Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
14/12.8PEGMR.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: CUMPLICIDADE
LENOCÍNIO
PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) A cumplicidade constitui uma forma de comparticipação que se distingue da autoria pela inexistência de domínio funcional na realização do ilícito típico e pressupõe necessariamente um comportamento doloso, não essencial, de quem facilita ou possibilita a realização por outrem de um crime, também doloso.
II) No caso dos autos em que está em causa um ilícito do artº 169º, nº 1, do C. Penal, considerando que o recorrente praticou actos delituosos que inequivocamente facilitaram ou possibilitaram o cometimento pelo arguido condenado como autor do referido crime de lenocínio na forma dolosa, dúvidas não subsistem quanto à sua actuação como cúmplice.
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação de Guimarães

Processo 14/12.8PEGMR.G1

Acordam, em conferência na secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

Por sentença proferida nestes autos com nº 14/12.8PEGMR, o tribunal singular da Instância Local de Guimarães da Comarca de Braga condenou o arguido Manuel R., pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelo artigo 169º, nº 1, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova e na condição de, no prazo de três meses a contar do trânsito em julgado da presente sentença, entregar à APAV a quantia de € 600,00 (seiscentos euros) e condenou o arguido Pereira R., como cúmplice e pela prática de um crime de lenocínio, p. e p. pelos artigos 27º e 169º, nº 1, do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, que se substitui por 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros).

Inconformado, o arguido Pereira R. interpôs recurso, invocando em síntese, que a sua conduta não preenche os pressupostos da cumplicidade, porque se limitou a aceitar e a conformar-se com os factos; sem prescindir, considera que a pena a aplicar deve situar-se no mínimo legal.

O Ministério Público, representado pelo magistrado na Instância Local de Guimarães, apresentou resposta concluindo que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Exmº. procurador-geral adjunto emitiu fundamentado parecer no sentido da total improcedência do recurso.

Recolhidos os vistos do juiz desembargador presidente da secção e da juíza desembargadora adjunta e realizada a conferência na primeira data disponível, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto

Para a fundamentação da presente decisão, torna-se imprescindível transcrever parcialmente a sentença objecto de recurso.

O tribunal recorrido julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição):

1) O arguido Manuel R. é o explorador do estabelecimento comercial denominado …, cabendo-lhe a tomada de todas as decisões relacionadas com a sua gestão e funcionamento, e, bem assim, recolher os lucros auferidos.
2) Apesar de licenciado para a actividade relacionada com a restauração, desde data não concretamente apurada, mas anterior a princípios de Janeiro de 2012, o arguido Manuel R. optou por dedicar-se também à exploração nas instalações daquele estabelecimento da actividade relacionada com a venda do corpo por parte de mulheres contratadas para o efeito, que ali mantinham relações sexuais com os clientes a troco de dinheiro, como se de um serviço vendável se tratasse, embora sob a capa de uma casa de “alterne”, que funcionava entre as 14,00 horas e as 02,00 horas.
3) O espaço interior do referido estabelecimento é composto da seguinte forma:
- Um salão principal equipado com balcão, com acesso a duas casas de banho e ao escritório, dividido em duas partes, uma delas com mesas e cadeiras, de acesso normal e destinada aos clientes, e a outra, como espaço reservado, segundo cartão nele afixado com os dizeres “só meninas”, equipado com sofás, destinado exclusivamente às mulheres que ali exercem a prostituição e onde os clientes se dirigem apenas para escolher aquela que pretendem para a prática do ato sexual pago.
- Um corredor situado no fundo do salão e ao lado esquerdo do balcão, ao qual se acede por uma porta camuflada, oculta por detrás e uma parede de espelhos, a fim de ludibriar a acção fiscalizadora das autoridades policiais.
- Neste corredor existe uma estante e, no seu final, um espaço destinado a área de vestir com seis armários, que servem de cacifos atribuídos cada um deles a cada uma das mulheres para guardarem a sua roupa e demais bens pessoais, incluindo os usados nas práticas sexuais.
- Este corredor é ladeado e dá acesso a quatro quartos equipados com cama e sanitários, sendo dois de cada lado, e a duas arrecadações localizadas, uma em cada lado do corredor, entre os quartos.
4) Desde o início da sua actividade e até, pelo menos, o dia 08-12-2012, o arguido Manuel R. contou com a colaboração do arguido Pereira R., por ele contratado como empregado a troco de retribuição de montante não concretamente apurado.
5) O Pereira R., na qualidade de empregado, sob as ordens e orientações do arguido Manuel R. , tinha por função receber os clientes, servir-lhes as bebidas ao balcão, conduzi-los ao reservado onde as mulheres se encontravam e controlar toda a actividade de cada uma delas, designadamente registando em papel os actos sexuais que cada uma delas praticava diariamente e o dinheiro que facturava, e, ainda, recebendo, após cada acto sexual, os € 5,00 devidos, nos termos contratados com cada uma delas, com sendo o valor destinado ao estabelecimento.
6) Sendo que, nos registos efectuados pelo arguido Pereira R., a fim de possibilitar ao arguido Manuel R. controlar o negócio e as receitas do mesmo, as mulheres eram identificadas por abreviaturas, designadamente as letras iniciais do nome ou então pelo nome artístico.
7) Para além disso, o arguido Manuel R. contratou várias mulheres para exercerem a prostituição naquele estabelecimento, as quais ali iam rodando ao longo do tempo.
8) Nos acordos feitos com as mulheres contratadas para a prática dos actos sexuais remunerados no mencionado estabelecimento, todas as despesas com a aquisição dos bens e objectos destinados a tal actividade ficavam a cargo das respectivas mulheres, que entregavam ao arguido Manuel R. a quantia de € 5,00 por cada acto sexual como contrapartida apenas pela cedência e disponibilização daquele espaço, incluindo, os quartos equipados com cama e sanitários, bem como os armários e cacifos de apoio.
9) Assim, ao longo do mencionado período de tempo e até ao dia 08-12-2012, o arguido Manuel R., com a colaboração do arguido Pereira R., teve ao seu serviço inúmeras mulheres por si contratadas naquele estabelecimento comercial, que ali praticaram diariamente, entre as 14,00 horas e as 02,00 horas, actos sexuais com clientes que as procuravam no referido estabelecimento, a troco de dinheiro, sendo de € 15,00 o preço do acto sexual cobrado no período diurno e de € 20,00 o preço do acto sexual cobrado no período nocturno, designadamente:
- Uma tal … que no dia 24-03-2012 se encontrava no … no referido estabelecimento para manterem relações sexuais a troco de dinheiro com clientes do sexo masculino, mediante a contrapartida de € 5,00 por cada acto sexual para o arguido Manuel R., conforme foi constatado pela fiscalização efectuada pelas 00,10 horas.
- Cinco mulheres não identificadas que estiveram no referido estabelecimento comercial entre as 22,50 horas do dia 29-06-2012 e as 01,30 horas do dia 30-06-2012, para manter relações sexuais a troco de dinheiro com clientes, mediante a contrapartida de € 5,00 por cada acto sexual para o arguido Manuel R., tendo uma delas atendido e praticado sexo com três clientes do sexo masculino e duas outras atendido e praticado sexo com dois clientes do sexo masculino cada, entregando estas três mulheres, no final de cada acto sexual, ao arguido Pereira R. a quantia de € 5,00 destinada ao arguido Manuel R.;
- A…, conhecida por “…” ou .. de nacionalidade portuguesa, que, depois de ter acordado os termos da sua admissão e a consequente prestação da actividade nos moldes mencionados, ali iniciou funções pelo menos em 04-09-2012 e, por pelo menos seis vezes, entre as 14,00 horas e as 02,00 horas, manteve relações sexuais com vários clientes do sexo masculino, entre um a nove por dia, a troco de € 15,00, o acto sexual durante o período diurno, e de € 20,00, o acto sexual praticado durante o período nocturno, dos quais entregou no final ao arguido Manuel R., na pessoa do Pereira R., € 5,00, por cada acto sexual.
-…, conhecido por “…” ou “…”, que, depois de ter acordado com o arguido Manuel R.os termos da sua admissão e a consequente prestação da actividade nos moldes mencionados, ali iniciou funções pelo menos em 03-11-2012 e, diariamente até pelo menos 08-12-2012, entre as 14,00 horas e as 02,00 horas, manteve relações sexuais com vários clientes do sexo masculino, entre um a nove por dia, a troco de € 15,00 o acto sexual durante o período diurno, e de € 20,00, o acto sexual praticado durante o período nocturno, dos quais entregou no final ao arguido Manuel R., na pessoa do Pereira R., € 5,00, por cada acto sexual.
-…., conhecida por “I…” ou “..”, de nacionalidade brasileira, que, depois de ter acordado com o arguido Manuel R.os termos da sua admissão e a consequente prestação da actividade nos moldes mencionados, ali iniciou funções pelo menos a partir de 03-11-2012 e, diariamente, até 14-11-2012, e ainda entre 02-12-2012 a 08-12-2012, entre as 14,00 horas e 02,00 horas manteve relações sexuais com vários clientes do sexo masculino, entre um a cinco por dia, a troco de € 15,00 o acto sexual durante o período diurno, e de € 20,00, o acto sexual praticado durante o período nocturno, dos quais entregou no final de ao arguido Manuel R., na pessoa do Pereira R., € 5,00 por cada acto sexual.
-…, conhecida por “…” ou “…” e “..”, da nacionalidade brasileira, que, depois de ter acordado directamente com o arguido Manuel R. nos termos da sua admissão e da consequente prestação da actividade nos moldes mencionados, ali exerceu funções durante cerca de um ano, até pelo menos 08-12-2012, e diariamente, entre as 14,00 horas e as 02,00 horas, manteve relações sexuais com vários clientes do sexo masculino, entre um a seis por dia, a troco de € 15,00, o acto sexual no período diurno, e de € 20,00, o acto sexual no período nocturno, dos quais entregou no final ao arguido Manuel R., na pessoa do Pereira R., € 5,00, por cada acto sexual.
- Uma mulher conhecida por “..” ou “..”, que, depois de ter acordado com Manuel R. os termos da sua admissão e da consequente prestação da actividade nos moldes mencionados, ali iniciou funções pelo menos entre 15-11-2012 e 08-08-2012, e diariamente, entre as 14,00 horas e as 02,00 horas, manteve relações sexuais com um a oito clientes por dia a troco de € 15,00, o acto sexual durante o período diurno, e de € 20,00, o acto sexual praticado durante o período nocturno dinheiro, dos quais entregou no final ao arguido Manuel R., na pessoa do Pereira R., € 5,00, por cada acto sexual.
-Uma mulher de identidade desconhecida, com o diminutivo de “..”, que, nos moldes mencionados, pelo menos entre 5 de Novembro e 2 de Dezembro de 2012, e, diariamente, entre as 14,00 horas e as 02,00 horas, manteve relações sexuais com vários clientes do sexo masculino, entre uma a cinco por dia, a troco de € 15,00 o acto sexual durante o período diurno, e de € 20,00, o acto sexual praticado durante o período nocturno, dos quais entregou no final ao arguido Manuel R., na pessoa do Pereira R., € 5,00 por cada acto sexual.
- Uma mulher de identidade desconhecida, com o diminutivo de “..”, que, nos moldes mencionados, no dia 02 de Dezembro de 2012, entre as 14,00 horas e as 02,00 horas manteve relações sexuais com quatro clientes do sexo masculino a troco de € 15,00 o acto sexual durante o período diurno, e de € 20,00, o acto sexual praticado durante o período nocturno, dos quais entregou ao arguido Manuel R., na pessoa do Pereira R., € 5,00 por cada acto sexual.
- Uma mulher de identidade desconhecida, com o diminutivo de “…”, que, nos moldes mencionados, no período entre 16 e 22 de Dezembro de 2012, entras as 14,00 horas e as 02,00 horas, manteve relações sexuais com vários clientes do sexo masculino, entre um a dez por dia, a troco de € 15,00 o acto sexual durante o período diurno, e de € 20,00, o acto sexual praticado durante o período nocturno, dos quais entregou ao arguido Manuel R., na pessoa do Pereira R., € 5,00 por cada acto sexual.
10) O arguido Manuel R., com a colaboração do arguido Pereira R. enquanto seu empregado, fez da exploração daquele espaço como prostíbulo, a par da normal actividade para a qual o estabelecimento se encontra licenciado, a funcionar nos termos descritos, o seu modo de vida, girando a actividade em termos empresariais, como se de vulgar actividade industrial e comercial se tratasse e encarava as mulheres que aí comerciavam relações sexuais como prestadoras de um serviço, consistente na cedência do próprio corpo para trato sexual, e os clientes que as procuravam e com elas se relacionavam sexualmente como meros consumidores desse serviço.
11) De tal prostíbulo retirou, desde data não apurada, mas anterior a início de Janeiros de 2012, os seus rendimentos, nunca inferiores a € 100,00 por dia, com os quais fez face às despesas do próprio estabelecimento comercial, bem como às sua despesas e do seu agregado familiar.
12) Computando-se em, pelo menos, € 27.440,00 o lucro ilícito auferido pelo arguido Manuel R.com a exploração de tal actividade entre 01-01-2012 e 08-12-2012, correspondente a 343 dias multiplicados por € 80,00 de lucro diário médio.
13) No decurso da busca realizada no dia 08-12-2010, pelas 23,10 horas, foram encontrados e apreendidos:
- No balcão da sala principal, no interior da caixa registadora 45 euros em notas do Banco Central europeu, ficando catalogadas com marcador C1.
- No mesmo balcão, ao lado da caixa registadora, um cilindro em cartão com o logótipo “…”, contendo a quantia monetária de 49 euros em notas e moedas do BCE, ficando catalogado com o marcador C2.
- No mesmo balcão, ao lado da caixa registadora referida, uma capa de cor castanha, contendo folhas com registos de entradas e saídas de bebidas, ficando catalogada com marcador C3, onde, a par de cada uma das bebidas consumidas, eram também registados os atos sexuais praticados por cada uma das mulheres na rúbrica “Diversos”.
- Na mesma sala existiam afixados nos espelhos que dissimulavam a existência por trás dos quartos, dois (2) papéis com os dizeres “Só meninas”, indicativos da parte reservada às mulheres, ficando catalogado com o marcador C4.
- Na área de vestir, três (3) rolos de papel de cozinha; três (3) frascos de gel; duas (2) embalagens de toalhitas; trinta e dois (32) preservativos e um saco vermelho que acondicionava os preservativos, ficando catalogados com o marcador C5.
- No corredor, numa estante metálica, dois (2) rolos de papel de cozinha; três (3) embalagens de toalhitas, um (1) vibrador, duas (2) pilhas; dois (2) frascos de gel, um (1) frasco de “betadine”; três (3) preservativos e um invólucro de preservativo, catalogados com marcador C6.
14) No mesmo dia 08/12/2012, pelas 23,10 horas, a E… foi encontrada num dos quartos a manter relações sexuais com a testemunha …, que lhe tinha já pago 20,00 €, também apreendidos, dos quais cinco se destinavam ao arguido Manuel R..
15) No referido dia 08/12/2012, pelas 23,10 horas, foram ainda encontrados e apreendidos no interior do mencionado estabelecimento comercial:
- Em poder da E… 14 preservativos, um invólucro de preservativo, um frasco de Gel, um frasco de glicerina, um saco de toalhitas, designados B7;
- Em poder da F… 5 Preservativos, catalogados com marcador B5;
- Em poder da I…, 1 Rolo de Papel de cozinha, 6 preservativos,1 invólucro de preservativo vazio,1 tubo de gel, catalogados com marcador B2;
- Em poder da L…, 15 Preservativos, 90 preservativos (dentro de uma caixa própria para preservativos),catalogados com marcador B4.
16) Tanto os preservativos, como o gel, a glicerina, o papel, as toalhitas, o vibrador e a “betadine” destinavam-se, directa ou indirectamente, a ser utilizados na prática das relações sexuais pelas referidas mulheres com os clientes a troco de dinheiro no referido estabelecimento comercial e nas condições mencionadas, designadamente, mediante a entrega de cinco Euros por acto ao arguido Manuel R..
17) Do dinheiro apreendido no balcão, nos valores de 45,00 € e 49,00 €, pelo menos € 20,00 era proveniente de pagamentos feitos pelas mencionadas mulheres das percentagens por elas devidas ao arguido Manuel R., pelas relações sexuais já mantidas com clientes, nos termos acordados com este.
18) Sabia o arguido Manuel R.que lhe estava vedado por lei a prática da actividade descrita.
19) Mais sabia o arguido Manuel R.que ao levá-la a cabo, aproveitando-se economicamente, nos termos expostos, dos relacionamentos sexuais mantidos pelas mulheres por si contratadas, atentava contra a dignidade destas enquanto pessoas humanas.
20) Apesar disso, não se coibiu de as admitir a praticar a actividade descrita no estabelecimento por si explorado com o fito de auferir proventos económicos com o trato sexual que mantivessem.
21) O arguido Pereira R. esteve sempre ciente da actividade de comércio sexual que no estabelecimento foi implementada pelo arguido Manuel R.e também ele sabia estar vedado por lei o exercício de tal actividade.
22) E, apesar disso, não se coibiu o Pereira R. de dar a sua colaboração ao arguido Manuel R., a troco de remuneração, de montante não apurado, e nos termos supra expostos, assim facilitando a este o desenvolvimento da mesma.
23) O arguido Manuel R.agiu de vontade livre e consciente, com o propósito conseguido de incentivar, de apoiar, de facilitar e de proporcionar as condições às referidas mulheres para elas manterem relações sexuais a troco de dinheiro e, bem assim, de se aproveitar desta situação e auferir vantagens económicas, bem sabendo que desta forma atentava contra a dignidade destas e que tal conduta era proibida.
24) O arguido Pereira R. agiu de vontade livre e consciente, com o propósito conseguido de ajudar e facilitar o arguido Manuel R.a incentivar, a apoiar, a facilitar e a proporcionar as condições às referidas mulheres para elas manterem relações sexuais a troco de dinheiro e, bem assim, a aproveitar-se desta situação e auferir vantagens económicas, bem sabendo que desta forma se atentava contra a dignidade destas e que tal conduta era proibida.
Da situação pessoal dos arguidos:
a) O arguido Manuel R. (…)
25) O arguido encontra-se reformado, auferindo uma pensão mensal de € 262,00.
26) A esposa encontra-se igualmente reformada, auferindo uma pensão mensal de € 400,00.
27) Vivem em casa própria.
28) Concluiu a 4ª classe. Não tem antecedentes criminais

3. Tendo em conta o teor das conclusões da motivação, que delimitam o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, devemos salientar que o arguido não impugna e assim se conforma na integra com a decisão da matéria de facto e os “problemas” ou questões a enfrentar são fundamentalmente dois:

1ª- A participação do arguido nos factos provados deve ser punida como cumplicidade?

2ª- Em caso de resposta afirmativa à anterior questão, a pena fixada pelo tribunal recorrido é excessiva e deve ser fixada no mínimo legal ?

4. Quanto à questão enunciada em primeiro lugar:

Na definição legal constante do do artigo 27.º do Código Penal, é punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso.

A cumplicidade constitui uma forma de comparticipação que se distingue da autoria pela inexistência de domínio funcional na realização do ilícito típico e pressupõe necessariamente um comportamento doloso, não essencial, de quem facilita ou possibilita a realização por outrem de um crime, também doloso.

A cumplicidade está assim necessariamente subordinada ao princípio da acessoriedade e só existe se executada de forma dolosa.

Como escreveu Figueiredo Dias, na cumplicidade, o dolo tem de evidenciar uma dupla referência: ele tem de se referir em primeiro lugar à prestação de auxílio e, por outro, à própria acção dolosa do autor: Naturalmente que não pode deixar de exigir-se que o cúmplice conheça a dimensão essencial do ilícito-típico a praticar pelo autor (…) mas a cumplicidade deverá será admitida ainda quando o cúmplice desconheça, ou não conheça exactamente as circunstâncias concretas em que vai desenvolver-se o ilícito típico do autor (…) (Direito Penal, parte geral, I, 2ª, p. 834).

No caso destes autos, o comportamento do arguido recorrente excede manifestamente a mera “aceitação passiva” ou “solidarização” com o negócio do arguido Manuel R.. Como se sublinhou no parecer do Ministério Público neste Tribunal, o arguido recorrente, teve participação directa na exploração do estabelecimento dirigido, embora sob a orientação do co-arguido Manuel R.: recebeu clientes, servindo-lhe bebidas, conduzi-os ao local reservado onde se encontravam as mulheres, controlou a actividade de cada uma delas, registou os ato sexuais que cada uma praticava diariamente e o dinheiro que facturava e recebia das mulheres o dinheiro destinado ao estabelecimento.

Todos estes actos são actos que inequivocamente facilitam ou possibilitam o cometimento pelo arguido Manuel R. do crime de lenocínio na forma dolosa previsto no artigo 169.º n.º 1 do Código Penal.

No mais, também se comprovou que o arguido recorrente, não só estava ciente da actividade de comercio sexual que tinha lugar naquele estabelecimento, mas também que agiu de forma livre e consciente, sabendo que assim ajudava e facilitava o arguido Manuel R.a auferir vantagens económicas dos relacionamentos sexuais mantidos pelas mulheres por si contratadas.

Em conclusão, os factos provados permitem concluir para lá de qualquer dúvida pela cumplicidade do arguido Pereira R. do cometimento do crime de lenocínio como cúmplice e improcede o recurso neste âmbito.

5. Cumpre, de seguida, apreciar o recurso do arguido no segmento correspondente às consequências jurídicas, aqui restringido à medida da pena de multa, fixada pelo tribunal recorrido em substituição da pena de prisão.

Como se encontra adquirido pela doutrina e jurisprudência, na determinação da medida concreta da pena, o tribunal deve atender à culpa do agente, que constitui o limite inultrapassável da pena a aplicar, sob pena de, ultrapassando-o, se afrontar a dignidade humana do delinquente. Por seu turno, o limite mínimo da moldura concreta há-de ser dado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e pretende corresponder a exigências de prevenção positiva ou de integração.

Assim, esse limite inferior decorrerá de considerações ligadas às exigências de prevenção geral, não como prevenção negativa ou de intimidação, mas antes como prevenção positiva ou de integração, já que a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos com um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade e vigência das normas infringidas. Estão em causa a integração e reforço da consciência jurídica comunitária e o seu sentimento de segurança face às ocorridas violações das normas.

Finalmente, o tribunal deve fixar a pena concreta de acordo com as exigências de prevenção especial, quer na vertente da socialização, quer na advertência individual de segurança ou inocuização do delinquente Dias, Jorge de Figueiredo As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1995, págs. 228 e segs, Rodrigues, Anabela Miranda, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora pag. 570 a 576 Jescheck, HH Tratado, Parte General , II, pag. 1189 a 1199.

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Os factores concretos de medida da pena, enunciados de forma exemplificativa no artigo 71º nº 2 do Código Penal, compreendem quer circunstâncias referentes à execução do facto, quer relativas à personalidade do agente e, por último, as circunstâncias que relevam da conduta do agente anterior e posterior ao facto.

Entre os elementos referentes à execução do facto incluem-se realidades tão distintas quanto o grau de ilicitude do facto, o modo de execução, os danos causados, os sentimentos, motivos e fins do agente manifestados no facto.

Pela atenuação especial e operada a substituição, a moldura penal abstracta tem um mínimo de dez e um máximo de trezentos e sessenta dias de multa (artigos 43.º n.º 1 e 47.º n.º 1, ambos do Código Penal).

Os elementos a considerar no caso vertente são fundamentalmente os seguintes:

- O agiu com dolo de intensidade mediana, ao longo de um período de cerca de um ano, prestando colaboração e auxilio relevante ao co-arguido Manuel R.na actividade organizada no estabelecimento comercial de favorecimento do exercício da prostituição com intenção lucrativa.

- Não lhe são conhecidos rendimentos auferidos por essa actividade;

- As exigências de prevenção especial são reduzidas, tendo em conta que o arguido beneficia de enquadramento familiar e não se regista antecedentes criminais

Sopesando em conjunto os elementos enunciados, concluímos que o tribunal recorrido, optando por uma multa de duzentos e quarenta dias, fixou a pena perfeitamente adequada para as exigências de tutela dos bens jurídicos e as concretas necessidades de prevenção especial, assim como ainda consentida pela culpa exteriorizada nos factos.

Conforme o disposto no nº 2 do art. 47º do Código Penal, a razão diária da multa deve ser fixada entre o montante de 5 € e de 500 € , que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

A norma do Código Penal não indica os critérios para a determinação daquela situação económica relevante, nem sequer sugere algum princípio de orientação, sendo de admitir que o juiz contabilize o que se possa apurar desde logo quanto à totalidade dos rendimentos próprios do condenado, qualquer que seja a origem, devendo deduzir-lhes os gastos com impostos, prémios de seguro e encargos análogos, assim como os deveres e obrigações, sendo ainda possível ter em conta o património ou riqueza do condenado, na parte em que aquele património se revele disponível ou transaccionável;

Em qualquer caso, a condenação em multa de natureza criminal tem necessariamente de traduzir uma efectiva censura do facto, de corresponder às expectativas da comunidade na validade e vigência das normas jurídicas e, por isso, de significar um sacrifício real ao arguido.

Assim, considerando a amplitude dos rendimentos no nosso país, o mínimo legal de 5 € deverá corresponder a pessoas que vivem numa situação de absoluta indigência ou de total carência de rendimentos próprios e o máximo legal de 500 €, no pólo oposto, àquelas pessoas, em número diminuto, detentoras do que vulgarmente se define como rendimentos extremamente elevados, de “grandes fortunas”, ou considerados como os “mais ricos” da nossa sociedade.

Nesta linha de raciocínio, a razão diária de seis euros, ou seja num valor praticamente coincidente com o limite mínimo, nunca se poderia considerar excessivo para uma pessoa como o arguido que embora vivendo uma situação económica difícil, ainda aufere uma diminuta pensão mensal e vive com a mulher, igualmente reformada, em casa própria.

Ter-se-á ainda em conta que, se a situação económica o justificar e o tribunal assim o decidir, o arguido poderá beneficiar da faculdade de efectuar o pagamento fraccionado do valor da multa (artigo 47 n.º 3 do Código Penal).

Em face de tudo o exposto, se conclui que a pena aplicada nestes autos se encontra fixada em medida justa e equitativa, pelo que não merece qualquer censura a decisão recorrida.

6. O arguido decaiu no recurso que interpôs e deve ser responsabilizado pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que deu causa (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro). De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça a fixar, a final, varia entre três e seis UC.

Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em quatro UC.

7. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso e em confirmar a sentença recorrida.

Custas do recurso pelo arguido, com quatro UC de taxa de justiça.

Guimarães, 25 de Janeiro de 2016

Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.

João Carlos Lee Ferreira

Alcina Costa Ribeiro