despesas extracurriculares e médicas.
4. No que concerne à sua residência, o insolvente reside, de favor, em casa da sua mãe, assumindo despesas com telecomunicações, água, luz e gás.
5. O insolvente encontra-se empregado, por conta de outrem, a exercer a função de chefe de secção, na sociedade “F..., SA.”, NIPC ..., onde aufere, a título de vencimento base, o montante de 1.159,00 euros.
5. Não tem antecedentes criminais.
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Fundamentos de direito                
                       
O instituto da exoneração do passivo restante encontra-se previsto nos arts. 235º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – diploma a que pertencem todos os artigos adiante indicados sem outra referência - e conforme resulta da exposição de motivos que consta do diploma preambular do Dec. Lei que aprovou o Código em causa - Dec. Lei nº 53/2004 de 18.03 -: “o princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular  a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça durante um período, designado período de cessão( inicialmente  com a duração de 5 anos, foi  reduzido para três pela Lei 9/2022 de 11.1.2022) ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível a um fiduciário designado pelo tribunal que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores.  No termo desse período, tendo o devedor cumprido para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.”
Trata-se, assim, de um benefício concedido aos insolventes pessoas singulares, exonerando-os dos seus débitos e permitindo a sua reabilitação económica, à semelhança do instituto do “fresh start” do direito norte-americano. Importando para os credores na correspondente perda de parte dos seus créditos, porventura em montantes muito avultados, que desse modo se extinguem por causa diversa do cumprimento. E porque de um benefício se trata, “é necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior e atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, apertando-a, com ponderação de dados objetivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta- cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto  de  08-06-2010( Relator João Proença)disponível in www.dgsi.pt.
Os requisitos  para o devedor  ter acesso a tal benefício  estão  previstos  nos arts. 236.º, 237.º e 238.º, do CIRE.

Na   decisão recorrida a Exma  Sr. Juíza concluindo pela verificação de tais requisitos  admitiu liminarmente  o pedido de exoneração do passivo  restante apresentado pelo insolvente e, de seguida ,  fixou   em  1,2  SMN a quantia destinada ao  seu sustento  minimamente digno, com a seguinte fundamentação:

A fixação de um valor a título de rendimento indisponível, que assegure o sustento minimamente digno do insolvente, está inexoravelmente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, que encontra arrimo constitucional no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, se é certo que o processo de insolvente é um processo de execução universal que “tem como finalidade a satisfação dos credores” (cf. Artigo 1.º do CIRE) há que compatibilizar o interesse dos credores (e, consequentemente, a protecção do tecido económico e empresarial nacional) com o interesse social e humano de não despojar a insolvente daquilo que lhe é imprescindível para assegurar a sua subsistência e a do seu agregado.
A nosso ver, a ponderação de todos os relevantes interesses em presença acarreta que, como regra, o montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor seja correspondente ao montante do salário mínimo nacional, na medida em que é este o valor considerado suficiente pelo estado para a sobrevivência condigna dos cidadãos. Não obstante, tal valor poderá ser majorado, consoante as especificidades do caso concreto. Também assim, o acórdão do TRG, de 17-05-2018, disponível em www.dgsi.pt refere que: “o critério geral e abstrato de “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, previsto no art. 239º, n.º 3, al. B), i., do CIRE, terá que ser densificado e aplicado casuisticamente em função do caso concreto e das circunstâncias do insolvente e do respetivo agregado familiar, tendo como subjacente o reconhecimento do “princípio da dignidade humana”. (…) enquanto referência ou por princípio, o montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível do insolvente, a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, deverá corresponder, pelo menos, ao valor do salário mínimo nacional.” E, ainda, o acórdão do TRL, 07-11-2017, onde se explana que “o CIRE não estabelece o que deva entender-se por sustento minimamente digno devedor e do seu agregado familiar, recorrendo a um conceito indeterminado. É todavia, razoável, que o montante equivalente a um salário mínimo nacional constitua o limite mínimo de exclusão.”
Por outro lado, o valor de rendimento indisponível não deve exceder o valor de três salários mínimos nacionais, a não ser que o caso concreto exija solução distinta, o que deverá ser aferido por decisão fundamentada do juiz.
No caso em apreço, provou-se que o agregado familiar é constituído apenas pelo insolvente. Os rendimentos advêm do trabalho. Tem uma filha menor a quem paga prestação alimentícia. Em consequência, determina-se que, no período de três anos posteriores ao encerramento do presente processo, o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir em montante mensal superior a 1,2 SMN/mês seja cedido ao fiduciário.”

Nesta  matéria, rege o art. 239.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que preceitua:

“Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:
i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.”

Como se  vê,  o legislador   recorreu  a um critério geral e abstracto  «  o que seja razoavelmente  necessário  para  o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar»,  remetendo  assim para  uma densificação casuística a efectuar pelo tribunal,  em função das  particularidades de cada caso, fixando  porém o limite máximo para a exclusão do rendimento disponível a ceder ao fiduciário no montante equivalente a três salários mínimos nacionais.
Tal critério geral  aponta  para o  direito constitucionalmente protegido da salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal, consagrado  nos arts. 1º, 13º, 59º, nº1, e 67º, nº1 da CRP  e  nos arts. 1º e 25º, nº1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
A jurisprudência maioritária, entre muitos, vide o acórdão do STJ de 2.2.2016, proc. 3562/14.1.T8GMR.G1.S1, relatado por  Fonseca Ramos,  vem  acolhendo a ideia de que, se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deverá atender a esse salário mínimo nacional para, no caso concreto, determinar, a partir dele, qual o quantum que deve ser considerado compatível com o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar.   Seguindo assim  em  linha com a  posição do Tribunal Constitucional que por várias vezes  já  se pronunciou no sentido de que “ o salário mínimo nacional, contendo em si a ideia  de que  é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador   e que por ter sido concebido como “mínimo dos mínimos “ não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim como, também uma pensão de invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional,  não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao mínimo considerado necessário para a subsistência do respetivo beneficiário”- cfr. acórdão do Tribunal Constitucional nº177/2002 de 23.4, relatado por Maria dos Prazeres Beleza.
Na doutrina, também José Gonçalves Ferreira  defende  que não se deverá, nunca por nunca, fixar um quantitativo inferior ao salário mínimo nacional que esteja em vigor, in “ A exoneração do passivo restante “, Coimbra Editora, p.94.
Mas, simultaneamente, há que ter em  consideração o interesse dos credores  na satisfação dos seus   créditos,  devendo procurar-se um ponto de equilíbrio entre o interesse destes e o direito do insolvente e do seu agregado  familiar  a  viverem com um mínimo de dignidade.
Assim, na determinação do montante concreto destinado ao sustento minimamente digno do devedor a excluir do rendimento disponível a jurisprudência  tem  adoptado  os seguintes critérios orientadores:
1.Ponderação  das  condições pessoais do devedor e do seu agregado familiar, tais como, idade,   estado de saúde, situação profissional, rendimentos.  Com  efeito,   o valor a excluir não poderá deixar de ter em consideração o número de membros do agregado familiar e respetivos rendimentos, independentemente da sua natureza, bem como os seus encargos. Nalguns acórdãos, entre eles, RC de 12.3.2013 ( relatora Sílvia Pires) e RL de 11-10-2016 ( relatora Carla Câmara) disponíveis in www.dgsi.pt, recorreu-se a fórmulas matemáticas, nomeadamente  à Escala de Oxford, fixada pela OCDE, para a determinação da capitação dos rendimentos do agregado familiar – em que o índice 1 é atribuído ao 1º adulto do agregado familiar, o índice 0,7 para os restantes adultos, atribuindo 0,5 por cada criança. Outras decisões partem do valor equivalente a um salário mínimo por adulto do agregado e 0,5 por cada criança, atendendo-se, ainda, no caso de insolvência de só um dos progenitores, à capacidade do outro progenitor de contribuição para o sustento dos filhos.
2. O dever do insolvente   ajustar o seu   nível de vida   à  situação  jurídica em que se encontra, sendo que  a fixação do rendimento indisponível não visa assegurar-lhe a  manutenção do padrão de vida anterior à declaração de insolvência, pois  tendo o legislador fixado como critério a dignidade da pessoa humana, a esta estão associados os gastos necessários à subsistência e o custeio das necessidades primárias.  Ficam  afastados  os padrões de consumo e os hábitos de  próprios da classe social antes integrada  e o nível de vida correspondente ou a uma específica formação profissional ou atividade ou hábitos de vida pretéritos- vide  Acs RE de 4.12.2014( relatora Cristina Cerdeira) RG de 19.3.2013( relator António Santos) e 17.5.2018( relator António Barroca Penha) e RC de 31.1.2012( relator Carlos Marinho)todos disponíveis  in www.dgsi.pt.
3. Atendibilidade das despesas razoáveis segundo um critério de normalidade, tendo em conta as condições pessoais dos membros do agregado familiar do insolvente  e não de  todas as  concretas despesas comprovadas ou meramente alegadas pelo  mesmo –  cfr. Ac. RC de 31.1.2012( relator Carlos Marinho). Quanto a eventuais despesas extraordinárias deverão ser atendidas pelo tribunal, já não no âmbito do ponto i), mas com recurso ao disposto na al. ii) que determina a exclusão de “outras despesas ressalvadas pelo juiz, a requerimento do devedor.

Sintetizando, o instituto da exoneração do passivo restante, tal como está configurado no nosso ordenamento jurídico,  tem  forçosamente  de implicar para o devedor um maior rigor no  orçamento familiar,  com  uma redução das despesas ao mínimo indispensável para o seu sustento  e  demais  membros  do agregado familiar, de  forma a que os credores  possam ver seus créditos satisfeitos em alguma medida  e  se justifique  o perdão da dívida  de que , em princípio,  beneficiará no fim do período de cessão de rendimentos.
O  recorrente insurge-se  quanto ao valor   fixado  na decisão recorrida ( 1,2SMN)   sustentando, em síntese, que  tal montante é insuficiente  para   prover  às despesas  com  o  seu sustento, pagar as despesas com tratamentos médicos e medicamentos da mãe, bem como  a  pensão  à  filha  menor,  no valor mensal  que seja a ser de €200,00,  sendo que € 165,00 do vencimento lhe  é pago em cartão refeição e só os pode utilizar para o pagamento de compras, peticionando a fixação do rendimento indisponível em 1,5 SMN.

Ora,  mostra-se provado que :
-  O insolvente, nascido no dia .../.../1968, foi casado com BB desde .../.../1991 a .../.../2011, data em que foi decretado o divórcio, pelo que, atualmente, é divorciado.
- Deste casamento não teve filhos, no entanto o insolvente tem uma filha de um outro relacionamento, CC, atualmente com 15 anos.
-  A filha do insolvente reside com a mãe, no ..., sendo que o insolvente paga mensalmente a quantia de 130,00 euros a título de pensão de alimentos, assumido ainda, a meias com a mãe, despesas extracurriculares e médicas.
-  No que concerne à sua residência, o insolvente reside, de favor, em casa da sua mãe, assumindo despesas com telecomunicações, água, luz e gás.
-  O insolvente encontra-se empregado, por conta de outrem, a exercer a função de chefe de secção, na sociedade “F..., SA.”, NIPC ..., onde aufere, a título de vencimento base, o montante de 1.159,00 euros.

Importa sublinhar que é no momento da formulação do pedido de exoneração que o insolvente deve  alegar as  respectivas  despesas   e  apresentar os meios de prova,  não  servindo as alegações de recurso para alegar factos novos,  o que sucede com o  alegado pagamento pelo recorrente dos tratamentos médicos e  medicamentosos da  sua mãe.
Assim, os factos a ponderar são  os fixados  na decisão recorrida, sendo que, como já dissemos,  as despesas  atendíveis são as despesas  razoáveis face  às condições pessoais de vida do devedor e  não todas as despesas  comprovadas ou meramente  invocadas.
Por outro lado, no passado dia 22 de dezembro, foi publicado o Decreto-Lei n.º 85-A/2022 que fixou o valor da retribuição mínima mensal garantida em € 760, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2023.
Ora, considerando  que o insolvente  vive em casa da mãe, os encargos  que suporta com  a habitação  são  apenas as  despesas com telecomunicações, água, luz e gás que assumiu.  Além disso, tem as despesas normais para prover  às necessidades  básicas,  tais como, alimentação, vestuário, higiene pessoal, servindo o cartão refeição para custear as despesas com a alimentação. Não comprovou quaisquer  outras despesas  pessoais  significativas, nomeadamente de saúde.
Todavia, às despesas com o seu sustento, acresce a pensão alimentícia devida à filha, no valor mensal  de € 130,00, e outras despesas variáveis, extracurriculares e médicas, assumidas a meias com  a mãe.
Neste contexto e tendo em conta os valores que vêm sendo atribuídos pela  jurisprudência  em casos semelhantes,  consideramos  o montante de   1,2   ( RMMG)  fixado na decisão recorrida ajustado ao sustento  minimamente  digno do insolvente,   não se justificando  face  aos factos provados  a  montante de 1,5 RMMG  peticionado.
Em suma,  falece  a argumentação recursiva,  impondo-se a confirmação da decisão recorrida
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IV. Decisão:

Pelo exposto, os Juízes desta 1ª Secção Tribunal da Relação  de Guimarães acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. 
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Custas pelo recorrente -  art.º 527º, n.º 1 e 2,  do CPC.
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Notifique-se
Guimarães,  10 de Julho de 2023

Os Juízes Desembargadores
Relatora: Maria Eugénia Pedro
1º Adjunto:    Pedro Maurício
2ªAjdunta:   Maria Gorete Morais