Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1026/24.4T8BCL.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/05/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
(i) A força obrigatória da sentença transitada em julgado desdobra-se num duplo sentido: a um tempo, no da proibição de repetição da mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória do caso julgado; a outro, no da vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, o que corresponde à denominada autoridade do caso julgado.
(ii) A questão da autoridade do caso julgado material respeita, sobretudo, à extensão da auctoritas rei iudicatae à solução das questões prejudiciais, assim denominadas as relativas a relações jurídicas distintas da deduzida em juízo pelo autor, mas de cuja existência ou inexistência dependa logicamente o teor da decisão do pedido, sobre as quais não ocorre decisão, mas simples cognitio.
(iii) A autoridade do caso julgado não prescinde da identidade de partes, o que é consequência dos princípios da proibição da indefesa e do contraditório.
(iv) A preclusão da alegabilidade futura de fundamentos de defesa, aliada à autoridade do caso julgado, impede que uma parte, vencida num processo, reintroduza em ação posterior, entre as mesmas partes, questões que, sendo constitutivas do direito a que se arroga, foram ou que poderiam ter sido invocadas na defesa anterior.
(v) Para a configuração da má-fé processual, exige-se um elemento subjetivo de dolo ou negligência grave (culpa lata), não bastando a mera negligência, de forma a salvaguardar os direitos processuais das partes.
(vi) A litigância de má-fé pode ser substancial (relacionada com o fundo da causa, como a dedução de pretensão infundada ou a violação do dever de verdade) ou instrumental (respeitante ao comportamento processual, como a infração do dever de cooperação ou o uso reprovável do processo).
(vii) A condenação por litigância de má-fé substancial requer que a falta de fundamento da pretensão ou oposição seja evidente e que a parte a não devesse ignorar, punindo-se não apenas o dolo, mas também a negligência grosseira na indagação e cuidado.
(viii) A conduta de reintroduzir uma pretensão baseada em factos já decididos e considerados não provados por sentença transitada em julgado, com a omissão consciente desta, configura má-fé substancial, por violar o dever de verdade e tentar iludir a autoridade do caso julgado.
Decisão Texto Integral:
I.
1). AA intentou ação declarativa, sob a forma comum, contra EMP01..., SA, pedindo a condenação desta “no pagamento ao Autor de uma indemnização apurada por juízos de equidade, mas nunca de valor inferior ao triplo do valor da fatura emitida pela Ré, ou seja, € 24 000,00, acrescida de juros de mora a calcular desde a citação e até integral pagamento.” (sic)
Alegou, em síntese, que: é proprietário de um prédio rústico em ..., ..., onde possui uma plantação de 3 000 videiras de Cabernet Sauvignon, que exige 4 horas diárias de rega, por sistema de gota a gota; a água disponível no seu poço é insuficiente, garantindo rega por apenas duas horas; em data incerta, mas anterior a 11 de fevereiro de 2019, contactou a Ré, após ter visto publicidade desta, para contratar serviços de exploração e captação de água no seu terreno, visando a obtenção de, pelo menos, 10 m³ de água/dia para a rega da vinha; o representante da Ré afirmou ser possível obter o caudal pretendido, sem realizar qualquer ensaio prévio de caudal para determinar as reais capacidades do aquífero; foi-lhe garantido que se o furo de pesquisa não fosse viável e a quantidade de água pretendida não fosse captada, não teria de pagar qualquer quantia pelo serviço; foi-lhe dito que seria utilizado um tubo cujo preço rondaria os € 30,00/m, com a possibilidade de um segundo tubo em zona de pedra, mas em momento algum foi informado de que a continuação da perfuração implicaria um valor mais elevado; a Ré exigiu € 250,00 para a obtenção de licença junto da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), valor que pagou em numerário, sem emissão de fatura; em 11 de fevereiro de 2019, a Ré iniciou os trabalhos de perfuração no identificado prédio; nesse mesmo dia, um trabalhador da Ré solicitou-lhe a assinatura de documentos, alegando serem obrigatórios para fiscalização, ao que acedeu sem verificar o respetivo conteúdo; na execução dos trabalhos, a Ré utilizou dois tubos na perfuração, contrariando a informação inicial de que seria apenas um; após 125 metros de perfuração, a Ré informou-o que apenas foi possível captar 1 m³ de água, quantidade significativamente inferior aos 10 m³ diários acordados; com base no acordo prévio, entendeu que nada deveria liquidar, uma vez que o resultado prometido não havia sido alcançado; não obstante, a Ré remeteu-lhe a fatura n.º ...5, datada de 13 de fevereiro de 2019, no valor de € 7 878,15; investiu € 11 970,00 na plantação da vinha, que, em plena produção, teria capacidade para gerar cerca de 3 600 litros de vinho por ano, representando um rendimento de aproximadamente € 7 200,00; entretanto, apurou que a taxa de autorização era de € 131,02 (e não € 250,00), que a obra não estava devidamente autorizada à data da sua realização e que a Ré não possuía o alvará obrigatório para a execução do furo; após recusar o pagamento da fatura, foi confrontado com o teor dos documentos que havia assinado em 11 de fevereiro de 2019, os quais incluíam um contrato com caderno de encargos que continha cláusulas substancialmente diferentes do acordado verbalmente, prevendo, nomeadamente, que a responsabilidade da escolha do local de perfuração seria do dono da obra, a obrigação de o dono da obra pagar os trabalhos efetuados a pronto, independentemente do resultado da pesquisa, a obrigação de o dono da obra pagar a totalidade do metros perfurados, “independentemente de conseguir revestir na sua totalidade, devido a assoreamentos da perfuração” e que a obrigação assumida pelo empreiteiro era “de meios e não de resultados”; foi também confrontado com um pedido de licenciamento, datado de 25 de janeiro de 2019 (mas assinado em 11 de fevereiro de 2019), que identificava como empresa executora outra sociedade e que previa uma exploração de apenas 380 m³ anuais de água (cerca de 10% do caudal combinado com a Ré); a vinha permanece insuficientemente abastecida de água, produzindo cerca de metade do seu valor médio potencial, com aproximadamente metade das videiras secas; a possibilidade de atingir os objetivos do investimento feito está irremediavelmente afastada por culpa exclusiva da Ré; encontra-se na “iminência de ter de pagar os valores faturados pela Ré” (sic), sem que os objetivos acordados tenham sido cumpridos; a Ré violou de forma censurável e culposa os deveres de boa-fé, lealdade e informação na fase das negociações e da formação do contrato, ao inculcar uma ideia distorcida sobre a realidade contratual e ao omitir ou prestar esclarecimentos falsos/incompletos.
A Ré, citada, apresentou contestação, na qual: invocou a exceção dilatória da ilegitimidade ativa, por o Autor estar desacompanhado do respetivo cônjuge em ação que, por dizer respeito a prédio que é bem próprio deste, devia ser proposta pelos dois ou por um deles com o consentimento do outro; invocou a “exceção do caso julgado e autoridade do caso julgado”, por os factos alegados pelo Autor serem repetição dos que constituíram a tese de defesa que o mesmo apresentou na ação que correu termos sob o n.º 38941/19.9YIPRT, na qual foi condenado, por sentença já transitada em julgado, a pagar-lhe o preço convencionado como contrapartida pelos trabalhos de prospeção de água; impugnou motivadamente os factos alegados pelo Autor.
Em conformidade, concluiu pedindo: a absolvição da instância ou, assim não sendo entendido, a absolvição do pedido; em qualquer caso, a condenação do Autor, como litigante de má-fé, no pagamento de indemnização em montante não inferior a € 2 500,00, a título de reembolso de despesas, e, bem assim, “em multa condigna”, por deduzir pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar e omitir que os factos alegados na petição inicial foram apreciados em anterior ação em que ambos foram partes.
Na sequência de despacho, o Autor respondeu, dizendo: quanto à exceção dilatória da ilegitimidade ativa, que na ação não está em causa qualquer direito real sobre o prédio, mas a responsabilidade civil pré-contratual, pelo que, enquanto lesado, é apenas ele o titular da relação material controvertida; não existe identidade entre os elementos objetivos (pedido e causa de pedir) da presente ação e da que correu termos sob o n.º 38941/19.9YIPRT, pelo que não estão verificados os requisitos do caso julgado; atua no exercício do seu direito de ação, em defesa de um direito subjetivo de que é titular, devendo, assim, improceder o pedido de condenação como litigante de má-fé.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho, datado de 7 de janeiro de 2025, em que: foi fixado o valor processual da causa em € 24 000,00; foi julgada improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa; foi afirmada, tabularmente, a verificação dos demais pressupostos processuais relativos às partes e, bem assim, dos relativos ao tribunal; conhecendo da “exceção do caso julgado e autoridade do caso julgado”, foi decidido[,] “atendendo aos efeitos projetados pela autoridade do caso julgado formado na ação de processo n.º 38941/19.9YIPRT”, julgar a ação improcedente; foi julgado procedente o incidente de litigância de má-fé, com a consequente condenação do Autor no pagamento de multa fixada em 20 UC’s e de indemnização a favor da Ré, a fixar nos termos do disposto no art. 543/3 do CPC, até ao limite de € 2 500,00.
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2). Inconformado, o Autor (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):

“Da Exceção de Caso Julgado
I- A exceção de caso julgado invocada pela parte contrária não deve ser acolhida, uma vez que os processos em questão apresentam distinções substanciais em termos de pedido, causa de pedir e, consequentemente, de efeitos jurídicos.
II- O artigo 581.º do Código de Processo Civil (CPC) exige a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir para que a exceção de caso julgado possa ser aplicada, sendo que tais elementos não coincidem nos processos em análise, afastando assim a possibilidade de aplicar esta exceção.
III- De acordo com a doutrina de Manuel de Andrade, a identidade de pedido deve ser avaliada com base no resultado jurídico pretendido pelo autor, e não em semelhanças superficiais entre os pedidos formulados nas ações.
IV- No caso presente, o resultado jurídico buscado nos dois processos é claramente distinto.
V- Miguel Teixeira de Sousa, por sua vez, destaca que a identidade da causa de pedir ocorre quando os fundamentos factuais e jurídicos subjacentes ao pedido são idênticos.
VI- No caso em análise, esses fundamentos são distintos, uma vez que as causas de pedir nos processos são separadas e envolvem diferentes relações jurídicas e contextos fáticos.
VII- O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tem vindo a afirmar que não existe caso julgado quando a nova pretensão se baseia numa relação jurídica distinta da que foi anteriormente julgada.
VIII- Esta orientação é claramente aplicável ao presente caso, pois as relações jurídicas subjacentes aos pedidos são diferentes, não havendo identidade de causa de pedir.
IX- No que respeita à identidade dos sujeitos, embora se verifique que as partes nos dois processos sejam as mesmas, elas se encontram em posições jurídicas invertidas.
X- A parte autora no processo 38941/19.9YIPRT não corresponde à parte autora nos presentes autos, afastando-se, assim, a identidade subjetiva que é requisito para a aplicação do caso julgado.
XI- Importa sublinhar que, embora as partes envolvidas sejam as mesmas, as questões jurídicas suscitadas e os pedidos formulados nos dois processos são claramente distintos.
XII- O processo 38941/19.9YIPRT aborda uma questão relativa ao cumprimento defeituoso de um contrato, enquanto os presentes autos dizem respeito à responsabilidade pré-contratual, configurando uma causa de pedir distinta.
XIII- A aplicação da exceção de caso julgado pressupõe a identidade de pedido e de causa de pedir, conforme o disposto no artigo 580.º do CPC, e não se verifica tal identidade entre os processos em questão, uma vez que as matérias e os efeitos jurídicos pleiteados são completamente diferentes.
XIV- O pedido formulado no processo 38941/19.9YIPRT não visava a condenação, mas antes a exceção de não cumprimento do contrato, o que configura um pedido e uma causa de pedir distintos dos presentes autos, em que o autor pede a condenação da ré com base na culpa in contrahendo e na reparação dos danos.
XV- A culpa in contrahendo, como alegada nos presentes autos, refere-se a um comportamento inadequado ou desleal de uma das partes durante as negociações pré-contratuais, e não ao cumprimento do contrato em si.
XVI- Este conceito jurídico, que envolve responsabilidade pré-contratual, não foi abordado no processo 38941/19.9YIPRT.
XVII- Nos presentes autos, a causa de pedir está relacionada com a violação das regras que governam as negociações contratuais preliminares, em particular a boa-fé e a diligência nas tratativas antes da celebração do contrato, o que configura uma análise jurídica distinta da discutida no processo 38941/19.9YIPRT.
XVIII- Não existe identidade de causa de pedir entre os dois processos, uma vez que no primeiro processo o autor defendia que a ré não cumpriu adequadamente as obrigações contratuais, enquanto nos presentes autos se questiona a conduta das partes nas fases pré-contratuais, especificamente em relação à boa-fé nas negociações.
XIX- A distinção entre os pedidos e as causas de pedir é relevante, pois, de acordo com o artigo 580.º, n.º 3 do CPC, a existência de pedidos e causas de pedir distintos afasta a alegação de litispendência ou de identidade de causa de pedir.
XX- O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 154/2005, sublinhou que a exceção de caso julgado deve ser aplicada com cautela para não cercear o direito de ação, especialmente quando a identidade entre os pedidos e as causas de pedir não é absoluta.
XXI- No presente caso, a inexistência de identidade entre os processos impede a aplicação dessa exceção.
XXII- A argumentação do autor é sólida, pois a inexistência de identidade absoluta entre os pedidos e as causas de pedir afasta a alegação de coisa julgada.
XXIII- A decisão impugnada incorre em erro ao invocar a exceção de caso julgado, uma vez que não há identidade entre as causas e os pedidos.
XXIV- O direito à tutela jurisdicional efetiva, garantido pelo artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, deve prevalecer, assegurando que os processos sejam julgados de forma independente, sem que um processo prejudique indevidamente a análise de outro.
XXV- A jurisprudência, como exposto pelo STJ no Acórdão de 27/09/2012 (Processo n.º 3724/08.1TBPST.S1), tem reforçado que, para que haja caso julgado, deve existir uma identidade absoluta entre a causa de pedir e o pedido. No caso presente, tal identidade não ocorre, pois os pedidos e as causas de pedir são distintos.
XXVI- O princípio da inafastabilidade da jurisdição implica que, em situações como a presente, em que há matérias distintas a ser analisadas, o direito de ação deve ser respeitado.
XXVII- A decisão recorrida de aplicar o caso julgado é incompatível com este princípio constitucional.
XXVIII- No que diz respeito à litigância de má-fé, o artigo 542.º do CPC exige a verificação de um comportamento doloso ou negligente grosseiro, como indicam a doutrina e a jurisprudência.
XXIX- No presente caso, não se verifica qualquer indício de má-fé ou abuso processual por parte dos Recorrentes.
XXX- A doutrina de Lopes do Rego e Antunes Varela defende que a litigância de má-fé deve ser aplicada com cautela e apenas em casos de manifesta deslealdade processual, o que não ocorre no caso presente, onde os Recorrentes apenas estão a salvaguardar os seus direitos legítimos.
XXXI- A mera improcedência do pedido, por si só, não constitui um indicativo de má-fé processual, como bem destaca a doutrina de Jorge de Figueiredo Dias, segundo a qual a litigância de má-fé deve ser acompanhada de comportamentos de abuso que alterem ou distorçam os fins processuais.
XXXII- Em face do exposto, a condenação dos Recorrentes por litigância de má-fé, sem qualquer prova de abuso ou intenção desleal, seria uma sanção desproporcional, violando o princípio da proporcionalidade e a justiça material.
XXXIII- A aplicação do instituto do caso julgado material exige uma identidade rigorosa entre os pedidos e as causas de pedir, como afirmado por Castro Mendes e Lopes do Rego. No caso em análise, essa identidade não se verifica, afastando a aplicação do caso julgado.
XXXIV- Em resumo, os Recorrentes não estão a abusar do processo, mas sim a exercer legítimos direitos em conformidade com a lei, sem intenção de prejudicar a parte contrária.
XXXV- A decisão recorrida ao aplicar a exceção de caso julgado e a litigância de má-fé é errada, devendo ser reformada.
XXXVI- Por conseguinte, deve ser reconhecido que a exceção de caso julgado é improcedente, não havendo razão para condenação por litigância de má-fé.
XXXVII- A decisão impugnada deve ser revista à luz dos princípios constitucionais e processuais em vigor, assegurando a correta apreciação dos pedidos e causas de pedir nos presentes autos.”

Concluiu pedindo que, na procedência do recurso, a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que, “rejeitando as exceções invocadas”, permita a “apreciação do mérito das pretensões dos autores e assegure o pleno exercício do direito de ação em respeito aos princípios constitucionais da tutela jurisdicional e da proteção dos direitos de propriedade” (sic)
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3). A Ré (daqui em diante, Recorrida) não apresentou resposta.
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4). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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5). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
Tendo isto presente, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos:
1.ª Saber se a decisão recorrida, na parte em que julgou a ação improcedente, incorreu em erro de direito, por errada aplicação das normas dos arts. 577, i), 2.ª parte, 580 e 581 do CPC;
2.ª Saber se a decisão recorrida, na parte em que julgou procedente o incidente de litigância de má-fé, incorreu em erro de direito, por errada aplicação da norma do art. 542 do CPC
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III.
1). Antes de avançarmos com a resposta às questões enunciadas, respigamos a fundamentação de facto da decisão recorrida, a qual não foi impugnada pelo Recorrente.
Assim, com relevo para a resposta à 1.ª questão, foram ali considerados como provados, “com base na consulta do processo n.º 38941/19.9YIPRT e apenso B (de reclamação) (…), mormente da consulta das peças processuais e do teor das decisões aí proferidas”, os seguintes factos:

1) Por sentença datada de 20/06/2022, proferida pelo Juízo Local Cível de Barcelos, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em Ação Especial para Cumprimento de Obrigações DL269/98 (superior Alçada 1ªInstª), no âmbito do processo n.º 38941/19.9YIPRT, em que era Autora EMP01... – Furos Para Captação de Água, S.A. e Réu AA ficou assente a seguinte factualidade:

«A – Factualidade provada
Dos elementos constantes dos autos, com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, resultou provada a seguinte factualidade:
1. A autora é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços de pesquisa de águas subterrâneas e sua captação.
2. No âmbito dessa sua atividade celebrou, com o réu, em 11.02.2019, um contrato pelo qual se comprometeu a executar uma sondagem de pesquisa de água subterrânea e eventual transformação em captação definitiva.
3. A obra teve o seu início no mesmo dia (11) e terminou a 12 desse mês, com a execução dos trabalhos contratados.
4. A obra foi rececionada e aceite pelo requerido sem qualquer reserva.
5. No dia 13.02.2019, foi emitida e enviada a fatura nº ...5, no valor de € 7.878,15 na qual se encontram discriminados os serviços efetuados e os materiais utilizados, pelos preços constantes da tabela anexa ao contrato assinado entre as partes.
6. O requerido possui no seu terreno uma plantação de vinha e a água que dispunha, oriunda de um poço, era e é insuficiente para a rega da dita plantação.
7. A obra não estava devidamente autorizada, uma vez que a autorização de pesquisa e captação de água subterrânea ainda não tinha sido emitida naquela data.
8. A autora não possuía o alvará obrigatório para a execução do furo de água, emitido pela APA.
9. Foi possível captar 1,2 m³ de água.
10. No contrato referido em 2., consta, na cláusula 10.ª: “o incumprimento do acordo de pagamento superior a 15 dias e até 60 dias, implica uma cláusula penal correspondente a um acréscimo de 12% do valor da faturação e o incumprimento de valor superior a 60 dias implica um acréscimo de 18% do valor da faturação”.
11. Por carta remetida a 20.02.2019, e rececionada pela autora, o réu devolveu a fatura referida em 5., informando os motivos da devolução.

B – Factualidade não provada
Com relevo para a decisão da causa, resultou não provada a seguinte factualidade:
a. Por força do referido em 6. e 7., o réu contactou a autora, na pessoa do seu administrador, informando-o da sua pretensão de obter, pelo menos, 10m³ de água.
b. Perante tal pedido, o representante da autora afirmou conseguir obter tal resultado pretendido pelo réu.
c. Informou, ainda, que, se após pesquisa, verificassem que não era viável, o réu não teria que pagar qualquer quantia pelo serviço.
d. Assim, no momento da celebração do contrato, a autora assumiu a obrigação de conseguir a obtenção do caudal ininterrupto de 10m³.
e. O réu foi, também, informado que, caso da pesquisa se concluísse a existência da quantidade de água pretendida pelo réu, para o tipo de terreno em causa, apenas iria ser utilizado um tubo cujo preço rondaria os 30,00€/m.
f. Na sequência do combinado, verbalmente, a autora exigiu a quantia de € 250,00 para obtenção de licença apropriada para executar o furo em causa, junto da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).
g. Quantia que o réu pagou, em numerário, sem nunca ter recebido qualquer fatura, apesar de a ter solicitado por diversas vezes à autora.
h. O réu assinou os documentos facultados pela autora sem se certificar do tipo de documento que estaria a assinar.
i. O réu não foi informado que, a partir de certo momento, a continuação da perfuração implicaria o pagamento de quantia superior.
j. Era obrigatória a execução de um ensaio de caudal que permitisse determinar as reais capacidades do aquífero.
k. A autora nunca informou, durante a execução do furo, qual o caudal possivelmente obtido, mantendo sempre a posição inicialmente assumida, da captação dos 10m³.
l. O furo executado não permitiu a captação de caudal suficiente para as necessidades de rega do prédio do réu.»
2) Nessa ação ficou decidido o seguinte:
«a) condena-se o réu a pagar à autora a quantia de € 7.878,15 (sete mil oitocentos e setenta e oito euros e quinze cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, desde o dia seguinte à data do vencimento da fatura identificada em 5) dos factos provados, até efetivo e integral pagamento;
b) condena-se o réu a pagar à autora a quantia de € 1.418,07 a título de cláusula penal;
c) absolve-se o réu do demais peticionado;
d) condena-se autora e réu nas custas da ação, na proporção dos respetivos decaimentos.»
3) Por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 15/12/2022, apelação n.º 3894/19.9YIPRT.G, foi decidido o seguinte:
«Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo Réu (AA), e, em consequência, em
Confirmar integralmente a sentença recorrida.»
4) Por despacho datado de 24/02/2023, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, não foi admitido o recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça pretendido interpor pelo Réu do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15 de dezembro de 2022, identificado em 3).
5) Por decisão singular do Supremo Tribunal de Justiça 7.ª Secção Cível, datada de 23/05/2023, foi confirmado o despacho identificado em 4), que não admitiu o recurso de revista excecional pretendido interpor pelo Réu, indeferiu a reclamação e confirmou o despacho reclamado.
6) Por despacho do Supremo Tribunal de Justiça 7.ª Secção Cível, datado de 01/09/2023, não foi admitida a interposição do recurso para o Tribunal Constitucional da decisão singular descrita em 5), que confirmou o despacho do relator na Relação que não admitiu o recurso de revista.
7) Por decisão do Tribunal Constitucional, Acórdão n.º 728/2023, datado de 07/11/2023, foi confirmada a decisão reclamada, mantendo-se a decisão de não admissão do recurso de constitucionalidade pretendido interpor pelo reclamante AA.
8) Na ação identificada em 1) a Autora EMP01... – Furos Para Captação de Água, S.A. em sede de requerimento inicial alegou, entre o demais, que:
«A requerente é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços de pesquisa de águas subterrâneas e sua captação.
No âmbito dessa sua atividade celebrou, com o requerido, em 11.02.2019, um contrato pelo qual se comprometeu a executar uma sondagem de pesquisa de água subterrânea e eventual transformação em captação definitiva.
A obra teve o seu início no mesmo dia (11) e terminou a 12 desse mês, com a perfeita e completa execução dos trabalhos contratados, tendo sido rececionada e aceite pelo requerido sem qualquer reserva, conforme auto de receção e conformidade dos trabalhos por ele assinado na data da conclusão.
No dia 13.02.2019, foi emitida e enviada a fatura nº ...5, no valor de € 7.878,15 na qual se encontram discriminados os serviços efetuados e os materiais utilizados, tal e qual foram contratados e pelos preços constantes da tabela anexa ao contrato assinado entre as partes.
Uma vez que a fatura se encontra por pagar há mais de 60 dias acresce ao seu valor a penalização prevista na cláusula 10ª do contrato, correspondente a 18% do seu montante, ou seja, € 1.418,07.
Acrescem, também, os juros legais de mora vencidos até à presente data e supra liquidados, aos quais deverão acrescer os que se vencerem até efetivo e integral pagamento, nos quais a requerida deverá ser condenada, o que desde já se requer.»
9) Na mesma ação o Réu AA em sede de oposição alegou, entre o demais, que:

«I. DA EXCEPÇÃO DILATÓRIA: EXCEPÇÃO DO NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
1. Decorre do requerimento injunção que a requerente reclama ter sobre o requerido um crédito no montante de €7.878,15, acrescido de juros moratórios (€52,66), outras quantias (€1.418,07) e da quantia paga a título de taxa de justiça (€102,00).
2. Tal crédito é, alegadamente, emergente do contrato de prestação de serviços de pesquisa de águas subterrâneas e sua captação.
3. Ora, alega a requerente que, no desenvolvimento da sua atividade, celebrou com o requerido, em 11/02/2019, um contrato pelo qual “se comprometeu a executar uma sondagem de pesquisa de água subterrânea e eventual transformação em captação definitiva.”
4. Que os trabalhos foram efetuados e devidamente recebidos pelo requerido, conforme auto de receção.
5. Mais refere que, na sequência do serviço prestado, foi emitida a fatura ...5, de 13/02/2019, no valor de €7.878,15.
6. Sucede, porém, que a prestação de serviços em causa não ocorreu de forma tão linear quanto a requerente faz crer ao tribunal.
7. Com efeito, é certo que o requerido contactou a requerente, por intermédio do seu administrador Sr. BB, para executar o serviço de captação de água no seu terreno.
8. O requerido possui no seu terreno uma plantação de vinha e a água que dispunha, oriunda de um poço, era e é insuficiente para a rega da dita plantação.
9. Uma vez que só lhe garante uma rega de duas horas e a plantação em causa exige quatro horas de rega gota a gota.
10. Desta forma, o requerido contactou a requerente, na pessoa do seu administrador, informando-o do supra exposto e da sua pretensão, isto é, da necessidade de obter, pelo menos, 10m³ de água.
11. Perante tal pedido, o representante da requerente afirmou conseguir obter tal resultado pretendido pelo requerido.
12. Informou, ainda, que, se após pesquisa, verificassem que não era viável, o requerido não teria que pagar qualquer quantia pelo serviço.
13. O requerido foi, também, informado que, caso da pesquisa se concluísse a existência da quantidade de água pretendida pelo requerido, para o tipo de terreno em causa, apenas iria ser utilizado um tubo cujo preço rondaria os 30,00€/m.
14. Sendo que, poderia haver a necessidade de utilizar um segundo tubo, assim que chegassem a zona com pedra.
15. Na sequência do combinado, verbalmente, a requerente exigiu a quantia de €250,00 para obtenção de licença apropriada para executar o furo em causa, junto da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).
16. Quantia que o requerido pagou, em numerário, sem nunca ter recebido qualquer fatura, apesar de a ter solicitado por diversas vezes à requerente.
17. Perante tal omissão, o requerido contactou a APA do Porto.
18. Tais serviços informaram o requerido que a taxa cobrada pela obtenção da referida autorização era de €180,00 e não de €250,00.
19. Apesar disso, no dia 11/02/2019, a requerente deslocou-se ao terreno do requerido, para iniciar o trabalho de pesquisa e eventual perfuração.
20. Nesse mesmo dia, e antes de iniciarem os trabalhos supra referidos, o trabalhador da requerente solicitou junto do requerido que o mesmo assinasse uns documentos, informando-o que eram documentos obrigatórios, em caso de fiscalização das operações pelas entidades competentes.
21. Pedido ao qual o requerido acedeu sem, no entanto, certificar-se do tipo de documento que estaria a assinar.
22. Estranhando tal pedido, o requerido contactou novamente a APA do Porto, a qual o informou do seguinte:
23. A obra em questão não devidamente autorizada, uma vez que a autorização de pesquisa e captação de água subterrânea ainda não havia sido emitida naquela data.
24. Por outro lado, a empresa, ora requerente, não possuía o alvará obrigatório para a execução do referido furo de água, emitido pela APA.
25. A requerente iniciou os trabalhos de perfuração, tendo utilizado para o efeito dois tubos, tal como se constata pela análise do furo no local.- cf. documento que se protesta juntar.
26. No final da execução dos trabalhos, e após 125 metros de perfuração, a requerente, por intermédio do seu trabalhador, informa o requerido que apenas foi possível captar 1m³ de água.
27. Perante isto, o requerido entendeu, face os termos acordados com o administrador da requerente, e segundo as indicações concretas deste, que não teria nada a liquidar, uma vez que o combinado seria captar 10m³ e não 1m³ e que, caso tal quantidade não fosse captada, o requerido nada tinha a pagar.
28. Destarte, o requerido não foi sequer informado que a partir de certo momento, a continuação da perfuração implicaria o pagamento de um valor tão elevado.
29. O requerido apenas foi informado que, caso fosse viável a captação da quantidade de água por ele pretendida, seria utilizado um tubo cujo preço rondaria os 30,00€/m.
30. Sendo que, poderia haver a necessidade de utilizar um segundo tubo, assim que chegassem a zona com pedra.
31. Olvidou-se, no entanto, a requerente de informar o requerido que seria obrigatória a execução de um ensaio de caudal, que permitisse determinar as reais capacidades do aquífero.
32. Pois só assim poderia afirmar, como afirmou, que o caudal captado seria de 10m³ e não de 1m³.
3. Assim, a requerente não cumpriu os termos contratados.
34. Bem como, não cumpriu as leges artis a que estava obrigada,
35. Pese embora tente demonstrar o inverso.
36. Aquando das negociações, a requerente ficou ciente das necessidades de rega do prédio do requerido, as quais reclamariam um caudal de 10m³.
37. A requerente nunca informou, durante a execução do furo, qual o caudal possivelmente obtido,
38. Mantendo sempre a posição inicialmente assumida e comprometida, da captação dos 10m³.
39. O certo é que tal furo não permitiu a captação de caudal suficiente para as necessidades de rega do prédio do requerido.»
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2). Com interesse para a resposta à 2.ª questão enunciada, foram considerados como provados, com base em “juízos de experiência comum e da lógica inerente à factualidade objetiva provada” (sic), para além dos descritos em 1)., os seguintes factos:

40. O Autor sabia e estava ciente que ao interpor a presente ação estava a alegar os mesmos factos que alegou em sede de defesa na ação n.º 38941/19.9YIPRT, que constam do elenco dos factos provados e não provados da sentença aí proferida, já transitada em julgado.
41. O Autor ao interpor a presente ação omitiu que tinha sido condenado, por sentença transitada em julgado, a pagar à Ré o valor da fatura ...5 a que se refere no seu pedido.
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IV.
1).1. Avançamos com a resposta à 1.ª questão enunciada.
Com o trânsito da sentença em julgado, produz-se o caso julgado. É o que resulta do disposto no n.º 1 do art. 619 do CPC[1], onde está plasmada a noção de caso julgado material. Aí se diz que, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580 e 582 (...)”
Através deste instituto pretende-se evitar que uma mesma ação seja instaurada várias vezes, obstando a que sobre uma mesma situação recaiam decisões contraditórias. Trata-se, no fundo, de um meio de garantir a boa administração da justiça, funcionalidade dos tribunais e salvaguarda da paz social, o que só é possível alcançar se sobre os litígios recaírem decisões definitivas. Sem esta proteção, a função jurisdicional seria meramente consultiva; as opiniões – resoluções, na verdade – dos juízes e dos tribunais, não seriam obrigatórias, já que podiam ser provocadas e repetidas de acordo com a vontade dos interessados. Em especial as sentenças, produto mais relevante do poder judicial, deixariam de sujeitar as partes; a sua execução seria sempre provisória; enfim, a segurança do tráfico entre os homens ficaria terrivelmente ameaçada. Não está, portanto, em causa a ideia de que a decisão transitada em julgado é expressão da verdade dos factos, mas a segurança jurídica.
A referida força obrigatória da sentença desdobra-se num duplo sentido: a um tempo, no da proibição de repetição da mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória do caso julgado, prevista e regulada em especial nos arts. 577, i), 580 e 581 do CPC, que pode ser sintetizada através do brocardo non bis in idem; a outro, no da vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, a que corresponde o brocardo judicata pro veritate habetur, cujo arrimo legal pode ser encontrado no n.º 2 do art. 580 do CPC.
Dito de outra forma, o caso julgado não tem apenas relevância negativa: como a doutrina[2] e a jurisprudência[3] reconhecem de forma unânime, o caso julgado material pode  funcionar como exceção, com a referida relevância negativa, ou como autoridade, caso em que a sua relevância é positiva.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa (O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, n.º 325, p. 168), os efeitos do caso julgado material projetam-se em processos ulteriores necessariamente como autoridade do caso julgado material, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior, ou como exceção de caso julgado, em que a existência da decisão anterior constitui um impedimento à decisão de idêntico objeto posterior.
O mesmo autor acrescenta (O Objeto cit., pp. 171-172) que a diversidade entre os objetos de uma e outra ação torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material, e a identidade entre os objetos processuais, geradora de uma relação de consumpção objetiva, torna preponderante um efeito impeditivo, a exceção de caso julgado. Aquela diversidade e esta identidade são os critérios para o estabelecimento da distinção entre o efeito vinculativo, a vinculação dos sujeitos à repetição e à não contradição da decisão transitada: a vinculação das partes à decisão transitada em processo subsequente com distinto objeto é assegurada pela vinculação à repetição e à não contradição do ato decisório e o impedimento à reapreciação do ato decisório transitado em processo subsequente com idêntico objeto é garantido pelo impedimento dos sujeitos à contradição e à repetição da decisão.
Deste modo, pode dizer-se que a questão da autoridade do caso julgado material respeita, sobretudo, à extensão da auctoritas rei iudicatae à solução das questões prejudiciais, assim denominadas as relativas a relações jurídicas distintas da deduzida em juízo pelo autor, mas de cuja existência ou inexistência dependa logicamente o teor da decisão do pedido, sobre as quais não ocorre decisão, mas simples cognitio.
Isto mesmo é explicado, de forma límpida, em RG 7.08.2014 (600/14TBFLG.G1), relatado por Jorge Teixeira:

“- Quando o objeto processual anterior é condição para a apreciação do objeto processual posterior, o caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente;
- Quando a apreciação do objeto processualmente antecedente é repetido no objeto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como exceção de caso julgado no processo posterior.
Ou seja, a diversidade entre os objetos adjetivos torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material, e a identidade entre os objetos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, a exceção do caso julgado.
Aquela diversidade e esta identidade são os critérios para o estabelecimento da distinção entre o efeito vinculativo, a vinculação dos sujeitos à repetição e à não contradição da decisão transitada, e o efeito impeditivo, o impedimento dos sujeitos à repetição e à contradição da decisão transitada: a vinculação das partes à decisão transitada em processo subsequente com distinto objeto é assegurada pela vinculação à repetição e à não contradição do ato decisório e o impedimento à reapreciação do ato decisório transitado em processo subsequente com idêntico objeto é garantido pelo impedimento dos sujeitos à contradição e à repetição da decisão.
A delimitação entre as duas figuras pode estabelecer-se, grosso modo, da seguinte forma: - Se no processo subsequente, nada de novo há a decidir relativamente ao decidido no processo precedente (os objetos de ambos os processos coincidem integralmente, nenhuma franja tendo deixado de ser jurisdicionalmente valorada), verifica-se a exceção de caso julgado; - Se pelo contrário, o objeto do processo precedente não abarca esgotantemente o objeto do processo subsequente, e neste existe extensão não abrangida no objeto do processo precedente (e por isso não jurisdicionalmente valorada e, logo, não decidida), ocorrendo porém uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os dois distintos objetos, verifica-se a autoridade do caso julgado.
Basilar se demonstra então esclarecer, em cada caso concreto, se ocorre diversidade entre os objetos adjetivos das ações (precedente e subsequente) ou antes se se verifica identidade entre os objetos processuais delas, impondo-se, assim, a prévia determinação do conceito de objeto do processo.”

Do acabado de expor pode retirar-se que a vinculação do julgador, no ato de conhecimento do mérito, ao anteriormente decidido nunca pode redundar na absolvição do réu da instância. Como escreve Miguel Teixeira de Sousa (“Recurso de revista; dupla conforme”, Blog do IPPC[4]), “[a] autoridade de caso julgado nunca obsta ao prosseguimento de nenhuma ação, antes vincula o tribunal da segunda ação ao decidido pelo tribunal da primeira ação. O que tem um efeito obstativo de uma segunda ação é, realmente, a exceção de caso julgado (art. 577.º, al. i), 580.º e 581.º CPC).”
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1).2. Por outro lado, o funcionamento do referido efeito positivo do caso julgado, prescindindo embora da identidade dos elementos objetivos – aliás, em rigor, tem como pressuposto que essa identidade não existe, pois caso contrário ocorreria o efeito negativo[5] –, não prescinde da identidade dos elementos subjetivos. Assim, tal efeito apenas se pode admitir perante quem tenha sido parte – num sentido jurídico – na ação em que foi produzida a sentença ou, não o tendo sido, se encontra abrangido por via da sua eficácia direta ou reflexa.
Neste sentido, escreve Rui Pinto (Exceção e autoridade cit., pp. 19-20):

“[o] efeito positivo do caso julgado tem por sujeitos os destinatários da decisão: as partes da relação processual, nas decisões proferidas mediante pedido; os sujeitos referidos na decisão, nas decisões proferidas oficiosamente – por ex., a parte ou a testemunha condenada ao pagamento de multa por comportamento processual de má fé. Em suma: o caso julgado abrange os sujeitos que puderam exercer o contraditório sobre o objeto da decisão; dito de outro modo, os limites subjetivos do caso julgado coincidem com os limites subjetivos do próprio objeto da decisão.
No caso da sentença de mérito, estes são os limites do objeto processual: o n.º 1 do artigo 619.º dispõe que a “decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º”
Esta solução técnica tem correlação com os critérios de legitimidade processual, maxime do artigo 30.º: a decisão judicial apenas vincula os sujeitos que têm legitimidade processual.
O devido processo legal, do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, impõe esta solução: em regra, apenas pode ser sujeito aos efeitos – beneficiado ou prejudicado – de um ato do Estado quem participou da sua produção de modo contraditório.”

No mesmo sentido, Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, ROA, ano 79, n.os 3-4 (jul.-dez. 2019), pp. 691-722, em especial pp. 713-718, com enfoque na salvaguarda dos princípios da proibição da indefesa (art. 20/4 da Constituição da República) e do contraditório. Na jurisprudência do STJ, citam-se os seguintes Acórdãos: 18.06.2014 (209/09.1TBPTL.G1.S1), Abrantes Geraldes; 28.06.2018 (2147/12.1YXLSB.L2.S1), Acácio das Neves; 26.11.2020 (7597/15.9T8LRS.L1.S1), Tomé Gomes, 4.05.2021 (1051/18.4R8CHV.G1.S1), António Magalhães, e 11.07.2023 (1284/21.6T8MCN-A.P1-A.S1), Graça Amaral. Na desta Relação, os Acórdãos de 16.02.2023 (588/21.2T8VCT-E.G1), Pedro Maurício, e 16.03.2023 (809/21.1T8VRL-B.G1), José Flores.
Ainda no reforço desta ideia pode invocar-se um argumento a minori ad maius retirado do disposto no art. 421/1 do CPC que, acerca do valor extraprocessual das provas, exige que a parte contra quem a prova é invocada – isto é, aquela que fica desfavorecida com o resultado probatório – tenha sido parte no 1.º processo, aquele em que a prova foi produzida, e que nele tenha sido respeitado o princípio da audiência contraditória. Neste sentido, RG 28.09.2023 (753/20.0T8VNF-J.G2), do presente Relator.
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1).3. À luz do que antecede, compreende-se a importância de, perante duas ações, com distintos pedidos – e que, por isso, escapam à rede da exceção do caso julgado –, se apurar das relações existentes entre os respetivos objetos.
Entende-se, geralmente, que apenas uma relação de prejudicialidade entre tais objetos permitirá afirmar que o adrede decidido a propósito de um – o prejudicial – se impõe no julgamento do outro – o dependente –, como corolário da proibição de decisões contraditórias.
Tal relação de prejudicialidade tanto pode ocorrer no domínio da mesma relação jurídica julgada com valor de caso julgado, como no domínio de uma relação jurídica conexa com ela, conforme ensina Rui Pinto (loc. cit., p. 38) que, exemplificando, acrescenta que, dentro do perímetro da mesma relação jurídica, há relação de prejudicialidade entre a sentença que julgou procedente o pedido de declaração de nulidade de certo contrato e uma posterior ação de condenação no cumprimento de uma prestação daquele contrato e, no domínio de relações jurídicas conexas, entre a sentença que, em reconvenção ou oposição à execução, julgou extinta a dívida do credor principal e uma posterior invocação que o fiador faça da decisão em seu favor, ao abrigo do art. 635 do Código Civil.
Note-se que não estão em causa os enunciados de facto atomisticamente considerados na ação prejudicial, mas antes o julgamento da relação jurídica que eles substanciam qua tale. É este – rectius, a sua decisão – que se impõe na ação dependente.
Entendimento contrário é inaceitável à luz do nosso ordenamento jurídico-processual. Como escreve Miguel Teixeira de Sousa (“Jurisprudência 2021 (54): Caso julgado; autoridade de caso julgado; extensão a terceiros”, disponível no Blog do IPPC), “aceita-se que o caso julgado abrange os fundamentos diretos da decisão. Mas isto é completamente diferente de concluir que o caso julgado abrange todo e qualquer facto que tenha sido adquirido na ação. Aliás, se assim fosse, nem sequer se compreenderia o regime da eficácia extraprocessual das provas estabelecida no art. 421.º CPC (…). Em vez de se invocar a prova produzida num outro processo, invocar-se-ia o caso julgado sobre o facto provado.” Neste sentido, na jurisprudência, STJ 15.10.2004 (05B691), Araújo Barros, STJ 17.10.2017 (1204/12.9TVLSB.L1.S1), Alexandre Reis, STJ 29.10.2020 (233/18.3YLSB.L1.S1), Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, STJ 29.10.2024 (2985/20.1T8FNC.L1.S1), Henrique Antunes, STJ STJ 9.05.2024 (497/19.5BEPNF.P1.S1), Isabel Salgado, STJ 4.07.2023 (142/15.8T8CBC-C.G1.S1), Pedro de Lima Gonçalves, STJ 14.01.2021 (3935/18.0T8LRA.C1.S1), Manuel Capelo, RP 6.06.2016 (1226/15.8T8PNF.P1), Caimoto Jácome, RG 6.05.2021 (3984/18.9T8BRG.G1), Vera Sottomayor, RP 2/12/2021 (2055/20.2T8PNF.P1), Isoleta de Almeida Costa, e RL 18/4/2023 (18794/17.2T8SNT.L1-1), Manuel Ribeiro Marques. Na doutrina, Lebre de Freitas (“Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, cit., pp. 706-707) que escreve que “[t]oda a decisão de direito se baseia nos factos provados na causa. É assim tanto com a decisão final como com a decisão das questões prejudiciais. Mas, com a exceção da sentença de mera declaração da existência ou inexistência de factos (art. 10/3, a, CPC), todo o apuramento da matéria de facto tem como escopo o preenchimento da previsão de normas jurídicas, o qual se pode fazer com esses ou outros factos que igualmente integrem essa previsão, não havendo nunca uma relação de prejudicialidade entre os factos concretos e os factos abstratos da norma e, portanto, tão pouco uma relação de prejudicialidade (indireta) entre os primeiros e a estatuição. Assim, sendo questão prejudicial aquela cuja resolução constitui pressuposto ou antecedente lógico necessário da decisão de mérito, está à partida excluído que o possa ser a decisão de facto.”
Por outro lado, não é conveniente adotar um critério rígido sobre os limites do caso julgado quanto às questões prejudiciais. Como adverte Miguel Teixeira de Sousa (“Preclusão e caso julgado”, RFDUL, LVIII, 2017/1, pp. 149-175[6]), “[a] realidade é mais multifacetada do que aquela que é compaginável com a redução da aplicação da proibição de contradição às situações de prejudicialidade de um objeto perante um outro objecto”, daí que a proibição de contradição também possa atuar quando se trate, simplesmente, de evitar que o caso julgado seja contrariado por uma decisão posterior, ou seja, “quando o que importa é obstar a uma nova pronúncia do tribunal contraditória com a anterior.”
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1).4. Feitas estas considerações, ficamos habilitados a responder à questão.
Para tanto, recordamos que na ação n.º 38941/19.9YIPRT (ação precedente), a Recorrida (ali Autora) pediu a condenação do Recorrente (ali Réu) no pagamento da quantia de € 7 878,15, correspondente ao preço devido como contrapartida pelo serviço de prospeção e captação de água que lhe prestou e, bem assim, à cláusula penal moratória convencionada. Invocou, para o efeito, que prestou tal serviço em cumprimento de um contrato celebrado entre os dois.  Na sua defesa em tal ação, o Recorrente invocou, no essencial, a exceção de não cumprimento do contrato, suportada em vícios na fase pré-contratual, mais concretamente que lhe foi garantida a obtenção de 10 m³ de água, não lhe foram prestadas informações sobre custos e licenças e a insuficiência do caudal captado (1 m³), e a existência de um contrato verbal contrário ao contrato escrito, que apenas assinou por erro qual ao que dele constava. Na sentença, transitada em julgado, os enunciados de facto alegados pelo Recorrente, incluindo os que substanciavam a culpa in contrahendo (como a garantia de 10m³ e a não-informação), foram considerados como não provados. Em conformidade, a ação foi julgada procedente, condenando-se o Recorrente no pedido formulada pela Recorrida.
Na presente ação, o Recorrente pede a condenação da Recorrida no pagamento de uma indemnização por responsabilidade civil pré-contratual (culpa in contrahendo) e invoca, em arrimo, a violação dos deveres de boa-fé, lealdade e informação na fase das negociações e formação do contrato, ao inculcar uma ideia distorcida sobre a realidade contratual e ao prestar esclarecimentos falsos e incompletos, nomeadamente quanto à garantia de 10 m³ de água e custos.
Conforme a análise prévia e a própria fundamentação do despacho recorrido (implícita no uso da "autoridade do caso julgado"), não se verifica a exceção do caso julgado. Os pedidos são distintos – na ação precedente, o pagamento do preço; na presente, uma indemnização por responsabilidade pré-contratual. A causa de pedir, embora partilhe alguns factos, também é diferente na sua essencialidade jurídica – na ação precedente, o incumprimento contratual; na presente, a violação de deveres pré-contratuais.
Sem prejuízo, os factos que substanciam a causa de pedir na presente ação são os mesmos que foram alegados pelo Recorrente como matéria de defesa na ação precedente, integrando, a um tempo, impugnação motivada – quando o Recorrente questionou os termos das cláusulas contratuais – e, a outro, defesa por exceção perentória – quando o Recorrente pretendeu sustentar, com base na infração de deveres pré-contratuais por parte da Recorrida, a inexigibilidade da obrigação de pagar o preço convencionado com esta.
Deste modo, podemos afirmar que a decisão de procedência do pedido formulado pela Recorrida na ação precedente implicou a prévia apreciação daqueles fundamentos, julgados improcedentes, ainda que sob uma veste jurídica diferente daquela que lhes foi dada na presente ação.
Isto vale por dizer, a contrario, que foi decidido, na ação precedente, que não houve qualquer infração dos deveres pré-contratuais que recaíam sobre a aqui Recorrida e, bem assim, que as cláusulas contratuais não eram aquelas que o Recorrente ali alegara. Demonstrativo disto é o terem sido considerados como não provados os seguintes enunciados: “o representante da autora [aqui Ré / Recorrida] afirmou conseguir 10m³ de água” e que se tal “não fosse viável, o réu [aqui Autor / Recorrente] não teria que pagar qualquer quantia pelo serviço”; “a autora [aqui Ré / Recorrida] assumiu a obrigação de conseguir o caudal de 10m³". Estes são, nem mais nem menos, que os pilares da pretensão indemnizatória por culpa in contrahendo que a Recorrente deduz na presente ação.
A constatação de que a obrigação de pagar o preço só podia ser afirmada se os fundamentos para a sua recusa (onde se incluíam os factos que agora são usados para fundamentar a culpa in contrahendo) fossem considerados improcedentes ou irrelevantes, leva-nos a concluir que existe uma relação de prejudicialidade entre a questão decidida na primeira ação (o iter negotti e as cláusulas contratuais) e a questão suscitada na segunda (o direito a uma indemnização por culpa in contrahendo).
Ao escrevermos isto temos presente que, para o réu vencido, a condenação no pedido determina a preclusão de alegabilidade futura tanto dos fundamentos de defesa deduzidos, como dos fundamentos de defesa que poderia ter deduzido, o que resulta de dois mecanismos processuais distintos, mas que se conjugam, conforme explica Miguel Teixeira de Sousa (Preclusão cit., pp. 151-152): a um tempo, o princípio da concentração da defesa na contestação (art. 573 do CPC)[7]; a outro, a autoridade do caso julgado. É isto que explica que já tenha sido decidido – STJ 11.10.2012 (1999/11.7TBGMR.G1.S1), António Abrantes Geraldes – que “[a] autoridade de caso julgado inerente a uma decisão que reconheceu ao autor o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno e condenou o réu na sua restituição e na demolição da construção que na mesma foi erigida impede que este, em nova acção, peça o reconhecimento do direito de propriedade sobre a mesma parcela, ainda que com fundamento na acessão industrial imobiliária”, explicando-se que, “[a]pesar de em tal situação não se verificar a excepção de caso julgado, atenta a diversidade da causa de pedir, a segurança e a certeza jurídica decorrentes do trânsito em julgado da decisão obstam a que em posterior acção se questione o direito de propriedade e as obrigações de restituição e de demolição reconhecidas na primeira acção com base numa realidade que naquela ocasião já se verificava e que aí poderia ter sido invocada quer para impedir a procedência da acção, quer para sustentar, em sede de reconvenção, o direito potestativo de acessão imobiliária.”
Entendemos, assim, que a decisão recorrida – de resto, minuciosamente fundamentada –, ao concluir que a decisão transitada em julgado na ação precedente, decidiu uma questão prejudicial à colocada na presente ação, vinculando assim o julgamento desta, fez uma aplicação correta do instituto jurídico em apreço, não enfermando do erro que lhe foi imputado nas conclusões.
A resposta à 1.ª questão é negativa.
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2).1. Vejamos agora a resposta à 2.ª questão.
Diz o art. 542/1 e 2:

“1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”

Daqui podemos retirar, desde logo, que está em causa, no instituto, o sancionamento de comportamentos contrários ao princípio da boa-fé processual, genericamente consagrado, no seu sentido objetivo, no art. 8.º De facto, nas diversas alíneas do citado n.º 2 são descritas condutas que as partes se devem abster de praticar no processo pois delas podem resultar prejuízos para o decurso da relação processual cujo sucesso, com a obtenção de uma decisão justa e em prazo razoável, pressupõe um espírito de cooperação intersubjetiva e consentâneo com o dever de verdade. Mais concretamente, a alínea a), impõe às partes um dever de cuidado por ocasião da propositura da ação ou da dedução da oposição, para que a máquina judiciária estadual não seja colocada em causa desnecessariamente. A alínea b) exprime o dever de verdade a que as partes devem obedecer nas suas alegações fácticas, impondo-lhes que se abstenham de emitir falsas declarações ou omitir factos relevantes. As alíneas c) e d) concretizam a obrigação de cooperação intersubjetiva que, tendo também como fundamento o princípio da boa-fé, recai sobre as partes durante todo o curso do processo e que, quando infringida, o desvia do interesse e da função a que se encontra destinado.
Por outro lado, não basta que uma das partes leve a cabo um comportamento subsumível a uma das alíneas. Para que exista má-fé, exige-se um elemento de ordem subjetiva sem o qual o comportamento da parte não pode ser tido como típico e, consequentemente, como ilícito. Referimo-nos ao dolo e à culpa grave a que alude o proémio do n.º 2. Esta exigência, que aproxima o modelo do ilícito penal, justifica-se como forma de salvaguardar a margem de liberdade que o processo necessariamente pressupõe, sob pena de se restringirem de forma excessiva os direitos processuais de ação ou de defesa que assistem às partes. 
Este elemento subjetivo deve ser considerado não apenas ao nível da culpa, mas também em sede de tipicidade, pelo que apenas haverá um ilícito típico quando se possa concluir que o comportamento enquadrável numa das alíneas foi praticado com dolo ou negligência grave. Na falta deste elemento, a conduta não poderá sequer ser considerada ilícita e o sujeito não poderá ser considerado como litigante de má-fé. Neste sentido, escreve Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais cit., p. 382) que “[a] integração de elementos subjetivos no tipo de ilícito pode apontar para uma certa indistinção face à culpa. É nesta que, tradicionalmente, se valora a atuação do agente para se determinar se, atendendo à sua colocação ou ao modo como atua, merece a concreta sanção que a lei ordena para a sua conduta típica e ilícita.” A autora explica, na sequência, que, não obstante, “também numa importação da dogmática penal, os elementos subjetivos relevarão na tipicidade para que se determine se um comportamento, atendendo a estes elementos, se pode considerar típico. No momento da culpa dar-se-á, novamente, relevância a estes elementos, mas agora para a determinação do modo como influenciam o conteúdo concreto das situações jurídicas que a conduta típica e ilícita desencadeia, quer isto dizer, o tipo de culpa relevará na determinação do conteúdo concreto da obrigação de indemnizar.”
Ainda a propósito dos elementos subjetivos, importa notar que, na versão original do CPC de 1961, o legislador processual aproximava a má-fé ao dolo. Com a reforma levada a cabo pelo DL n.º 329-A/95, de 12.12, o elemento subjetivo da litigância de má-fé foi ampliado à culpa grave, assim se consagrando a máxima culpa lata dolo aequiparatur, o que indicia que estamos perante uma noção ética de boa-fé subjetiva, considerando de má-fé não apenas a conduta daquele que conhece o erro em que incorre, mas também a daquele que o desconhece por não ter cumprido com os deveres de cuidado que lhe eram impostos. Como adverte Marta Alexandra Frias Borges (Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, Coimbra: UC, 2014, p. 43), “[e]sta eticização da má-fé processual não se afigura total, na medida em que se não compadece com qualquer desrespeito por esses deveres de cuidado, independentemente do grau de culpa. Pelo contrário, apenas estaremos perante má-fé processual quando se tenham desrespeitado os mais elementares deveres de cuidado e de prudência, atuando de forma gravemente negligente, isto é, com culpa grave. Pelo que só a culpa grave será capaz de eliminar a boa-fé subjetiva em que se presume estar aquele que objetivamente preenche alguma das alíneas do art. 542.º, n.º 2.” Recorre-se aqui à denominada teoria das três culpas, aceite no nosso direito antigo, que, dentro da culpa stricto sensu, distinguia entre culpa grave, leve e levíssima. Como dá nota Pessoa Jorge (Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa: Centro de Estudos Fiscais, 1968, p. 357), na formulação mais generalizada, que vem dos romanos, a culpa levíssima corresponde ao grau menos grave de culpa, traduzindo a negligência em que só não cai um homem excecionalmente diligente, o diligentissimus pater famílias; a culpa leve corresponde à negligência que seria evitada pelo homem mediano, o bonus pater familias; a culpa grave (também chamada de lata) traduz-se na negligência grosseira, só cometida por um homem excecionalmente descuidado (culpa lata est non intelligere quod omnes intelligunt, na expressão latina). Tradicionalmente, considerava-se aplicável à culpa grave o regime do dolo (culpa lata dolo aequiparatur).
Os termos em que é feita, nas alíneas do n.º 2 do art. 542, a descrição das condutas processualmente reprováveis permite integrar a má-fé processual numa de duas modalidades: substancial ou instrumental, consoante respeite ao próprio fundo da causa, ou apenas ao comportamento processual especificamente assumido pelo litigante. Haverá má-fé substancial quando a parte formule pedido ou oposição manifestamente infundados ou quando infrinja o dever de verdade (art. 542/2, a) e b)); haverá má-fé instrumental quando a parte, independentemente da razão que possa ter quanto ao mérito da causa, infrinja o dever de cooperação ou faça um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais (art. 542/2, c) e d)).
À luz desta distinção faz sentido que se afirme, com Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 457), que “só a parte vencida pode incorrer em má-fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo portanto o vencedor da ação ser condenado como litigante de má-fé.”
No caso em análise, o Tribunal a quo entendeu ter ficado demonstrado, a um tempo, que o Recorrente “deduziu a presente ação sabendo da falta de fundamento da sua pretensão, uma vez que os factos por si alegados já haviam sido previamente decididos, sustentando esta acção em factos já julgados provados e não provados em acção pretérita, que o condenou a pagar à Ré a quantia referente à fatura ...5” e, a outro, que o Recorrente, ao propor a ação, veio insistir “pela procedência de pretensão jurídica que sabia injustificada, procurando demonstrar factos que já foram apreciados e julgados não provados”, omitindo este último aspeto. O 1.º destes fundamentos da condenação coloca-nos perante a previsão da alínea a) do n.º 2 do art. 542. O 2.º transporta-nos até à previsão da alínea b).
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2).2. Nos termos da alínea a) do n.º 2 do art. 542, litiga de má-fé a parte que “[t]iver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar.”
Isto significa que uma parte age de forma ilícita se tinha ou devia ter consciência de que a sua pretensão, tanto nos aspetos factuais que sustentam a causa, como nas consequências jurídicas que deles derivam, não está em conformidade com o que o sistema legal estabelece, o que enfatiza o dever da parte de investigar a fundamentação da sua pretensão antes de a submeter a tribunal (cf. Paula Costa e Silva, Responsabilidade por Conduta Processual cit., p. 389).
Não se exige, portanto, a prova (seguramente diabólica) de que a parte tinha um conhecimento efetivo e consciente da falta de fundamento da pretensão; basta que esse conhecimento lhe fosse exigível, o que permite que a prova seja feita “a partir de índices externos, construídos sobre a parte média” (Paula Costa e Silva, idem).
Neste enquadramento, a dedução de uma pretensão ou de uma defesa carecida de fundamento integrará litigância de má-fé quando uma pessoa diligente e razoável, na mesma situação, com o mesmo nível de informação disponível, deveria tê-lo percebido, abstendo-se de a exteriorizar através dos meios processuais. Pune-se, assim, não apenas a má-fé deliberada, mas também a omissão de deveres de indagação e cuidado que impendiam sobre a parte, o que torna a sua conduta negligente e, logo, censurável.
É indiferente se essa negligência é consciente ou inconsciente – isto é, se ao atuar a parte prefigurou que a sua pretensão ou defesa careciam de fundamento, com isso se não se conformando, ou se nem sequer o prefigurou, precisamente por não ter observado os referidos deveres de indagação e cuidado. Os dois tipos de negligência, importados do Direito Penal, são conjugáveis com a negligência grosseira (cf. Paula Costa e Silva, Responsabilidade por Conduta Processual cit., p. 391).
Relembrando o que escrevemos no ponto anterior, nem toda a negligência é suficiente para configurar má-fé. A lei exige um grau particular: a negligência grosseira (ou culpa grave). Isto significa que a falha nos deveres de cuidado deve ser de tal monta que a parte agiu com um desleixo extraordinário, demonstrando uma inobservância das mais elementares regras de prudência e indagação. No dizer de Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual cit., p. 392), “[a] generalidade das pessoas ou todas as pessoas, pertencentes à categoria social e intelectual da parte real, colocadas naquela situação em concreto, ter-se-iam abstido de litigar, uma vez que, cumprindo os seus deveres de indagação, teriam concluído não terem, quer a pretensão, quer a defesa, fundamento.”
De outro prisma, dispensa-se a prova de um dolo específico – id est, não é necessário demonstrar que a parte pretendia alcançar uma finalidade fraudulenta específica, como “surpreender a boa-fé do tribunal” ou prejudicar a parte contrária. Basta que a pretensão seja objetivamente infundada e que a parte soubesse (ou devesse saber, por negligência grosseira) desse facto. A intenção de obter uma decisão favorável, mesmo quando se sabe que a causa é fraca, é inerente a qualquer processo e não constitui, por si só, o elemento diferenciador da má-fé.
De notar que, mesmo em situações onde a pretensão parece contrariar a lei de forma expressa, a condenação não é automática. Isso porque a lei pode ter múltiplas interpretações. O que para uns é inequívoco, para outros pode ser objeto de discussão razoável. A condenação por má-fé deve reservar-se, portanto, para casos de abuso processual manifesto e grosseiro, onde a falta de fundamento é patente e a conduta da parte é claramente censurável. Compreende-se, assim, que se aconselhe cautela, prudência e razoabilidade “na condenação por litigância de má fé, o que só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com grave negligência, com o fito de impedir ou a entorpecer a acção da justiça” (STJ 2.06.2016, 1116/11.3TBVVD.G2.S1, António Joaquim Piçarra) e que se afirme que  “[u]ma lide temerária e a ousadia de uma construção jurídica manifestamente errada não revelam, por si só, que o seu autor delas se serviu como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual”, apenas “devendo ser sancionada a actuação processual da parte, como litigante de má fé, quando, em concreto, surja com clamorosa evidência a natureza dolosa ou gravemente negligente dessa actuação” (RP 6.03.2025, 22435/22.8T8PRT-C.P1, Judite Pires).
Daqui decorre que, como se sintetiza em RL 20.12.2016 (1220/14.6TVLSB.L1-7), Luís Filipe Pires de Sousa, não integra litigância de má fé; “(i) a mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento; (ii) a eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar; (iii) discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos ou (iv) com a defesa convicta e séria de uma posição, sem contudo a lograr convencer – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2.3.2010, Maria José Simões, 6145/09. A simples circunstância de se dar como provada uma versão factual contrária à alegada pela outra parte, sobretudo quando tal prova se alicerça em depoimentos testemunhais que se confrontam com outros de sentido contrário, não é suficiente para fundar e fundamentar a condenação da parte que viu triunfar a versão da parte contrária, como litigante de má fé – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.5.2009, Álvaro Rodrigues, 09B0681.”
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2).3. Na alínea b) do n.º 2 do art. 542 estão em causa comportamentos que se caracterizam pela adulteração da realidade ontológica ou pela omissão de factos relevantes para a decisão.
A adulteração da realidade ontológica tanto pode recair sobre factos essenciais como sobre factos instrumentais. Já a omissão de factos é mais restrita. Segundo STJ 13.03.2008 (07A4139), Cardoso de Albuquerque, apenas a omissão de factos principais é ilícita, entendimento que Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual cit., p. 395) entende dever ser atenuado de modo a incluir no tipo também a omissão de factos instrumentais que sejam determinantes para a indiciação de um facto principal, assumindo, assim, relevância direta na decisão.
Por outro lado, pressupõe-se que a parte atue em seu benefício, seja ao alterar a verdade dos factos, seja ao omitir factos relevantes.  Compreende-se que assim seja. Apesar de, em tese, uma mentira da parte contra si própria também desrespeitar e contribuir para desacreditar o sistema de Justiça, levando a entender que a manipulação da verdade, mesmo que em prejuízo próprio, poderia integrar a má-fé, não podemos olvidar que o juiz tem o poder de ajudar as partes a corrigir ou completar os factos (através de pedidos de esclarecimento ou de convites ao aperfeiçoamento). Seria ilógico que um comportamento que o juiz tem o dever de ajudar a corrigir fosse, ao mesmo tempo, considerado uma infração grave. Ademais, a alteração ou a omissão de factos nunca é aleatória. É um meio de que a parte se serve para tentar obter uma decisão que, de outra forma, não conseguiria ou não lhe seria tão favorável, o que marca uma interseção entre o tipo da alínea b) e o tipo da já analisada alínea a) do n.º 2 do art. 542.
Estas considerações evidenciam que sobre as partes recai um dever de verdade, justificado pela razão de ser do processo civil: de acordo com os ensinamentos de Michele Taruffo (Simplemente la Verdade. El Juez y la Construcción de los Hechos, trad. esp., Madrid: Marcial Pons, 2016, pp. 114-116), a busca pela verdade dos factos é um dos objetivos centrais e irrenunciáveis do processo civil, condição necessária para a obtenção de uma decisão justa, legal e não arbitrária. Não se trata de uma verdade absoluta no sentido filosófico ou metafísico, mas sim de uma verdade judicial, que deve corresponder à melhor reconstrução possível da realidade ontológica dentro das limitações e regras do sistema processual. Essa verdade é condição essencial do conceito de justiça. Seria paradoxal, diz o autor, supor uma democracia fundada no valor da verdade na relação vertical estado-cidadão que não reconheça o valor da verdade na administração da justiça. A administração da justiça fundada no erro, na mentira e na distorção não pode atingir um grau satisfatório de justiça substantiva. Daqui resulta o dever de as partes, participando no processo em posição de igualdade, contribuírem de forma efetiva para que a narrativa processual seja o mais fiel possível à verdade dos factos.
Da existência deste dever de verdade não decorre, porém, que a parte tenha um dever pré-processual de investigar a verdade dos factos. Impor semelhante exigência seria uma limitação inaceitável ao direito de acesso à justiça. Afinal, a parte tem o direito de apresentar a sua versão dos factos para que um tribunal imparcial a avalie. Ainda assim, impõe-se-lhe um cuidado mínimo, que aumenta exponencialmente em determinadas situações. A este propósito, Paula Costa e Silva (Responsabilidade por Conduta Processual – Litigância de Má-Fé e Tipos Especiais cit., pp. 388-400) dá conta que para autores alemães como Henckel, em determinados casos, o interesse da parte em ir a tribunal sem total certeza sobre a verdade da sua pretensão pode ter de ceder perante a necessidade de proteger a parte contrária quando a ação seja suscetível de afetar a sua honra ou o seu bom nome ou causar prejuízo à sua integridade física ou mental. Em tais situações, o direito da parte de submeter a sua verdade ao tribunal torna-se secundário face à necessidade de proteger direitos fundamentais da outra parte.
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2).4. Feitas estas considerações, não podemos deixar de entender que, também no que tange a esta 2.ª questão, o Tribunal a quo decidiu com acerto.
Com efeito, ao propor a presente ação de responsabilidade pré-contratual, o Recorrente fê-lo com base em factos que já haviam sido alegados por si como defesa na ação anterior de cobrança de dívida e nessa sede considerados não provados por sentença transitada em julgado. Em bom rigor, na ação precedente resultaram mesmo provados factos de sentido contrário.
Em resultado da autoridade dessa sentença, a discussão sobre a relação jurídica entre as partes ficou definitivamente exaurida, conclusão que não podia deixar de estar ao alcance de qualquer pessoa medianamente diligente e informada. Deste modo, a conduta do Recorrente de voltar a submeter ao crivo do poder judicial aquela relação jurídica, dando-lhe um diferente enquadramento jurídico, com o qual mais não visou que reverter o adrede decidido, evidencia uma flagrante inobservância dos mais elementares deveres de cuidado e de ponderação jurídica prévia, configurando um desleixo que transcende o mero erro e atinge o patamar da negligentia supina.
O Recorrente não se limitou a propor uma ação manifestamente infundada; o seu comportamento foi agravado pela omissão de que já havia sido condenado, por sentença transitada em julgado, a pagar a dívida à Recorrida na ação anterior e que os factos que agora ressuscitava já tinham sido ali apreciados.
Esta omissão é crucial. Como escrevemos, o dever de verdade, que impende sobre as partes, exige que estas contribuam para uma reconstrução da realidade factual o mais fiel possível. A omissão de um facto tão determinante como a sua prévia condenação e a improcedência dos seus fundamentos de defesa na primeira ação, com o consequente efeito positivo do caso julgado assim formado, não pode ser vista como um mero lapso. Pelo contrário, revela uma intenção clara, ainda que ab initio condenada ao insucesso, de ocultar um elemento processual decisivo, suscetível de induzir o julgador em erro. Esta manobra processual, que tenta iludir a autoridade do caso julgado, constitui um uso manifestamente reprovável do processo, visando protelar, sem fundamento sério, a definitividade de uma questão já resolvida e, em última instância, perturbar a segurança jurídica e a paz social que são pressuposto da confiança dos cidadãos no sistema de administração da justiça.
Em suma, a conduta do Recorrente configura uma má-fé substancial, caracterizada não apenas pela insistência numa pretensão sem qualquer sustentação jurídica (à luz do caso julgado anterior), mas também pela omissão de factos que, não fosse a Recorrida tê-los trazido na contestação, como era expectável que fizesse, poderiam ter passado ao crivo do julgador, levando-o a proferir uma decisão contrária a uma anterior sobre a mesma questão. Semelhante atuação não se coaduna com o exercício leal e diligente do direito de acesso à justiça.
Consequentemente, a decisão recorrida, ao julgar procedente o incidente de litigância de má-fé e ao condenar o Recorrente no pagamento de multa e indemnização à parte contrária, mostra-se em perfeita conformidade com o espírito e a letra do art. 542 do CPC. Não está em causa qualquer sancionamento da litigância em si mesma, mas de comportamentos que, desrespeitando a estabilidade das decisões judiciais, colocam em causa a segurança jurídica e a própria credibilidade da justiça.
A resposta à 2.ª questão é, pois, também negativa.
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3). Totalmente vencido no recurso, o Recorrente deve suportar as custas respetivas: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em (i) julgar o presente recurso improcedente e (ii) confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo Recorrente.
Notifique.
*
Guimarães, 5 de junho de 2025

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães
Maria João Marques Pinto de Matos
Maria Gorete Morais


[1] Pertencem ao Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência. Os acórdãos citados ao longo do texto estão disponíveis em www.dgsi.pt, salvo indicação em contrário.
[2] Sobre a questão, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 305; Castro Mendes, Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa: Ática, 1968, p. 162; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 1997, p. 576, e O Objeto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, 325, p. 167, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, p. 703, nota 1; Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Ação Declarativa, Coimbra: Almedina, 2004, p. 394; Lebre de Freitas / Montalvão Machado / Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 325 – 326; Rui Pinto, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar Online, disponível em https://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/; Lebre de Freitas, “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, ROA, ano 79, n.os 3-4 (jul.-dez. 2019), pp. 691-722.
[3] Inter alia, os seguintes arestos do STJ: 30.04.2019 (4435/18.4T8MAI.S1), Fernando Samões, 14.09.2022 (24558/19.1T8LSB.L1.S1), Fernando Baptista de Oliveira, 2.03.2023 (6055/18.4T8ALM.L1.S1), Maria da Graça Trigo, 12.04.2023 (979/21.9T8VFR.P1.S1), Jorge Dias, 30.05.2023 (3358/20.1T8BRG.G1.S1), Manuel Aguiar Pereira, e 4.07.2023 (142/15.8T8CBC-C.G1.S1), Pedro de Lima Gonçalves.
[4] Disponível em https://blogippc.blogspot.com/2022/06/jurisprudencia-2021-224.html,
[5] Como escreve Mariana França Gouveia, A Causa cit., p. 415, “a defesa do requisito da identidade da causa de pedir para a autoridade do caso julgado equivale a matar a figura. A autoridade existe onde a exceção não chega, exatamente nos casos em que não há identidade objetiva.”
[6] Repositório da Universidade de Lisboa: Preclusão e caso julgado
[7] Como se sabe, na contestação, o réu pode fazer uso de todos os meios de defesa previstos no art. 572 do CPC. É ampla a liberdade que dispõe para estruturar a sua defesa segundo a estratégia que mais lhe aprouver. Pode mesmo aduzir fundamentos de defesa que se apresentem relativamente contraditórios entre si, desenvolvendo uma argumentação escalonada, de modo que o acolhimento de um deles prejudique o conhecimento do subsequente e assim sucessivamente, mediante o denominado sistema da eventualidade da defesa, assim chamado porque os fundamentos sucessivos só serão conhecidos se ocorrer o evento de o precedente ser afastado pelo juiz (cf. Cândido Rangel Dinamarco, Teoria Geral do Novo Processo Civil, 2.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2016, pp. 120-121).
Com mais rigor, diremos que o réu tem o ónus de assim proceder, como resulta do disposto no art. 573/1 do CPC, onde se estabelece que “[t]oda a defesa deve ser deduzida na contestação”, salvo se os seus fundamentos forem supervenientes, consagrando-se o princípio da concentração da defesa, cujo corolário é a preclusão. A esta luz, compreende-se que Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 566) escrevam que “[o] réu tem o ónus de, na contestação, impugnar os factos alegados pelo autor, alegar os factos que sirvam de base a qualquer exceção dilatória ou perentória (com a única exceção das que forem supervenientes) (…) Se não o fizer, preclude a possibilidade de o fazer.” Daqui decorre que a eventualidade se apresenta como uma consequência do princípio da concentração da defesa na contestação. É por ter o ónus de alegar todos os fundamentos de defesa de que dispõe, concentrando-os na contestação, sob pena de não mais os poder invocar (preclusão), ainda que eles sejam incompatíveis entre si, que o réu deve observar uma ordem de conhecimento sucessiva.