Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
902/18.8T8GMR.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: ESCRITURA DE PARTILHAS
QUITAÇÃO DE TORNAS
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
VÍCIO DE VONTADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A força probatória plena própria de uma escritura pública de partilha de quinhão hereditário, genuína e não arguida de falsa, abrange apenas os factos nela referidos como tendo sido praticados pela entidade documentadora (v.g. verifiquei a entidade dos outorgantes) e os factos aí referidos com base nas suas percepções (v.g. o outorgante x emitiu a declaração y), e não também a verdade das declarações aí produzidas (arts. 363.º, 370.º e 371.º, todos do CC).

II. A declaração de quitação (enquanto admissão de um facto desfavorável à parte que assim se reconheceu paga), feita à parte contrária (antes devedora), em documento autêntico, consubstancia uma confissão extrajudicial escrita; e goza de força probatória plena, não podendo a inexistência do dito pagamento ser depois demonstrada por meio de prova testemunhal (arts. 358.º, n.º 2, 363.º, 371.º e 393.º, n.º 2, todos do CC).

III. A força probatória plena qualificada não prova que as declarações dela objecto não foram inquinadas por falta ou vícios da vontade manifestada; e, por isso, podem ser impugnadas com esse preciso fundamento, sendo admissíveis para o efeito quaisquer meios de prova, incluindo a testemunhal (arts. 376.º, n.º 2 e 359.º, ambos do CC).

IV. Alegados e provados os concretos antecedentes que precederam declaração de quitação de tornas exarada em escritura pública de partilha, e o preciso contexto em que a mesma foi proferida, uns e outro caracterizadores da falta de seriedade com que foi emitida, e da certeza que o seu emitente tinha de que essa falta de seriedade era conhecida do devedor, deverá a mesma declaração ser qualificada como não séria, e nula (art. 245.º, n.º 1 do CC).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.
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I – RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. F. M., residente na Rua …, na Maia, e J. M., residente na Rua …, em Guimarães (aqui Recorrentes), propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra L. P., residente na Rua …, em Guimarães (aqui Recorrida), pedindo que

· (a título principal) fosse declarada a nulidade ou anulada a declaração de quitação (de efectivo pagamento de tornas), inserta em escritura pública de partilha hereditária (que melhor identificaram), condenando-se a Ré a pagar-lhes a quantia de € 55.900,00 (a título de tornas devidas), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, contados até integral pagamento;

· (a título subsidiário) fosse anulado todo o negócio jurídico de partilha hereditária celebrado entre eles próprios e a Ré, ficando sem efeito a respectiva declaração confessória de quitação e a adjudicação àquela de um prédio urbano (que melhor identificaram);

· (cumulativamente com o anterior) fosse declarada a nulidade ou anulado o registo de propriedade da Ré sobre o dito imóvel.

Alegaram para o efeito, em síntese, que, sendo irmãos germanos da Ré, acordaram com ela - e com quatro demais - a partilha da herança da respectiva mãe, o que fizeram por escritura pública de 18 de Fevereiro de 2008, nela se adjudicando à Ré um prédio urbano, e ficando a mesma devedora de tornas, no valor de € 27.950,00 a cada um deles.
Mais alegaram que, confiando na Ré, declararam ambos na dita escritura pública de partilha hereditária terem já recebido as ditas tornas, o que porém não correspondia à verdade; e não ter desde então ocorrido o pagamento em falta, que só reclamaram judicialmente após a morte do respectivo pai, ocorrida em 12 de Outubro de 2017.
Os co-Autores defenderam que: a força probatória plena da escritura pública de partilha hereditária não abrangeria a realidade do por eles declarado como quitação de tornas; a mesma seria nula, enquanto declaração não séria, ou anulável, enquanto viciada por erro sobre os motivos (como anulável seria a dita adjudicação à Ré do prédio urbano referido).

1.1.2. Regularmente citada, a (L. P.) contestou, pedindo que a acção fosse julgada improcedente, sendo ela própria absolvida do pedido; e que os co-Autores fossem condenados como litigantes de má-fé, em quantia não inferior a € 4.000,00.
Alegou para o efeito, em síntese, ter sido em 2003 informalmente acordada entre todos os irmãos a partilha da herança da mãe comum; e ter sido ainda acordado, nomeadamente em 2008, que o pagamento das tornas devidas seria efectuado através do pai comum, o que ela própria fez, entregando-lhe para o efeito o respectivo valor.
Mais alegou terem os co-Autores alterado a verdade de factos que bem conheciam, omitido factos relevantes para a boa decisão da causa, e feito do processo um uso manifestamente reprovável, o que justificaria a sua condenação como litigantes de má fé.

1.1.3. Foi proferido despacho: dispensando a realização de uma audiência prévia; saneador (certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância); identificando o objecto do litígio («determinar se a R. incumpriu a sua obrigação de pagamento de tornas no âmbito da partilha da herança aberta por óbito de M. L. e, em consequência, se a declaração confessória contida na escritura pública de “doação de meação e do quinhão hereditário, constituição de propriedade horizontal e partilha” enferma de alguma invalidade ou se o próprio negócio celebrado entre AA. e R. enferma de alguma invalidade») e enunciando os temas da prova («1. Não pagamento do montante de tornas devido pela R. aos AA. no âmbito da partilha da herança aberta por óbito de M. L.», «2. Intenção e vontade dos AA. ao efectuarem a declaração de quitação da dívida de tornas da R. contida na escritura pública de 18.02.2008», «3. Existência e termos do acordo de partilha celebrado aos 05.05.2003 entre G. L. e todos os seus filhos», «4. Pagamento das tornas devidas no âmbito do acordo de 05.05.2003 por parte da R. a G. L.», «5. Acerto de contas entre G. L. e os AA.» e «6. Má fé com que os AA. possam estar a litigar»); apreciando os requerimentos probatórios das partes e designando dia para realização da audiência final.

1.1.4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção totalmente improcedente, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Em face do exposto, o Tribunal:
a) julga a ação não provada e improcedente, absolvendo a Ré L. P. dos pedidos formulados pelos Autores F. M. e J. M.;
b) julga o incidente de litigância de má fé suscitado pela Ré não provado e improcedente.
Custas a cargo dos Autores, não tributando o incidente de litigância de má fé, atenta a simplicidade da sua decisão.
Registe e notifique.
(…)»
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1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos

Inconformados com esta decisão, os co-Autores (F. M. e J. M.) interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo que o mesmo fosse julgado procedente e se revogasse a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por decisão julgando a acção totalmente procedente.

Concluíram as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):


I. As presentes alegações de recurso têm por objecto a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo que julgou “a ação não provada e improcedente, absolvendo a Ré L. P. dos pedidos formulados pelos Autores F. M. e J. M.”.

II. Os Recorrentes impugnam parte da matéria de facto assente na decisão proferida, bem como não se conformam com a decisão de direito entendendo, nessa medida, que a decisão de mérito deverá ser alterada.

III. No que diz respeito à matéria de facto os Recorrentes consideram que os factos 13º, 15º a 17º, 22º, 44º, 45º, 53º a 55º, 58º, 59º da petição inicial que foram dados como não provados deverão integrar a matéria de facto provada.

IV. Sem prejuízo dos aspectos jurídicos ligados à prova produzida pelos Recorrentes, do ponto de vista da sua apreciação e valoração diga-se que a mesma é indubitavelmente credível e fidedigna, visto que não apresenta quaisquer incongruências ou contradições e assenta num discurso fluído, seguro e assertivo, aspectos que contribuem para a formação de uma sólida convicção segundo as regras da experiência comum e os juízos de razoabilidade.

V. As declarações de parte dos Recorrentes e os depoimentos das Testemunhas comprovam que a Recorrida não efectuou o pagamento das tornas. Todos os relatos apresentam a mesma versão, constata-se um conhecimento directo e pormenorizado do modo de pagamento das tornas devidas por cada um dos irmãos e as abordagens à Recorrida acerca do facto de não pagar também foram descritas (cfr. minutos 06:39 a 06:55, 07:09 a 07:18, 08:16 a 08:54, 05:55 a 06:10 e 0:30 a 1:03 (após suspensão da audiência) do depoimento e declarações de parte do Autor F. M.; minutos 09:59 a 10:35 do depoimento e declarações de parte do Autor J. M.; minutos 08:26 a 08:50, 25:56 a 26:16 e 8:59 a 9:33 do depoimento da Testemunha J. E.).

VI. Ademais, a prova feita pela Recorrida não foi capaz de beliscar a credibilidade dos factos narrados, pelo contrário, demonstrou a fragilidade e descrédito da versão por si apresentada (cfr. minutos 04:21 a 04:44 do depoimento da Testemunha M. C.; minutos 03:20 a 03:27 e 14:01 a 14:31 do depoimento da Testemunha N. P.).
Desse modo, os factos 13º, 15º, 16º, na parte em que se refere a nunca terem recebido, e 53º a 55º da petição inicial mostram-se provados.

VII. Por outro lado, a recorrida não faz qualquer prova de que houvesse pago as tornas devidas aos recorrentes, escudando-se em depoimentos indirectos altamente inverosímeis e de extrema fragilidade.

VIII. Por outro lado, a prova produzida também evidencia que todo o processo de partilha desenrolou-se num clima de extrema confiança entre os envolvidos, o que se ficou a dever à figura central desempenhada pelo progenitor que era respeitado por todos os filhos, geria todos os aspectos relacionados com a partilha e assegurava o cumprimento do pagamento das tornas (cfr. Minutos 01:17 a 01:26 (após suspensão da audiência), 03:34 a 03:50 (após suspensão da audiência) e 04:28 a 05:34 (após suspensão da audiência), 31:59 a 32:26, 32:40 a 32:50 do depoimento e declarações de parte do Autor F. M.; minutos 36:00 a 36:38 do depoimento e declarações de parte do Autor J. M.; minutos 09:43 a 10:07 do depoimento da Testemunha J. E.; minutos 04:18 a 04:47, 01:48 a 02:33 e 13:55 a 15:18 do depoimento da Testemunha M. E.).

IX. Desta forma, torna-se bastante perceptível as condições e todo o contexto em que a declaração de quitação foi proferida e atestam-se os factos dos artigos 17º e 45º da petição inicial.

X. Naturalmente que existindo laços familiares e uma figura que era o elo de ligação entre todos os envolvidos no que toca à partilha, os Recorrentes criaram uma legítima e fundada crença no pagamento das tornas (cfr. minutos 37:42 a 38:17, 32:55 a 33:10, 49:12 a 49:30 e 50:05 a 50:32 do depoimento e declarações de parte do Autor J. M.; minutos 37:41 a 38:12, 1:02:40 a 1:03:27, 46:22 a 46:27 e 1:02:27 a 1:02:37 do depoimento e declarações de parte do Autor F. M.; minutos 03:10 a 03:36 e 12:20 a 12:41 do depoimento da Testemunha M. E.; minutos 03:41 a 03:54 e 05:35 a 06:04 do depoimento da Testemunha J. E.; minutos 09:23 a 09:33 do depoimento da Testemunha J. C.).

XI. Desta feita, os Recorrentes confiaram que os pagamentos seriam realizados após a escritura não havendo motivos para conjecturar um eventual incumprimento ou qualquer outro tipo de incidente no que toca às tornas, aspectos que implicam dar como assentes os factos vertidos nos artigos 22º e 44º da petição inicial.

XII. Quanto aos artigos 58º e 59º da petição inicial, também não restam dúvidas que ficaram demonstrados os motivos que levaram os Recorrentes a reagir judicialmente tantos anos depois da partilha que originou a obrigação de pagamento das tornas (cfr. minutos 56:20 a 56:31 do depoimento e declarações de parte do Autor F. M. e minutos 12:18 a 12:28 do depoimento da Testemunha J. E.).

XIII. Nesse sentido, deverão ser introduzidas as seguintes alterações à matéria de facto assente pelo Tribunal a quo: no ponto 6 deverá ler-se que “No momento das declarações identificadas em 5) a), b), c) e d) os valores identificados como tornas não haviam ainda sido pagos [resposta aos artigos 19º, 20º, 24º da petição inicial]”; deverá ser acrescentado um novo ponto no qual conste que “Os Autores fizeram a declaração identificada em 5) f) confiando no acordo prévio entre irmãos e convencidos que os valores referidos em 5) d) seriam pagos posteriormente, o que até momento não veio a acontecer”; deverá ser aditado que “Os Autores nunca equacionaram a possibilidade da Ré incumprir com o pagamento da quantia referida em 5) d) porque confiavam que todos os irmãos iam honrar a vontade do pai”; deverá ser aditado que “Não há registos de quaisquer transferências bancárias, depósitos ou entrega de cheques para realização do pagamento das quantias referidas em 5) d)”; deverá ser inserido que “Os Autores só anos mais tarde é que exigiram formalmente o pagamento dos valores referidos em 5) d) por consideração e respeito ao pai querendo evitar conflitos em vida do progenitor”.

XIV. Relativamente à decisão de direito os Recorrentes não se conformam com a aplicação do artigo 393º n.º 2 do Código Civil na situação concreta e, por essa razão, não se poderá impor qualquer restrição aos meios de prova utilizados.

XV. A posição assumida na decisão recorrida não se compadece com as normas do direito probatório, encontrando-se a mesma inquinada por um erro na aplicação do direito. Tal situação deve-se ao raciocínio seguido pelo douto Tribunal que parte de um pressuposto errado.

XVI. Com o devido respeito, o Tribunal a quo confunde a prova relativa à declaração de quitação com a prova dos factos que consubstanciam a falta ou vício da vontade alegados pelos Recorrentes.

XVII. Os Recorrentes nunca colocaram em crise a declaração de quitação, nem poderiam fazê-lo porquanto que está inserta num documento autêntico e, por isso, goza de força probatória plena nos termos dos artigos 371º e 348º n.º 2 do Código Civil; nem sequer arguiram, com fundamento no artigo 372º do Código Civil, a falsidade do documento.

XVIII. O objecto da prova produzida em sede de audiência de julgamento circunscreve-se à demonstração de que, pese embora os Recorrentes tivessem feito a declaração, a realidade é que não receberam aquilo que declararam. Neste caso, a prova testemunhal é admissível na comprovação da falta ou vício da vontade, para efeitos do disposto no artigo 359º n.º 1 do Código Civil.

XIX. É esse o entendimento da Doutrina (cfr. anotação aos artigos 371º e 393º do Código Civil por Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª Edição, Coimbra Editora, pp. 327, 328 e 342), assim como da própria Jurisprudência que serve de fundamentação à douta decisão recorrida (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Maio de 2019, no processo 930/12.7TBPVZ.P1.S1, relator Raimundo Queirós; de 02 de Novembro de 2017, no processo 420/16.9T8STR.E1.S1, relator Rosa Ribeiro Coelho; de 17 de Dezembro de 2015, no processo 940/10.9TVPRT.P1.S1, relator Abrantes Geraldes, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

XX. O que os Recorrentes pretenderam demonstrar foi uma sucessão de factos prévios ao momento da emissão da declaração, ou seja, que se situam no processo de formação da vontade interna: todos sabiam que a declaração de quitação não correspondia à verdade e que, desse modo, não lhe conferiam os efeitos jurídicos que a mesma normalmente produziria.

XXI. Face ao clima de confiança existente, o aspecto atinente aos pagamentos, essencial à conclusão da partilha, não levantava dúvidas quanto a eventuais incumprimentos e, por isso, não houve hesitações em outorgar a escritura naqueles moldes, ou seja, com a inclusão da declaração de quitação.

XXII. Acresce que, os Recorrentes foram peremptórios ao expressarem que a questão do pagamento era essencial à conclusão da partilha, sendo que não outorgariam a escritura se não houvesse a garantia do pagamento.

XXIII. Face a todo o exposto, a decisão proferida deverá ser alterada a fim de estar em concordância com a devida valoração da prova e, por conseguinte, deverá a decisão de direito sofrer modificações no sentido de considerar a prova válida e declarar a existência de falta ou vício da vontade com os devidos efeitos legais, conforme peticionado.
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1.2.2. Contra-alegações

A (L. P.) contra-alegou, pedindo que se julgasse o recurso improcedente, e se confirmasse a sentença recorrida.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):

A - O presente recurso constituí um mero exercício dilatório a fim de manter o registo da acção no prédio, pretendendo um impossível acordo de alcançar, pois com franqueza, a impugnação da matéria de direito não tem qualquer, nem réstia, de fundamento jurídico, e das apreciações que se fazem da matéria de facto, as mesmas são parciais (olvida-se o que não interessa aos recorrentes), mas mesmo o que, em louvável esforço, conseguiram trazer para o presente recurso, os mesmos cingem-se a depoimentos fora do contexto, com referências genéricas a ninguém sabe exactamente o quê, confusas, indirectas e de expressão comum "toda gente sabe".

B - A recorrida, em jeito de resposta, remete-se para a douta sentença proferia pelo Tribunal a quo e respeitosamente dá breviatatis causae por fielmente e integralmente reproduzida a contestação nos presentes autos apresentada, a qual teve assento na prova produzida em audiência de discussão e julgamento.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto da sentença final pelos co-Autores (F. M.), 03 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal:

- Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação das regras de direito probatório material, nomeadamente ao considerar ser inadmissível a prova testemunhal para demonstrar falta ou vício de vontade em prévia declaração confessória ?

- Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e valoração da prova válida e eficazmente produzida, nomeadamente porque impunha que se dessem como demonstrados os factos não provados enunciados na petição inicial sob o artigo 13.º («O que foi cumprido relativamente aos irmãos obrigados ao pagamento de tornas, com excepção da aqui Ré»), sob o artigo 15 .º («Mas que já decorridos cerca de nove anos, ainda não cumpriu com a sua obrigação»), sob o artigo 16.º («Pese embora os Autores tenham declarado e conste da escritura pública que já haviam recebido a quantia em causa, a verdade é que, efectivamente, nunca a receberam !»), sob o artigo 17.º («Os Autores, atendendo ao vínculo familiar que os une à Ré, nunca ponderaram a possibilidade de que esta não lhes pagasse a importância que lhes era devida pelo acordo que outorgaram»), sob o artigo 22.º («Naquele momento o mais importante era celebrar a escritura pública, sendo que os pagamentos seriam feitos de seguida»), sob o artigo 44.º («Na medida em que a Ré sabia perfeitamente que tal declaração não correspondia nem à autêntica vontade dos Autores, nem à realidade dos factos»), sob o artigo 45.º («Acresce que se trata de um assunto delicado e sensível pois, está aqui em causa a partilha do património da família, em particular dos pais de todos os que ainda reforça o sentimento de confiança que os Autores tinham na Ré»), sob o artigo 53.º («O certo é que a Ré não cumpriu com o pagamento devido a título de tornas, nem após a escritura, nem nos meses seguintes, ao ponto de já terem decorrido anos !»), sob o artigo 54.º («No longo período de tempo já passado desde a escritura pública até ao presente, em nenhum momento foi feita qualquer transferência bancária para as contas dos Autores, nem se procedeu a nenhum depósito que possa indiciar o pagamento da quantia ou de parte dela»), sob o artigo 55.º («Bem como não existe o registo do levantamento por parte dos Autores de nenhum cheque passado pela Ré»), sob o artigo 58.º («Por outro lado, o desgosto que o pai dos Autores e da Ré iria sentir, foi um factor preponderante na decisão de adiar o recurso aos mecanismos judiciais») e sob o artigo 59.º («Pelo que os Autores entenderam por bem não o fazer em vida do seu progenitor») ?

- Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação da lei (face ao sucesso da prévia impugnação da matéria de facto feita), devendo ser alterada a decisão de mérito proferida (nomeadamente, julgando a acção totalmente procedente) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Decisão de Facto do Tribunal de 1ª Instância
3.1.1. Factos Provados

Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1ª Instância, resultaram provados os seguintes factos:

1 - Por escritura pública outorgada a 18 de Fevereiro de 2008, no Cartório Notarial do Dr. C. T., sito na Avenida …, Guimarães, G. L., M. E., J. M. (aqui 2.º co-Autor), J. E., J. C., F. M. (aqui 1.º co-Autor), L. P. (aqui Ré) e A. L. declararam que no dia 5 de Janeiro de 2001, falecera, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, M. L., no estado de casada com o primeiro, em primeiras núpcias de ambos e no regime de comunhão geral, tendo-lhe sucedidos como únicos herdeiros, o marido e seus sete filhos, restantes outorgantes.
[documento de fls. 18 a 23, epigrafado «DOAÇÃO DE MEAÇÃO E DO QUINHÃO HEREDITÁRIO CONSTITUIÇÃO DE PROPRIEDAE HORIZONTAL E PARTILHA», e resposta ao artigo 1.º da petição inicial]

2 - Na escritura pública identificada em 1), G. L. declarou doar em comum e partes iguais aos seus sete filhos - M. E., o 2.º co-Autor (J. M.), J. E., J. C., o 1.º co-Autor (F. M.), a Ré (L. P.) e A. L. -, os quais declararam aceitar, a meação e o quinhão hereditário que lhe pertenciam na herança ainda ilíquida e indivisa por óbito de sua mulher.
[documento de fls. 18 a 23, epigrafado «DOAÇÃO DE MEAÇÃO E DO QUINHÃO HEREDITÁRIO CONSTITUIÇÃO DE PROPRIEDADE HORIZONTAL E PARTILHA», e resposta aos artigos 3.º e 4.º da petição inicial]

3 - Na escritura pública identificada em 1), M. E., o 2.º co-Autor (J. M.), J. E., J. C., o 1.º co-Autor (F. M.), a Ré (L. P.) e A. L. declararam de comum acordo proceder à partilha dos únicos bens imóveis que faziam parte do património comum do casal dissolvido por morte de M. L., que eram:

a) prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e andar e logradouro, situado na Rua …, freguesia de ..., concelho de Guimarães, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ... sob nº …-..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., ao qual atribuíam o valor de € 95.000,00;

b) prédio rústico composto de terreno de cultivo, situado no lugar ..., freguesia de ..., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ... sob o nº …, inscrito na matriz sob o artigo …, ao qual atribuíam o valor patrimonial de € 40.000,00;

c) prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, dependência e logradouro, situado no lugar ... ou Rua …, freguesia de ..., concelho de Guimarães, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ... sob nº …-..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, ao qual atribuíam o valor de € 40.000,00;

d) prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e andar, com a área coberta de 83 m2, dependência com a área coberta de 30 m2 e logradouro com a área de 657 m2, situado na Rua …, freguesia de ..., concelho de Guimarães, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial ... sob nº …-..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., ao qual atribuíam o valor global de € 98.000,00.
[documento de fls. 18 a 23, epigrafado «DOAÇÃO DE MEAÇÃO E DO QUINHÃO HEREDITÁRIO CONSTITUIÇÃO DE PROPRIEDADE HORIZONTAL E PARTILHA», e resposta ao artigo 6.º da petição inicial]

4 - Na escritura pública identificada em 1), M. E., o 2.º co-Autor (J. M.), J. E., J. C., o 1.º co-Autor (F. M.), a Ré (L. P.) e A. L. declararam que, com vista à partilha que iam fazer, submetiam o prédio identificado em 3) d) ao regime da propriedade horizontal, composto de três fracções autónomas, distintas, independentes e isoladas entre si com saídas para uma parte comum do prédio ou para a via pública, com a seguinte composição:

. Fracção “A” - loja comercial no rés-do-chão, lado esquerdo, composta por uma divisão, com a área de 20 m2, com o valor atribuído de € 9.870,00, correspondente a 10% do valor total do prédio;

. Fracção “B” - habitação no rés-do-chão, lado direito, composto por cozinha, despensa, uma casa de banho, dois quartos de dormir, sala, espaço de circulação anterior e espaço de estacionamento automóvel situado no logradouro localizado no lado direito do edifício, com a área coberta de 63 m2 e a área descoberta de 347 m2, com o valor atribuído de € 39.480,00 correspondente a 40% do valor total do prédio;

. Fracção “C” - habitação no andar, composto por cozinha, despensa, uma casa de banho, três quartos de dormir, sala, espaço de circulação anterior e espaço de estacionamento automóvel situado no logradouro localizado no lado direito do edifício, com a área coberta de 83 m2, a área descoberta de 298 m2, varanda a sul e a norte e dependência com garagem com a área de 30 m2, com o valor atribuído de € 49.350, correspondente a 50% do valor total do prédio;

. partes comuns a todas as fracções um logradouro com a área de 12 m2 localizado na frente do edifício.
[documento de fls. 18 a 23, epigrafado «DOAÇÃO DE MEAÇÃO E DO QUINHÃO HEREDITÁRIO CONSTITUIÇÃO DE PROPRIEDADE HORIZONTAL E PARTILHA», e resposta ao artigo 6.º da petição inicial]

5 - Na escritura pública identificada em 1), M. E., o 2.º co-Autor (J. M.), J. E., J. C., o 1.º co-Autor (F. M.), a Ré (L. P.) e A. L. declararam que o valor global dos bens a partilhar era de € 273.600,00, seria dividido por sete partes iguais, no valor de € 39.100,00 e que acordavam proceder à partilha do seguinte modo:

a) à segunda outorgante. M. E., era-lhe adjudicado o prédio urbano identificado em 3) c), destinado exclusivamente à sua habitação própria e permanente, no valor atribuído de € 40.000,00, levando a mais a quantia de € 900,00 que já repusera aos seus irmãos F. M. e J. M. (aqui co-Autores), a título de tornas;

b) ao quarto outorgante, J. E., era-lhe adjudicada a fracção “C” do prédio identificado em 3) d) e 4), destinada exclusivamente à sua habitação própria e permanente, no valor atribuído de € 49.350,00, levando a mais a quantia de € 10.250,00 que já repusera aos seus irmãos F. M. e J. M. (aqui co-Autores), a título de tornas;

c) ao quinto outorgante, J. C., era-lhe adjudicado o prédio rústico identificado em 3) b), no valor atribuído de € 40.000,00, levando a mais a quantia de € 900,00 que já repusera aos seus irmãos F. M. e J. M. (aqui co-Autores), a título de tornas;

d) à sétima outorgante, L. P. (aqui Ré) era-lhe adjudicado o prédio urbano identificado em 3) a), destinado exclusivamente à sua habitação própria e permanente, no valor atribuído de € 95.000,00, levando a mais a quantia de € 55.900,00 que já repusera aos seus irmãos F. M. e J. M. (aqui co-Autores), a título de tornas;

e) à oitava outorgante, A. L., eram-lhe adjudicadas as fracções autónomas “A” e “B” identificadas em 4), no valor atribuído de € 49.350,00, levando a mais a quantia de € 10.250,00 que já repusera aos seus irmãos F. M. e J. M. (aqui co-Autores), a título de tornas;

f) declararam os co-Autores (F. M. e J. M.) que «não levam quaisquer bens e que já receberam as importâncias a que tinham direito a título de tornas das quais dão quitação»;

g) R. V., M. G., M. A. e M. S., na qualidade de cônjuges dos terceiro, quarto, quinto e sétima outorgantes, respectivamente, declararam que prestavam a estes consentimento para o acto.
[documento de fls. 18 a 23, epigrafado «DOAÇÃO DE MEAÇÃO E DO QUINHÃO HEREDITÁRIO CONSTITUIÇÃO DE PROPRIEDADE HORIZONTAL E PARTILHA», e resposta aos artigos 8.º, 9.º, 10.º e 11.º da petição inicial]

6 - No momento das declarações identificadas em 5) a), b) e c), os valores identificados como tornas não haviam ainda sido pagos.
[resposta aos artigos 19.º, 20.º e 24º da petição inicial]

7 - Os co-Autores (F. M. e J. M.) fizeram a declaração identificada em 5) f) confiando no acordo prévio entre irmãos e convencidos que os valores referidos em 5) a), b) e c) seriam pagos posteriormente, como veio a acontecer.
[resposta aos artigos 22.º, 25.º a 28.º, 30.º a 35.º da petição inicial]

8 - Os irmãos identificados em 5) a), b) e c) entregaram ao progenitor, por determinação deste, os montantes que tinham de entregar aos co-Autores (F. M. e J. M.).
[resposta aos artigos 47.º e 49.º da contestação]

9 - G. L. faleceu a - de Outubro de 2017.
[documento de fls. 24 e 25, epigrafado «Assento de Óbito n.º … do ano de 2017», e resposta ao artigo 51.º da petição inicial]

10 - Desde o falecimento da esposa, G. L. residia com a Ré (L. P.) que dele cuidava.
[resposta ao artigo 50.º da petição inicial]

11 - Por missiva datada de 26 de Outubro de 2017, endereçada à Ré (L. P.) pelo Mandatário dos co-Autores, em nome do 1.º co-Autor (F. M.), solicitou-lhe que, no prazo máximo de cinco dias a contar da recepção, procedesse «ao pagamento devido a título de tornas, devendo ficar ciente que o não cumprimento implicará a demanda judicial».
[resposta ao artigo 63.º da petição inicial]

12 - Após o óbito da mãe, o pai manifestou intenção de repartir pelos filhos os diversos imóveis que pertenciam ao casal, o que contou com acordo e apoio de todos.
[resposta ao artigo 31.º da contestação]

13 - Na sequência de reuniões familiares mensais, pai e filhos foram falando sobre a forma de divisão dos imóveis, reduzindo a escrito o projecto que haviam delineado, correspondente ao documento de fls. 46, epigrafado «ACTA».
[resposta aos artigos 32.º e 33.º da contestação]

14 - No documento identificado em 13) já estava previsto que os pagamentos seriam efectuados ao pai, por ser ele o responsável por todo o processo, o que todos os filhos aceitaram.
[resposta aos artigos 34.º e 35.º da contestação]

15 - Em face do acordo de partilha, todos foram organizando a sua vida em função do mesmo, sendo que a Ré (L. P.) passara a habitar provisoriamente no rés-do-chão do prédio identificado em 3) a) durante a doença que precedeu o falecimento da mãe.
[resposta ao artigo 36.º da contestação]

16 - Para seu maior conforto e do pai, a Ré (L. P.) projectou e mandou executar, por intermédio do 1.º co-Autor (F. M.), obras no prédio identificado em 3) a), que pagou.
[resposta ao artigos 37º e 38º da contestação]

17 - No prédio identificado em 3) c), que no documento referido em 13) estava previsto ficar para o 1.º co-Autor (F. M.), este projectou e executou diversas obras.
[resposta ao artigo 40.º da contestação]

18 - O 1.º co-Autor (F. M.) utilizou o prédio identificado em 17) para guardar alguns pertences.
[resposta ao artigo 41.º da contestação]

19 - A situação referida em 18) mantém-se apesar do que consta em 5) a).
[resposta ao artigo 42.º da contestação]

20 - Durante cerca de 2 a 3 anos, o 2.º co-Autor (J. M.) recebeu do progenitor o montante mencionado em 5) b).
[resposta ao artigo 52.º da contestação]
*
3.1.2. Factos não provados

O Tribunal de 1ª Instância considerou ainda que:

«Não se provaram os factos alegados:
- nos artigos 13º, 15º a 17º, 22º, 44º, 45º, 49º, 53º a 55º, 58º, 59º da petição inicial;
- nos artigos 22º, 23º, 25º, 39º, 43º a 46º, 48º, 53º a 55º, 63º, 70º, 72º, 73º, 82º, 86º, 87º, 91º a 94º da contestação.

A alegação contida nos artigos 2º, 12º, 14º, 23º, 29º, 46º, 47º, 52º, 56º, 57º, 60º a 62º, 64º a 152º da petição inicial e 83º, 97º, 100º a 105º, 107º, 108º, 110º a 134º da contestação constitui matéria conclusiva ou de Direito.

A alegação contida nos artigos 1º a 21º, 24º, 26º a 29º, 50º, 51º, 56º a 61º, 64º a 69º, 74º a 81º, 84º, 85º, 88º, 95º, 96º, 98º, 99º, 106º da contestação diz respeito ao cumprimento do ónus da impugnação especificada».
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3.2. Modificabilidade da decisão de facto - Erro de julgamento

3.2.1. Incorrecta apreciação da prova legal
3.2.1.1. Prova livre versus Prova legal - Poder (oficioso) do Tribunal da Relação

Lê-se no art. 607.º, n.º 5, I parte, do CPC que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto».
Contudo, esta «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do n.º 5, do art. 607.º do CPC citado).
Distingue-se, assim, entre os casos de: prova legal (vinculada, tabelada ou tarifada), isto é, meios de prova cuja força probatória se impõe ao juiz, não tendo este qualquer margem de valoração acerca da factualidade expressa por tais meios probatórios (1); e prova livre, isto é, meios de prova cujo valor probatório é livremente apreciado pelo juiz (2).
A regra geral será, então, a livre apreciação da prova pelo Tribunal, sem prejuízo dos casos de apreciação vinculada, como acontece com a confissão judicial escrita (art. 358.º, n.º 1 do CC), com a confissão extrajudicial constante de documento dirigida à parte contrária (art. 358.º, n.º 2 do CC), e com certa prova documental (arts. 371.º, n.º 1, 376.º, n.º 1 e 377.º, todos do CC).

Mais se lê, no art. 662.º, n.º 1 do CPC, que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607.º, n.º 4 do CPC, aqui aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2 do mesmo diploma).(3)
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no CC), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CPC), ou quando exista acordo das partes (art. 574.º, n.º 2 do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358.º do CC, e arts. 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351.º e 393.º, ambos do CC).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
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3.2.1.2. Inadmissibilidade de prova testemunhal versus Documento autêntico e Confissão

3.2.1.2.1. Documento autêntico - Força probatória

Lê-se no art. 363.º, n.º 2 do CC que consideram-se autênticos «os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares».
Logo, e antes de mais, importará verificar a genuinidade do documento autêntico em causa (a sua produção de acordo com os requisitos legais).
Feito, sendo os documentos autênticos genuínos e não arguidos de falsos (v.g. certidões judiciais, escrituras ou testamentos públicos, instrumentos de revogação de prévios documentos tidos como autênticos), a força probatória a conferir-lhes resulta imperativamente do art. 371.º, n.º 1 do CC, isto é: farão «prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do juiz».
Compreende-se, assim, que o conceito legal de falsidade do documento autêntico se restrinja ao âmbito da sua eficácia, e à prova do contrário dos factos neles atestados (e não também à desconformidade da realidade ocorrida com a representação que dela foi feita no documento, isto é, à não correspondência à verdade de factos que aí se atestam como se tendo verificado).
O documento autêntico «será, pois, falso quando o documentador não tenha praticado um facto que atesta ter praticado ou quando não se tenha na realidade verificado um facto que ele atesta ter sido objecto da sua percepção» (José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, 1984, págs. 43 e 44, com bold apócrifo).
Dir-se-á, então, que só depois de assegurada a genuinidade do documento autêntico em causa (a sua produção de acordo com os requisitos legais), bem como a sua autenticidade (a efectiva prática pela entidade documentadora dos actos nele referidos como seus), fica o mesmo apto a beneficiar da força probatória plena que a lei lhe confere.

Contudo, importa ainda frisar que esta força probatória plena não abrange tudo o que nele «se diz ou contém (…), mas somente aos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo (ex.: procedi a este ou àquele exame), e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas percepções da entidade documentadora. Se, no documento, o notário afirma que, perante ele, o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado (cfr. o acórdão do S.T.J. de 29 de Março de 1976, na Rev. de Leg. e de Jur., ano 111º, pág. 297, e anot. de Vaz Serra, a pág. 302). Um exemplo: numa escritura de compra e venda de imóveis o vendedor declara que recebeu o preço convencionado, o documento só faz prova plena de que esta declaração foi proferida perante o notário, nada impedindo que mais tarde se prove que ela foi simulada e que o preço ainda não foi pago» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, págs. 327 e 328, com bold apócrifo).
A força probatória do documento autêntico circunscreve-se, assim, «ao âmbito das declarações (de ciência e de vontade) que nele constam como feitas pelo respectivo subscritor» (José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, pág. 55, com bold apócrifo); e, por isso, «não impede que as declarações dele constante sejam impugnadas com base na falta de vontade ou nos vícios da vontade capazes de a invalidarem» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, Limitada, p. 332).
Por outras palavras, «a força probatória plena qualificada não prova que as declarações são verdadeiras ou que não estão inquinadas por vícios de vontade (arts. 376º, nº2 e 359º, nº 1 e 2 do CPC)», reportando-se «tão só às declarações, ficando por demonstrar que tais declarações correspondiam à realidade dos factos materiais, e sobretudo, não se excluindo a possibilidade de o seu autor demonstrar a inveracidade daqueles factos por qualquer meio de prova. Saber se as declarações documentadas vinculam o seu autor é questão que não respeita à força probatória do documento mas sim à eficácia da declaração. As declarações só vinculam o seu autor se forem verdadeiras» (Luís Pires de Sousa, Prova testemunhal, Almedina, 2014, pág. 206, com bold apócrifo).

Convém, porém não esquecer (relativamente a este núcleo de factos excluídos da prova plena do documento autêntico) que a declaração contida em documento autêntico poderá constituir-se como uma confissão extrajudicial (arts. 352.º e 355.º, n.º 4, ambos do CC) (4); e que, sendo feita à parte contrária, tem força probatória plena (art. 358.º, n.º 2).
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3.2.1.2.2. Confissão - Força probatória

Precisando, lê-se no art. 352.º do CC, que confissão «é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária».
A confissão é tida como «uma declaração representativa (sobre a realidade dum facto)» (José Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, pág. 472). Consubstancia, assim, um acto jurídico (uma declaração de ciência), que a lei sujeita a um regime próprio (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pág. 313).

Mais se lê, no art. 355.º, n.º 1, n.º 2 e n.º 4 do CC, que, podendo a confissão ser judicial ou extrajudicial, a primeira será a realizada em juízo, e a segundo será realizada por algum modo diferente daquela.
Lê-se ainda no art. 358.º, n.º 2 do CC que a «confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena».
Logo, o beneficiário da declaração confessória é dispensado de provar a veracidade do seu conteúdo e, concretamente, de demonstrar, por outras vias, a efectivação do cumprimento, como forma de extinção da obrigação relativa à contrapartida que sobre si impendia (5).

Por fim, lê-se no art. 359.º, n.º 1 do CC que a «confissão judicial ou extrajudicial, pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios da vontade, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão, se ainda não tiver caducado o direito de pedir a sua anulação».
Logo, a «força probatória plena da confissão pode ser elidida pela propositura de ação de anulação ou declaração de nulidade da confissão por falta ou vícios da vontade (Artigo 359º)»; e a «prova do vício da confissão pode fazer-se por qualquer meio não se excluindo a admissibilidade da prova testemunhal ou por presunções» (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2017-3ª Edição, Almedina, pág. 218) (6).
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3.2.1.2.3. Modo de contrariar a prova plena - Prova plena versus Prova por testemunhas

Precisando, lê-se no art. 347.º do CC que a «prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto, sem prejuízo de outras restrições especialmente determinadas na lei» (7).
Logo, a prova (legal) plena apenas cede mediante a prova do contrário (a demonstração de que certo facto não existe, de que não é verdadeiro). Será, por exemplo, o caso do art. 350.º, n.º 2 do CC, relativo às presunções legais ilidíveis, ou dos arts. 371.º e 372.º , ambos do CC, relativos aos documentos autênticos.

Contudo, precisa-se no art. 393.º, n.º 2 do CC que «quando o facto estiver plenamente provado por documento, ou por outro meio com força probatória plena», «não é admitida prova por testemunhas».
Logo, «a inadmissibilidade da prova testemunhal contra o conteúdo de documentos autênticos, na parte em que estes têm força probatória plena, resulta dos artigos 371º e 372º; em relação aos documentos particulares, do artigo 376º, conjugados num e noutro caso com o disposto no nº 2 do artigo 393º» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 343, com bold apócrifo).
Compreende-se, ainda, que se leia: no art. 393.º, n.º 1 do CC, que se «a declaração negocial, por disposição da lei ou estipulação das partes, houver de ser reduzida a escrito ou necessitar de ser provada por escrito, não é admitida prova testemunhal»; e no art. 394.º, n.º 1 do CC, que é «inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico (…) quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores».
Precisa-se, porém e de novo, que, de acordo com «a utilização da forma verbal “estiver”, (…) que depois de estar definitivamente assente a prova plena, por preclusão do direito de a contrariar ou por improcedência da alegação contrária (vise esta, no caso dos documentos, estabelecer a sua não genuinidade ou a sua falsidade), é que não mais é admissível a prova em contrário daquela. (…) O art. 393º do C. Civil (…), contendo uma norma de prova legal negativa, é um mero reflexo das normas de prova legal positiva acima referidas (…): imposto como possível um único meio de prova, estão excluídos todos os outros (nº 1); imposta uma decisão, está negado valor aos meios de prova que a decisão diferente poderiam conduzir (nº 2)» (José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, 1984. págs. 182-3, nota 36, com bold apócrifo).
Logo, se num documento particular a parte a quem é imputada a sua letra e assinatura as reconhece como suas, verá plenamente provadas as declarações ali produzidas por si (arts. 374.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CC), apenas podendo demonstrar a respectiva falsidade por meio de confissão da parte de que delas se pretende aproveitar (sendo a confissão precisamente «o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária», nos termos do art. 352º do C.C.), ou por meio de um documento idóneo a produzir esse efeito; mas nunca por prova testemunhal.
Do mesmo exacto modo se terá de entender (e decidir) quanto à confissão extrajudicial constante de documento cuja autoria esteja reconhecida, e que tenha sido feito à parte contrária ou a quem a represente, já que - nos termos do art. 358.º, n.º 2 do CC - goza de força probatória plena (assim se contendo na parte final do n.º 2 do art. 393.º do CC, isto é, facto plenamente provado «por outro meio com força probatória plena»).
*
Contudo, e aderindo à pretérita construção doutrinal de Vaz Serra a este respeito («Provas, Direito Probatório Material», BMJ, n.º 112, págs. 199 a 216), a jurisprudência vem admitindo expressamente três excepções à inadmissibilidade da prova testemunhal prevista no art. 393.º, n.ºs 1 e 2 do CC (e também no art. 394.º do mesmo diploma), nomeadamente:

. existência de qualquer escrito, proveniente daquele contra quem a acção é dirigida ou do seu representante, que torne verosímil o facto alegado (8) - existindo «um começo de prova por escrito, a prova testemunhal terá o papel de um suplemento de prova, pois as testemunhas não são já o único meio de prova do facto; e a excepção justifica-se pela circunstância de, neste caso, o perigo da prova testemunhal ser, em grande parte, eliminado, uma vez que a convicção do juiz está já firmada em parte com base num documento» (Vaz Serra, op. cit).
Precisa-se, porém, que o princípio de prova escrita deve emanar de quem a mesma é oposta (e não de um terceiro); e a letra e a assinatura têm de ser previamente reconhecidas ou verificadas.

. a impossibilidade (moral ou material) de obtenção de prova escrita por parte de quem invoca a prova testemunhal - compreende-se que quando a lei impõe às partes que procurem uma prova escrita dos seus actos, fá-lo no pressuposto de que elas têm meios para o fazer, deixando essa exigência de fazer sentido quando a parte que procura contrariar a força probatória plena do dito documento não pôde obter - do seu contraente, ou dos contraentes terceiros - ex ante uma prova escrita.
Precisa-se, porém, que esta impossibilidade (que, sendo maior do que uma simples dificuldade, não tem de ter carácter absoluto), deve reportar-se ao momento da estipulação negocial, sendo atendíveis as situações objectiva e subjectiva dos contraentes.

. e a perda, sem culpa, da prova escrita - esta excepção «tem como pressuposto prévio, cuja demonstração incumbe ao alegante, a alegação e prova de que o documento se formou validamente, ficando a eficácia da prova do conteúdo do documento subordinada à de perda não culposa do mesmo. Aqui é essencial que a perda não seja de algum modo imputável à fata de diligência da parte, que a mesma não possa imputar-se a alguma forma de imprudência ou de negligência e incúria na custódia do escrito, aferidas segundo os cânones de comportamento exigíveis ao bom pai de família» (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª edição, Almedina, Janeiro de 2017, págs. 228 e seguintes, com indicação de diversos arestos na nota 495).
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Repete-se, porém, que ficará necessariamente de fora deste âmbito de proibições de prova (reportadas a factos contrários aos firmados por prova legal plena) a demonstração da falta ou vício de vontade que afecte o autor da declaração (nomeadamente, confessória) objecto da dita prova plena, demonstração essa que poderá ser feita por qualquer meio de prova, incluindo testemunhal.
Com efeito, a «tal não obsta o disposto nos arts. 392-2 e 351 do Código Civil, ao excluírem a admissibilidade da prova testemunhal e da presunção judicial quanto a factos plenamente provados por um meio com força probatória plena. Fazendo-o, a lei veda o recurso a esses meios de prova para contrariar a prova que haja sido extraída duma declaração confessória (“quando o facto estiver plenamente provado”), mas sempre com ressalva da possibilidade de ilisão da presunção que está na base da força probatória atribuída à confissão. Articulando-se com o art. 652-2 do Código de Processo Civil, o preceito referido, contendo uma normal geral, não constitui uma das derrogações especiais a que se refere o art. 347.º do Código Civil e apenas tem o alcance de vedar que, uma vez assente, por confissão não impugnada, a realidade de determinado facto, esta prova possa ser posta em causa por testemunhas ou presunções judiciais, deixando intacto o problema da colisão da confissão com outros meios de prova legal plena» (José Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra Editora, 1991, pág. 758).
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3.2.1.3. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

3.2.1.3.1. Inverdade do facto confessado

Concretizando, verifica-se que, tendo os co-Autores (F. M. e J. M.) interposto recurso de apelação da sentença proferida pelo Tribunal a quo, fundaram-no em parte na alegada e indevida desconsideração da prova testemunhal produzida (nomeadamente, da por eles arrolada) com vista à demonstração do fundamento da respectiva pretensão.
Ao fazê-lo, impuseram a este Tribunal da Relação que se pronunciasse precisamente sobre essa pretensa violação de direito probatório material, o que de resto o mesmo sempre poderia fazer oficiosamente, face nomeadamente ao facto do Tribunal a quo ter dado como provados factos desconformes com o declarado em escritura pública de partilha de quinhão hereditário, que nessa parte consubstancia uma confissão extrajudicial escrita.
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Com efeito, o autor do cumprimento pode exigir a quitação de quem quer que tenha recebido a prestação, antes ou depois do cumprimento, podendo a mesma constar de documento autêntico ou autenticado, ou ser provida de reconhecimento notarial se nisso o autor do cumprimento tiver interesse legítimo (art. 787.º do CC).
Ora, constando da dita escritura pública de «DOAÇÃO DE MEAÇÃO E DO QUINHÃO HEREDITÁRIO CONSITUTIÇÃO DE PROPRIEDADE HORIZONTAL PARTILHA» (que é fls. 18 a 23 dos autos) que os aqui co-Autores «não levam quaisquer bens e que já receberam as importâncias a que tinham pleno direito a título de tornas das quais dão quitação», essa declaração corresponde à admissão de um facto que lhes era desfavorável (extinção do seu crédito de tornas) e favorece a parte contrária (o antes devedor das ditas tornas).
Feita em documento autêntico, genuíno e não arguido de falso, ficou não só assente a autoria dessa declaração (isto é, o terem-na de facto produzido), como a sua natureza confessória, extrajudicial e dirigida à parte contrária; e, por isso, passou tal confissão a gozar de força probatória plena, que desse modo cobriu, não apenas a autoria das declarações emitidas pelos co-Autores no dito documento (no regime que lhe é próprio, fixado no art. 371.º do CC), como igualmente o conteúdo do facto confessado, isto é, o efectivo recebimento por eles das tornas que lhes eram devidas (no regime que lhe é próprio, fixado no art. 358.º, n.º 2 do CC).
Logo, estando aquele efectivo recebimento de tornas plenamente provado, não seria admitida a demonstração do seu contrário (a sua inexistência) por meio de prova testemunhal, nos termos do art. 393.º, n.º 2 do CC.
Precisa-se que, em desabono desta conclusão, não invocaram os co-Autores nos autos -, nem inicialmente, nem no recurso de apelação que depois interpuseram - a verificação de qualquer uma das três excepções doutrinais (na construção de Vaz Serra) que a jurisprudência vem admitindo; e nem este Tribunal da Relação as tem oficiosamente por existentes.
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Contudo, de outro modo necessariamente o entendeu o Tribunal a quo, já que veio a dar como provado, na sentença recorrida, que: no momento da celebração da dita escritura pública «os valores identificados como tornas não haviam ainda sido pagos» (facto provado enunciado sob o número 6); os co-Autores fizeram tal declaração «confiando no acordo prévio entre irmãos e convencidos que os valores» que lhes seriam devidos a título de tornas «seriam pagos posteriormente, como veio a suceder» quanto aos irmãos M. E., J. E. e J. C. (facto provado enunciado sob o número 7); estes três «entregaram ao progenitor, por determinação deste», as ditas tornas (facto provado enunciado sob o número 8); e durante «cerca de 2 a 3 anos o Autor J. M. recebeu do progenitor o montante» devido a título de tornas pelo irmão J. E. (facto provado enunciado sob o número 20).
Considerou o Tribuna a quo para o efeito os depoimentos prestados pelos ditos M. E., J. E. e J. C., na qualidade de «três primeiras testemunhas» (bold apócrifo) ouvidas em sede de audiência de julgamento, que afirmaram «que a declaração de quitação emitida pelos Autores não correspondeu ao que efetivamente ocorreu e que houve, mesmo, prazos distintos para o cumprimento da prestação de pagamento de tornas, sempre em momento posterior à celebração da escritura notarial»; e ajuizando que esses depoimentos teriam consubstanciado uma «confissão das testemunhas (bold apócrifo) do pagamento posterior no que a si próprias dizia respeito [que alicerçou a fixação dos pontos 6) a 8) e 20) da fundamentação de facto]».

Dir-se-á porém, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que sendo as referidas três pessoas (irmãos germanos quer dos co-Autores, quer da Ré) meras testemunhas, e não partes, o por elas declarado jamais poderia consubstanciar qualquer confissão, instituto reservado - expressa e imperativamente - pela lei a quem seja «parte».
Logo, e estando em causa meramente a demonstração da inverdade do facto confessado (isto é, não ter de facto ocorrido o pagamento das tornas, em contrário da declaração confessória de quitação), não poderia o Tribunal a quo ter utilizado a dita prova testemunhal para aquele efeito, por força da proibição contida no art. 393.º, n.º 2 do CC.

Dir-se-á ainda que foi precisamente essa a ponderação depois feita pelo mesmo Tribunal a quo, no que tange à demonstração da falta de pagamento das tornas devidas ao co-Autores, embora limitada à aqui Ré, quando então considerou inadmissível a utilização para esse efeito da mesma prova testemunhal já referida.
Com efeito, lê-se expressamente na sua decisão (limitando-se a reprodução à partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais significativos, para o que ora nos interessa):
«(…)
Contudo, precisamos de ter presente que os Autores emitiram uma declaração de quitação perante o Notário e a Ré, o que constitui confissão extrajudicial nos termos dos artigos 352°, 355º nº 4 e 358º nº 2 do Código Civil1, ou seja, com a declaração que consta do ponto 5) f) da fundamentação de facto os demandantes reconheceram a realidade de um facto que lhes era desfavorável – o pagamento das tornas – e favorecedor da parte contrária – da Ré sua devedora em consequência da adjudicação de bem de valor superior ao quinhão que tinha a receber.
Tal declaração foi emitida na presença do Notário, que a exarou na escritura pública, o que significa que a mesma passou a ter o mesmo valor probatório dos documentos autênticos, ou seja, a escritura faz prova plena da confissão de recebimento das tornas. Tal circunstância implica que se aplique o regime previsto no artigo 393º nº 2: não é admitida prova testemunhal quando o facto estiver plenamente provado por documento ou outro meio com força probatória plena, como sucede na presente situação.
Podemos concluir que embora as três primeiras testemunhas tivessem afirmado que a declaração de quitação emitida pelos Autores não correspondeu ao que efetivamente ocorreu e que houve, mesmo, prazos distintos para o cumprimento da prestação de pagamento de tornas, sempre em momento posterior à celebração da escritura notarial, não podemos valorar tais depoimentos dado o regime jurídico aplicável, nem tão pouco partir da confissão das testemunhas do pagamento posterior no que a si próprias dizia respeito [que alicerçou a fixação dos pontos 6) a 8) e 20) da fundamentação de facto], para daí tirar a ilação de que o mesmo sucedera com a Ré, nos termos do artigo 349º do Código Civil, pois o artigo 351º só admite a presunção judicial nas situações e termos em que a prova testemunhal seja admissível.
Numa situação como a que apreciamos apenas uma declaração confessória da Ré seria suscetível de permitir a prova dos factos alegados nos artigos 13º, 15º, 16º, 44º, 53º, 54º, 55º da petição inicial.
No entanto, os Autores não requereram o depoimento de parte da mesma para provocar a confissão, nos termos dos artigos 452º e 453º do Código de Processo Civil, sendo certo, apesar de ter sido requerida a prestação de declarações de parte pela Ré, a mesma acabou por prescindir desse novo meio probatório.
Por outro lado, nos artigos 63º, 68º, 72º, 73º da contestação a Ré deu a entender que os pagamentos foram realizados em momento anterior à formalização da partilha através da escritura, apenas expressando o contrário nos artigo 90º a 92º ao afirmar que o Autor J. M., ao longo de mais de três anos, foi a sua casa mensalmente para receber do pai o pagamento das tornas conforme foi acordado previamente, mas nunca se lhe dirigiu para dizer que algo estava em dívida ou que o pai lhe faltara, contrariamente ao que teria feito com o irmão J. E. quando este falhara algumas prestações. Assim, tão pouco existiu confissão espontânea.
Perante a ausência de prova válida, não existe alternativa senão julgar não provados os factos alegados nos artigos 13º, 15º, 16º, 44º, 53º, 54º, 55º da petição inicial.
(…)»

Ora, a justeza do raciocínio exposto pelo Tribunal a quo a propósito da aqui Ré, e se apenas estivesse em causa a demonstração da inverdade do facto confessado (o já ocorrido - e efectivo - recebimento das tornas devidas aos co-Autores), implicaria que este Tribunal da Relação procedesse à alteração oficiosa dos factos provados enunciados sob os números 6, 7, 8 e 20 (que não foram objecto de qualquer impugnação em sede de recurso de apelação interposto), excluindo-os do elenco dos demonstrados e incluindo-os no elenco dos não provados.
Contudo, e não obstante o Tribunal a quo tenha de facto pretendido que era esse, e apenas esse, o fundamento da acção (conforme resulta da fundamentação de direito da respectiva decisão, que deixou incólume qualquer referência a falta ou vícios de vontade que afectassem a declaração confessória), crê-se que os co-Autores fundaram desde o início a sua pretensão na invalidade da dita declaração confessória, no que tange à aqui Ré; e, ao fazê-lo, outra terá de ser a ponderação relativa ao meios probatórios que estariam autorizados a usar para a respectiva demonstração.
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3.2.1.3.1. Falta ou vício de vontade manifestada na confissão

Com efeito, e concretizando novamente, verifica-se que, logo na petição inicial, os co-Autores esclareceram que «não impugnam a força probatória da escritura pública» (artigo 84.º), pretendendo antes «sindicar nesta sede (…) as circunstâncias em que a declaração foi produzida» (artigo 86.º), defendendo nomeadamente consubstanciar a mesma uma «declaração não séria», e por isso nula (artigos 89.º a 105.º); ou, subsidiariamente, ter sido a mesma determinada por erro próprio sobre os motivos da sua produção, sendo por isso anulável, no que tange à Ré (artigos 106.º a 145º).
Compreende-se, por isso, que o pedido que formularam a título principal fosse, precisamente, a declaração de «nulidade ou anulabilidade da declaração de quitação referente à escritura pública de partilha, reconhecendo-se que as tornas não foram pagas aos Autores»; e, em consequência, condenando-se a Ré «ao pagamento aos Autores da quantia de € 55.900,00 (…) referente às tornas que levou a mais do que lhe pertencia relativamente ao seu quinhão hereditário, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal calculados até integral pagamento».
Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, estando em causa o reconhecimento da invalidade da declaração confessória produzida pelos co-Autores (de quitação de tornas), não obstante limitada à Ré, e não meramente a demonstração da inverdade do facto confessado, poderiam os co-Autores socorrer-se de quaisquer meios de prova - incluindo testemunhal - para a demonstração da causa dessa invalidade (isto é, e de acordo com a sua alegação, o consubstanciar a dita confissão uma declaração não séria, ou ter sido determinada por erro sobre os motivos da respectiva emissão).
Ao entendê-lo de forma desconforme, interditando-lhes o recurso à prova testemunhal para esse efeito, violou efectivamente o Tribunal a quo o direito probatório material que lhe cumpria aplicar; e mantem-se, pelos mesmos fundamentos, os factos por ele provados enunciados sob os números 6, 7, 8 e 20 (já que fundados em prova testemunhal, legalmente autorizada para este efeito).

Deverá, assim, julgar-se nesta parte procedente o recurso de apelação interposto pelos co-Autores (F. M. e J. M.), considerando-se existente a violação de direito probatório material invocada por eles, por o Tribunal a quo ter indevidamente desconsiderado a prova testemunhal para demonstração das causas de alegada invalidade da declaração confessória - de quitação de tornas - por eles produzida em escritura pública de partilha de quinhão hereditário.
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Importa, por isso, verificar de seguida se esta prova testemunhal, bem como a demais que tenha sido produzida, foi suficiente para que se pudessem ter dado como provados os artigos 13.º, 15.º, 16.º, 17.º, 22.º, 44.º, 45.º, 49.º, 53.º, 54.º, 55.º, 58.º e 59.º da petição inicial (desse modo sendo este Tribunal ad quem conduzido ao âmbito da livre apreciação da prova, que competiu ao Tribunal a quo realizar).
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3.2.2. Incorrecta apreciação da prova livre

3.2.2.1. Âmbito da sindicância (provocada) do Tribunal da Relação

Recorda-se que se lê no n.º 2, als. a) e b), do art. 662.º do CPC, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».
«O actual art. 662.º representa uma clara evolução [face ao art. 712.º do anterior CPC] no sentido que já antes se anunciava. Através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.
(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607.º, n.º 5) ou da aquisição processual (art. 413.º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 225-227).
É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efectiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, nº 44, pág. 29 e ss.).
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3.2.2.2. Modo de operar o duplo grau de jurisdição - Ónus de impugnação

Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recurso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 228, com bold apócrifo).
Lê-se, assim, no art. 640.º, n.º 1 do CPC que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».
Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (al. a), do n.º 2, do art. 640.º citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c), do n.º 1, do art. 640.º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor (9) enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 129, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional (art. 205.º, n.º 1 da CRP) e processual civil (arts.154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC) - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo n.º 3785/11.5TBVFR.P1).
Com efeito, «livre apreciação da prova» não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 655).
«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 325).
«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, 2013, pág. 591, com bold apócrifo).
Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, pág. 281).
É, pois, irrecusável e imperativo que, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, 2013, pág. 595, com bold apócrifo).
Compreende-se que assim seja, isto é, que a «censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não» possa «assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.
Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão» (Ac. do TC nº 198/2004, de 24 de Março de 2004, publicado no DR, II Série, de 02.06.2004, reproduzindo Ac. da RC, sem outra identificação).

Dir-se-á, assim, que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação deverá estabelecer-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Contudo (e tal como se referiu supra), mantendo-se em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, precisa-se ainda que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, Coimbra Editora, pág. 609).
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3.2.2.3. Carácter instrumental da impugnação da decisão de facto

Veio, porém, a jurisprudência precisar ainda que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.
Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo n.º 219/10, com bold apócrifo).
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo n.º 1024/12, com bold apócrifo).
Por outras palavra, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo n.º 219/10, com bold apócrifo). (10)
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3.2.2.4. Caso concreto (cumprimento do ónus de impugnação)

Concretizando, considera-se que os Recorrentes (co-Autores) cumpriram o ónus de impugnação que lhes estava cometido pelo art. 640.º, n.º 1 do CPC (conclusão distinta de saber se existe fundamento para a pretendida alteração dos factos julgados como não provados).
Com efeito, indicaram nas suas alegações de recurso: os «concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados» (nomeadamente, os factos não provados correspondentes aos artigos da petição inicial 13.º, 15.º, 16.º, 17.º, 22.º, 44.º, 45.º, 49.º, 53.º, 54.º, 55.º, 58.º e 59.º); os «concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida» (nomeadamente, uma diferente valoração dos depoimentos e declarações de parte prestados por eles próprios, e pelas testemunhas arroladas); a «decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas» (nomeadamente, o darem-se como provados os factos contidos nos artigos 13.º, 15.º, 16.º, 17.º, 22.º, 44.º, 45.º, 49.º, 53.º, 54.º, 55.º, 58.º e 59.º da petição inicial); e as «exactas passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (nomeadamente, indicando o início e o fim de cada uma dessas passagens e transcrevendo parte delas).

Prosseguindo na verificação do cumprimento do ónus de impugnação a cargo dos co-Autores, e relativamente ao juízo crítico próprio, foi o mesmo concretizado pela valorização do declarado por eles próprios, em sede de audiência de julgamento, e pelas testemunhas que arrolaram e aí foram igualmente ouvidas, de forma aliás consentânea com o declarado pelo próprio Tribunal a quo na fundamentação de facto da sua decisão (já que a mesma não assentou na desvalorização de uma tal prova, mas sim pura e simplesmente na sua desconsideração).
Está, assim, este Tribunal da Relação em condições de proceder, nos termos autorizados pelo art. 640.º do CPC, à reapreciação da matéria de facto pretendida pelos co-Autores (F. M. e J. M.), aqui recorrentes.
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3.3. Modificabilidade da decisão de facto - Caso concreto

3.3.1. Motivação /contexto subjacente à prolação da declaração de quitação de tornas (factualidade contida nos artigos 17.º, 22.º, 44.º e 45.º da petição inicial)

Vieram os Recorrentes (F. M. e J. M.) defender que a prova produzida impunha que se desse como provada a certeza própria no posterior (em relação à celebração da escritura notarial) pagamento de tornas, justificada pelo próprio contexto em que toda a partilha fora delineada pelo respectivo pai, gerando um clima de confiança que permitia ter por certo aquele pagamento.
Esta factualidade, considerada na sentença recorrida como não provada, encontra-se vertida na petição inicial, nos seus artigo 17.º («Os Autores, atendendo ao vinculo familiar que os une à Ré, nunca ponderaram a possibilidade de que esta não lhes pagasse a importância que lhes era devida pelo acordo que outorgaram »), artigo 22 .º («Naquele momento o mais importante era celebrar a escritura, sendo que os pagamentos seriam feitos de seguida»), artigo 44.º («Na medida em que a Ré sabia perfeitamente que tal declaração não correspondia nem à autêntica vontade dos Autores, nem à realidade dos factos») e artigo 45.º («Acresce que se trata de um assunto delicado e sensível pois, está aqui em causa a partilha do património da família, em particular dos pais de todos o que ainda reforça o sentimento de confiança que os Autores tinham na Ré»).
Invocaram para o efeito os depoimentos que eles próprios prestaram em sede de audiência de julgamento, bem como os depoimentos aí prestados pelas testemunhas J. E., M. E. e J. C. (irmãos germanos das partes).
Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pelos Recorrentes.
Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução à partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais significativos, atento o objecto da sindicância):
«(…)
A convicção do Tribunal baseou-se:
«» nos seguintes documentos:
» os identificados nos pontos 1) a 5) e 9) da fundamentação de facto;
(…)
» na ata de fls. 46, datada de 5 de Maio de 2003, assinada por G. L. e pelos seus filhos, salvo M. E., ali representada pelo Autor F. M., na qual ficou estipulado que todos ficariam com bens imóveis, designadamente, que o rés-do-chão e logradouro da “casa mãe” seria para a Ré e o primeiro andar para a filha M. E., atribuindo, então, os valores de € 49.900 e € 44.900, respetivamente, que para o Autor ficaria “o salão, loja e logradouro” no valor de € 39.900; por sua vez, a filha A. L. ficaria com o rés-do-chão de outra casa, no valor de € 44.900, enquanto o filho J. E. ficaria com o primeiro andar e logradouro no valor de € 49.900; ficou previsto que no ato da escritura seriam pagos a G. L., mediante cheques sem data, os montantes de € 6.235, € 11.223, € 1.247, € 11.223, € 6.235, € 1.247, respetivamente, pelos filhos A. L., J. E., J. C., L. P., M. E. e F. M.; apesar de constar que o Autor J. M. ficaria com o terreno das …, não foi atribuído qualquer valor ao imóvel nem indicado qualquer pagamento ao progenitor;
»» no confronto com a escritura outorgada a 18 de Fevereiro de 2008, constata-se que nesta não foi atribuído qualquer bem aos Autores, a filha M. E. deixou de ter uma parte na “casa mãe” para ficar com uma casa de rés-do-chão, dependência e logradouro, descrita sob nº …-..., inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …, pelo valor de € 40.000, a Ré ficou com a “casa mãe” no valor de € 95.000 e a filha A. L. com uma loja e uma habitação no rés-do-chão, respetivamente, as frações “A” e “B” do prédio descrito sob nº …-..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., no valor global de € 49.350, o que nos permite concluir que a Ré foi claramente beneficiada com a mudança operada com o decurso do tempo de convivência com o progenitor logrando a adjudicação total do imóvel;
» na missiva de fls. 47 a 55, datada de 29 de Fevereiro de 2008, o Autor introduziu o contexto da alteração das adjudicações (atribuindo à Ré o desejo de ter toda a casa para si, pedindo a sua intercessão junto da irmã M. E. e de o mesmo ter aceitado colaborar, oferecendo a esta o imóvel que lhe estava destinado) e deu ao progenitor elementos sobre as obras realizadas a pedido da Ré, confirmando o seu pagamento, e dívidas contraídas pela irmã A. L.; não obstante se estranhe não haver alusão à dívida da Ré, parece que esta missiva visa facultar ao pai esclarecimentos sobre eventuais argumentos que pudessem estar a ser usados para pôr em causa o valor dos pagamentos (o depoimento da testemunha J. E. lança algumas pistas para esta interpretação).
No depoimento e declarações de parte do Autor F. M. apenas resultou, a título de confissão, que:
- as tornas devidas por alguns irmãos passavam pelo pai, apenas os irmãos M. E. e J. C. (este com dúvidas) pagaram no dia, referindo que não era porque então existisse conflito, mas por necessidade de controlo da parte do progenitor;
(…)
- não confiava na Ré (nem na irmã mais nova) e que o pai garantiu que entregaria a sua parte, afirmando 2 ou 3 dias antes da escritura, que levaria o cheque daquela;
(…)
Também esclareceu que era a vontade da mãe que cada filho ficasse com um imóvel e a decisão dos filhos de deixar ao critério do pai, acabando por redigir uma carta de intenções em 2003 (documento de fls. 46); referiu que o pai lhe transmitiu que os irmãos J. E. e A. L. iriam pagar aos poucos; (…)
No depoimento e declarações de parte do Autor J. M. apenas resultou, a título de confissão, que:
(…)
- o irmão J. E. demorou cerca de dois anos a pagar as tornas.
Esclareceu que a mãe queria que cada filho tivesse uma casa e o pai procurou cumprir, reuniam com frequência na casa deste, tinham valores orientadores que foram o ponto de partida, confiando no pai e no Autor F. M.. Referiu que a Ré e a irmã A. L. queriam continuar a ficar com os locais onde moravam, o irmão J. E. vivia numa casa do pai e este posteriormente disse que ia haver pequenos acertos, mas acabou por haver troca de imóveis, deixando M. E. de ficar com o primeiro andar da casa mãe, pois a Ré fez questão de ficar com ele também porque ajudava o pai. Referiu que o pai gostava de estar por dentro do “movimento” e ter garantias que iam ser feitas, por exemplo, preveniu que o irmão J. E. provavelmente teria dificuldade em fazer o pagamento de uma só vez. (…)
No que diz respeito aos depoimentos, os três primeiros, não obstante alguns atritos relativamente às partes, consistiram em relatos objetivos, contribuindo para o esclarecimento do contexto da partilha e dos atos praticados. As restantes testemunhas não revelaram conhecimento direto, tendo as duas últimas mencionado meros comentários circunstanciais que serão apreciados infra.
M. E., irmã dos litigantes, explicou que o pai delineou o que era para cada um, com o acordo dos filhos (…); (…) afirmou que a escritura partia do pressuposto que todos já tinham pago, por haver fé e confiança no pai, que era o garante, precisando que pagou no momento da saída e, no que diz respeito aos Autores, asseverou que estes tinham expetativa de receber o dinheiro, caso contrário não teriam assinado e esperança que o pai daria a volta à situação (este tinha muita influência nos filhos e estes muito respeito pelo pai, acrescentando que as duas filhas mais novas tinham controlo e ascendente sobre ele, sendo que, quando a mãe faleceu, o pai lhe perguntou o que achava de ter outra pessoa consigo na conta bancária, comentando que estava a pensar na Ré); sabia que o pai se comprometera com um cheque seria entregue no dia da escritura e viram que a Ré saiu sem fazer essa entrega (mais adiante, precisou que o pai deu por falta da Ré, observou em voz alta que estava ausente, mostrando-se perturbado e preocupado); referiu que fez a viagem para o Cartório e de regresso com o Autor F. M. e outro irmão e que, caindo em si relativamente ao que sucedera com a saída da irmã, ainda pensaram em voltar atrás e “impugnar a escritura”, mas que sugeriu que o pai poderia fazer pressão sobre ela; referiu que o pai lhe transmitiu “tens de ir à escritura, vai preparada” [o que interpretou como indicação para providenciar pelo pagamento]; sabia que o irmão J. E. pedira para fazer o pagamento em prestações (este comentou consigo que ia levar mais tempo) e que o pai o pressionava quando se atrasava dizendo que tinha de dar o dinheiro ao J. M.; (…)
J. E., irmão dos litigantes, (…) afirmou que a organização da escritura foi realizada pelo pai e que os irmãos declararam ter recebido mas os pagamentos foram posteriores, precisando que, no seu caso, antes da escritura falou com o pai comunicando que teria de fazer pagamentos mensais (combinou isso com o pai sem dizer aos Autores), como veio a ocorrer (na ordem de € 250/300/mês durante dois ou três anos) e, quando se atrasou duas ou três vezes, o pai exigiu-lhe o dinheiro para entregar ao Autor J. M.; referiu que (…) foi o pai quem decidiu o que ficava para cada filho e que aceitaram pois era dele e não tinham hipótese de mudar (…); referiu que, após a escritura, estava a chegar a casa, tendo o Autor F. M. dito que ia anular a escritura pois não tinha recebido; asseverou que nesse dia de manhã, antes da escritura, o pai falara consigo pelo telefone dizendo que o cheque daquele já estava passado (mais adiante, esclareceu que devido ao conflito com a mudança – o primeiro andar ficou para a Ré e o imóvel do Autor F. M. ficou para a irmã M. E. – associou que o cheque seria da Ré); (…) afirmou que toda a gente tinha intenção de receber e pagar, o pai dominava e havia muito respeito; (…).
J. C., irmão dos litigantes, apesar de claramente contra o Autor F. M. (afirmou que este o burlou, assim como à esposa, aos filhos e a duas cunhadas, relativamente à permuta de um terreno por duas lojas e dois apartamentos, teria sido condenado no pagamento valor de € 600.000, mas “teoricamente não tem bens” e não pode ter nada no seu nome), relatou que o que ficou a constar da escritura não coincidia com o que estava inicialmente aceite por todos e que, apesar de não ter sido afetado (…), achava que devia ter sido informado; referiu que o pai lhe disse que tinha de pagar e que lhe entregou um cheque, ficando a saber por ele que ficara decidido que o irmão J. E. iria pagar mensalmente ao Autor J. M.; sabia que no dia da escritura houve um conflito, tendo ouvido dizer que a Ré não pagara a sua parte, precisando que o valor maior ficara para ela, devia pagá-lo com um cheque, mas fora embora sem deixar o meio de pagamento; referiu saber que no caso dos irmãos J. E. e A. L. as tornas eram para ser pagas aos poucos, acrescentando duvidar que a segunda tivesse feito o pagamento (“conhecendo como ela é…”).
(…)
Resultou de forma clara dos depoimentos das testemunhas que tiveram intervenção na escritura pública que antes da sua celebração não fora pago qualquer montante e houvera diferentes exigências realizadas pelo patriarca da família: à testemunha M. E. fora dito que tinha de ir à escritura e para ir preparada, pagando a mesma os € 900 que devia, após a saída da sala das escrituras; à testemunha J. C. foi dito que pagasse entregando o mesmo um cheque ao pai; à testemunha J. E. foi permitido o pagamento em prestações, autorização concedida pelo progenitor, sem que os Autores tivessem dado a sua anuência ou sequer estivessem prevenidos que essa seria a modalidade.
(…)
Resultou que, por desejo de controlo do processo, os pagamentos passavam por G. L..
(…)
Podemos concluir que embora as três primeiras testemunhas tivessem afirmado que a declaração de quitação emitida pelos Autores não correspondeu ao que efetivamente ocorreu e que houve, mesmo, prazos distintos para o cumprimento da prestação de pagamento de tornas, sempre em momento posterior à celebração da escritura notarial, não podemos valorar tais depoimentos dado o regime jurídico aplicável (…).
Perante a ausência de prova válida, não existe alternativa senão julgar não provados os factos alegados nos artigos 13º, 15º, 16º, 44º, 53º, 54º, 55º da petição inicial.
(…)»

Logo, uma importantíssima conclusão se pode desde já enunciar: o Tribunal a quo, no juízo de não prova relativo à motivação subjacente à prolação, pelos co-Autores, de declaração de quitação de tornas quanto à Ré, assentou o mesmo, não na prova produzida - que ele próprio deixou expresso que a confirmaria -, mas sim na pura e simples desconsideração da mesma.
Ora, ouvida integralmente toda a prova pessoal produzida em sede de audiência de julgamento (e não apenas a seleccionada para este efeito pelos co-Autores, recorrentes), e consultados os documentos juntos aos autos, afirma-se desde já que se sufraga inteiramente o juízo de prova apresentado pelos Recorrentes (e, reitera-se, que se crê do próprio Tribunal a quo, atenta a clareza da fundamentação de facto que se deixou exarada supra).

Sem necessidade de alongadas considerações, dir-se-á que só a prova pessoal arrolada pelos co-Autores (eles próprios, e os demais irmãos germanos, seus e da Ré) possuía conhecimento directo dos termos em que a partilha hereditária em causa foi planeada, decidida e executada (nomeadamente, a decisiva intervenção do pai, que tudo controlou, ficando nomeadamente acordado que os pagamentos das tornas devidas passariam por ele, em momento posterior à escritura, sendo precisamente na convicção de qua sua influência dominadora o asseguraria que os co-Autores proferiram a declaração de quitação na escritura de partilha); e que a mesma foi produzida de forma absolutamente coerente e concertada.
Face a ela, e neste particular, nenhuma outra prova foi produzida pela Ré.

Mostra-se, assim, procedente nesta parte o recurso de apelação dos co-Autores (F. M. e J. M.), pelo que a factualidade que integra os artigos 17.º, 22.º, 44.º e 45.º da petição inicial deverá deixar de integrar o elenco dos factos não provados, e passar a integrar o elenco dos factos provados.
*
3.3.2. Não verificação do pressuposto determinante da emissão da declaração de quitação de tornas - Falta de pagamento pela Ré das tornas por si devidas aos co-Autores (factualidade contida nos artigos 13.º, 15.º, 16.º, 53.º, 54.º e 55.º da petição inicial)

Vieram ainda os Recorrentes (F. M. e J. M.) defender que a prova produzida impunha que se desse como provada a falta de pagamento pela Ré (L. P.) das tornas que lhes seriam devidas.
Esta factualidade, considerada na sentença recorrida como não provada, encontra-se vertida na petição inicial, nos seus artigo 13.º («O que foi cumprido relativamente aos irmãos obrigados ao pagamento de tornas, com excepção da aqui Ré»), artigo 15 .º («Mas que já decorridos cerca de nove anos, ainda não cumpriu com a sua obrigação»), artigo 16.º («Pese embora os Autores tenham declarado e conste da escritura pública que já haviam recebido a quantia em causa, a verdade é que, efectivamente, nunca a receberam !»), artigo 53.º («O certo é que a Ré não cumpriu com o pagamento devido a título de tornas, nem após a escritura, nem nos meses seguintes, ao ponto de já terem decorrido anos !»), artigo 54.º («No longo período de tempo já passado desde a escritura pública até ao presente, em nenhum momento foi feita qualquer transferência bancária para as contas dos Autores, nem se procedeu a nenhum depósito que possa indiciar o pagamento da quantia ou de parte dela») e artigo 55.º («Bem como não existe o registo do levantamento por parte dos Autores de nenhum cheque passado pela Ré»).
Invocaram para o efeito os depoimentos que eles próprios prestaram em sede de audiência de julgamento, bem como os depoimentos aí prestados pela testemunha J. E. (irmão germano das partes), não infirmados pelo declarado na mesma ocasião pelas testemunhas arroladas pela Ré (M. C., mãe de uma sua empregada, e N. P., actual companheiro da Ré).
Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pela Recorrente.
Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução à partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais significativos, atento o objecto da sindicância):
«(…)
A convicção do Tribunal baseou-se:
«» nos seguintes documentos:
» os identificados nos pontos 1) a 5) e 9) da fundamentação de facto;
(…)
» na ata de fls. 46, datada de 5 de Maio de 2003, assinada por G. L. e pelos seus filhos (…); ficou previsto que no ato da escritura seriam pagos a G. L., mediante cheques sem data, os montantes de € 6.235, € 11.223, € 1.247, € 11.223, € 6.235, € 1.247, respetivamente, pelos filhos (…)A. L., J. E., J. C., L. P., M. E. e F. M.; (…);
»» no confronto com a escritura outorgada a 18 de Fevereiro de 2008, constata-se que (…) que a Ré foi claramente beneficiada com a mudança operada com o decurso do tempo de convivência com o progenitor logrando a adjudicação total do imóvel;
» na missiva de fls. 47 a 55, datada de 29 de Fevereiro de 2008, o Autor introduziu o contexto da alteração das adjudicações (atribuindo à Ré o desejo de ter toda a casa para si, pedindo a sua intercessão junto da irmã M. E. e de o mesmo ter aceitado colaborar, oferecendo a esta o imóvel que lhe estava destinado) e deu ao progenitor elementos sobre as obras realizadas a pedido da Ré, confirmando o seu pagamento, e dívidas contraídas pela irmã A. L.; não obstante se estranhe não haver alusão à dívida da Ré, parece que esta missiva visa facultar ao pai esclarecimentos sobre eventuais argumentos que pudessem estar a ser usados para pôr em causa o valor dos pagamentos (o depoimento da testemunha J. E. lança algumas pistas para esta interpretação).

No depoimento e declarações de parte do Autor F. M. apenas resultou, a título de confissão, que:

- as tornas devidas por alguns irmãos passavam pelo pai, apenas os irmãos M. E. e J. C. (este com dúvidas) pagaram no dia, referindo que não era porque então existisse conflito, mas por necessidade de controlo da parte do progenitor;
(…)
- não confiava na Ré (nem na irmã mais nova) e que o pai garantiu que entregaria a sua parte, afirmando 2 ou 3 dias antes da escritura, que levaria o cheque daquela;
(…)
No depoimento e declarações de parte do Autor J. M. apenas resultou, a título de confissão, que:
(…)
- o irmão J. E. demorou cerca de dois anos a pagar as tornas.
(…)
Referiu que o pai gostava de estar por dentro do “movimento” e ter garantias que iam ser feitas, por exemplo, preveniu que o irmão J. E. provavelmente teria dificuldade em fazer o pagamento de uma só vez. Afirmou que transportou o pai para a escritura e que na bolsa da Ré ia um envelope, relativamente ao qual aquele perguntou se queria que fosse ele a levar, o que a mesma recusou dizendo “eu posso com ele” e que, no final da escritura, o pai se sentou com o Autor F. M., apercebendo-se da sua ausência, o que o deixou muito aborrecido. Asseverou que todos pagaram (alguns entregaram ao pai no dia da escritura, o qual, depois, entregou em dinheiro deduzindo as despesas da constituição da propriedade horizontal) menos a Ré que se recusou a fazê-lo, afirmando-lhe que o dinheiro era para pagar uma dívida do Autor F. M. (nunca acreditou que o pai lhe tivesse emprestado dinheiro, a obra do prédio adjudicado à irmã M. E. teve licença emitida em nome do pai, mas o projeto e as obras não foi ele quem as pagou; referiu que a irmã A. L. era responsável por uma empresa do irmão F. M. e que, após o falecimento do pai, a Ré entregou uma carta afirmando que fora essa irmã quem levantara o dinheiro, e que o pai dizia “vai-se resolver”, mas nada aconteceu. (…) Mencionou que o pai lhe entregava os montantes destinados a si e ao irmão F. M., havendo acordo entre ambos para os reter para si por ter dívidas a pagar.
(…)
M. E., irmã dos litigantes, (…) precisando que pagou no momento da saída e, no que diz respeito aos Autores, asseverou que estes tinham (…) esperança que o pai daria a volta à situação (este tinha muita influência nos filhos e estes muito respeito pelo pai (…)); sabia que o pai se comprometera com um cheque seria entregue no dia da escritura e viram que a Ré saiu sem fazer essa entrega (mais adiante, precisou que o pai deu por falta da Ré, observou em voz alta que estava ausente, mostrando-se perturbado e preocupado); referiu que fez a viagem para o Cartório e de regresso com o Autor F. M. e outro irmão e que, caindo em si relativamente ao que sucedera com a saída da irmã, ainda pensaram em voltar atrás e “impugnar a escritura”, mas que sugeriu que o pai poderia fazer pressão sobre ela; referiu que o pai lhe transmitiu “tens de ir à escritura, vai preparada” [o que interpretou como indicação para providenciar pelo pagamento]; (…) esclareceu que tentou abordar o assunto da dívida das tornas da Ré com o pai (num momento em que já se encontrava doente), mas este não deixava, alterava-se e mudava de assunto; aludiu a uma carta da Ré entregue por ocasião da missa de sétimo dia do falecimento do pai, na qual a mesma admitia que tinha culpado o Autor F. M. por possíveis dívidas para com o pai e que afinal era mentira, pois sabia que a devedora era a irmã A. L.; mostrou-se convicta que o Autor F. M. não tinha dívidas para com o pai; (…)
J. E., irmão dos litigantes, (…) referiu que, após a escritura, estava a chegar a casa, tendo o Autor F. M. dito que ia anular a escritura pois não tinha recebido; asseverou que nesse dia de manhã, antes da escritura, o pai falara consigo pelo telefone dizendo que o cheque daquele já estava passado (mais adiante, esclareceu que devido ao conflito com a mudança – o primeiro andar ficou para a Ré e o imóvel do Autor F. M. ficou para a irmã M. E. – associou que o cheque seria da Ré); afirmou que o Autor F. M. e a Ré não se falaram após a escritura; asseverou que falou com a Ré sobre essa dívida aos Autores e que a mesma lhe disse que não tinha pago nem ia pagar e também abordou o assunto com o pai, tentando intervir para que se resolvesse, mas o pai criticava-o, chamava-lhe nomes, tratava-o mal (mais adiante, esclareceu que deixou de falar no assunto com o pai quando ainda estava a pagar as tornas que devia); (…) falou numa conversa que a Ré tivera consigo na véspera do depoimento, em que a mesma afirmara que tinha pago ao pai, mas recordou que dois ou três dias antes do falecimento do pai a mesma dissera-lhe que não pagava, nem tinha nada a pagar e que a resposta que dava sobre o assunto mudava, pois umas vezes dizia que eram as obras e noutras que nada devia.
J. C., irmão dos litigantes, apesar de claramente contra o Autor F. M. (…), relatou que o que ficou a constar da escritura não coincidia com o que estava inicialmente aceite por todos (…); referiu que o pai lhe disse que tinha de pagar e que lhe entregou um cheque, ficando a saber por ele que ficara decidido que o irmão J. E. iria pagar mensalmente ao Autor J. M.; sabia que no dia da escritura houve um conflito, tendo ouvido dizer que a Ré não pagara a sua parte, precisando que o valor maior ficara para ela, devia pagá-lo com um cheque, mas fora embora sem deixar o meio de pagamento; referiu saber que no caso dos irmãos J. E. e A. L. as tornas eram para ser pagas aos poucos, acrescentando duvidar que a segunda tivesse feito o pagamento (“conhecendo como ela é…”).
M. M., cliente da Ré há 10-15 anos, todas as semanas, conheceu o pai dos litigantes, convivendo muito devido a excursões que faziam e durante as quais conversavam, desconhecia por completo o assunto em causa.
M. C., conhece a Ré, frequentando a sua casa, explicou que a filha trabalhou na loja da mesma há 14 anos, às sextas e sábados e, por sua vez, também ajudava, a apanhar o lixo, designadamente, na época dos Santos; afirmou que G. L. quando estava na loja dizia que tinha escolhido a filha certa, que o tratava bem, era muito amiga dele, não lhe faltava nada e que não devia nada a ninguém; referiu que via o filho J. E. que conversava no exterior com o pai, observando que o senhor não falava dos outros filhos, não expressando mágoa.
N. P., companheiro da Ré, a quem conhece há 3 anos, conheceu G. L., pois frequentava a casa diariamente (jantavam, tomavam café), relatando que o questionava se os filhos iam visitá-lo, pois só conhecia um (apercebia-se que havia rivalidades e que um ou outro filho iam levá-lo ao Hospital), admitindo que os filhos não se dessem por culpa dele; referiu que G. L. falava à vontade, tendo comentado consigo que (…) a casa onde estavam era da Ré e que esta não devia nada a ninguém (sabe, no entanto, que a Ré tem uma dívida ao Banco); (…) afirmou que a Ré não lhe falou sobre o assunto objeto destes autos a não ser quando recebeu a carta do Autor e que a questionou sobre se devia, obtendo uma resposta negativa.
O perfil de devedora cumpridora traçado pelas testemunhas M. C. e N. P. foi inserido em contexto duvidoso, dado que o facto de G. L. dizer que a Ré não tinha dívidas, perante a ausência de enquadramento da conversa – não foi possível apurar em que contexto fazia essa afirmação, nem a que se referia, aparentando ser uma consideração genérica –, deixa dúvidas quanto ao significado da afirmação, particularmente por resultar que existe passivo relativo a financiamento bancário, bem como a título de honorários da Mandatária subscritora da contestação, como resulta da pretensão deduzida no apenso A) e na decisão aí proferida, já transitada em julgado.
Resultou de forma clara dos depoimentos das testemunhas que tiveram intervenção na escritura pública que antes da sua celebração não fora pago qualquer montante e houvera diferentes exigências realizadas pelo patriarca da família: à testemunha M. E. fora dito que tinha de ir à escritura e para ir preparada, pagando a mesma os € 900 que devia, após a saída da sala das escrituras; à testemunha J. C. foi dito que pagasse entregando o mesmo um cheque ao pai; à testemunha J. E. foi permitido o pagamento em prestações, autorização concedida pelo progenitor, sem que os Autores tivessem dado a sua anuência ou sequer estivessem prevenidos que essa seria a modalidade.
Foi também referido por todos os irmãos que houve um incidente relacionado com a saída da Ré do local da escritura sem entregar um cheque, precisando a testemunha J. E. que nessa manhã o pai lhe telefonara dizendo que o cheque destinado ao irmão F. M. já estava passado, o que claramente se associa à Ré na medida em que viviam na mesma casa.
Resultou que, por desejo de controlo do processo, os pagamentos passavam por G. L..
(…)
Podemos concluir que embora as três primeiras testemunhas tivessem afirmado que a declaração de quitação emitida pelos Autores não correspondeu ao que efetivamente ocorreu e que houve, mesmo, prazos distintos para o cumprimento da prestação de pagamento de tornas, sempre em momento posterior à celebração da escritura notarial, não podemos valorar tais depoimentos dado o regime jurídico aplicável (…).
Numa situação como a que apreciamos apenas uma declaração confessória da Ré seria suscetível de permitir a prova dos factos alegados nos artigos 13º, 15º, 16º, 44º, 53º, 54º, 55º da petição inicial.
(…)
Perante a ausência de prova válida, não existe alternativa senão julgar não provados os factos alegados nos artigos 13º, 15º, 16º, 44º, 53º, 54º, 55º da petição inicial.
(…)»

Logo, impõe-se a mesma conclusão referida antes: o Tribunal a quo, no juízo de não prova relativo ao não pagamento, pela Ré, das tornas por si devidas aos co-Autores, assentou o mesmo, não na prova produzida - que ele próprio deixou expresso que a confirmaria -, mas sim na pura e simples desconsideração da mesma.
Ora, ouvida integralmente toda a prova pessoal produzida em sede de audiência de julgamento (e não apenas a seleccionada para este efeito pelos co-Autores), e consultados os documentos juntos aos autos, afirma-se desde já que se sufraga inteiramente o juízo de prova apresentado pelos Recorrentes (e, reitera-se, que se crê do próprio Tribunal a quo, atenta de novo a clareza da fundamentação de facto que se deixou exarada supra).

Também aqui sem necessidade de alongadas considerações, dir-se-á que não só a prova pessoal arrolada pelos co-Autores (eles próprios, e os demais irmãos germanos, seus e da Ré) era a única que possuía conhecimento directo dos factos em causa, tendo-os confirmado de forma absolutamente coerente e concertada, como a prova produzida pela Ré não foi idónea a infirmá-los, sequer indiciariamente (precisamente, por essa falta de conhecimento pessoal e directo, e ainda pelo carácter generalista com que depôs sobre a sua probidade económica).
Acresce que, estando em causa um montante avultado (€ 55.900,00), e sendo o pai das partes descrito como uma pessoa extremamente rigorosa (nomeadamente, controlando e exigindo as prestações mensais do pagamento de tornas devidas por um outro filho), contraria a experiência comum que o pagamento devido pela Ré ocorresse sem qualquer comprovativo bancário ou similar.

Mostra-se, assim, procedente nesta parte o recurso de apelação dos co-Autores (F. M. e J. M.), pelo que a factualidade que integra os artigos 13.º, 15.º, 16.º, 53.º, 54.º e 55.º da petição inicial deverá deixar de integrar o elenco dos factos não provados, e passar a integrar o elenco dos factos provados.
*
3.3.3. Remanescente matéria de facto impugnada

Vieram, por fim, os Recorrentes (F. M. e J. M.) defender que a prova produzida impunha que se desse como provada a razão pela qual não teriam agido antes em juízo (radicada no respeito que tinham pelo pai, e na vontade de não o desgostarem).

Contudo, considera-se que os demais factos provados (nomeadamente, os agora definitivamente assentes), impõem desde logo uma definitiva apreciação jurídica da lide; e, desse modo, tornaram-se aqueles outros irrelevantes, porque insusceptíveis de fundarem uma outra correcta solução de direito da causa.
É, assim, de todo inútil a sua reponderação.

Não se toma, por isso, conhecimento do remanescente objecto do recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pelos co-Autores (F. M. e J. M.), relativo aos factos vertidos nos artigos 49.º, 58.º e 59.º da petição inicial - que por isso permanecem omissos na fundamentação de facto da sentença recorrida.
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Falta ou vício de vontade
4.1.1.1. Declaração não séria

Lê-se no art. 245.º, n.º 1 do CC que a «declaração não séria, feita na expectativa de que a falta de seriedade não seja desconhecida, carece de qualquer efeito».
Trata-se de uma «declaração produzida com a intenção de criar uma aparência com a convicção de que a falsidade da aparência é conhecida e de que a aparência assim criada é inocente e não prejudicará ninguém» (Ac. da RC, de 23.06.2015, Henrique Antunes, Processo n.º 1534/09.7TBFIG.C1).
Compreende-se, assim, que as declarações não sérias típicas aqui previstas serão aquelas a que preside uma intenção jocosa, didáctica, cénica ou publicitária (Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 490).
Contudo, vem a jurisprudência admitindo que este conceito tem «uma latitude de aplicação que lhe permite também acolher aquelas situações em que, apurando-se que a declaração não correspondeu a qualquer vontade negocial, não se apura qualquer intuito específico, enganoso ou não, nem qualquer vício da vontade». Nestas situações, «em que, apesar da sua aparência negocial, nenhuma das partes emitiu e entendeu a declaração com cariz vinculativo, a mesma deve ser qualificada como não séria e obedecer ao regime do art.º 245º do C. Civil» (Ac. da RC, de 05.03.2013, Sílvia Pires, Processo n.º 4390/08.9TBLRA-G.C1). (11)
Com efeito, se a «declaração de vontade negocial traduz um comportamento que, exteriormente observado, cria a aparência externa de um certo conteúdo da vontade negocial, caracterizando depois essa vontade como a intenção de realizar determinados efeitos práticos, com o objectivo de que os mesmos sejam juridicamente tutelados e vinculantes» (Ac. do STJ, de 17.01.2017, Ana Paula Boularot, Processo n.º 4527/14.9T8FNC.L1.S1), se nem mesmo chega a existir a hipótese de ser atribuída seriedade à declaração de pretensa (inexistente) vontade negocial, mal se compreenderia que lhe fossem atribuídos quaisquer efeitos.

Impõe-se, porém, que sejam alegadas e provadas as concretas circunstâncias que, no caso sub judice, permitem concluir que à declaração não séria em causa presidiu uma expectativa de que a sua falta de seriedade não fosse desconhecida do respectivo declaratário, exigência que - natural e absolutamente - se justifica quando a mesma tenha sido inserta numa escritura pública.
Com efeito, «a celebração de uma escritura pública é, desde logo, um ato solene, em relação ao qual o cidadão de entendimento médio assume como ato sério, de elevada responsabilidade, ao ponto do legislador não se satisfazer com o recurso à forma verbal ou a uma forma escrita menos solene para celebrar o tipo de negócio que o documento encerra. Logo, será pouco compaginável com as regras da experiência comum, que os outorgantes façam declarações não sérias em sede de uma escritura pública».
Acresce a esta ponderação, reforçando-a, as «razões que levaram o legislador a adotar as cautelas enunciadas nos arts. 393º, n.º 2 e 394º, n.ºs 1 e 2 do CC» (isto é, a proibição da prova testemunhal para demonstração da inverdade de facto plenamente provado), bem como a desconhecida multiplicidade de razões que poderão estar subjacentes à divergência entre o declarado na escritura pública e a realidade ontológica ocorrida, tudo a impor a imperativa alegação de «razões fácticas concretas ocorridas antes e/ou no momento da celebração da escritura pública em que a declaração confessória foi feita e que (uma vez provadas) permitam concluir estar-se efetivamente na presença de uma declaração não séria» (Ac. da RG, de 01.03.2018, José Alberto Moreira Dias - aqui 1.º Adjunto -, Processo n.º 755/14.5TBFAF.G1, com extensa e minuciosa análise da jurisprudência que se tem pronunciado sobre esta realidade, e indicação dos seus diferentes entendimentos).
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Concluindo-se pela efectiva existência de uma «declaração não séria», «carece a mesma de qualquer efeito».
A ambiguidade da expressão (12) terá sido intencional (13), por forma a permitir ao julgador optar pelo regime que melhor se adeqúe à aparência da declaração: nulidade, no caso de ela ter uma aparência negocial (14); e inexistência, nas hipóteses em que nem essa aparência se verifique.
Certo, porém, é que, em qualquer dos casos, a dita declaração não séria estará afectada de absoluta invalidade, com exclusão de se produzirem quaisquer efeitos laterais de natureza negocial (15).
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4.1.1.2. Erro (vício) sobre os motivos do negócio

Lê-se no art. 251.º do CC que «o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do art. 247º» do C.C..
Admite-se, assim, o «erro», isto é, em tese geral, o desconhecimento ou a falsa representação da realidade (neste caso fáctica) envolvente de uma determinada situação. Logo, a relevância do erro em Direito abrange a própria ignorância da realidade.
Na hipótese referida, está em causa um erro-motivo ou erro-vício, isto é, o declarante quis o que efectivamente declarou (existe aqui conformidade entre a vontade real e a vontade declarada); mas o que declarou só foi querido em virtude de uma representação errónea da realidade (isto é, a vontade real ter-se-á formado em consequência do erro sofrido pelo declarante, falando-se por isso de um erro vício).
Por outras palavras, «há conformidade entre a vontade real e a vontade declarada. Somente, a vontade real formou-se em consequência do erro sofrido pelo declarante. Se não fosse ele [o erro], a pessoa não teria pretendido realizar o negócio, pelo menos nos termos em que o efectuou» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 235).

Sendo todo o erro-vício um erro sobre os «motivos determinantes da vontade», importa aqui ponderar o que seja o erro residual previsto no n.º 1 do art. 252.º do CC, reportado «aos motivos determinantes da vontade, mas se não refira à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio».
O mesmo abrange «situações múltiplas, mas entre todas se pode encontrar como factor comum o respeitarem a fins ou móbeis de natureza subjectiva do declarante» (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, AAFDL, 1983, pág. 288).
«Motivos determinantes são, assim, aquelas motivações concretas e particulares do errante que o levam a celebrar aquele negócio. Se o quisermos, são os elementos presentes na consultatio e sugeridos à electio contratual. Essas motivações são determinantes pelo simples facto que estarem presente naquele juízo intelectual que se debruçou ordine ad ea quae sunt ad finem. De entre essas motivações determinantes, algumas serão essenciais porquanto, sem elas, outra seria a electio contratual; outras, sendo determinantes, não são essenciais» (Diogo Costa Gonçalves, Erro obstáculo e erro vício, AAFDL, 2004, pág. 81, com bold apócrifo).
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Concluindo-se pela efectiva existência de um erro (vício) sobre os motivos determinantes da produção da declaração, a mesma só será «causa de anulação se as partes tiverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo», conforme resulta do regime geral previsto na II parte, do n.º 1, do art. 252.º do CC.
Importa, por isso, que se defina o que seja a esta «essencialidade» do elemento sobre o qual incidiu o erro, e o «anteprojecto [do CC de 1966] é claro na exposição: o erro só é relevante quando seja essencial para o declarante em ordem à realização do negócio; essencial absolutamente, de tal sorte que haja influído na conclusão do negócio, ou relativamente, se apenas influenciou os termos em que o negócio foi celebrado».
Logo, «essencial é tudo o que for determinante para o declarante. Exclui-se assim aqueles erros que não afectam a realização do negócio, ainda que o determinassem em termos diferentes.
(…) Perante uma situação de erro deve tomar-se como realidade jurídica relevante o negócio tal e como foi celebrado. Depois, indagamos a vontade conjectural para saber se o “enganado”, conhecendo o erro, celebraria ou não o negócio tal e como foi celebrado. Se sim, o erro é indiferente e nada tange a validade contratual. Se não, o erro é essencial e o negócio anulável, preenchidos os demais requisitos» (Diogo Costa Gonçalves, Erro obstáculo e erro vício, AAFDL, 2004, págs. 35-36, e pág. 70, com bold apócrifo).
Compreende-se, por isso, que se afirme que, «no plano do direito vigente, o erro, em geral, para ser relevante deve ser causal [designação que alguma doutrina prefere a essencial]. (…) Diz-se causal o erro quando, a não haver ignorância ou falsa representação de certo elemento que interferiu no fenómeno volitivo, o declarante não quereria celebrar qualquer negócio, ou quereria celebrar negócio diferente quer quanto ao seu tipo, quer quanto a algum ou alguns dos seus elementos essenciais ou acidentais. Por outras palavras, temos que, em tal caso, o erro é causa do negócio nos termos exactos em que foi celebrado – é “error causam dans”».
Logo, «a determinação do requisito da causalidade faz-se pelo confronto entre duas vontades: a correspondente ao que o declarante efectivamente quis - vontade real, vontade negocial ou vontade efectiva - e a correspondente àquilo que ele quereria, se tivesse conhecido a realidade que ignorava ou falsamente representou no seu espírito – vontade conjectural» (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, AAFDL, 1983, p. 273-274, com bold apócrifo).
Concluindo, «o primeiro requisito [essencialidade para o declarante, do elemento sobre que recaiu o erro] traduz-se na necessidade de o elemento sobre que recaiu o erro (v.g. preço, objecto material ou jurídico do negócio, etc.) ser decisivo para a celebração do negócio por parte do declarante» (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, AAFDL, 1983, p. 401 e 402).

Como segundo requisito de anulação, exigido no regime geral do art 251.º, n.º 2 do CC, encontramos a exigência de que o destinatário da declaração conhecesse ou devesse conhecer a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro.
«Saliente-se que este conhecimento respeita à essencialidade do elemento em que recai o erro e não ao erro em si mesmo» (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, AAFDL, 1983, págs. 401 e 402). «Exigir a cognoscibilidade do erro, com o consequente limite da invocação da anulabilidade, seria sacrificar de forma inaceitável o princípio da autonomia privada e o papel da vontade real na formação negocial» (Diogo Costa Gonçalves, Erro obstáculo e erro vício, AAFDL, 2004, pág. 38, com bold apócrifo).

Por fim, e como terceiro requisito de anulação do erro (vício) sobre os motivos determinantes da emissão a declaração, encontramos a exigência de que tenha sido reconhecida, por acordo, a essencialidade do motivo.
Não é, porém, necessário que o acordo (reconhecendo a essencialidade do motivo sobre que recaiu o erro, e que foi causa determinante do negócio), seja expresso, podendo constar de declarações tácitas, satisfeitos os requisitos de relevância dessa modalidade de declaração, previstos no art. 217.º, n.º 1 do CC.
Compreende-se, por isso, que se afirme que a lei consagra, como regra, o regime da irrelevância do erro nos motivos.
«São razões de segurança que impõem este regime, traduzindo-se assim numa irrelevância dos motivos não patentes, que não tenham uma correlação com aspectos objectivos do negócio e a que a contraparte só muito excepcionalmente aceitaria subordinar a validade do negócio.
Como escreve o Prof. Mota Pinto, “seria irrazoável permitir a anulação da declaração, uma vez provado, simplesmente, o conhecimento pela contraparte da essencialidade do motivo que levou o errante ao negócio, pois a contraparte normalmente não daria o seu acordo ao contrato, se este ficasse na dependência da circunstância cuja suposição levou o enganado a contratar”» (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, AAFDL, 1983, págs. 288-289).

Contudo, e no caso particular da confissão, o «erro desde que seja essencial, não tem de satisfazer aos requisitos exigidos para a anulação dos negócios jurídicos», conforme n.º 2 do art. 359.º do CC.
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4.1.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

4.1.2.1. Declaração não séria

Concretizando, verifica-se que, tendo falecido a mãe dos co-Autores (F. M. e J. M.) e da Ré (L. P.), bem como dos seus quatro outros irmãos germanos, o respectivo viúvo e pai - G. L. - decidiu doar aos filhos o seu quinhão hereditário nessa herança, e bem assim promover desde logo a respectiva partilha por eles, em termos que procurou determinar e controlar, mercê do respeito que os filhos lhe tinham.
Mais se verifica que, mercê do exposto, logo em 03 de Maio de 2003 foi lavrada uma acta, formalizando o respectivo projecto, ficando acordado que as tornas que fossem devidas entre eles seriam pagas «COM CHEQUE S/DATA, AO ACTUAL PROPRIETÁRIO G. L.», que depois os entregaria aos respectivos credores.
Verifica-se ainda que os termos aí definidos vieram a sofrer alterações na definitiva escritura de partilha, celebrada no dia 18 de Fevereiro de 2008, sem prejuízo de também então se ter previamente acordado entre todos que as tornas devidas aos aqui co-Autores seriam pagas por intermédio do pai (isto é, entregues as respectivas importâncias ao mesmo, para que este depois as fizesse chegar àqueles).
Por fim, verifica-se que, neste pressuposto, e nomeadamente confiando em absoluto de que as tornas em causa seriam depois efectivamente pagas, a dita escritura pública de partilha de quinhão hereditário foi celebrada, tendo os co-Autores (na qualidade de únicos credores as ditas tornas) declarado na mesma que «não levam quaisquer bens e que já receberam as importâncias a que tinham direito a título de tornas das quais dão quitação», sabendo a Ré perfeitamente que tal declaração não correspondia à autêntica vontade dos co-Autores, nem à realidade dos factos.
Crê-se assim - face aos concretos antecedentes que precederam a dita declaração de quitação, e ao preciso contexto em que a mesma foi proferida -, que não só os co-Autores a proferiram sem seriedade, como tinham a certeza (e não apenas a expectativa) de que a Ré conhecia essa falta de seriedade.
Logo, e por a mesma ter sido proferida no âmbito de uma escritura pública de partilha de quinhão hereditário, a mesma é nula quanto à Ré, não produzindo quanto a ela quaisquer efeitos (arts. 289º., n.º 1 e 292.º, ambos do CC).
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4.1.2.2. Erro (vício) sobre os motivos

Concretizando novamente, e prevenindo a hipótese de diferente entendimento (isto é, considerando não se estar perante uma declaração não séria), dir-se-á terem os co-Autores (F. M. e J. M.) proferido a declaração de quitação de tornas, quanto à Ré (L. P.), em erro sobre os motivos da mesma.
Com efeito, fizeram-no no exacto e único pressuposto de que a mesma lhes pagaria, em momento posterior à escritura, as ditas tornas, no que acreditavam em absoluto, nomeadamente pela confiança gerada pela intermediação do pai no dito pagamento. Logo, essa convicção própria foi essencial (isto é, casual) para a emissão da dita declaração de quitação (que, de outro modo, não teria sido emitida), em linha com aquela que é a normalidade da vida.

Logo, e ainda que a declaração de quitação não fosse nula quanto à Ré (por consubstanciar uma declaração não séria), sempre seria anulável quanto a ela, também assim não produzindo quanto à mesma quaisquer efeitos (arts. 289.º, n.º 1 e 292.º, ambos do CC).
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Mostra-se assim, e também nesta parte, procedente o recurso de apelação dos co-Autores F. M. e J. M.), devendo reconhecer-se a invalidade da declaração de quitação de tornas por eles emitida, em relação à Ré (L. P.), sendo a mesma insusceptível de produzir efeitos quanto a ela
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4.2. Crédito de tornas

4.2.1. Incumprimento

Lê-se no art. 762.º, n.º 1 do CC, que «o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado».
Logo, a não realização desta - o facto objectivo do não cumprimento - tanto pode consistir numa omissão, como numa acção (nos casos de prestação negativa), traduzindo-se a ilicitude, no domínio da responsabilidade contratual, precisamente na relação de desconformidade entre a conduta devida (a prestação debitória) e o comportamento observado.

Assente o comportamento (omissão ou acção) objectivo de incumprimento, bem como o seu carácter ilícito, exige ainda a lei que revista carácter culposo: o art. 798.º do CC impõe a responsabilidade civil contratual ao «devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação», e não ao devedor que singelamente falta àquele adimplemento.
A responsabilidade pelo incumprimento contratual pressupõe, pois, a culpa, não se bastando com o mero comportamento externo, exigindo a avaliação da conduta interna daquele. Agir «com culpa significa actuar em termos de a conduta do devedor ser pessoalmente censurável ou reprovável. E o juízo de censura ou de reprovação baseia-se no reconhecimento, perante as circunstâncias concretas do caso, de que o obrigado não só devia, como podia ter agido de outro modo» (João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol,. II, Almedina, págs. 92 e 93).
Contudo, e no âmbito da responsabilidade contratual, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua (art. 799.º, n.º 1 do CC). Atende-se aqui à facilidade com que o devedor pode violar a obrigação, cabendo-lhe, deste modo, o onus probandi de que se não cumpriu tal não se deve a culpa sua: «Só o devedor está, por via de regra, em condições de fazer a prova das razões do seu comportamento em face do credor, bem como dos motivos que o levaram a não efectuar a prestação a que estava vinculado» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora, Coimbra, 3.ª edição, 1986, pág. 55).

Assente o incumprimento ilícito e culposo, o devedor torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor» (art. 798.º do CC); e a «simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor», sendo que na «obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora», que em regra serão os legais, fixados desde 01 de Maio de 2003 em 4% ao ano (arts. 804.º, n.º 1 e 806.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do CC, e Portaria n.º 291/03, de 08 de Abril).
Por fim, dir-se-á que o «devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido» (art. 804.º, n.º 2 do CC); e a constituição da dita mora só ocorre depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, excepto se a obrigação tiver prazo certo, provier de facto ilícito, ou ele próprio haja impedido a sua interpelação para o efeito (art. 805.º, n.º 1 e n.º 2 do CC).
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4.2.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, verifica-se que, tendo sido celebrada em 18 de Fevereiro de 2008 uma escritura pública de partilha de quinhão hereditário, ficou a Ré (L. P.) devedor de tornas aos aqui co-Autores (F. M. e J. M.), no montante de € 27.950,00 a cada um deles.
Mais se verifica que, não as tendo pago, e não tendo ficado provado o momento em que o deveria fazer (nomeadamente, mercê de prévia alegação dos co-Autores, e de inclusão da mesma no objecto do recurso sobre a matéria de factos por eles interposto), foi interpelada para esse efeito por carta de 26 de Outubro de 2017, persistindo porém a sua omissão.
Logo, deverá ser condenada, não só no pagamento das tornas referidas (€ 27.950,00 a cada um dos co-Autores), como no pagamento de juros de mora, calculados à taxa legal de 4% ao ano, contados desde 27 de Outubro de 2017 até integral pagamento.
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela total procedência do recurso de apelação interposto pelos Recorrentes (F. M. e J. M.), revogando-se a sentença recorrida, sendo agora substituía por acórdão, julgando a acção integralmente procedente.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pelos co-Autores (F. M. e J. M.) e, em consequência, em revogar a sentença recorrida, sendo a mesma substituída por decisão que:

· Altera a decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto, deixando a factualidade vertida nos artigos 13.º, 15.º, 16.º, 17.º, 22.º, 44º, 45º, 53.º, 54.º e 55.º da petição inicial de integrar o elenco dos factos não provados, e passando a integrar o elenco dos factos provados;

· Declara nula, quanto à Ré (L. P.), a declaração de quitação de tornas por ela devidas aos co-Autores, exarada na escritura pública de «DOAÇÃO DE MEAÇÃO E DO QUINHÃO HEREDITÁRIO CONSTITUIÇÃO DE PROPRIEDADE HORIZONTAL E PARTILHA», celebrada em 18 de Fevereiro de 2008, não produzindo quanto a ela quaisquer efeitos;

· Condenar a Ré a pagar a cada um dos co-Autores a quantia de capital de € 27.950,00 (vinte e sete mil, novecentos e cinquenta euros, e zero cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4% ao ano, contados desde 27 de Outubro de 2017 até integral pagamento.
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Custas da apelação pela Ré (art. 527.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC).
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Guimarães, 23 de Janeiro de 2020.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.


1. É o que sucede, em geral, na prova por documentos autênticos (art. 371.º, n.º 1 do CC), autenticados (art. 377.º do CC) e particulares (art. 376.º, n.º 1 do CC), por confissão (art. 358.º do CC), ou por acordo das partes (art. 574.º, n.º 2 do CPC).
2. É o que sucede na prova pericial (art. 389.º do CC e art. 489.º do CPC), na prova por inspecção judicial (art. 391.º do CC), na prova por verificação não judicial qualificada (art. 494.º, n.º 3 do CPC), na prova testemunhal (art. 396.º do CC), e na prova por depoimento/declarações de parte (arts. 463.º a 466.º, n.º 3 do CPC).
3. Defendendo este poder oficioso do Tribunal de Recurso, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, págs. 225 e 226.
4. Neste sentido, Ac. do STJ, de 02.11.2017, Rosa Ribeiro Coelho, Processo n.º 420/16.9T8STR.E1.S1, e Ac. do STJ, de 14.05.2019, Raimundo Queirós, Processo n.º 930/12.7TBPVZ.P1.S1, que consideraram que o recebimento de uma quantia a título de tornas, na medida em que extingue o correspondente crédito, constitui um facto desfavorável a quem delas é credor e favorável para o respectivo devedor, assumindo a declaração de quitação a natureza de confissão.
5. Neste sentido, Ac. STJ de 17.12.2015, Abrantes Geraldes, Processo n.º 940/10.9TVPRT.P1.S1.
6. Neste sentido, Ac. do STJ, de 09.12.2008, Urbano Dias, Processo n.º 08ª3665, Ac. do STJ, de 06.12.2011, Gregório da Silva Jesus, Processo n.º 2916/06.1TACB.C1.S1, Ac. do STJ, de 13.09.2012, Tavares de Paiva, Processo n.º 2816/08.OTVLSB.L1.S1, Ac. da RG, de 01.10.2013, Filipe Caroço, Processo n.º 894/11.4TBVCT.G1, Ac. do STJ, de 15.04.2015, Pires da Rosa, Processo n.º 28247/10.4T2SNT-A-L1.S1, Ac. da RC, de 23.06.2015, Henrique Antunes, Processo n.º 1534/09.7TBFIG.G1, ou Ac. do STJ, de 14.05.2019, Raimundo Queirós, Processo n.º 930/12.7TBPVZ.P1.S1.
7. No restrito âmbito da prova legal, e para além da prova plena, existem ainda outros dois e diferentes graus de prova (em função das condições em que será possível por em causa a prova que resulte de tais meios vinculados), nomeadamente: a prova bastante, que cede mediante a mera contraprova, que tem por fim tornar incerto o facto (art. 346º do CC), como será o caso do art. 374.º do CC, em que o valor probatório da letra e assinatura de documento pode ser posto em causa por simples impugnação da parte contrária; e a prova pleníssima, que nem mesmo cede perante a prova do contrário.
8. Neste sentido, Ac. da RC, de 23.06.2015, Henrique Antunes, Processo n.º 1534/09.7TBFIG.C1.
9. A exigência de rigor, no cumprimento do ónus de impugnação, manifestou-se igualmente a propósito do art. 685º-B, n.º 1, al. a), do anterior CPC, de 1961, conforme Ac. da RC, de 11.07.2012, Henrique Antunes, Processo n.º 781/09 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicção de origem - onde expressamente se lê que este «especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor», constituindo «simples decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última extremidade, a seriedade do próprio recurso».
10. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 6628/10.
11. No mesmo sentido: Ac. do STJ, de 15.04.2015, Pires da Rosa, Processo n.º 28247/10.4T2SNT-A-L1.S.
12. Horster, A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 1992, pág. 912.
13. Rui Alarcão, «Reserva mental e declarações não-sérias», BMJ, n.º 86, pág. 231, onde - em sede de trabalhos preparatórios do CC de 1966 - explica que «o § 118.º, do Código alemão diz que a declaração é nula (nichtig). Mas parece-nos preferível dizer, como se faz no preceito que sugerimos, que a declaração não produz efeito. É que, no tocante aos casos em que o declaratário conhecia ou devia conhecer a não seriedade da declaração - ou, pelo menos, quanto a alguns desses casos (declarações didácticas e cénicas) -, não falta quem sustente que a declaração se não deve considerar nula, pois que nem mesmo chega a haver uma verdadeira declaração negocial».
14. Neste sentido, Rui Alarcão, A confirmação dos negócios anuláveis, Volume I, edição 1971, Atlântida, págs. 38-39.
15. Horster, ibidem.