Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2284/20.9T8GMR-A.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
INCAPACIDADE OU IMPOSSIBILIDADE DO ADVOGADO
JUSTO IMPEDIMENTO
SUBSTABELECIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

- À audiência de julgamento prevista no art. 138º do CIRE são aplicáveis as normas dos arts. 151º e 603º do CPC.
- A incapacidade ou impossibilidade do advogado se deslocar ao tribunal para estar presente na audiência de julgamento, declarada, através de atestado médico, dias antes da data da diligência e quando já resulta de um prolongamento de tal estado, causador anteriormente de uma alteração à data do julgamento, não constitui justo impedimento, se não está demonstrado que esse facto era impeditivo da adoção de providências necessárias à prática do ato, nomeadamente procedendo-se ao necessário substabelecimento.
- Não é impeditivo do substabelecimento a circunstância do advogado exercer em prática individual, nomeadamente quando, como no caso, se tinha tempo para adotar as medidas necessárias para impedir que os seus constituintes não fossem prejudicados.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório:

1. No presente incidente de qualificação da insolvência de N. M., Unipessoal, Lda., a Sra. Administradora de Insolvência elaborou parecer nos termos do art. 188º, nº3 do CIRE, concluindo que a mesma devia ser considerada culposa (fls. 3 e ss.) sendo afectado por essa qualificação o gerente D. M., NIF ……....
2. Foi aberta vista ao MP que igualmente concluiu que a presente insolvência deveria ser qualificada como culposa.
3. O requerido/afetado deduziu oposição como decorre de fls. 19 e ss.
4. Por despacho datado de 30.10.2020 foi designada data para a realização da audiência de julgamento para o dia 15.12.2020.
5. Em 02.11.2020, o ilustre mandatário da recorrente Dr. R. S. veio requerer a alteração da data da audiência de julgamento, o que foi concedido por despacho datado de 04.11.2020 e designada a audiência para o dia 05.01.2021.
6. Em 20.12.2020, o ilustre mandatário da recorrente Dr. R. S. veio requerer o agendamento de nova data da audiência de julgamento, alegando “ justo impedimento” e juntando atestado médico, e que mereceu despacho datado de 21.12.2020, tendo sido designada nova data para a audiência de julgamento para o dia 19.01.2021, pelas 15h30m.
7. Em 13.01.2021, o ilustre mandatário da recorrente Dr. R. S., por requerimento, veio dar conta aos autos de que não poderá estar presente na diligência no dia 19.01, em virtude de doença e conforme atestado que juntou e que mereceu despacho datado de 15.01.2021, nos termos do qual se lê “ Atento o período prolongado, deverá o ilustre requerente substabelecer”.
8. O ilustre mandatário Dr. R. S. foi notificado no dia 15.01.2021 deste despacho e no dia 19.01, pelas 12h50m, juntou aos autos requerimento nos termos do qual se lê o seguinte “ vem informar que pratica advocacia em prática isolada. Apesar do curto espaço de tempo diligenciou no sentido de encontrar um ilustre colega para o substituir na diligência no dia de hoje, porém, infelizmente, não conseguiu nenhum disponível”.
9. Naquele dia 19.01.2021, pelas 16:55 horas, pelo M.mo Juiz foi declarada aberta a audiência de julgamento (só a esta hora devido ao facto de o M.mo Juiz se encontrar impedido na realização da continuação da audiência de julgamento no processo nº 1113/19.0T8GMR-B), e realizou-se a audiência de julgamento, com observância de todo o legal formalismo como da respetiva ata se infere, tudo sem a presença, além do mais do ilustre mandatário da insolvente.

10. Seguiu-se, de imediato, a prolação da sentença nos seguintes termos:
“Pelo exposto, nos termos do disposto nos arts. 189º nºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o tribunal qualifica como culposa a insolvência da sociedade N. M., UNIPESSOAL, LDA.,e, em consequência:
a) Declara afectado pela qualificação D. M..
b) Declara o afectada - D. M. - inibido, pelo período de 2 anos para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Determina a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por D. M..
e) Condena as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos ou em montante a fixar em liquidação de sentença, até às forças do respetivo património…”
*
11. Inconformado com tais decisões, apelou a insolvente, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

A. O que está aqui verdadeiramente em causa é a verificação de uma situação de justo impedimento, genericamente prevista no artigo 140º do Código de Processo Civil, que obstou à comparência do advogado na diligência judicial para que tinha sido regulamente convocado.
B. Ou seja, verificou-se um evento inesperado e imprevisto, de efeitos invencíveis ou insuperáveis, que impediu o mandatário judicial de comparecer ao acto processual ou de o praticar, diminuindo, comprimindo ou suprimindo substantivamente, por essa via, a plenitude do exercício das faculdades legais que assistiam à parte que representa, a qual, desse modo, se viu colocada numa situação de inegável e objetivo desfavorecimento em relação à contraparte.
C. Esta situação - que contende necessariamente com o estatuto de igualdade substancial entre as partes (que o juiz deverá, em qualquer circunstância, observar e fazer observar, em escrupuloso cumprimento do artigo 4º do Código de Processo Civil) – é extensível a todas as fases do processo em que a lei pressuponha a intervenção do mandatário judicial para exercer os direitos da parte em diligência judicial presidida pelo juiz.
D. Logo, haverá que aplicar ao regime próprio da audiência de julgamento a regra geral precisamente consignada no artigo 603º, nº 1, do Código de Processo Civil, enquadrada na figura, de cariz genérico e abrangente, do justo impedimento consagrado no artigo 140º do mesmo diploma legal.
E. O que significa que, existindo, comprovadamente, uma situação de justo impedimento que explica e justifica a ausência de um dos advogados ao acto judicial para o qual foi convocado, não existe outra alternativa que não o adiamento a determinar pelo juiz que preside à audiência.
F. Isto é, contrariamente ao que foi sustentado pelo Sr. Dr. juiz, não tem cabimento realizar a diligência, sem que uma das partes se possa defender plenamente, G. quando essa mesma parte, tinha deduzido oposição, a fls 19, tendo arrolado prova testemunhal e documental.
H. Pois, a falta está devidamente justificada, atempadamente comunicada, e o ausente só não compareceu por motivos que não lhe são imputáveis e que ocorreram de forma inesperada, não sendo passíveis de superação, e não lhe dando margem para a conduta alternativa que pretendia adoptar (a comparência ao acto).
I. Não tendo podido o advogado comparecer a uma audiência na qual lhe competia assegurar a defesa dos interesses do seu cliente, no cumprimento do mandato forense que lhe foi conferido, devendo-se a sua imprevista ausência a imponderáveis motivos de saúde verificados e devidamente comprovados, a lei não estabelece um regime (insensato) de inexplicável indiferença pela impossibilidade objetiva de comparência, como naturalmente se compreende.
J. Convirá, a este propósito, avocar o Assento (ora entendido como acórdão uniformizador de jurisprudência) de 3 de Abril de 1991 (secções criminais) segundo o qual “o atestado médico, para justificar a falta de comparência perante os serviços justiça de pessoa regularmente convocada ou notificada, referido no artigo 117º, nº 3, do CPP, não tem que indicar o motivo concreto que impossibilita essa comparência ou a torna gravemente inconveniente, mas apenas atestar que o faltoso se encontra doente e impossibilitado ou em situação de grave inconveniência, por doença, de comparecer”.
K. Por outro lado, tendo sido a procuração forense outorgada exclusivamente em favor do Dr. R. S., que trabalha em prática isolada, conforme resulta da análise dos autos, não se compreende igualmente que impendesse sobre o causídico a obrigação de, numa situação de doença e limitadora das suas capacidades físicas e intelectuais, diligenciar no sentido de substabelecer em qualquer outro colega, provavelmente distanciado da matéria que se discute nestes autos e apanhado de surpresa, para intervir num processo judicial cujos contornos desconheceria até aí,
L. apesar deste, em total colaboração com o Tribunal ter por todos os meios tentado essa substituição, conforme se pode aferir nos autos.
M. Não podemos perfilhar o entendimento e a lógica que originaram a realização da diligência de julgamento.
N. O que está precisamente em causa é o exercício do contraditório pelas partes, não cabendo ao juiz aquilitar da maior ou menor utilidade da presença dos ilustres mandatários judiciais convocados para a diligência.
O. Não é ainda minimamente aceitável que o juiz considere que numa audiência de julgamento em que se discute o incidente de qualificação da insolvência, onde estavam arroladas para serem inquiridas várias testemunhas, que teriam de ser confrontadas com inúmeros documentos específicos, a presença ou ausência do advogado do insolvente não faça nenhuma diferença prática, como se aquilo que pelo mesmo viesse a ser feito nessa audiência de julgamento não fosse relevante (sob qualquer ponto de vista) ou devesse à partida ser encarado como inconclusivo, inócuo ou a desconsiderar absolutamente.
P. Se o advogado não pode comparecer por razões de doença incapacitante, antecipadamente comprovada, a sua falta é sempre relevante e obriga por si só ao adiamento da diligência face ao justo impedimento que configura.
Q. A postura de absoluta e antecipada desconsideração pela posição do que o mandatário entenda expressar no acto judicial para o qual é avocada a sua presença, eventualmente equiparando a sua tomada de posição sobre a questão jurídica em discussão a um exercício retórico dispensável e inútil, não faz de todo o menor sentido, como não pode deixar de ser.
R. A douta decisão recorrida violou assim o disposto nos artigos 195º e 199º, nº1 do Código de Processo Civil.
Sem prescindir,
S. A matéria de facto provada é insuficiente para o Tribunal ‘quo’ qualificar a insolvência como culposa com fundamento na alínea h) do n.º2 do artigo 186º do CIRE.
T. Nesta citada norma legal, o que está em causa é o incumprimento por parte dos administradores da obrigação de manter a contabilidade organizada, manter uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade, o que, no modesto entendimento da Recorrente, da factualidade provada, nada permite tirar essa conclusão.
U. Não ficou provada qualquer actuação da Recorrente ou dos seus gerentes que seja flagrantemente reprovável ou altamente censurável, apta a causar ou a agravar a situação de insolvência.
V. Não ficaram provadas quaisquer condutas, por acção ou por omissão, da afectada Recorrente que tenham sido determinantes da declaração da insolvência.
27. Por último, a Recorrente não violou o dever de colaboração, já que quando foi declarada a insolvência e solicitada a colaboração da Recorrente esta foi prestada, tendo sido erradamente apreciada pela Srª Administradora, conforme se mostrou na oposição realizada e facilmente se provaria em sede de audiência e julgamento.
W. Neste sentido, ao qualificar como dolosa a insolvência da N. M. UNIPESSOAL, LDA, a Sentença recorrida violou o disposto no artigo 186º e 189º do CIRE, artigo 12º do Código Civil.
X. Assim, deve pois a sentença ser revogada e substituída por outra que não qualifique a insolvência como culposa com fundamento na alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
*
Foram apresentadas contra-alegações pelo Digno Magistrado do MP pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
*
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso, verifica-se que são as seguintes as questões essenciais a decidir:

i) Da nulidade processual por ter sido levado a efeito o julgamento sem a presença do mandatário da insolvente;
ii) saber se a insolvência deve, ou não, ser qualificada como culposa.
*
III- Fundamentação de facto.

Com relevância para a decisão a proferir, quanto à invocada nulidade processual, importa ter em consideração a alegação factual referida no relatório deste acórdão, cujo teor aqui se dá por reproduzido e ainda que foi dado como provado na sentença recorrida, o seguinte:

a) A N. M., UNIPESSOAL, LDA., pessoa coletiva número ………, com sede na Rua da …, n.º …, Guimarães, foi constituída em 04/07/2014 pela vontade do seu Sócio N. M., NIF ………, com um capital social de EUR 250,00, tendo sido nomeado gerente, aquando da constituição, aquele N. M..
b) Em 19/03/2018 N. M. cessou as funções de gerente na dita sociedade, conforme registo averbado pela AP. 81/20180319, tendo sido designado para o exercício dessas funções o seu irmão D. M., NIF ………, o qual se manteve até à declaração de insolvência.
c) Por Sentença proferida em 19/05/2020, transitada em julgado, foi N. M., UNIPESSOAL, LDA. declarada insolvente.
d) A sociedade insolvente, no ano de 2019 apenas tem faturas registadas até 31/07/2019, não tendo realizado qualquer prestação de serviços entre o período de 01/08/2019 a 31/12/2019.
e) Quanto ao ano de 2020, a insolvente tem faturas registadas até 17/03/2020 no valor global de EUR 38.338,10, faturas essas todas emitidas a um único consumidor final, com o NIF ………, pertencente ao Gerente da insolvente, D. M..
f) A ausência de faturação entre 01/08/2019 e 31/12/2019 teve como objetivo ocultar a prestação de serviços da sociedade insolvente, porquanto detinha os créditos com clientes penhorados na sequência de processos de execução fiscal contra si instaurados.
g) A anulação da Fatura 23/2019, emitida em 31/07/2019 a favor do NIPC ………, no valor de EUR 29.127,02, teve como propósito a não entrega desse valor ao Estado, mercê da ordem de penhora desse mesmo crédito.
h) A N. M., UNIPESSOAL, LDA., no ano de 2019, teve gastos com pessoal no valor de EUR 181.814.92 (representando um aumento de 28,7% face ao período homólogo) e uma faturação de, apenas, EUR 59.828,99.
i) Assim, ao contrário do que a contabilidade nos demonstra, uma vez que a empresa em 2019 apenas apresentou resultados negativos elevados não necessariamente pelo facto da sua atividade não ser rentável, mas sim por questões de manipulação de gestão na obtenção dos meios financeiros, nomeadamente pelo facto dos clientes passarem a faturar e a pagar diretamente a uma terceira Entidade – alegadamente ao Gerente da insolvente – e os custos estarem a ser suportados pela N. M., UNIPESSOAL, LDA.
j) A contabilidade veicula a existência de um saldo devedor da Gerência à sociedade N. M., UNIPESSOAL, LDA., no valor de EUR 183.831.61.
k) A utilização daquele valor [EUR 183.831,61] teve como finalidade o pagamento de encargos/despesas próprias da insolvente, mas sem documento de suporte.

Factos não provados.

- que da o valor referido sob j) tenha sido utilizado em gastos ou despesas que não constituíssem obrigações insolvente, nomeadamente pagamentos a trabalhadores.
*
IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA

i) Da NULIDADE DA REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA FINAL POR JUSTO IMPEDIMENTO

A recorrente pede a anulação da sentença e do julgamento, por nulidade, por ter sido levado a efeito o julgamento sem a presença do advogado.
Sustenta, para tanto, que, ainda antes da sessão de julgamento de 19/01/2021 ter começado, o Ilustre Mandatário da recorrente, através de requerimento, informou o Tribunal que se encontrava impossibilitado de comparecer, por continuar impossibilitado de se ausentar de casa conforme atestado médico junto e na continuidade do anterior, consignando no dia 19.01.2021 que não conseguiu substabelecer em nenhum colega o patrocínio, sendo certo que leva a cabo a prática da advocacia de forma isolada.
Entende estar demonstrado que o Mandatário não tinha qualquer possibilidade, nem condições de comparecer à Audiência de Julgamento.
Defende que o indeferimento, pelo menos implicitamente, deste incidente de justo impedimento, com a realização da audiência de julgamento levada a cabo sem a presença do advogado e na sequência do requerimento de 13.01.2021, e despacho datado de 15.01.2021, se traduziu numa nulidade insanável, nos termos do art.º 195.º do CP Civil, devendo ter lugar a realização de uma nova audiência de julgamento.

Vejamos os normativos pertinentes para a resolução da questão:
«Artigo 603º: 1 – Verificada a presença das pessoas que tenham sido convocadas, realiza-se a audiência, salvo se houver impedimento do tribunal, faltar algum dos advogados sem que o juiz tenha providenciado pela marcação mediante acordo prévio ou ocorrer motivo que constitua justo impedimento. (…) / 3 — A falta de qualquer pessoa que deva comparecer é justificada na própria audiência ou nos cinco dias imediatos, salvo tratando-se de pessoa de cuja audição prescinda a parte que a indicou.»
«Artigo 140º: 1 – Considera-se «justo impedimento» o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato. / 2 — A parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.(…)»
«Artigo 151º: (…) 3 – O juiz, ponderadas as razões aduzidas, pode alterar a data inicialmente fixada, apenas se procedendo à notificação dos demais intervenientes no ato após o decurso do prazo a que alude o número anterior. (…) / 5 – Os mandatários judiciais devem comunicar prontamente ao tribunal quaisquer circunstâncias impeditivas da sua presença. (…)»
Antes de mais, importa abrir um parêntesis para ser abordada a seguinte questão, aliás suscitada em contra-alegações: saber se o referido nos art.ºs 151º do C.P.C. e 603º do mesmo diploma, se aplicam ao CIRE.
Em nosso entendimento nada obsta a tal.
É verdade que o art.º 138º do CIRE refere “produzidas as provas ou expirado o prazo marcado nas cartas é marcada a audiência de discussão e julgamento para um dos 10 dias posteriores”, o que numa primeira leitura poderia levar-nos a pensar que o art.º 151º do C.P.C. não seria aqui aplicável. Porém, não vislumbramos que a audiência aludida no preceituado no art. 138º do CIRE, seja impeditiva de adiamento, tanto mais que o art.º 17º do CIRE refere que o processo de insolvência se rege pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código (Código da Insolvência da Recuperação de Empresas).
Na verdade, se fosse intenção do legislador que a audiência aludida art. 138º do CIRE não pudesse ser adiada certamente o teria dito ( vide sobre esta temática, mas a propósito da anotação do art. 35º do CIRE, Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, 4ª ed, p. 196,197).
Assim, e face ao exposto, temos para nós, que o artigo 151º e 603º do C.P.C. é aplicável ao caso em apreço.

Assim:
Da conjugação dos art.s 603 e 151º do CPC resulta o seguinte: sempre que a audiência final tenha sido marcada por acordo prévio (cf. art.º 151.º, n.º 1, do CP Civil) apenas o impedimento do tribunal ou o justo impedimento podem legitimar o seu adiamento.
No caso em apreciação, não se colocando qualquer situação de impedimento do tribunal, importa delimitar o conceito de “motivo que constitua justo impedimento”.
Ora, como resulta do disposto no artigo 140º do CPC, considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato.
Comentando esta norma, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ( in CPC anotado, Vol I, p. 298) afirmam que, «à luz do novo conceito, basta, para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário, por ter tido culpa na sua produção. (...) Passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário. Um evento previsível pode agora excluir a imputabilidade do atraso ou da omissão. Mas, tal como na responsabilidade civil contratual, a culpa não tem de ser provada, cabendo à parte que não praticou o acto alegar e provar a sua falta de culpa, isto é, a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo (art. 799-1 CC): embora não esteja em causa o cumprimento de deveres, mas a observância de ónus processuais, a distribuição do ónus da prova põe-se nos mesmos termos.»
Uma das situações que pacificamente vem sendo admitida como fundamento para a existência de justo impedimento é a doença súbita e incapacitante do Exmo. Mandatário de uma das partes, situação mais comum e corrente nos tribunais, mas que não ocorre no caso vertente.
Por aplicação das regras gerais do ónus da prova, cabe à parte interessada alegar e provar a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo da prática atempada do ato processual.
O justo impedimento, tal como especificamente determinado pelo n.º 1 do art.º 603.º do CP Civil, aplica-se, também, no âmbito da audiência final, como forma de legitimar um direito subjetivo de adiamento da mesma.
Assim, deve entender-se que o justo impedimento capaz de justificar o adiamento da audiência final tem que ser feito em momento anterior ou, quando muito, coincidente com o do início aprazado para esta, através de comunicação ao tribunal com alegação do motivo imprevisto ou de força maior impeditivo da presença do advogado e apresentação da respetiva prova.
Na eventualidade de o justo impedimento não poder ser invocado em momento anterior ou contemporâneo com o da audiência final, já se tratará diversamente da invocação de uma nulidade processual.
Seguindo a explicação de Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro ( Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª Edição, 2014, Almedina, pág. 571) : “Não tendo o justo impedimento sido invocado antes do momento em que a audiência teve lugar, deverá a parte reclamar da nulidade processual em que se traduz a prática de um acto que a lei não admite (art.º 195.º, n.º 1) – realização da audiência ocorrendo justo impedimento. O impedimento é aqui invocado como pressuposto constitutivo do direito de obter a declaração de nulidade do acto – relativa: art.º 197.º, n.º 1 – e não do direito de adiamento da audiência ou do direito de praticar um acto para além do prazo fixado.”
Nesta situação, a parte interessada terá que provar, para além da ocorrência do motivo imprevisto ou de força maior impeditivo da presença do advogado em audiência, igualmente a impossibilidade de o ter comunicado antes da audiência, apresentando a respetiva prova.

Ora, no caso dos autos, importa saber se, perante aquela mera justificação alegada em 13.01.2021 e muito antes do início da sessão de audiência, se impunha o seu adiamento.
Era perante ela --- não perante qualquer comprovação posterior --- que cumpria ao tribunal decidir se adiava ou não adiava a audiência.
Vejamos.
Resulta dos autos que a audiência de julgamento, inicialmente marcada, para 15.12.2020, foi alvo de duas transferências de data, uma por o mandatário do insolvente ter outro julgamento na mesma data e outra por impossibilidade de comparência do mandatário do insolvente, invocando e apresentando atestado médico justificativo dessa impossibilidade [ (audiência marcada para 05.01.2021, dando lugar à marcação da audiência para o dia 19.01.2021].
Nas diversas marcações de julgamento, em consequência da invocação de impossibilidade de comparência do ilustre mandatário do insolvente, o Exmo. Juiz do Tribunal a quo deu estrita observância ao que se dispõe no supra artigo 151º, nº 1 a 3 do CPC.
Sucede que o Exmo. Juiz do Tribunal a quo na segunda alteração da data para julgamento, inclusive, teve o cuidado de marcar o julgamento para a data posterior ao termo da impossibilidade do advogado e constante do atestado ( constava ali o termo em “16.01.2021” e foi designado o dia “19.01.2021”).
Sem embargo, no dia 13.01.2021, o ilustre mandatário do insolvente vem comunicar aos autos que continuava impossibilitado de estar presente naquela data do julgamento ( 19.01) e até 05.02.2021, conforme atestado, pelo mesmo motivo.
Por despacho de 15.01.2021, o Ex. Sr. Juiz a quo alertou, todavia, o mandatário da insolvente que, face ao período prolongado deveria o mandatário providenciar, caso assim o entendesse, por substabelecer, depreendendo-se que não seria alterada a data, nem adiada a audiência com base em tal justificação.
E, na data aprazada para a audiência final, o Ilustre mandatário do insolvente faltou, tendo-se iniciado e finalizado o julgamento sem a presença do mesmo.
Pretendia a recorrente que o tribunal acolhesse o invocado o justo impedimento com fundamento na circunstância do Ilustre Mandatário do insolvente se encontrar impedido de exercer as suas funções profissionais desde dezembro de 2020 e até 05.02.2021, conforme atestados médicos juntos. No seu entender, a parte tem o direito de escolher o seu mandatário e exercendo o Ilustre Mandatário da insolvente advocacia em prática individual, estava impossibilitado de substabelecer o seu mandato, conforme informou ainda no dia 19.01.2021, da parte da manhã.
Porém, salvo o devido respeito, estes factos não permitem o reconhecimento do justo impedimento.
Com efeito, o mandatário sabia desde o dia 13.01.2021 que não poderia estar presente na audiência de julgamento do dia 19.01.2021 e disso deu conta ao tribunal já naquele dia 13.01. Contudo, não logrou justificar estar impedido de adotar as providências necessárias a garantir o atempado exercício dos direitos profissionais, nomeadamente procedendo o Ilustre Mandatário ao substabelecimento do mandato, como expressamente previsto na procuração e conforme foi alertado pelo Ex. Dr. Juiz a quo para isso.
E não se argumente com o exercício da advocacia em prática individual, pois o dever do Advogado é garantir a defesa dos interesses dos respetivos constituintes, pelo que, na hipótese de estar impedido de exercer os deveres do mandato, deverá adotar as providências necessárias para impedir que os seus constituintes sejam prejudicados, no limite substabelecendo o mandato.
Como vimos, o requerente do justo impedimento tem de alegar e provar a sua falta de culpa na prática tardia do ato, não bastando assim a mera alegação de impossibilidade de exercício dos deveres profissionais, tornando-se ainda necessário provar que esse facto era absolutamente impeditivo de tomar as providências necessárias à prática atempada do ato, se necessário procedendo ao substabelecimento. Prova esta que não foi efetuada.
Como se escreve no Acórdão n.º 178/2014, de 25.02.2014, do Plenário do Tribunal Constitucional (Proc. 336/2013), «o justo impedimento para a prática do acto processual por mandatário judicial só se verifica quando ocorra impossibilidade absoluta ao desenvolvimento do mandato judicial, nas suas múltiplas vertentes, em virtude da produção de facto independente da sua vontade e que o cuidado e diligência normais não permitiam antecipar, não bastando a mera dificuldade na prática do acto. Haverá, então, para julgar verificado justo impedimento por doença de mandatário, de se ter como demonstrada afectação ou condição que, pela sua natureza ou gravidade, impeça razoavelmente o mandatário de substabelecer noutro advogado ou de comunicar com o seu constituinte, ou ainda quando o acto não possa de todo ser levado a cabo por outro causídico. Nada disso vem alegado, nem se evidencia, tendo especialmente em atenção, repete-se, o prolongamento por mais de duas semanas da situação de doença e de tratamento. Nessa medida, o tempo em que foi apresentada a reclamação deve-se, em primeira linha, a escolha do mandatário da recorrente, e não resulta de motivo de força maior, contra o qual não lhe fosse possível, com diligência normal, desenvolver outro comportamento, capaz de conduzir à prática do acto no prazo fixado por lei.».
Diga—se ainda que um dos deveres principais dos Advogados, previsto no art.º 108.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, é o dever de diligência, nos termos do qual “O advogado deve, em qualquer circunstância, actuar com diligência e lealdade na condução do processo.”
Daí entender-se que no caso de uma doença prolongada e/ou de duração indeterminada de um dos mandatários das partes não é causa legal de adiamento da audiência final, o Ilustre mandatário deveria, em obediência a este princípio deontológico, ter reorganizado a sua atividade de forma corresponder aos seus compromissos processuais, designadamente substabelecendo noutro colega.
Por outro lado, não é impeditivo do substabelecimento a circunstância do advogado exercer em prática individual, nomeadamente quando, como no caso, se tinha tempo para adotar as medidas necessárias para impedir que os seus constituintes não fossem prejudicados.
Não o tendo feito, não poderia vir invocar essa doença prolongada ou circunstância incapacitante prolongada como fundamento de adiamento da audiência final, por não se tratar de uma situação fortuita ou imprevista. Ou seja, por não ser enquadrável na noção de justo impedimento, para os fins previstos nos art.º 140.º e 603.º do CP Civil. ( cfr. neste sentido, entre outros, AC da RP de 15/10/12, tendo como Relator António Ramos; AC da RP de 24/09/2019, tendo como relatora Lina Baptista).
Em face do exposto, conclui-se não se verificar qualquer nulidade da sentença e do julgamento por ter sido levado a efeito o julgamento sem a presença do advogado, resultando, assim, improcedente a questão do justo impedimento.
É, portanto, improcedente este fundamento de recurso.
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ii) Saber se a insolvência deve, ou não, ser qualificada como culposa.

Como se evidencia da decisão recorrida aí se propendeu para o entendimento de que a insolvência devia ser qualificada como culposa pelo preenchimento da factie species da alínea h) do nº 2 do artigo 186.º do CIRE.
A decisão fundamentou-se essencialmente e neste particular, no seguinte: “ Incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, porquanto a mesma contém as irregularidades referidas com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, tendo inclusivamente tido o efeito de se eximir a execuções fiscais”.
Desse entendimento dissente a recorrente.
Vejamos.
Nos termos do artigo 185º do CIRE a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita.
A insolvência é culposa, designadamente, quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus gerentes, administradores, diretores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência - (artigo 186º do CIRE).

O nrº2 do artigo 186º refere, em concreto, os casos em que a insolvência é sempre considerada culposa, quando os seus gerentes, administradores, diretores tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantida uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.0 2 do artigo 188º do CIRE.

A doutrina e jurisprudência é unânime em considerar que o nº2 do art. 186º do CIRE contém uma presunção iuris et de iure, não admitindo prova em contrário quando se verifiquem alguma ou algumas das circunstâncias nele enumeradas. O nº2 presume a culpa e o nexo de causalidade entre a atuação dos administradores do devedor e a criação do estado de insolvência. Fora dos casos previstos no nº2 deve ser provada a culpa e o nexo de causalidade. Já o nº3 contempla uma presunção iuris tantum de culpa grave e por conseguinte ilidível, sendo que tem de se verificar, nesses casos, o nexo de causalidade entre a entre a atuação dos administradores do devedor e a criação do estado de insolvência.
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Postos este breves considerandos, o tribunal recorrido considerou dever ser qualificada a insolvência como culposa por estar preenchida a factie species da alínea h) artigo 186.º do CIRE.
Ora, tendo em conta a factualidade dada como provada e só a essa há que fazer apelo, não vemos como não dar como verificada a facti species da mencionada alínea h) do nº 2 do artigo 186.º do CIRE, tal como conclui o tribunal recorrido, com cuja fundamentação se concorda inteiramente e que aqui nos abstemos de reproduzir.
No que concerne a al. h) do nº 2 a recorrente limita-se a negar a ocorrência de qualquer uma das condutas previstas naquela alínea.

Na verdade, a citada norma distingue várias condutas:
- incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada;
- manter uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade;
- ou praticar irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira.

Portanto para a verificação da sua facti species basta que esteja verificada uma daquelas situações, como acontece no caso em apreço em que a insolvente não elaborou corretamente as contas respeitantes aos exercícios económicos e fiscais de 2019 (e 2020), tendo inclusivamente tido o efeito de se eximir a execuções fiscais, ou seja, a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira é só por si, uma das situações para considerar a insolvência como culposa.
Desta forma e tal como se decidiu deverá a insolvência qualificar-se como culposa.
Pelo exposto, também este fundamento de recurso improcede.

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V- DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízes do Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente por não provada e, consequentemente confirmam a decisão recorrida.
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Custas da apelação a cargo da massa insolvente (artigos 303º e 304º do CIRE e 527.º nº 1 do CPCivil).
Guimarães, 8 de abril de 2021

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Rosália Cunha e
Lígia Venade