Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4/14.6TAVRL.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
REQUERIMENTO
NÃO REJEIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) O requerimento do assistente para abertura da instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, com narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis.
II) Quando o Mº Pº arquiva o inquérito, é ele que fixa o objecto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a actividade investigatória e cognitória do juiz de instrução.
III) Se o requerimento do assistente para a abertura da instrução não contém uma acusação, nomeadamente por não narrar factos que integrem um crime, não pode haver legalmente pronúncia.
IV) Não é o que sucede, in casu,, em que o quadro factual descrito no RAI, é suficiente para a eventual pronúncia dos arguidos como autores de um ilícito de violação de domicílio.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

A participante Maria E., notificada do despacho Ministério Público que ordenou o arquivamento do Inquérito (Proc. 4/14.6TAVRL – Comarca de Vila Real - Inst. Local – Secção Criminal – J1), requereu a sua constituição como assistente e a abertura de instrução visando que os denunciados
- Carlos J.;
- Xavier M.;
- Manuel G.; e
- Maria C.
Fossem pronunciados como autores de um crime de violação de domicílio p. e p. pelo art. 190 do Cod. Penal.
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Remetidos os autos a juízo, o sr. juiz proferiu despacho admitindo a intervenção da requerente Maria E. como assistente, mas rejeitando a abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, porque “os enunciados plasmados no requerimento de abertura de instrução são linearmente inidóneos para consubstanciarem a imputação aos suspeitos de factos constitutivos de um crime de violação de domicílio…”.
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Deste despacho interpôs recurso a assistente Maria E..
A questão a decidir no recurso é a de saber se o Requerimento para a Abertura de Instrução do assistente narra factos suficientes para a eventual pronúncia dos arguidos como autores de um crime de violação de domicílio.
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Respondendo o magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a procedência do recurso.
A arguida Xavier M. defendeu a improcedência; e
A arguida Maria C. ofereceu o merecimento dos autos.
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Nesta instância, a sra. procuradora-geral adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Neste recurso está em causa decidir se o Requerimento para a Abertura de Instrução (RAI) da assistente narra factos suficientes para condenação dos arguidos como autores de um crime de violação de domicílio p. e p. pelo art. 190 do Cod. Penal.
Como se sabe, o requerimento do assistente para a abertura da instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, com a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis. Quando o MP arquiva o inquérito, é ele que fixa o objeto do processo, traçando os limites dentro dos quais se há-de desenvolver a atividade investigatória e cognitória do juiz de instrução. Se o requerimento do assistente para a abertura da instrução não contém uma acusação, nomeadamente por não narrar factos que integrem um crime, não pode haver legalmente pronúncia. Por outras palavras, é “legalmente inadmissível”.
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Em resumo, no RAI a assistente alega que residia numa casa de habitação sita no lugar de …, mas no dia ……..-2013 os arguidos, “munidos de ferramenta própria para o efeito, arrombaram as fechaduras e introduziram-se no seu interior, onde se encontrava a assistente e a sua filha” (ponto 7).
Após “a assistente solicitou aos participados que abandonassem a casa, tendo os mesmos recusado a fazê-lo…” (ponto 8).
Os participados agiram deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, com o propósito conseguido de violar a intimidade da assistente, que tinha o domicílio naquela casa, sabendo que agiam sem o consentimento desta…” (ponto 11).
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Decidindo sobre o RAI escreveu-se no despacho recorrido:
“… falece o substrato fáctico devidamente objetivado passível de configurar a imputação aos suspeitos de atos que integrem o tipo de ilícito objetivo do crime de violação de domicílio consignado no art. 190 nº 1 do Código Penal, designadamente, naufraga a descrição concatenada e meticulosa dos atos atinentes ao invocado arrombamento (incluindo o instrumento utilizado e o respetivo modus faciendi), das expressões proferidas pela assistente referidas no art. 8 (nucleares para a aferição da existência ou não de uma intimação) e dos atos perpetrados por cada um dos arguidos, os quais são imprescindíveis para a delimitação da responsabilidade individual em sede de um co-domínio de uma ação criminal
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Vejamos, então, cada uma das apontadas omissões na narração dos factos do RAI:
a) a descrição do arrombamento não inclui o instrumento utilizado e o respetivo modus faciendi.
Na redação do ponto nº 7 do RAI alegou-se que os arguidos “munidos de ferramenta própria para o efeito arrombaram as fechaduras…”.
O verbo utilizado é terminologicamente coincidente com o conceito de «arrombamento» definido na al. d) do art. 202 do Cod. Penal.
A narração feita na acusação deve conter «factos» e não conceitos de direito – art. 283 nº 3 al. b) do CPP.
Porém, há expressões que tanto são usadas nas normas jurídicas como na linguagem corrente pelo comum dos cidadãos. Quando constarem da narração dos factos, deverá ser-lhes dado o sentido com que são usadas na linguagem corrente.
«Arrombar» na linguagem corrente significa “forçar (o que está fechado); romper; desfazer; quebrar” – Dicionário da Porto Editora, 3ª ed..
Acresce que na narração feita no RAI não se referiu apenas que os arguidos «arrombaram» as fechaduras. Alegou-se que atuaram munidos de ferramenta própria para o efeito. Dificilmente se encontrará um falante da língua portuguesa que não dê à imputação de que os arguidos “munidos de ferramenta própria para o efeito arrombaram as fechaduras…”, o significado de que “forçaram, romperam; ou quebraram” as ditas fechaduras.
Quanto à circunstância de não se descrever o instrumento utilizado no arrombamento:
A realidade processual nem sempre consegue reproduzir todas as circunstâncias do evento. Aliás, as boas práticas aconselham que não se fantasie sobre as que não podem ser concretizadas. Usando um exemplo que todos compreenderão: o facto de não se conseguir apurar se numa agressão foi usado um bastão, um cabo de enxada, ou um ferro, não pode obstar à consideração de que a agressão foi perpetrada com um objeto contundente, desde que as suas características de rigidez estejam alegadas.
Deixa-se mais uma nota: a questão acabada de tratar nunca poderia ser motivo de rejeição do RAI, pois a alegada circunstância dos arguidos terem entrado na casa através de «arrombamento» apenas é relevante para a verificação da circunstância qualificativa do nº 3 do art. 190 do Cod. Penal. Mesmo que o arrombamento não possa ser considerado, sempre subsistirá a possibilidade do enquadramento da conduta na previsão do nº 1 do mesmo artigo.
b) a não concretização das expressões proferidas pela assistente referidas no art. 8º
Sem tergiversar, dir-se-á apenas que a alegação de que “a assistente solicitou aos participados que abandonassem a casa, tendo os mesmos recusado a fazê-lo…” contém, indubitavelmente, matéria de facto. O conhecimento das concretas palavras por ela utilizadas, poderá, talvez, ser um contributo para a formação da convicção do julgador.
Como quer que seja, também aqui, para a condenação era suficiente a alegação da entrada dos arguidos na residência, não sendo necessário, cumulativamente, que, depois, tenham sido intimados a retirar-se – a norma do art. 190 nº 1 do Cod. Penal pune “quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se…” A conjunção «ou» é alternativa.
c) a não concretização dos atos perpetrados por cada um dos arguidos
Verdadeiramente, nesta parte, não se percebe as razões da decisão.
Nos termos do RAI todos os denunciados tiveram comportamentos similares. Todos participaram no arrombamento, todos entraram na residência e todos se recusaram a abandoná-la, depois de solicitados a tal pela assistente.
Naturalmente (caso os factos tenham efetivamente ocorrido), talvez, depois de entrarem, uns tenham permanecido parados, enquanto outros se mexiam. Uns ter-se-ão recusado a sair da casa trocando palavras com a assistente, outros permanecendo calados. São pormenores irrelevantes para a decisão da prática do crime. A norma da al. b) do nº 3 do art. 283 do CPP dispõe que a narração dos factos pode (deve) ser «sintética». Em qualquer caso não devem constar dela factos inócuos.
O recurso procede.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães, concedendo provimento ao recurso, ordenam que o despacho recorrido seja substituído por outro que pressuponha que o requerimento para a abertura de instrução da assistente narra factos suficientes para a pronúncia dos arguidos como autores de um crime de violação de domicílio.
Sem custas.