Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4937/23.0T8BRG.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRETENSÃO INFUNDADA
SIMPLES IMPRUDÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A mera circunstância de o autor deduzir pretensão infundada é insuficiente para o julgar como litigante de má-fé.
2 – A litigância de má-fé revela-se no comportamento da parte que, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar – art. 542º, nº 2, al. a), do CPC.
3 – A simples imprudência não é sancionada a título de litigância de má-fé, pois é indispensável a verificação de uma atuação com dolo ou negligência grave.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. AA propôs ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e mulher, CC, pedindo a condenação dos Réus «a restituir a quantia de € 1.100,00 (mil e cem euros) à Autora, por força da cessação do contrato de arrendamento em 31 de Janeiro de 2023 e pela transferência na sua totalidade do arrendamento ao ex marido da Autora», bem como no «pagamento de juros que forem devidos à taxa legal em vigor até integral e efectivo pagamento».
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Os Réus contestaram por exceção e por impugnação, requerendo ainda a condenação da Autora como litigante de má-fé, em multa e em «indemnização ao Réu de quantia nunca inferior a 1.000,00 €.»
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1.2. Findos os articulados, decidiu-se «que o Tribunal:
1. considera verificada a excepção dilatória de ilegitimidade passiva dos réus, absolvendo-os da instância;
2. condena a autora numa multa de 3UC a título de litigância de má-fé».
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1.3. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação da decisão relativa à litigância de má-fé, formulando as seguintes conclusões:
«I – Vem a Recorrente interpor Recurso do Despacho sanador Sentença do Tribunal Judicial da Comarca ..., ao abrigo do disposto no Artigo 542º, n.º 3 do Código Processo Civil.
II – Entende a aqui Recorrentes que, embora tenha mui respeito pela decisão ora recorrida, cabe-lhe o reparo que aqui se apresenta, no que respeita à condenação da Autora como litigante de má-fé.
III - Pois, há que analisar qual o conceito de litigância de má-fé, se a conduta assumida pela Autora nos autos é passível de ser considerada como litigante de má-fé, e como tal, se haveria lugar à aplicação da multa de 3UC.
IV – No que respeita ao conceito de litigância de má fé, prescreve o Art.º 542º n.º2 do Cód. Proc. Civil que: (…)
V - Ora, foi em face deste conceito de litigância de má-fé que o Meritíssimo Juiz entendeu que a aqui Recorrente, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar e utilizou o processo com o fim de conseguir um objectivo ilegal.
VI – Entende a Recorrente que, contrariamente ao entendido pelo Tribunal “a quo”, e salvo o devido respeito, não se verifica qualquer das situações a que alude o n.° 2 do Art. 542.°, do CPC, nomeadamente, não se encontra preenchida a sua alínea a), pelo que não deverá ser condenada em multa, conforme dispõe o n.° 1, do Art. 542.°, do CPC, uma vez que a Autora, ora Recorrente, não deduziu, com dolo ou negligência grave, uma pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar.
VII- A dedução de pretensão infundada, não basta, só por si, para se concluir pela litigância de má-fé, única via de conciliar, a nosso ver, do direito fundamental do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa) com os deveres de boa-fé processual.
VIII - Porém, com o devido respeito pelas diversas opiniões, há que analisar o que Autora alegou na sua Petição Inicial: que em 25 de Novembro de 2021, celebrou um contrato de arrendamento para habitação com prazo certo, com os Réus.
IX - Na data de assinatura do contrato, a Autora e ex marido entregaram aos Réus a quantia de € 2.200,00 (dois mil e duzentos euros), “a título de caução, destinada à garantia do pagamento de todas as obrigações pecuniárias por si assumidas por força do presente contrato de arrendamento e, daquelas que, por força do incumprimento do presente contrato de arrendamento se possam vir a constituir”.
X - Uma vez cessado o contrato com a Autora, tendo o mesmo sido transmitido na sua totalidade e em exclusivo ao seu ex marido, a Autora tem direito a ser restituída na sua metade, ou seja, 50% do valor entregue, na quantia de € 1.100,00. (mil e cem euros).
XI - Assim, seguindo a Doutrina maioritária quanto á apreciação da modalidade e grau de culpa, para uma eventual condenação por má fé, passa-se a transcrever : “ (...) Não basta, pois, o erro grosseiro ou culpa grave; é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada de tal modo que a simples proposição da acção ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmarem um direito que não possuem ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que o autor faça um pedido a que conscientemente sabe não ter direito; e que o réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir” ( Alberto dos Reis, C. P. C. Anot., 2.º-263).
XII - É do entendimento da mais vasta jurisprudência que, “ I- Nos termos do artigo 456.º do Cód. Proc. Civil, exige-se para a má fé um verdadeiro dolo, não bastando uma simples culpa, ainda que muito grave. II – É necessário que a parte tenha procedido com intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas com leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético), para que se verifique a má fé substancial directa. III – O mesmo ocorre quanto á má fé instrumental “ (Ac. RE, de 23.1.1986: BMJ, 355.º-455 ), o que não aconteceu no caso em apreço.
XIII - a Recorrente interpretou que devem ser os senhorios a devolver os 50% da caução prestada uma vez que o contrato de arrendamento foi transmitido em exclusivo ao ex marido, pois são os senhorios que detém o valor total da caução.
XIV - A litigância de má-fé não se basta com a dedução de pretensão/oposição sem fundamento, ou com a afirmação de factos de forma distinta, sendo ainda exigível a atuação dolosa, ou com negligência grave, da parte, ou seja, é necessário que a parte conheça a falta de fundamento da sua pretensão - vd. Ac. do STJ de 18.02.2015, proc. n.º 1120/11.1TBPFR.P1.S1.
XV – Ainda que se considere que a interpretação dos preceitos normativos com base nos quais a Recorrente fundou a sua pretensão não sejam aplicáveis ao caso concreto, daí nunca se poderá concluir pela atuação dolosa ou gravemente negligente da recorrente - vide a contrario sensu n.º 2, art.º 542.º CPC.
XVI - A Recorrente limitou-se a interpretar e aplicar a lei de forma diferente sustentando a sua posição com base nos argumentos que, de facto e de direito, considerou aplicáveis in casu.
XVII - A interpretação e aplicação dos preceitos normativos em causa, ainda que feita de forma errónea, não equivalerá a uma conduta dolosa ou gravemente negligente da Recorrente, ou, sequer, a um expediente dilatório alegadamente utilizado por forma a prejudicar os Réus.
XVIII - A Recorrente nunca atuou com a consciência da ilicitude do seu comportamento, nem demonstrou a intenção de conseguir um objetivo ilegítimo ou ilegal, pelo que, não é possível formular um juízo de censurabilidade sobre a sua atuação - vide Ac. TR Coimbra de 28.05.2019, proc. n.º 3303/11.5TBLRA-A.C1.
XIX - Não se encontram preenchidos, no caso dos presentes autos, os requisitos do n.º 2, do artigo 542.º do CPC e, por tal efeito, nunca poderia a conduta da Recorrente ser integradora do conceito jurídico da litigância de má-fé.
XX - A lide ousada/temerária, ou a sustentação de teses doutrinárias controvertidas ou de interpretações legais sem grande acolhimento jurídico não configuram uma situação de litigância de má-fé - vide Ac. TR Lisboa de 30.04.2009, proc. n.º 233/08.1TBRMR-A. L1-8.
XXI- E, como tal, salvo o devido respeito por opinião contrária, não deveria a Recorrente ter sido condenada como litigante de má-fé.
XXII – Assim, de acordo com o Art.º 674º do cód. Proc. Civil, resulta que a douta sentença violou o Art.º 542º do Cód. Proc. Civil a contrario sensu ao condenar a Recorrente como litigante de má fé, porquanto a conduta da Recorrente não preenche o conceito de litigância de má fé previsto neste preceito legal.
Nestes termos, e ainda pelo que muito que, como sempre não deixará de ser proficiente suprido, deve ser concedido provimento à presente apelação, revogando-se a douta sentença no que respeita à condenação da Recorrente no pagamento de uma multa de 3UC como litigante de má-fé, com todas as consequências legais daí advenientes, por ser de inteira JUSTIÇA».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.4. Questão a decidir
Atentas as conclusões do recurso interposto pela Autora, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, importa apreciar se existiu de erro de julgamento ao considerar que estavam reunidos os requisitos para condenação da Autora em multa por litigância de má-fé.
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II – Fundamentos
2.1. Fundamentação de facto
Os factos relevantes para a apreciação da apontada questão são os descritos no relatório que antecede e ainda os seguintes, os quais emergem de atos praticados no processo:
2.1.1. Na petição inicial a Autora expôs os factos e as razões de direito que serviam de fundamento à ação nos seguintes termos:
«1. Em 25 de Novembro de 2021, Autora e Réus, na qualidade de inquilina e senhorios, respetivamente, celebraram o contrato de arrendamento para habitação com prazo certo, conforme documento n.º ... que à presente se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
2. Aquando da celebração do Contrato de Arrendamento, a Autora era casada com DD, conforme melhor se recolhe do Contrato de arrendamento aqui junto.
3. Ou seja, Autora e ex marido assinaram o contrato de arrendamento com os Réus na qualidade de Segundos Outorgantes e inquilinos.
4. Contrato de arrendamento, pelo qual os Réus dão de arrendamento à Autora e seu ex marido a fracção ... do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Praceta ... – ... andar, da freguesia ..., concelho ...
5. Pelo prazo de cinco anos, com início em 1 de Dezembro de 2021 e termo em 30 de Novembro de 2026 (cfr. cláusula quinta do contrato).
6. Mediante o pagamento da renda mensal de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros) – (cfr. cláusula terceira do contrato).
7. Na data de assinatura do contrato, a Autora e ex marido entregaram aos Réus a quantia de € 2.200,00 (dois mil e duzentos euros), “a título de caução, destinada à garantia do pagamento de todas as obrigações pecuniárias por si assumidas por força do presente contrato de arrendamento e, daquelas que, por força do incumprimento do presente contrato de arrendamento se possam vir a constituir” – (cfr. n.º 1 da cláusula décima primeira do contrato).
8. Conforme consta do n.º 3 da cláusula décima primeira do contrato de arrendamento, este uma vez cessado, a quantia entregue a título de caução obriga os Réus senhorios a restituir, no prazo máximo de 30 dias.
9. Ora, o contrato de arrendamento cessou para a aqui Autora em 31 de Janeiro de 2023, conforme consta da Ata de Tentativa de Conciliação na Ação de Divórcio sem consentimento do Outro Cônjuge que correu termos sob o n.º 7549/22.... do Juízo de Família e Menores ..., Juiz ..., conforme documento n.º ... que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
10. Ou seja, a casa morada de família, designadamente a fracção ... arrendada à Autora e seu ex marido, ficou atribuída ao marido, transferindo-se para este a totalidade do arrendamento, tal como consta da Ata aqui junta como documento n.º ....
11. Assim, a partir de 31 de Janeiro de 2023, o contrato de arrendamento celebrado entre Autora e Réus cessou para a Autora.
12. O arrendamento transferiu-se única e exclusivamente para o ex marido da Autora.
13. Pelo que, a Autora tem direito a ser restituída pelos Réus na quantia de € 1.100,00 (Mil e cem euros) da caução prestada aquando da celebração do contrato e arrendamento, no prazo de 30 dias.
14. O que até à presente data não aconteceu apesar das inúmeras interpolações ao Representante dos Réus, o Senhor EE.
15. Face ao atrás exposto e no que à caução diz respeito, dispõe o n.º 2 do artigo 1076.º, do mesmo Código, que “As partes podem caucionar, por qualquer das formas legalmente previstas, o cumprimento das obrigações respetivas”.
16. No caso, as partes acordaram (cfr. n.º 1 da cláusula décima primeira do contrato) que na data de assinatura do contrato, que a Autora e ex marido entregariam aos Réus a quantia de € 2.200 (dois mil e duzentos euros) “a título de caução destinada à garantia do pagamento de todas as obrigações pecuniárias por si assumidas por força do presente contrato de arrendamento e, daquelas que, por força do incumprimento do presente contrato de arrendamento se possam vir a constituir”, quantia que a Autora e ex marido lhes entregou.
17. Uma vez cessado o contrato com a Autora, tendo o mesmo sido transmitido na sua totalidade e em exclusivo ao seu ex marido, a Autora tem direito a ser restituída na sua metade, ou seja, 50% do valor entregue, na quantia de € 1.100,00. (mil e cem euros).
18. Ora, como já referimos, apesar de os Réus interpolados para o efeito da restituição à Autora dos 50% do valor da caução, pela cessação do contrato de arrendamento quanto à Autora, em 31 de janeiro de 2023, estes nada e nunca restituíram.
19. Assim, aqui aportados, resulta claro que assiste razão à Autora ao exigir que a caução prestada lhe seja restituída, tal como contratualmente acordado, devendo, consequentemente, os Réus serem condenados na sua restituição.
20. Por último, deverão ainda os Réus serem condenados no pagamento de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento, verificando-se existir um retardamento da prestação por causa imputável ao devedor, constitui-se este em mora e, consequentemente, na obrigação de reparar os danos causados ao credor, à Autora (artigo 804.º do Código Civil).
21. Tratando-se de obrigações pecuniárias, a indemnização corresponderá aos juros a contar a partir do dia de constituição de mora (artigo 806.º do Código Civil).
22. Nos termos do nº 1 do artigo 805.º do Código Civil, o devedor fica constituído em mora, nomeadamente, após ter sido judicialmente interpolado ao pagamento.
23. Deste modo, tem a Autora direito a juros de mora, à taxa de 4%, (nos termos do artigo 559.º do Código Civil) desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

BENEFÍCIO DE APOIO JUDICIÁRIO
24. É a aqui Autora pessoa de condição social modesta, não dispondo de meios económicos que lhe permitam custear as despesas do presente processo, pelo foi concedido pelo do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, Apoio Judiciário na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça, custas e demais encargos do processo bem como nomeação e pagamento de compensação de Patrono, conforme documento n.º ... que à presente se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.»
2.1.2. Na decisão recorrida a condenação da Autora em multa foi fundamentada do seguinte modo:
«Em terceiro lugar, visto que a ilegitimidade dos réus é por demais evidente, carecendo a acção de qualquer sustentação, tanto do ponto de vista processual, como do ponto de vista substantivo, impõe-se a condenação da mesma como litigante de má-fé, por ter deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar e utilização do processo para um fim ilegal (art 542º, n.º 2, al.a) e d) do Cod de Proc Civil).
A litigância de má-fé consiste num expediente processual destinado a dissuadir o uso reprovável do processo.
A este respeito, resulta do art. 542º do Cód de Proc Civil que: (…)
Neste sentido, quem fizer do processo um uso censurável ou se tiver comportado de uma forma reprovável no mesmo, será condenado numa multa como forma de sanção e de prevenção de comportamentos similares futuros.
A lei permite sancionar a nível de má-fé não apenas a lide dolosa mas igualmente a lide temerária, quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé tiverem sido violadas com culpa grave ou com erro grosseiro.
Nos termos da jurisprudência vertida no Douto Acórdão do TRG de 10/09/2013, proc. n.º 50904/10.5YIPRT-A.G1, na litigância de má-fé, é necessário que se deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento as partes não ignoram, se tenha conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais, ou que se tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal ou de entorpecer a ação da justiça ou de impedir a descoberta da verdade; face à existência de uma contradição entre o alegado pela parte e a matéria de facto que se prova, a litigância de má-fé apenas não se verificará se não se provar a existência de dolo ou negligência grave ou se tal contradição não resultar da alteração da verdade dos factos ou da omissão dos factos relevantes para a decisão da causa.
Por seu turno, lê-se no Douto Acórdão do TRG de 05/07/2012, proc. n.º 5367/09.2TBGMR-A.G1, a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.
Por último, nos termos do Douto Acórdão do STJ de 08/02/2022, proc n.º 4964/20.0T8GMR.G1.S1, o conhecimento da litigância de má-fé de uma das partes pode ocorrer oficiosamente, cumprido o devido contraditório; a este respeito, a autora já exerceu o contraditório no articulado de réplica (refª ...80 (19/10/2023)).
Perante os factos, o Tribunal pode concluir pela má-fé da autora, nos termos previstos no art 542º, n.º 2, al.a) e d) do Cód de Proc Civil.
Com efeito, se os réus não foram partes na acção de divórcio, nem do acordo nela alcançado (nem o podiam legalmente ser, uma vez que se trata de uma relação familiar entre cônjuges) pelo que esta, em relação aos réus, não produz qualquer efeito, visto não serem abrangidos pelo caso julgado que se formou naquela acção (arts 619º, n.º1, 580º e 581º do Cód de Proc Civil).
Trata-se, nestes termos, da dedução de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar e utilização do processo com o fim de conseguir um objetivo ilegal (art 542º, n.º 2, al.a), b) e d) do Cód de Proc Civil).
Termos em que a autora deve ser condenada numa multa de 3UC a título de litigância de má-fé.»
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2.2. Do objeto do recurso
O artigo 20º da Constituição da República Portuguesa garante a todos o acesso ao direito e à tutela judicial efetiva. Em contraposição, tem de haver limites à forma como se exercem os direitos de ação e de defesa no âmbito do processo civil ou nos outros ramos de direito adjetivo. Nem tudo pode ser tolerado no processo, pois o exercício de um direito deve ser compatibilizado com os direitos dos outros.
No que respeita ao processo civil, toda e qualquer intervenção das partes no processo deve obedecer ao ditame imposto no artigo 8º do CPC: «as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação» previstos no artigo 7º daquele código, tendo em vista a obtenção, com brevidade e eficácia, da justa composição do litígio.
Para assegurar o aludido desiderato e um correto uso dos direitos processuais surge, a par de outros[1], o instituto da litigância de má-fé.
Partindo de um fundamento ético que deve presidir à exercitação dos direitos, a litigância de má-fé tem subjacente o interesse público na correta administração da justiça, pois a atuação abusiva dos direitos de ação e de defesa, bem como dos inerentes direitos processuais, traduzida na instrumentalização do direito processual, é suscetível de ocupar a máquina judiciária com ações que não têm um fundamento sério e razoável, de retardar a realização da justiça, de afetar a eficácia da intervenção judicial ou, em casos mais graves, de prejudicar a justa composição do litígio.
 Portanto, estamos perante um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo[2].
É possível descortinar no seu recorte normativo uma vertente sancionatória (v. o artigo 542º, nº 1, do CPC e o artigo 27º, nº 3, do Regulamento das Custas Processuais) e outra tendencialmente indemnizatória ou reparadora (v. artigo 543º do CPC).
Nos termos do nº 2 do artigo 542º do CPC, litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
«a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

Na decisão recorrida, o Tribunal a quo considerou que a Autora litigou de má-fé, com base no facto de os Réus não terem sido partes na ação de divórcio ou no acordo nela alcançado e que a decisão, em relação aos Réus, «não produz qualquer efeito, visto não serem abrangidos pelo caso julgado que se formou naquela acção».
Com o aludido fundamento, concluiu que a Autora deduziu «pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar e utilização do processo com o fim de conseguir um objetivo ilegal (art 542º, n.º 2, al. a), b) e d) do Cód de Proc Civil)».
Ressalvada a devida consideração, não conseguimos formular relativamente à atuação da Autora, traduzida no exercício do direito de ação sem fundamento jurídico substancial, um juízo de censura suficientemente intenso para justificar a sua condenação em multa por litigância de má-fé.
Em primeiro lugar, como na decisão recorrida se invoca o disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 542º do CPC, é bom deixar perfeitamente claro que não existe o mínimo indício, por menor que ele seja, de a Autora ter «alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa», que é provavelmente a conduta mais grave (atenta a sua recorrência[3]) – e perniciosa para o sistema de justiça cível – de todas aquelas que se enumeram no nº 2 do citado artigo.
Pelo contrário, os factos articulados mostram-se em inteira consonância com os documentos juntos e nem sequer foram postos em causa pelos Réus. O busílis não reside nos factos alegados, mas sim no que se pediu com base neles, o que são duas realidades inteiramente distintas: uma coisa é mentir ou omitir factos ao tribunal e outra pedir aquilo a que não se tem direito.
Portanto, é absolutamente destituída de sentido a referência à alínea b) do nº 2 do artigo 542º do CPC.

Em segundo lugar, também não se alcança como se pode concluir que a conduta da Autora preenche a previsão da alínea d) do nº 2 do artigo 542º do CPC.
No essencial, segundo o entendimento maioritário, distinguem-se na formulação legal a má-fé substancial, que se verifica quando a atuação da parte se reconduz às práticas aludidas nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 542º, e a má-fé instrumental, em que a parte assume no processo as condutas a que se referem as alíneas c) e d) do mesmo preceito. A primeira relaciona-se com o mérito da causa, enquanto a segunda respeita ao comportamento processualmente assumido em si mesmo.
Portanto, no caso da parte demandante, para a previsão da alínea d) do nº 2 do artigo 542º releva exclusivamente o comportamento processual da parte em si mesmo e não propriamente o exercício do direito de ação sem fundamento. Se está em causa a falta de fundamento da pretensão, preenche-se o tipo objetivo da alínea a); se respeita ao comportamento processual, subsume-se à previsão da alínea d).
Sendo assim, como a Autora se limitou apresentar uma petição inicial na qual formulou uma pretensão infundada, sem que na decisão recorrida lhe seja apontado um comportamento processual censurável assumido no decurso da ação, entendemos que é manifesto o não preenchimento da previsão da alínea d).
Invoca-se na decisão a «utilização do processo para um fim ilegal», mas esta formulação tem um sentido diferente de pretensão ou oposição infundada. Não é a circunstância de a parte não ter razão que está em causa, mas sim a instrumentalização processual. O autor visa um objetivo ilegal quando propõe a ação com uma finalidade diferente daquela que é a tutelada pela lei, por não corresponder à sua função, ou utiliza os meios processuais para fins ilícitos. E pedir a devolução de parte da quantia que efetivamente se prestou para garantir exclusivamente o cumprimento de determinada obrigação, como sucede com a caução no arrendamento, não é um pedido ilícito ou que tenha uma finalidade ilícita; pode não ter direito à devolução, seja por pedir antes de cumprida a finalidade ou por o demandado ter direito a fazer sua a quantia por se mostrar vencida a obrigação garantida, mas isso nada tem de ilegal no apontado sentido.

Em terceiro lugar, dando por adquirida a bondade da decisão e, por isso, sem discutir se a questão era de ilegitimidade passiva ou de improcedência da ação, a Autora não exercitou a ação para apenas incomodar terceiros indiferentes aos factos que cristalina e frontalmente descreveu, sem qualquer malícia, na petição inicial.
A realidade é que a Autora e o seu então marido celebraram com os Réus um contrato de arrendamento e que prestaram a favor destes uma caução no valor de € 2.200,00.
A Autora limitou-se a pedir a restituição de metade desse valor e explicou as razões que, no seu entendimento, justificavam tal pedido.
O seu pedido, face à transmissão do arrendamento para o ex-marido operada na ação de divórcio, não poderia proceder por a lei não lhe atribuir o direito à restituição, mas isso resulta de uma interpretação de direito, que normalmente um leigo não está em condições de fazer.
Estando apenas em causa uma questão técnico-jurídica, fácil de apurar para um técnico do direito, mas não para a parte real, o simples facto de não assistir razão à Autora não é suficiente[4], só por si, para a condenar no pagamento de uma multa, a qual seria por si suportada e não por quem a patrocina no âmbito do apoio judiciário. Há negligência, mas a mesma não pode ser qualificada de grave, aferida pelo dever de diligência da parte.
Na litigância de má-fé, no dizer de Paula Costa e Silva[5], existe inobservância do dever diligência exigível quando «a generalidade das pessoas ou todas as pessoas, pertencentes à categoria social e intelectual da parte real, colocadas naquela situação em concreto, ter-se-iam abstido de litigar, uma vez que, cumprindo os seus deveres de indagação, teriam concluído não terem, quer a pretensão, quer a defesa, fundamento. Só um sujeito extraordinariamente desleixado age como agiu a parte».
Portanto, no âmbito da alínea a) do nº 2 do artigo 542º do CPC, para se poder concluir que o autor litiga de má-fé é necessário que os elementos dos autos permitam concluir que, recorrendo às sugestivas palavras da ilustre autora citada, age com um sujeito “extraordinariamente desleixado”, ou seja, com negligência grosseira. Não basta apenas a negligência simples (o desleixo).
Como já salientava Alberto dos Reis[6], transcrevendo um extrato do relatório apresentado à Comissão Revisora do CPC, «a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmar um direito que não possuem». É verdade que desde então se estendeu a previsão da litigância de má-fé à negligência grave, mas esta não se basta com a simples proposição da ação sem fundamento. É necessário algo mais do que uma simples negligência e é esse plus que em consciência não conseguimos afirmar. A mera desconformidade argumentativa da parte com as posições jurídicas tidas por pacíficas não justifica a condenação por litigância de má-fé.

Termos em que procede a apelação.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida.
Sem custas.
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Guimarães, 22.02.2024

(Acórdão assinado digitalmente)
Joaquim Boavida
Afonso Cabral de Andrade
José Carlos Dias Cravo



[1] V.g., o abuso do direito de ação.
[2] António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso do direito de acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, pág. 28.
[3] A postura, seja das partes ou dos intervenientes, de faltar à verdade é a conduta mais frequente e aquela que demanda que os tribunais recorram aos diversos instrumentos de que dispõem, designadamente, quanto às partes, do recurso ao instituto da litigância de má fé com uma função dissuasora e sancionatória.
[4] De outro modo, se bastasse a simples falta de fundamento, constituiria uma forma de inibir os cidadãos de recorrer aos tribunais e de aí defenderem aquilo que consideram os seus direitos, o que redundaria numa violação de um direito fundamental previsto na Constituição (art. 20º, nº 1).
[5] A litigância de má-fé, Coimbra, 2008, pág. 395.
[6] Código de Processo Civil, vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 263.