Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ANSELMO LOPES | ||
Descritores: | INTERESSE EM AGIR MINISTÉRIO PÚBLICO DETENÇÃO INVALIDADE | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 09/08/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | JULGADO PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I – Se o Ministério Público ordena a detenção de um arguido, nos termos do artº 257º do C.P.Penal, e tal detenção não é validada, ordenando-se a libertação do arguido e a sua notificação para comparência a posterior acto judicial sob pena de ser detido, tem o Ministério Público legitimidade para recorrer de tal despacho, mesmo que, entretanto, o arguido tenha comparecido ao acto para o qual fora convocado. II – Tal legitimidade resulta do artº 401º, nº 1 e é inerente à pretensão de legalidade do acto praticado pelo recorrente e, consequentemente, de ilegalidade da decisão que não o validou. III – Pode, como é o caso, a validação já não ter efeito processual prático, mas mesmo assim, e para vários efeitos - eventual acção do detido, controle hierárquico, mérito, disciplina, etc. -, é patente o interesse do Ministério Público (e do Magistrado, como tal, e como autor do acto) em ver declarada a bondade legal da sua actuação concreta. IV – Com efeito, para além de o Magistrado, enquanto membro de uma estrutura orgânica que tem também por função a defesa da legalidade, poder ser alvo de intervenção hierárquica, quer para efeitos funcionais, quer de mérito ou disciplinares, é preciso admitir-se que o arguido pode, nos termos do artº 27º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa e do artº 225º, nº 1 do C.P.Penal, vir pedir indemnização ao Estado, sendo o processo onde o acto foi praticado o lugar próprio para, por via de recurso, se apreciar da legalidade ou não do referido acto. V – Aliás, no Parecer que a Ilustre Procuradora Geral-Adjunta, Cândida Almeida, deu no processo para fixação de jurisprudência que deu origem ao Assento nº 5/94 (ambos publicados no BMJ de Dezembro de 1994 e o Assento no DR nº 289/94 SÉRIE I-A, de 16-12-94) diz-se o seguinte: Não é o agente do Ministério Público que está em causa. Não é a magistratura do Ministério Público que prossegue um interesse próprio. É a comunidade que lhe impõe e lhe atribui sempre legitimidade e interesse em agir na interposição de recursos no âmbito do processo penal, para que sempre se possa prosseguir a realização do ideal de justiça. VI – Assim, no caso presente, não estamos perante uma questão abstracta ou meramente académica, pois o Ministério Público praticou um acto processual de muito relevo e significado e, naturalmente, e ao abrigo da lei - artºs 399º e 400º -, deve recorrer do despacho que não lhe sancionou tal acto e, mesmo depois de a prossecução dos autos ter prejudicado a validação do acto da detenção, tem o Ministério Público interesse em agir para recurso da decisão, ou seja, para a declaração de que no caso concreto se verificavam os pressupostos para a validação da detenção do arguido. VII – Como se vê, e em conformidade com o seu espírito - alcançar a presença de um arguido -, a letra do artº 257º basta-se com fundadas razões, sejam elas de que natureza for, de que o arguido se não apresentaria e não que não se apresentou. | ||
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Decisão Texto Integral: | * Após conferência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: TRIBUNAL RECORRIDO Tribunal Judicial de Guimarães – 1º Juízo – Pº nº 91/07.3GCGMR-D RECORRENTE O Ministério Público OBJECTO DO RECURSO No Processo Comum (Tribunal Singular) n.º 463/07.3PBGMR/1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, o arguido encontra-se acusado da prática de um crime de roubo p. e p. pelo artigo 210.°/1 do CP. Requereu o MP, então, a emissão de mandados de detenção do arguido para, sujeito a interrogatório judicial, lhe ser aplicada uma medida de coacção, para além do TIR. Por despacho proferido em 13/12/2007 a Mmª Juíza de Instrução (fls. 62. verso) entendeu não existir fundamento para a emissão dos mandados e designou o dia 26/12/2007 para interrogatório do arguido. Entretanto, em 18/12/2007, foi junta ao processo informação policial dando conta, além do mais, de que o arguido se furta a notificações e não tem residência fixa. Por despacho proferido em 20/12/2007, o Ministério Público ordenou a apensação aos presentes os autos dos processos 53/07.0GFGMR e 67/07.0GCGMR e emitiu mandados de detenção do arguido, que foram cumpridos. Entendendo que, nos termos do disposto no artigo 257°, nº 1 do CPP a detenção do arguido fora de flagrante delito só pode ser efectuada quando existirem fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante a autoridade judiciária no prazo que lhe foi fixado e nenhum elemento nos autos indicia que o arguido não se apresentará na data indicada, sendo certo que, aquando da prolação do despacho de fls. 62 já existia informação no processo (fls. 57 a 61) relativamente a outros inquéritos em curso, o Mmº Juiz não validou a detenção do arguido assim concretizada e ordenou a sua imediata libertação. Inconformada com esta decisão dela recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público, que motivou e concluiu no sentido de que deve ser revogada a decisão que não validou a detenção do arguido fora de flagrante delito. Com o fundamento em que o Ministério Público não tem interesse em agir - da eventual procedência do recurso não resultaria para o processo qualquer efeito útil - o Mmº Juiz rejeitou o recurso interposto pelo Ministério Público. Porém, por decisão de 12-05-08, o Venerando Senhor Presidente deste Tribunal da Relação, ordenou o recebimento do recurso. MOTIVAÇÃO/CONCLUSÕES Nesse recurso, formulam-se as seguintes conclusões: 1. O artigo 257.º n.º 1 do Código de Processo Penal não exige a constatação, no processo, que o arguido, já notificado, se não tenha apresentado voluntariamente; mas que existam elementos que permitam prognosticar que o arguido se não apresentará espontaneamente. 2. Diferente leitura do mencionado artigo 257.º n.º 1 esvazia as finalidades da detenção fora de flagrante delito para interrogatório judicial tendo em vista a aplicação de medida de coacção ao arguido. 3. Casos há em que - não existindo flagrante delito de crime - a colocação de cobro à continuação criminosa; ou o impedimento da fuga e da dissipação da prova se não coadunam com a notificação, e constatação de não comparência do arguido em interrogatório judicial. 4. A convocação para acto processual implica a adopção de procedimentos burocráticos nem sempre compatíveis com a situação de urgência e de perigo na demora em concreto existentes. 5. Devendo usar-se de prudência na realização da detenção fora de flagrante delito, não deverá cair-se no exagero oposto de permitir que a justiça penal aguarde pela constatação da não comparência do arguido notificado, para colocar fim à continuação da actividade criminosa ou à perturbação da actividade de inquérito. 6. Não pode entender-se que o artigo 257.º n.º 1 do Código de Processo Penal faz uma exigência de demonstração endoprocessual de que o arguido se não apresentou voluntariamente, como que se exigindo uma citação do arguido para seu interrogatório judicial tendo em vista aplicação de medida de coacção. 7. Aquando do despacho judicial que determinou a notificação do arguido para interrogatório no dia 26 de Janeiro de 2007, não existia a informação da autoridade de policia que apontava as fundada razões de previsão de não comparência espontânea do arguido. 8. Tais razões só ficaram disponíveis posteriormente; 9. Mas já constavam do processo aquando da não validação da detenção nos termos do douto despacho recorrido. 10. A informação policial proveio da autoridade de polícia criminal, tal como definida pelo artigo 1.º al. d) do Código de Processo Penal. 11. A informação policial patenteou que o arguido insiste na prática de delitos contra o património; e que não comparece, quando notificado; que não lhe é conhecida morada certa; e que pernoita ora em automóveis ora em casa de amigos. 12. De tais factos decorrem fundadas razões para supor que o arguido não se apresentaria espontaneamente no prazo que lhe fosse fixado. 13. O despacho recorrido decidiu ao arrepio das evidências constantes do processo. 14. Ao entender que a existência de uma ordem de notificação ao arguido, para interrogatório judicial ainda não realizado, impede o juízo de que o arguido se não apresentará espontaneamente violou a lei e o artigo 257.ºn.º 1 do Código de Processo Penal. 15. Pelo que deve ser revogada a decisão de não validação da detenção fora de flagrante delito. PARECER O Ilustre PGA, nesta Relação entende que o recurso merece provimento. PODERES DE COGNIÇÃO O objecto do recurso é demarcado pelas conclusões da motivação – artº 412º do C.P.Penal, do qual serão as citações sem referência expressa. QUESTÕES A DECIDIR A única questão a decidir é a de se saber se no caso concreto, mesmo depois de a prossecução dos autos ter prejudicado a validação do acto processual praticado pelo Ministério Público, tem este interesse em agir e se, no caso afirmativo, se verificavam os pressupostos para a validação da detenção do arguido. FUNDAMENTAÇÃO O despacho em crise tem o seguinte teor: Nos presentes autos (proc. 463/07.3PBGMR) encontra-se o arguido acusado da prática de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210.°/1 do CP. Requereu o MP, então, a emissão de mandados de detenção do arguido para, sujeito a interrogatório judicial, ser-lhe aplicada uma medida de coacção, para além do TIR. Por despacho proferido em 13/12/2007, pela Mmº Juiz de Instrução (fls. 62.verso) foi entendido não existir fundamento para a emissão dos mandados e designou-se o dia 26/12/2007, pelas 10 horas, para interrogatório do arguido. Foi solicitada a notificação do arguido, através da GNR, desconhecendo-se se foi ou não notificado. Entretanto foi junta ao processo, em 18/12/2007, informação policial dando conta, além do mais, de que o arguido se furta a notificações e não tem residência fixa. Por despacho proferido em 20/12/2007, o MP ordenou a apensação aos presentes autos dos processos 53/07.0GFGMR e 67/07.0GCGMR e entendeu emitir mandados de detenção do arguido. Mandados esses que foram cumpridos. * Apreciando.Dispõe o artigo 257.°/1 do CPP que a detenção do arguido fora de flagrante delito, como é o caso dos autos, só pode ser efectuada quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante a autoridade judiciária no prazo que lhe foi fixado. No caso dos autos, ao arguido foi fixado um prazo para comparecer em Tribunal - dia 26/12/2007, pelas 10 horas. Nenhum elemento nos autos indicia que o arguido não se apresentará na data indicada, sendo certo que, aquando da prolação do despacho de fls. 62 já existia informação no processo (fls. 57 a 61) relativamente a outros inquéritos em curso. Na verdade, desconhece-se até se o arguido se encontra ou não notificado. Contudo, sempre se dirá que tendo sido solicitada a intervenção da GNR para notificar o arguido, tal notificação não se mostra difícil ser levada a cabo, tanto mais que a própria GNR cumpriu os mandados de detenção emitidos pelo MP. Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, entendo que a detenção do arguido não obedeceu ao disposto no artigo 257.°/1-a) do Código de Processo Penal Face ao exposto, ordeno a imediata libertação do arguido. * Uma vez que o arguido se encontra no Tribunal, notifique-o para no dia 26/12/2007, pelas 10 horas, comparecer no Tribunal, sob pena de, não o fazendo, serem emitidos mandados de detenção.* Antes de mais, e como a decisão do Venerando Senhor Presidente deste Tribunal, no caso, não vincula o Tribunal de recurso (artº 405º, nº 4), importa que nos pronunciemos sobre a legitimidade e sobre o interesse em agir por parte da Digna recorrente.Diz-se assim no despacho de rejeição: De acordo com o disposto no artº 401º, nº 1 do C.P.P., tem legitimidade para recorrer, entre outro, o Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido (al. a), não podendo todavia recorrer quem não tiver interesse em agir (nº 2 do mesmo preceito). Em termos de recurso em processo penal, tem interesse em agir quem tiver necessidade deste meio de impugnação para defender o seu direito. O interesse em agir afere-se pelo sacrifício que a decisão representa. Não é um interesse meramente abstracto, na correcção das decisões judiciais, mas um interesse concreto, pelo efeito que, em benefício do recorrente ou dos interesses que lhe compete acautelar, se busca com a decisão. No caso concreto, a decisão de fls. 933 e ss. produziu efeitos imediatos que não são sindicáveis por via de recurso. A admitir-se o recurso interposto, da sua eventual procedência não resultaria para o processo qualquer efeito útil, que é o que se pretende acautelar com a exigência do interesse em agir do recorrente. Por isso, não tem o Mº Pº interesse na impugnação da decisão de fls. 93 e ss. * Na reclamação, a Digna Magistrada do Ministério Público diz o seguinte:Decorre do artigo 401.º do Código de Processo Penal que a legitimidade para recorrer e a definição do interesse em agir assume diferentes extensões conforme o recorrente seja o Ministério Público, o arguido, o assistente ou as partes civis. Conforme refere CUNHA RODRIGUES em Jornadas de Processo Penal, “a apreciação deste requisito é confiada ao intérprete que terá de verificar a medida que o acto ou procedimento são impugnados em sentido favorável à função que o recorrente desempenha no processo”. Ora, de entre as competências que a Constituição da República Portuguesa defere ao Ministério Público conta-se a defesa da legalidade democrática – artigo 219.º. O exercício de uma tal função é concretizado pelo estatuto dos magistrados do Ministério Público, aprovado pela Lei 47/86, de 15 de Outubro com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20 de Agosto, 10/94, de 5 de Maio e 60/98, de 27 de Agosto. Aí dispõe o artigo 3.º n.º 1 al. f) que compete especialmente ao Ministério Público defender a independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis. Assim que a definição do que seja o interesse em agir do Ministério Público não pode ser feita tendo por referência uma ponderação do benefício ou sacrifício que a decisão represente para o modo como exercício da acção penal se persegue num concreto processo. Para lá da utilidade imediata que a procedência do recurso terá para a marcha do processo, o Ministério Público tem, ainda, interesse em agir quando recorra das decisões judiciais que entende não fazerem correcta aplicação da lei. Assim sucedeu com o recurso de cujo despacho de não admissão ora se reclama. Na verdade, a questão recorrida prende-se com a interpretação do artigo 257.º n.º 1 do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto. E designadamente, com o entendimento do que sejam “fundadas razões para considerar que o visado não se apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado”, a justificar a emissão de mandados de detenção. Bem sabemos que a decisão da questão não interfere com a decisão que venha a recair com a acusação deduzida no processo. Todavia, a aferição da utilidade do recurso não se esgota com a ponderação da relevância da sua apreciação para a decisão final. Assim é que, por princípio, todos os despachos são recorríveis; e nem todos os recursos têm subida imediata - artigos 440.º n.º 1 e 406.º n.º 1 do Código de Processo Penal. A questão cuja apreciação se suscita perante o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, ainda que meramente processual, não a desmerece da tutela judiciária. Mormente quando consideradas as funções que o seu estatuto acomete ao recorrente Ministério Público. E na reclamação, o Venerando Senhor Presidente deste Tribunal considera o seguinte: As portas da "domus iustitiae" devem ser fechadas a quem não tem um interesse juridicamente relevante e atendível do ponto de vista jurídico-positivo, consagrando a nossa lei processual civil, dentre os pressupostos processuais referentes às partes, o designado pelos autores italianos interesse em agir, chamado de necessidade de tutela judiciária (Rechtsschutzbedurfnis) pelos legalistas alemães e também comummente entre nós cognominado de interesse processual. Só se justifica o recurso a Juízo quando alguém tem necessidade de dar concretização ao direito que, racionalmente, a sociedade lhe tem atribuído e que lhe está a ser denegado por outrem. Para que se possa tomar como legítima esta tomada de posição não se torna exigível que o autor só através deste modo possa realizar o seu objectivo; porém, casos haverá em que a ocorrência que se quer ver protegida se mostra desde logo não merecedora de qualquer atitude jurisdicionalmente defensória e a merecer a recusa de se continuar com a tramitação processual destinada a dela cuidar. Em processo penal, conforme o estatuído no art.º 401º, n.º 1, al. a) e 2, do C.P.Penal, o Ministério Público tem legitimidade para recorrer de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido, desde que para tanto demonstre ter interesse em agir. No enquadramento do princípio constitucional da defesa da legalidade democrática consagrado no artigo 219.° da C.R.Portuguesa, é doutrina unânime o entendimento de que ao Ministério Público assiste, como regra geral, legitimidade para, em processo penal, recorrer de quaisquer decisões que entenda não fazerem a correcta aplicação da lei, nenhuma restrição se lhe estabelecendo neste pontificado domínio adjectivo-criminal. Recordemos o que está escrito no Acórdão do Plenário das Secções criminais do STJ n.º 5/94, que estabelece, entre outras, as seguintes conclusões: 2.ª - O actual enquadramento constitucional e legal do Ministério Público impõe-lhe o exercício da acção penal e a defesa da legalidade democrática, sendo a sua autonomia caracterizada pela vinculação a critérios de legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados e agentes do Ministério Público às directivas, ordens e instruções previstas na lei; 4.ª A boa-fé, o abuso de direito e outros princípios congéneres que têm a sua sede própria no direito civil não podem colocar-se relativamente à actuação do Ministério Público em processo penal, isto porque os critérios que aqui regem esta magistratura são outros e diversos, tais como a defesa da legalidade democrática e dos interesses que a lei determinar. O interesse em agir adstrito ao Ministério Público não constitui uma vontade abstracta e/ou um acto isolado que tenha assim de ser ajuizado, mas antes se prende com a obrigação funcional da defesa e legitimação do exercício perfeito do nosso sistema jurídico, neste contexto se impondo aos seus Magistrados a obrigação de recorrer em todos os casos em que passem a detectar, segundo o seu pensamento, eventuais ilegalidades na interpretação normativa que integra a nossa ordem jurídica. Porque não aceita a interpretação que o despacho recorrido consignou no que respeita ao estatuído no art.º 257.° n.º 1 do Código de Processo Penal, a legitimidade do Ministério Público para a impugnação que dele fez mediante recurso está legitimada no princípio da legalidade democrática que ao Ministério Público cumpre proteger. A razão está assim do lado da Ex.ma Magistrada recorrente/reclamante. * E está, de facto. Nem pretendemos dizer melhor.Simplesmente, sugerem-se-nos umas breves notas. Antes de mais, acrescentaremos que no caso presente não estamos perante uma questão abstracta ou meramente académica: o Ministério Público praticou um acto processual de muito relevo e significado e, naturalmente, e ao abrigo da lei - artºs 399º e 400º -, deve recorrer do despacho que não lhe sancionou tal acto. A sua legitimidade é indiscutível e resulta do artº 401º, nº 1: Têm legitimidade para recorrer: a) O Ministério Público, de quaisquer decisões (recorríveis, como é óbvio), ainda que no exclusivo interesse do arguido. O interesse em agir é inerente à pretensão de legalidade do acto praticado e, consequentemente, de ilegalidade da decisão que não o validou. Pode, como é o caso, a validação já não ter efeito processual prático, mas nem por isso, e para vários efeitos - eventual acção do detido, controle hierárquico, mérito, disciplina, etc. - Com efeito, para além de o Magistrado, enquanto membro de uma estrutura orgânica que tem também por função a defesa da legalidade, poder ser alvo de intervenção hierárquica, quer para efeitos funcionais, quer de mérito ou disciplinares, é preciso admitir-se que o arguido pode, nos termos do artº 27º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa e do artº 225º, nº 1 do C.P.Penal, vir pedir indemnização ao Estado, sendo o processo onde o acto foi praticado o lugar próprio para, por via de recurso, se apreciar da legalidade ou não do referido acto. -, é patente o interesse do Ministério Público (e do Magistrado, como tal, e como autor do acto - No Parecer que a Ilustre Procuradora Geral-Adjunta, Cândida Almeida, deu no processo para fixação de jurisprudência que deu origem ao Assento nº 5/94 (ambos publicados no BMJ de Dezembro de 1994 e o Assento no DR nº 289/94 SÉRIE I-A, de 16-12-94) diz-se o seguinte: Não é o agente do Ministério Público que está em causa. Não é a magistratura do Ministério Público que prossegue um interesse próprio. É a comunidade que lhe impõe e lhe atribui sempre legitimidade e interesse em agir na interposição de recursos no âmbito do processo penal, para que sempre se possa prosseguir a realização do ideal de justiça. Das decisões do juiz, que prossegue esse mesmo ideal, recorre-se e para que esse mesmo escopo final possa vir a ser alcançado com a decisão do tribunal superior, é atribuído ao Ministério Público o poder-dever de recorrer em todas as decisões penais.) em ver declarada a bondade legal da sua actuação concreta. O interesse em agir não vem definido na lei, cabendo a sua definição à Jurisprudência e à Doutrina, bastando aqui citar-se o Acórdão do STJ de 7.12.99, proc. n.º 1081/99 in Acórdãos do STJ VII, 3, 229, onde se diz: O interesse processual ou interesse em agir é definido, em termos de processo civil, como a necessidade do processo para o demandante em virtude de o seu direito estar carecido de tutela judicial. Há um interesse do demandante não já no objecto do processo (legitimidade) mas no próprio processo. Em termos de recurso em processo penal tem interesse em agir quem tiver necessidade deste meio de impugnação para defender um seu direito”. Por outro lado, veja-se o sumário do Assento nº 5/94, onde se conclui: Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 52.º e 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e atentas a origem, natureza e estrutura, bem como o enquadramento constitucional e legal do Ministério Público, tem este legitimidade e interesse para recorrer de quaisquer decisões mesmo que lhe sejam favoráveis e assim concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo. Neste douto aresto, depois de situar historicamente o Ministério Público, afirma-se o seguinte: Um dos núcleos essenciais que vimos manter-se nessa evolução foi que o Ministério Público não pode ser equiparado às outras partes do processo e essa característica mantém-se plenamente válida perante o processo penal vigente. Como escrevia o actual e ilustre Procurador-Geral da República: O processo penal português não é rigorosamente um processo de partes, sendo a posição do Ministério Público mais reconduzível à ideia de «órgão de justiça». O Código é perfeitamente claro nesta matéria ao estabelecer que o Ministério Público pode recorrer no exclusivo interesse do arguido (artigo 401.º) e ao definir o programa de actuação do Ministério Público: colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito, obedecendo em todas as intervenções processuais a critérios de estrita objectividade - artigo 53.º [Conselheiro José Narciso da Cunha Rodrigues, in Recursos, Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, p. 390.] Mais relevante, contudo, é a proposição de que, relativamente à actuação de uma magistratura que constitucional e legalmente se pauta pela defesa da legalidade democrática e cuja autonomia se caracteriza pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade, não tem qualquer sentido falar-se em infracção dos princípios da boa-fé, o que potencia que, por maioria de razão, não faria sentido restringir o recurso em situações como a dos autos, só porque a finalidade do acto está prejudicada. Por isso, aliás, também ali se conclui que …a boa-fé, o abuso de direito e outros princípios congéneres que têm a sua sede mais própria no direito civil, não podem colocar-se relativamente à actuação do Ministério Público em processo penal, já que os critérios por que esta magistratura se rege aqui são outros muito diferentes, como se viu, ou sejam, a defesa da legalidade democrática e os interesses que a lei determinar. E, mais adiante, ainda com maior incisão: …sempre porque tem de presumir-se que a sua actividade global e indivisível, (…) consiste, em qualquer nível, na defesa da legalidade democrática, com uma autonomia caracterizada pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade, rematando-se com a seguinte conclusão (6ª): O interesse em agir do Ministério Público está em correlação directa com a defesa da legalidade democrática e dos interesses que a lei determinar… Como acentua a Digna recorrente, o exercício de uma tal função é concretizado pelo estatuto dos magistrados do Ministério Público, aprovado pela Lei 47/86, de 15 de Outubro com as alterações introduzidas pelas Leis nºs 2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20 de Agosto, 10/94, de 5 de Maio e 60/98, de 27 de Agosto. Aí dispõe o artigo 3.º n.º 1 al. f) que compete especialmente ao Ministério Público defender a independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis. E razão plena tem ainda quando afirma que a definição do que seja o interesse em agir do Ministério Público não pode ser feita tendo por referência uma ponderação do benefício ou sacrifício que a decisão represente para o modo como exercício da acção penal se persegue num concreto processo e que para lá da utilidade imediata que a procedência do recurso terá para a marcha do processo, o Ministério Público tem, ainda, interesse em agir quando recorra das decisões judiciais que entende não fazerem correcta aplicação da lei. Como, exceptuando os sublinhados, se invoca no douto Parecer acima referido em nota, citando Giovanni Tranquina (Diritto Processo Penale – Enciclopédia del Diritto/Giuffré), a ideia de que o interesse do Ministério Público em recorrer seria juridicamente irrelevante, se restrito à aplicação da in se e per se, em vez de se referir à concreta aplicação de um preceito da lei substantiva que se tem por violada, suscita reservas, visto que é inquestionável que constitui interesse público de altíssimo valor, a exacta aplicação da lei, de modo a prescindir-se dos reflexos práticos que pode implicar. E citando Carnelutti (Leciones sobre el Processo Penal II, pág. 137), escreve-se que: O conceito de vencimento mostra-se inadequado em processo penal, e para que possa ser utilizado precisa, no mínimo, de ser modificado. O princípio do vencimento não pode ser absoluto como em processo civil […] a fórmula contida no artigo 190º do Código de Processo Penal (para recorrer é preciso ter interesse) deve ser submetida a interpretação subtil. (…) Tal norma (artigo 190º) parece excluir que o interesse para recorrer de que fala signifique vencimento, visto que o Ministério Público pode recorrer não só da sentença que negou as suas razões, como daquela que as reconheceu. Em casos como o presente, se o Mmº Juiz não obviasse, por qualquer forma, à obtenção das finalidades pressupostas pelo Ministério Público, ninguém teria dúvidas de que se justificava o recurso, podendo o Tribunal superior determinar que se justificava a detenção do arguido. Ora, tendo o Mmº Juiz utilizado expediente diferente para levar o arguido a Tribunal, alcançando a mesma finalidade que o Ministério Público queria atingir, nem por isso, e pelas razões já expostas, se deverá recusar o recurso para dilucidar da legalidade das respectivas decisões. O direito é para o Ministério Público, não um limite da sua actividade, …mas o próprio fim da sua actividade, dizia Cavaleiro de Ferreira (cf. citado Parecer). Logo, o recurso tem toda a razão de ser. *** No que tange ao seu mérito, insira-se, antes de mais, o douto Parecer do Ilustre Procurador Geral-Adjunto.Diz assim: 3. Como é bom de ver, a questão nuclear que constitui o objecto do processo, releva da hermenêutica do novel art. 257º, n º 1 do CPP (Detenção fora de flagrante delito») mormente quanto à exigência de que a detenção em tais circunstâncias, seja por mandado do juiz, ou nos casos em que for admissível prisão preventiva, do MP, só se poderá efectivar, quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante a autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado. 3.1. Como bem se anota no recurso, aquando do despacho judicial que determinou a notificação do arguido para interrogatório no dia 26 de Janeiro de 2007, não existia nos autos informação da autoridade policial que apontasse no sentido da existência de fundadas razões que levassem a prognosticar a não comparência do arguido. Todavia, posteriormente mas em data anterior ao despacho de não validação da detenção, foi junta ao processo informação de autoridade de polícia criminal – ut CPP 1º, Al. d), no sentido de que o arguido em causa continua na senda da prática de crimes contra o património, não comparece, quando notificado, não lhe sendo conhecida morada certa, e que pernoita ora em automóveis ora em casa de amigos. Somos assim de parecer que o recurso deve ser julgado improcedente. 3.2. Da conjugação de tais dados, imperioso se torna concluir, mostrar-se verificado circunstancialismo que integra e preenche a legal exigência de se perfilarem sérias razões para crer que o arguido com grande grau de probabilidade não se apresentaria à diligência para a qual estava notificado. Tal conclusão, bastava «in casu» admitindo o crime, em causa a decretação de prisão preventiva, para que o MP pudesse emitir válida, regular e legalmente os referidos mandados de detenção do arguido para apresentação ao Juiz de Instrução Criminal, e em consonância, por este validada a detenção. 3.2.1. Por último tenha-se em boa nota que, se com os novos requisitos de admissibilidade da emissão de mandados de detenção fora de flagrante delito, se introduziram restrições no regime anterior (cf. art. 257º do CPP, na versão anterior) nunca a norma poderá ser interpretada de acordo com aquilo que manifestamente lá não está, ou seja no sentido de que seria primeiro necessário agendar o interrogatório e ordenar a correspectiva notificação do arguido, e só perante a concretizada ausência injustificada deste, encarar a emissão de mandados de detenção, o que corresponderia a uma a todos os títulos injustificada perda de tempo e de eficácia da investigação, que mesmo este legislador, ainda não ousou… * A possibilidade de detenção fora de flagrante delito vem prevista no artº 257º, nos seguintes termos, agora sublinhados:1 - Fora de flagrante delito, a detenção só pode ser efectuada, por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público, quando houver fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria espontaneamente perante autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado. Como se vê, e em conformidade com o seu espírito - alcançar a presença de um arguido -, a letra da lei basta-se com fundadas razões, sejam elas de que natureza for, de que o arguido se não apresentaria e não que não se apresentou. Por isso, tem razão a Digna recorrente quando alega que o preceito em causa não exige a constatação, no processo, que o arguido, já notificado, se não tenha apresentado voluntariamente; mas que existam elementos que permitam prognosticar que o arguido se não apresentará espontaneamente. Como era o caso. Todos os elementos dos autos, relativos ao paradeiro do arguido, permitiam prever que ele não se apresentaria e, além disso, a informação policial (este tipo de informação, para estes efeitos, é deveras relevante) viria ainda reforçar esse pressentimento, sendo irrelevante que o arguido acabasse por comparecer à diligência de 26-12, pois, por um lado, já tinha verificado que poderia ser detido e, por outro, também foi notificado sob essa cominação. ACÓRDÃO Pelo exposto, acorda-se em se julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e, para todos os efeitos, validando-se a detenção ordenada pelo Ministério Público. Sem custas. * Guimarães, 8 de Setembro de 2008 |