Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
525/12.5GAAMR.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: QUEIXA
QUEIXA DO OFENDIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Para se apresentar a queixa não são necessários especiais conhecimentos jurídicos, nem a sua validade está dependente de qualquer fórmula sacramental. Mas a lei não dispensa existência de um ato formal em que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que haja procedimento criminal por determinado facto. Esse ato formal consiste em «dar conhecimento do facto» ao Ministério Público ou a entidade com a obrigação legal de o transmitir àquele.
II - Não é necessário que o facto seja descrito com todos os pormenores, nem que sejam identificados os seus autores (que podem não ser conhecidos), mas tem de ser identificado o episódio a que a queixa se refere, para que não haja dúvidas sobre o que estava no espírito do queixoso quando tomou a decisão.
III - Sendo o crime semipúblico, é o referido ato formal de se “dar conhecimento do facto” que está na origem do processo e desencadeia a investigação, sem o qual esta não pode sequer começar.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No processo de instrução 525/12.5GAAMR do Tribunal Judicial de Amares, o assistente Augusto C... requereu a abertura de instrução visando que, no que releva para este recurso, a arguida Cristina S... fosse pronunciada como por um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143 nº 1 do Cod. Penal.
Realizada a instrução e o debate instrutório foi proferido decisão instrutória que não pronunciou a arguida Cristina S....
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O assistente Augusto C... interpôs recurso desta decisão.

A questão suscitada no recurso é a de saber se os autos contêm indícios suficientes de a arguida Cristina ter cometido o crime imputado.


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Respondendo a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.

Nesta instância, o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no mesmo sentido.

Suscita, porém, igualmente, a questão prévia de não ter existido queixa por parte do recorrente.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos cumpre decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO
Como se referiu no relatório deste acórdão, o recurso visa que a arguida Cristina S... seja pronunciada como autora de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143 nº 1 do Cod. Penal.
Trata-se de crime com natureza semipública, pois o procedimento criminal depende de queixa (art. 143 nº 2 do Cod. Penal).
No seu parecer, o sr. procurador geral adjunto suscitou a «questão prévia» da falta de queixa por parte do recorrente Henrique C....
Dispõe o art. 49 nº 1 do CPP que “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outra pessoa, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”. Nos termos do nº 2 do mesmo artigo considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
A norma é bem explícita. Para se apresentar a queixa não são necessários especiais conhecimentos jurídicos, nem a sua validade está dependente de qualquer fórmula sacramental. Mas, por outro lado, a lei não dispensa existência de um ato formal em que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que haja procedimento criminal por determinado facto. Esse ato formal consiste em «dar conhecimento do facto» ao Ministério Público ou a entidade com a obrigação legal de o transmitir àquele.
É uma solução harmoniosa com a realidade social. O cidadão comum não sabe, ou não tem de saber, Direito. Mesmo os que sabem podem não estar na posse de todos os elementos relevantes para a configuração penal do caso. Mas todos sabem que, quando se deseja a perseguição penal de outrem, relativamente a alguns crimes é necessário que o próprio (ou alguém por si – art. 49 nº 3 do CPP) se dirija, verbalmente ou por escrito, ao Ministério Público ou a alguma polícia a relatar o episódio para que se “promova o processo”.
A queixa e com ela a decisão de desencadear a perseguição penal de alguém é uma ato grave e sério, com consequências não só na vida do visado, mas também na do queixoso, pois pode criar inimizades e quebrar relações sociais. A lei pretende que seja um ato refletido. Para tal, revestiu-o de uma formalidade mínima que consiste em o queixoso formalmente “dar conhecimento do facto” para que seja “promovido o processo”. Como se disse, não é necessário que o facto seja descrito com todos os pormenores (que podem até nem ser do conhecimento do queixoso), nem que sejam identificados os seus autores (que igualmente podem não ser conhecidos), mas tem de ser identificado o episódio a que a queixa se refere, para que não haja dúvidas sobre o que estava no espírito do queixoso quando tomou a decisão.
Sendo o crime semipúblico, tem de haver o referido ato formal de se “dar conhecimento do facto”. É esse ato que está na origem do processo e desencadeia a investigação, sem o qual a investigação não pode sequer começar.
Existindo o ato formal de “dar conhecimento” impõe-se uma interpretação ampla e favorável ao queixoso quanto aos termos em que foi feito e aos fins visados. Porém, a lei não o dispensa. A queixa não pode resumir-se a meros comportamentos processuais.
Vejamos, então, o caso destes autos:
Resultam eles da incorporação de dois inquéritos: o 525/12.5GAAMR e o 529/12.8GAAMR..
Os dois inquéritos reportam-se a um episódio, ocorrido em 1 de Setembro de 2012, de alegadas agressões e injúrias em que estiveram envolvidos, de um lado, Cristina S..., ex-companheira do recorrente e, do outro, o recorrente Henrique C... e a sua mãe Maria F....
No Proc. 525/12.5GAAMR a queixa foi apresentada pela Cristina S... contra o seu ex-companheiro Henrique C..., relatando factos que abstratamente integram os crimes de ofensa à integridade física e injúria (fls. 4).
No Proc. 529/12.8GAAMR a queixa foi apresentada pela Maria F... contra a Cristina S..., por factos que abstratamente integram o crime de ofensa à integridade física.
Não existe nos autos qualquer ato formal de comunicação de factos ao Ministério Público ou a entidade policial por parte do Henrique C... do qual seja possível concluir que, com ele, pretendeu que fosse dado início a um processo criminal e desencadeada a respetiva investigação contra a Cristina S....
É certo que ao longo do processo existem vários elementos compatíveis com a existência de um desejo de procedimento criminal por parte do Henrique Cardoso.
- a fls. 16 dos autos está um «relatório de perícia de avaliação do dano corporal» (aliás inconclusivo) feito na pessoa do recorrente Henrique Cardoso, mas a realização dessa perícia pode ter múltiplas explicações – desde a errada perceção de quem fazia a investigação de que se tratava de crime público, até prevenir a hipótese de terem existido lesões recíprocas, circunstância suscetível de relevar na decisão final – cfr. art. 143 nº 3 al. a) do Cod. Penal.
- a fls. 76 o agora recorrente foi ouvido como arguido. Limitou-se a negar os factos de que é acusado e a dizer que “ sobre os factos apresentou denúncia como ofendido também na GNR de Amares, em processo que neste momento não sabe indicar o seu NUIPC, é onde vai esclarecer o que realmente se passou”. Trata-se de uma afirmação inconsistente, sem suporte nos elementos fornecidos pelos autos, que pode apenas resultar duma reação momentânea. Sendo certo que não é a estes autos que o recorrente se referiu, se existir outro processo será nele que deverá acautelar os seus direitos.
As exigências de certeza processual não são compatíveis com a indeterminação que resulta da declaração transcrita.
- finalmente, a fls. 82 o recorrente voltou a prestar declarações, mas na qualidade de testemunha indicada pela sua mãe, a já referida Maria F... (cfr. queixa de fls. 24). Apresentou a sua versão dos factos, da qual resulta ter sido agredido pela Cristina, mas daí não é possível concluir qualquer desejo de comunicação de factos para que seja exercida a ação penal.
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Tendo os factos ocorrido em 1 de setembro de 2012, na data em que foi requerida a instrução pelo assistente/recorrente (14-10-2013 – fls. 197) já há muito tinha sido ultrapassado o prazo de 6 meses para o efeito, estando extinto o respetivo direito – art. 115 nº 1 do Cod. Penal.
Por isso (por força do já citado art. 49 nº 1 do CPP) não podia, sequer, o Ministério Público ter iniciado a investigação quanto ao crime de ofensa à integridade física alegadamente perpetrado pela Cristina S... na pessoa do recorrente Henrique Cardoso. E, por maioria de razão, também não podia ter havido lugar à instrução requerida pelo recorrente visando a pronúncia da Cristina S..., nem esta relação pode decidir a pronúncia.
O recurso improcede.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso.
O recorrente pagará 3 UCs de taxa de justiça.