Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
111742/20.8YIPRT.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
VALOR DA MULTA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A causa de pedir consiste no conjunto de factos jurídicos concretos que integram a relação material controvertida invocada e dos quais procede o efeito jurídico pretendido ou a pretensão deduzida em juízo, sendo matéria que compete ao autor alegar na petição em que propõe a ação (arts. 5º, nº 1 e 552º, nº 1, al. d), do CPC) e que, nos processos em que vigora a disponibilidade objetiva, fixa e delimita os limites de cognição do tribunal (arts. 5º, nº 1, 608º, nº 2 e 615º, nº 1, al. d), do CPC).
II - As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no art. 615º, nº 1, do CPC.
III - O vício da sentença decorrente da não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, abreviadamente designado como vício de falta de fundamentação, encontra-se diretamente relacionado com a obrigação de o juiz fundamentar as suas decisões que não sejam de mero expediente, obrigação essa que lhe é imposta pelos arts. 154º e 607º, nºs 3 e 4, do CPC, e pelo art. 205º, nº 1, da CRP.
IV - Só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade da decisão, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
V - Para que a parte seja condenada como litigante má fé é necessário que a mesma tenha litigado com dolo ou negligência grave, o que sucede quando as regras de conduta que deveriam ser conformes à boa fé são violadas de forma intencional ou consciente, ou com culpa grave ou erro grosseiro, devendo a negligência grave ser entendida como uma “imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um”.
VI - A multa por litigância de má-fé tem uma função repressiva de punição daquele que não cumpre com os deveres de boa-fé, lealdade, correção e cooperação processuais e uma função preventiva visando evitar a prática de futuros comportamentos dessa natureza.
Na sua fixação deve ter-se em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste, como estabelecido no art. 27º, nº 4, do RCP, fazendo uma análise casuística quanto aos concretos atos praticados pelo litigante de má fé, levando em linha de conta a sua natureza, gravidade, reiteração, tipo de culpa e demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

MASSA INSOLVENTE DE X SHOES, LDA. apresentou requerimento de injunção contra Y, FABRICAÇÃO DE CALÇADO, LDA. pedindo o pagamento da quantia global de € 10 784,23, sendo € 9 471,00 de capital e € 1 313,23 de juros de mora.
No aludido requerimento de injunção consta que se trata de contrato de fornecimento de bens ou serviços.

Na exposição dos factos que fundamentam a pretensão consta, designadamente, que:

- a requerente é a massa insolvente da empresa X SHOES, Lda.;
- a empresa insolvente e a requerida até meados de fevereiro de 2018 tinham a mesma sede e tinham a mesma gerente;
- a partir de meados de fevereiro de 2018, a empresa insolvente, no âmbito da sua atividade comercial, passou a fornecer bens e serviços à requerida;
- a última fatura emitida data de 31.12.2018 tem a referência FTR1800032 e ascende ao montante de € 31 980,00;
- a relação comercial foi organizada em forma de conta corrente, com movimentos a débito e a crédito, sendo exigível apenas o respetivo saldo, o qual é de € 9 471,00.
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Regularmente citada, a requerida deduziu oposição, subscrita por mandatário, na qual invocou a ineptidão do requerimento de injunção, por não conter os factos que fundamentam a pretensão da requerente.
Alegou que nunca teve relações comerciais com a requerente pelo que nada lhe deve e se existem faturas as mesmas são falsas pois a requerente nunca forneceu qualquer bem à requerida nem lhe prestou qualquer serviço.
Termina pedindo a improcedência da injunção.
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Na sequência da dedução de oposição, os autos foram remetidos à distribuição como ação especial de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.
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Em 22.3.2021, foi proferido despacho (ref. Citius 172245110) que convidou a requerente a aperfeiçoar o requerimento de injunção, descrevendo os concretos bens e/ou serviços fornecidos, a data do fornecimento e o pagamento que se encontra em falta.
Nesse despacho consta expressamente que “desde já se adverte a requerente que eventuais organizações internas da relação comercial que manteve com a requerida em forma de conta corrente contabilística são totalmente irrelevantes para a presente ação, já que a causa de pedir assinalada foi ‘fornecimento de bens e serviços’”.
No mesmo despacho foi concedido à requerida o prazo de 10 dias para exercer o contraditório relativamente à nova factualidade que venha a ser invocada.
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O referido despacho foi notificado às partes, na pessoa dos respetivos mandatários, com data de 23.3.2021.
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Em 29.4.2021, a requerente, acedendo ao convite formulado, apresentou requerimento (ref. Citius 11392423) no qual veio alegar, em síntese:

- que a requerente é a massa insolvente da empresa X SHOES, Lda., a qual tinha como objeto social a fabricação, comércio por grosso e a retalho de calçado, comércio por grosso de pele (art. 1º);
- até meados de fevereiro de 2018, a empresa insolvente e a requerida tinham a mesma sede e tinham a mesma gerente (arts. 3º e 4º);
- a partir de meados de fevereiro de 2018, a empresa insolvente, no âmbito da sua atividade comercial, passou a prestar e fornecer à requerida bens e serviços (art. 5º);
- a relação comercial deu lugar a faturação diversa emitida pela empresa insolvente e a requerida foi fazendo pagamentos por conta (art. 6º);
- a relação comercial foi organizada em forma de conta-corrente, com movimentos a débito e a crédito, sendo exigível apenas o respetivo saldo (art. 7º);
- a última fatura emitida data de 31.12.2018, tem a referência FTR1800032, tem por objeto calçado, ascende ao montante de € 31 980,00 e relativamente à mesma encontra-se por liquidar o montante de € 9 471,00 (arts. 8º e 9º);
- para além do saldo apurado em dívida, reclama ainda o pagamento de juros de mora desde 31.12.2018, às taxas de juros legais comerciais, que contabiliza em € 1 313,23 (art. 10º).

Pediu a condenação da requerida como litigante de má-fé por não poder ignorar a falta de fundamento da contestação deduzida e por invocar a falsidade de factos que são necessariamente do seu conhecimento e que são verdadeiros, como seja a inexistência de relações comerciais e a falsidade de faturas.
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A requerida exerceu o contraditório (cf. requerimento ref. Citius 11452806) e alegou que a requerente invoca uma nova causa de pedir, ou seja, a existência de uma conta-corrente por si elaborada (art. 3º).
Reitera a existência de ineptidão da petição inicial, por não estarem concretizados os bens e serviços fornecidos.
Impugna a factualidade dos arts. 3º a 15º, 22º, 25º e 26º do requerimento aperfeiçoado, reputando-os de falsos.
Nega ter litigado de má fé e pugna pela improcedência deste pedido bem como pelo demais peticionado pela requerente.
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A Massa Insolvente de X SHOES, Lda. juntou aos autos a fatura FTR1800032, por requerimento apresentado em 4.10.2021 (ref. Citius 12026517).
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A requerida impugnou o teor da fatura junta.
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Procedeu-se a julgamento e a final foi proferida sentença que julgou improcedente a arguida ineptidão do requerimento de injunção e terminou com o seguinte teor decisório:
“Pelo exposto, o Tribunal julga procedente, por provada a presente ação e consequentemente condena a Ré a pagar à Autora a quantia de €9.471,00 (nove mil, quatrocentos e setenta e um euros), acrescida de juros à taxa legal, desde 31/12/2018 até efetivo e integral pagamento.
Mais decide condenar a Ré como litigante de má fé em multa que se fixa em 50 (cinquenta) UC.
Custas pela Ré.
Registe e notifique.
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Fixo à presente ação o valor de €10.784,23.”
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A requerida não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1 – Ao abrigo dos artigos 629º, 631º e 644º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Civil, de ora em diante C.P.C., vem o presente recurso interposto da douta sentença com a ref.ª 177919603, que julgou a acção procedente, condenando a Ré nos seguintes termos:
“Pelo exposto, o Tribunal julga procedente, por provada a presente ação e consequentemente condena a Ré a pagar à Autora a quantia de €9.471,00 (nove mil, quatrocentos e setenta e um euros), acrescida de juros à taxa legal, desde 31/12/2018 até efetivo e integral pagamento.
Mais decide condenar a Ré como litigante de má fé em multa que se fixa em 50 (cinquenta) UC.
Custas pela Ré.”.
2 – Vem o presente recurso interposto da decisão que condenou a apelante no pagamento da quantia de € 9 471,00 (nove mil quatrocentos e setenta e um euros) e em multa no valor de 50 UC como litigante de má-fé.
3 – A Recorrente Impugna a decisão na sua vertente de facto e de Direito.
4 – O Recorrente impugna os factos considerados provados nos pontos 1 e 2 dos factos provados.
5 – O Tribunal a quo considerou os mesmos provados com base em ajuizada confissão de parte da Ré.
6 – Salvo o devido respeito a legal representante da Ré não confessou os factos considerados provados.
7 – Atenta a assentada a legal representante da Ré declarou o seguinte:
“(…) que manteve relações comerciais com a X SHOES e que quando a X SHOES encerrou a Y comprou-lhes umas peles no valor de cerca de €30.000,00, o que terá ocorrido em 2018 ou 2019.
Afirma ainda que "a questão ficou resolvida com umas peles que não estavam em condições e com prestação de serviços".”
8 – Das declarações prestadas não resultou a confissão dos factos considerados provados.
9 – Pelo que, deverá a decisão de facto ser revogada e substituída por decisão que considere os factos não provados.
10 – A sentença proferida, por violação do disposto no art.º 265º, n.º 1 do CPC, é nula nos termos do art.º 195º do mesmo diploma legal.
11 – Os factos considerados provados constituem uma alteração à causa de pedir alegada pela Autora que não foi aceite pela Ré e não respeita os termos admitidos para a alteração da causa de pedir.
12 – Requer a Recorrente a declaração de nulidade da sentença por ter realizado uma alteração da causa de pedir não consentida pela Ré, nos termos exposto, constituindo uma nulidade por a alteração realizada ter influenciado o exame e a decisão da causa.
13 – Considerada não provada a factualidade impugnada, deve igualmente ser revogada a decisão de Direito por não se verificarem os factos constitutivos do Direito invocado pela Autora.
14 – A Ré foi ainda condenada como litigante de má-fé, no pagamento de multa no valor de 50UC.
15 – A factualidade que fundamenta a decisão não é correcta, porquanto a Requerente é uma entidade autónoma da X SHOES, Lda.º.
16 – Ademais, a legal representante da Ré quando prestou declarações fê-lo com total credibilidade e não contrariou qualquer facto alegado em sede de oposição, na medida em que entende que a Autora é uma entidade autónoma da empresa insolvente.
17 – A Ré não praticou qualquer conduta merecedora de censura processual.
18 – Ademais, a própria decisão é nula por falta de fundamentação do montante aplicado;
19 – Nulidade que aqui se argui para todos e os devidos efeitos legais.
20 - Indiscriminadamente, sem fundamentação o Tribunal a quo condenou a Ré no pagamento de 50 UC, quando o interesse económico em discussão corresponde a menos de € 10 000,00.
21 – Sem prejuízo da inexistência de conduta ilegal da Ré a verdade é que a condenação é indiscriminada, infundada e desproporcional.
22 – Pelo que deverá a decisão ser revogada.
23 – Ao não ter decidido nos termos pugnados, ou seja, julgando improcedente o peticionado pela Autora o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 260º, 265º, n.º 1, 410º, 411º, 414º e 607º, n.º 5 todos do CPC, bem como o art.º 342º do Código Civil e, na parte relativa à litigância violou o disposto no artigo 542º do Código de Processo Civil.”
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A requerente contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1 – A sentença recorrida contém correta apreciação da matéria de facto, e igualmente correta e bem fundamentada aplicação do direito.
2 – Em face das declarações prestadas pela legal representante da Ré, que constituem uma verdadeira confissão, outra decisão quanto à matéria de facto constante do ponto 1 não podia ser tomada pelo Tribunal a quo, pelo que andou bem ao decidir como decidiu.
3 – Assim, a Ré confessou terem existido relações comerciais com a Autora e que quando esta encerrou, a Y lhes comprou umas peles, no valor de cerca de €30.000,00.
6 – Mais confessou que tal facto terá ocorrido em 2018 ou 2019.
7 – Apesar de a Legal Representante ter alegado o pagamento da supramencionada fatura, mediante entrega de peles que não estavam em condições e prestação de serviços, a realidade é que não logrou fazer prova do mesmo.
8 – Pelo que, bem decidiu o Tribunal ao considerar assente a dívida de €9.471,00.
9 – A conduta da Apelante pautou-se, tanto no processo como fora dele, por uma intenção maliciosa. Que persiste em sede de recurso!
10 – Na oposição que apresentou, alegou que a requerente nunca lhe prestou qualquer serviço ou forneceu qualquer bem e que qualquer fatura que em seu nome tenha sido emitida pela Requerente /Apelada seria falsa.
11 – Pelo menos até meados de Fevereiro de 2018, a empresa insolvente e a Apelante, tinham a mesma sede, ou seja, estavam ambas domiciliadas na Rua …, Parque Industrial …, Fração …, em Guimarães. E também tinham a mesma gerente: L. R..
12 – Daquela data em diante, passou a ser sócia e gerente a sua tia avó M. G..
13 – Assim, a atual sócia única e gerente da sociedade “Y – Fabricação de Calçado, Lda.”, aqui Ré/Apelante, é tia-avó da gerente da Insolvente X SHOES, L. R., “coincidentemente” patrocinada pelo Ilustre Mandatário Dr. C. C., igualmente Mandatário da Insolvente.
14 – A legal representante da Apelante foi ouvida em sede de depoimento de parte, e confessou não só que a X SHOES manteve relações comerciais com a Apelante, mas também que quando a X SHOES encerrou, a Y lhes comprou umas peles no valor de cerca de €30.000,00, o que terá ocorrido em 2018 ou 2019 – e efectivamente a factura cujo pagamento é reclamado encontra-se datada de Dezembro de 2018.
15 – Pelo que a Apelante não podia ignorar a falta de fundamento da oposição deduzida.
16 – Atentas as relações familiares existentes entre as pessoas responsáveis pela Apelante e a Insolvente, dificultou, por meio de expedientes, o acesso aos elementos da contabilidade Insolvente, tentando obstar ao prosseguimento da ação.
17 – Ainda agora em sede de recurso, pretende a Apelante prevalecer-se de trocadilhos e jogos de palavras para se eximir à condenação como litigante de má-fé.
18 – Com a sua conduta no âmbito deste processo a Apelante conseguiu preencher a previsão de todas as alíneas do Art.542º do CPC.
19 – Crê-se, assim, dever manter-se inalterada, porque justa e não abalada pela alegação da Apelante a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.
20 – Com o que, julgando o recurso interposto como integralmente improcedente e confirmando a douta decisão recorrida, farão V. Exªs sã e costumada JUSTIÇA.”
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
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Não se determinou a baixa dos autos à 1ª instância para se pronunciar sobre as nulidades invocadas, ao abrigo do disposto no art. 617º, nº 5, do CPC, por se ter considerado que não se verificava a situação de indispensabilidade aí referida.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I - saber se a sentença incorreu em nulidade por ter alterado a causa de pedir;
II - saber se a matéria de facto deve ser alterada;
III - proceder à reapreciação jurídica em função da alteração introduzida na matéria de facto;
IV - saber se a decisão padece de nulidade por falta de fundamentação do montante da multa aplicada pela litigância de má fé;
V - saber se se verificam os pressupostos legais para a requerida ser condenada como litigante de má fé;
VI - saber se o montante da multa se revela excessivo e desproporcional à conduta da requerida;

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:
1. A pedido da Requerida, a Requerente vendeu-lhe os bens melhor identificados na fatura n.º FTR1800032, datada de 24/12/2018, no valor global de €31.980,00.
2 - Por conta da fatura em causa encontra-se em dívida €9.471,00.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Cumpre apreciar e decidir.

I - Nulidade por alteração da causa de pedir

A recorrente alega que o facto nº 1 dado como provado não foi alegado pela autora em nenhuma das peças processuais que apresentou e que tal facto constituiu uma alteração não regular da causa de pedir, por não respeitar o formalismo do art.º 265º, n.º 1 do CPC, uma vez que a autora alegou, como fundamento do pedido de condenação, a existência de uma conta corrente entre as partes.
Com estes fundamentos argui a nulidade da sentença, por violação do disposto no art.º 265º, n.º 1 do CPC, e por a omissão ocorrida influenciar decisivamente o exame e decisão da causa (art.º 195º, n.º 1 do CPC).
Independentemente de saber se o enquadramento jurídico da questão da nulidade feito pela recorrente é ou não o correto, importa verificar previamente se, no caso, ocorreu a invocada alteração da causa de pedir.
Dispõe o artº 5º, nº 1, do CPC, que consagra o princípio do dispositivo, que cabe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
A causa de pedir “corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido” (Lebre de Freitas in Ação Declarativa Comum, à Luz do C. P. Civil de 2013, pág. 41).
E é delimitada pelos factos jurídicos dos quais procede a pretensão que o autor formula, cumprindo a este a alegação desses factos (cf. Remédio Marques, in Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª Edição, pág. 226/227), sendo constituída pelos factos necessários para individualizar a pretensão material ou o direito potestativo alegado pelo autor (Castro Mendes e Teixeira de Sousa in Manual de Processo Civil, Vol. I, pág. 411).
Portanto, de forma sintética, podemos afirmar que a causa de pedir consiste no conjunto de factos jurídicos concretos que integram a relação material controvertida invocada e dos quais procede o efeito jurídico pretendido ou a pretensão deduzida em juízo, sendo matéria que compete ao autor alegar na petição em que propõe a ação (arts. 5º, nº 1 e 552º, nº 1, al. d), do CPC) e que, nos processos em que vigora a disponibilidade objetiva, fixa e delimita os limites de cognição do tribunal (arts. 5º, nº 1, 608º, nº 2 e 615º, nº 1, al. d), do CPC).
Diz a recorrente que o facto nº 1 não foi alegado pela autora em nenhuma das peças processuais que apresentou e que tal facto constituiu uma alteração não regular da causa de pedir.

O facto provado nº 1 tem a seguinte redação:
1. A pedido da Requerida, a Requerente vendeu-lhe os bens melhor identificados na fatura n.º FTR1800032, datada de 24/12/2018, no valor global de €31.980,00.

Contrariamente ao afirmado pela recorrente, este facto foi alegado no processo, de forma repetida e reiterada, designadamente:
1) foi alegado no requerimento de injunção, na parte relativa à exposição de factos, onde se refere que a última fatura emitida data de 2018/12/31, tem a referência FTR1800032, e ascende ao montante de € 31 980,00;
2) foi alegado no requerimento aperfeiçoado de 29.4.2021, onde consta, nos arts. 8º e 9º, que a última fatura emitida data de 31.12.2018, tem a referência FTR1800032, tem por objeto calçado, ascende ao montante de € 31 980,00 e relativamente à mesma encontra-se por liquidar o montante de € 9 471,00;
3) foi mais uma vez alegado no requerimento de 4.10.2021, com o qual foi junta a fatura em questão, onde consta, no art. 3º, que a última fatura emitida tem a referência FTR1800032, ascende ao montante de € 31 980,00 e relativamente a esta encontra-se por liquidar o montante de € 9 471,00.
Diversamente do que invoca a recorrente, a causa de pedir nestes autos não é a existência de qualquer contrato de conta corrente entre a empresa insolvente e a requerida. A causa de pedir é um contrato de fornecimento de bens, tal como consta expressamente no requerimento de injunção.
E se dúvidas legítimas pudessem existir sobre essa matéria da parte da recorrente, as mesmas há muito teriam de estar dissipadas pois no próprio despacho que convidou ao aperfeiçoamento é referido que “desde já se adverte a requerente que eventuais organizações internas da relação comercial que manteve com a requerida em forma de conta corrente contabilística são totalmente irrelevantes para a presente ação, já que a causa de pedir assinalada foi ‘fornecimento de bens e serviços’(sublinhado nosso).
Este despacho foi notificado à requerente e à requerida pelo que todos os intervenientes estão desde essa notificação clara e expressamente advertidos de qual é a causa de pedir.
Independentemente da prolação acertada deste despacho, é de referir que da leitura do requerimento de injunção e do requerimento aperfeiçoado se conclui claramente que a causa de pedir nos autos se consubstancia no fornecimento de bens nos termos constantes da fatura FTR1800032 pois é com base neste fornecimento que a requerente formula o correspondente pedido de pagamento.
A requerente apenas refere a existência de uma conta corrente para explicar o motivo pelo qual o valor em dívida não é o da totalidade da fatura, mas sim o valor peticionado de € 9 471,00, posto que ocorreram pagamentos e, feito o “encontro de contas”, o saldo final em dívida é o do montante peticionado.
Como tal, a “conta corrente” não constitui a causa de pedir nestes autos, sendo esta integrada pelo contrato de fornecimento de bens documentado pela fatura FTR1800032.
O facto provado nº 1 corresponde integralmente a essa causa de pedir, não constituindo qualquer alteração da mesma. A única diferença que existe relativamente ao que foi alegado pela requerente prende-se com a data da fatura, posto que a requerente inicialmente tinha alegado que a fatura tinha a data de 31.12.2018, e foi dado como provado que a mesma tem a data de 24.12.2018, o que resulta confirmado da posterior junção da fatura onde se lê ser essa a sua data de emissão.
Porém, esta alteração da data não configura qualquer alteração da causa de pedir.
Do que vem antedito concluiu-se que a sentença, ao dar como provado o facto nº 1, não procedeu à alteração da causa de pedir, pelo que, não se verificando o pressuposto em que a recorrente assenta o vício que imputa à sentença recorrida, improcede esta questão recursória.

II – Alteração da matéria de facto

Dispõe o artigo 662º, n.º 1, do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A norma em questão alude a meios de prova que imponham decisão diversa da impugnada e não a meios de prova que permitam, admitam ou apenas consintam decisão diversa da impugnada.

Por seu turno, o art.º 640.º do C.P.C. que tem como epígrafe o “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, dispõe que:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
A recorrente pretende que o facto provado nº 1 seja dado como não provado.
Para o efeito alega que a sentença fundamentou a prova de tal facto na confissão da legal representante da requerida, mas a mesma não confessou qualquer facto do requerimento de injunção ou dos articulados posteriores de aperfeiçoamento.
Vejamos, então, se o facto provado nº 1 se pode, ou não, considerar confessado pela legal representante da requerida, sendo certo que, de acordo com a fundamentação constante da sentença recorrida, o mesmo foi dado como provado com base nessa confissão.

O aludido facto tem a seguinte redação:
1. A pedido da Requerida, a Requerente vendeu-lhe os bens melhor identificados na fatura n.º FTR1800032, datada de 24/12/2018, no valor global de €31.980,00.
Como se lê no art. 352º, do CC, confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
A confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente (art. 358º, nº 1, do CC).
Do ponto de vista processual, uma das formas de obter a confissão judicial é através do depoimento de parte, o qual se encontra regulado nos arts. 452º e ss do CPC, sendo que, de acordo com o disposto no art. 463º, o depoimento é sempre reduzido a escrito, na parte em que houver confissão do depoente, cabendo a redação ao juiz, podendo as partes ou os seus advogados fazer reclamações e, concluída a assentada, a mesma é lida ao depoente que confirma ou faz as retificações necessárias.
No caso em apreço, foi ouvida a legal representante da requerida.
Terminada tal audição foi exarado em ata o seguinte.
“De seguida, nos termos do disposto no artº 463º nº 1 do CPC, a Mmª Juiz ditou a seguinte assentada (gravada no sistema h@bilus media studio) e ordenou que se fizesse a transcrição para a ata.
Assentada: Foi reconhecido pela legal representante da ré que manteve relações comerciais com a X SHOES e que quando a X SHOES encerrou a Y comprou-lhes umas peles no valor de cerca de €30.000,00, o que terá ocorrido em 2018 ou 2019. Afirma ainda que "a questão ficou resolvida com umas peles que não estavam em condições e com prestação de serviços".
Ora, da mera leitura desta assentada consideramos, numa primeira abordagem, que efetivamente dela resulta confessada a matéria dada como provada no facto nº 1.
Porém, é importante contextualizar as declarações prestadas por forma a que as mesmas sejam interpretadas corretamente, sobretudo face à alegação feita pela recorrente de que “a Legal Representante da Ré não confessou que os bens identificados na fatura FTR1800032 correspondem às peles que lhes comprou, quer em quantidades quer em qualidade.
Aliás, a fatura nem sequer foi exibida à legal representante da Ré.
Não foi produzida qualquer prova pela Autora sobre o facto que foi considerado provado, isto é, a Autora não fez prova que alienou e entregou à Ré 10 000,00 unidades de material diverso, nomeadamente peças em couro.”

E por forma a alcançar esta contextualização e interpretação procedeu-se à audição integral de depoimento prestado por M. G., legal representante da ré.
E dessa audição não nos restam nenhumas dúvidas sérias, razoáveis ou consistentes de que a depoente, quando fez as afirmações que constam da assentada, se estava a referir à fatura que consta do facto provado 1.
É verdade que a fatura não foi exibida à depoente aquando da prestação do depoimento.
Porém, a depoente, declarou espontaneamente que quando a empresa insolvente fechou a sua empresa lhe comprou umas peles, no valor de cerca de € 30 000, situando tal ocorrência em período entre 2018 e 2019.
Estas declarações estão alinhadas com o teor da FTR1800032, junta aos autos, que tem data de 24/12/2018, ou seja, no final do ano - o que explica que a depoente aponte como datas prováveis 2018 ou 2019 - e que se refere a peças de couro, daí a alusão a peles que é feita pela depoente.
Acresce que, se ainda restassem dúvidas se se trataria da fatura em discussão nos autos, elas estariam ultrapassadas pois foi expressamente perguntado à depoente pela Srª Juiz se seria a fatura no valor de € 31.980,00 ao que a depoente respondeu “é natural, não sei, mas as faturas ficaram liquidadas”.
Portanto, feita a devida contextualização e interpretação das declarações da legal representante da ré através da audição integral do seu depoimento, conclui-se que as declarações da assentada que está lavrada em ata se referem à fatura FTR1800032, única que está em discussão nestes autos, e que, por conseguinte, essas declarações constituem confissão judicial da matéria dada como provada no facto 1, confissão essa que tem força probatória plena contra a confitente, pelo que improcede a pretensão da recorrente de que tal facto seja dado como não provado.
Tal facto enferma porém de um lapso de escrita, pois quem efetuou a venda não foi a requerente, posto que esta é a massa insolvente da X SHOES, Lda., mas sim a própria X SHOES, Lda.

Assim, corrige-se tal lapso, passando o facto em questão a ter a seguinte redação:

1. A pedido da Requerida, a X SHOES, Lda. vendeu-lhe os bens melhor identificados na fatura n.º FTR1800032, datada de 24/12/2018, no valor global de €31.980,00.
*
A recorrente pretende que o facto nº 2 seja dado como não provado, como consequência de não estar provado o facto nº 1, na medida em que “não pode ser considerado provado que por conta de um crédito não provado existe um valor pendente de pagamento”.
Como acabámos de analisar, este pressuposto da impugnação não se verifica, pois o facto nº 1 está provado por confissão.
Por isso, com esta argumentação, o facto em questão não pode ser dado como não provado, improcedendo a pretensão da recorrente sobre esta matéria.
*
Deste modo, improcede na totalidade a impugnação da matéria de facto deduzida pela recorrente.

III - Reapreciação jurídica em função da alteração introduzida na matéria de facto

A reapreciação da decisão recorrida no que concerne à condenação da recorrente no pagamento do valor da fatura ainda por liquidar pressupunha e dependia do sucesso da pretensão de alteração da matéria de facto, posto que nenhum erro foi apontado à decisão quanto à subsunção jurídica efetuada no confronto com os factos provados quanto a esta concreta condenação. Ao invés, a discordância quanto ao decidido radica na decisão sobre a matéria de facto, considerando a recorrente que a decisão sobre essa questão deveria ter sido outra e que, perante a factualidade que considera ser a correta, a correspondente decisão jurídica deveria igualmente ter sido outra.
Neste enquadramento, uma vez que a pretensão de impugnação da matéria de facto foi julgada improcedente, fica prejudicada a reapreciação jurídica posto que esta tinha como pressuposto necessário a aludida alteração factual que não ocorreu.

IV - Nulidade da decisão por falta de fundamentação do montante da multa aplicada pela litigância de má fé

A recorrente invoca a nulidade da decisão relativamente à condenação como litigante de má fé por falta de fundamentação do montante aplicado.

Dispõe o art. 615º, nº 1, do CPC, que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).
O vício da sentença decorrente da não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, abreviadamente designado como vício de falta de fundamentação, encontra-se diretamente relacionado com a obrigação de o juiz fundamentar as suas decisões que não sejam de mero expediente, obrigação essa que lhe é imposta pelos arts. 154º e 607º, nºs 3 e 4, do CPC, e pelo art. 205º, nº 1, da CRP.
A exigência de fundamentação exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional (José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, pág. 317).
Impõe-se ao juiz não só que explicite o que decidiu, mas também que indique os motivos que determinaram tal decisão, esclarecendo porque assim decidiu.
Na verdade, só sabendo os concretos fundamentos que justificaram a prolação da decisão as partes terão a possibilidade real e efetiva de proceder à sua impugnação e suscitar a sua sindicância por um tribunal superior.
Todavia, é entendimento pacífico e consolidado quer da doutrina, quer da jurisprudência que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade em causa, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
Assim, como já afirmava o Prof. Alberto dos Reis, (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140) “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.
Em idêntico sentido, referem Antunes Varela e outros (in Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 687), que, “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
Assentes nestas premissas, e revertendo ao caso concreto, vejamos, então, se a sentença padece do vício de nulidade por não conter fundamentação relativamente ao montante da multa aplicada pela litigância de má fé.
De acordo com o art. 542º, nº 1, do CPC, se a parte tiver litigado de má fé é condenada em multa.
Tal multa pode oscilar entre 2 UC e 100 UC e na sua fixação deve ter-se em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste, como estabelecido no art. 27º, nºs 3 e 4, do RCP.
Ora, no caso em apreço, a decisão recorrida fixou a multa no montante de 50 UC.

E, fundamentou tal decisão dizendo que:
A R. na oposição que apresentou alegou quer que a requerente nunca lhe prestou qualquer serviço ou forneceu qualquer bem (art. 13.º) quer que qualquer factura que em seu nome tenha sido emitida pela demandante seria falsa (artigo 12.º).
Foi por iniciativa do Tribunal que a legal representante da requerida foi ouvida em sede de depoimento de parte que confessou não só que a X SHOES manteve relações comerciais com a requerida mas também que quando a X SHOES encerrou a Y comprou-lhes umas peles no valor de cerca de €30.000,00, o que terá ocorrido em 2018 ou 2019 – e efectivamente a factura cujo pagamento é reclamado encontra-se datada de Dezembro de 2018.
A R. alterou, assim, a verdade dos factos e deduziu oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar pelo que considero verificado o circunstancialismo previsto pelo art. 542.º/2/als. a) e b) Código de Processo Civil consequentemente condeno a R. como litigante de má fé na multa de 50 UC (art. 27.º/3 RCP).”
Da leitura desta fundamentação resulta claramente, em primeiro lugar, que não há falta total de fundamentação, sendo que só essa constitui nulidade de decisão, como supra já referimos, e, em segundo lugar, que face às condutas descritas, se considerou adequada a multa de 50 UC.
Como tal, não há qualquer falta de fundamentação do montante da multa aplicado, não se verificando o vício de nulidade que a recorrente aponta à decisão recorrida, improcedendo esta questão recursória.

V – Verificação dos pressupostos legais da condenação como litigante de má fé

Prevê o art. 7.º, nº 1, do CPC, o princípio da cooperação, de acordo com o qual, na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
No art. 8º, do CPC, encontra-se consagrado o dever de boa fé processual de acordo com o qual as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação referidos no art. 7º, do mesmo diploma legal.

Por outro lado, dispõe o art. 542º, do CPC, na parte que aqui releva, que:

1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Da leitura conjugada destas disposições resulta que “a condenação como litigante de má fé assenta, pois, num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de direito” (acórdão do STJ, de 12.11.2020, Relatora Maria do Rosário Morgado, citando, por sua vez, o acórdão do STJ de 13.3.2008, in www. dgsi.pt).
O instituto da litigância de má-fé procura fazer frente a comportamentos processuais que se desviem de um padrão de conduta honesto, correto e leal (boa-fé objetiva), tendo em vista sancionar e responsabilizar o sujeito processual pela prática de comportamentos processuais abusivos - porque desviados da função ou do interesse que subjaz a qualquer ato processual - comportamentos esses que apenas serão efetivamente sancionados quando acompanhados de má-fé subjetiva (dolo ou culpa grave equivalentes a conhecimento ou desconhecimento indesculpável do erro (neste sentido cf. Marta Alexandra Frias Borges, in Algumas Reflexões em Matéria de Litigância de Má-Fé, págs. 44 e 54).
O proémio do n.º 2 do art. 542.º, do CPC, refere que é necessário para que a parte seja condenada como litigante má fé que a mesma tenha litigado com dolo ou negligência grave, o que sucede quando as regras de conduta que deveriam ser conformes à boa fé são violadas de forma intencional ou consciente, ou com culpa grave ou erro grosseiro.
O paradigma do instituto da litigância de má-fé, relativamente ao elemento subjetivo, foi alterado com a revisão do CPC, em 1995, pois, enquanto até essa altura apenas se podia sancionar como litigante de má fé quem tivesse atuado com dolo material ou instrumental, com a redação resultante da reforma de 1995 passou-se a sancionar não só a litigância dolosa mas também a temerária, isto é, a negligência grosseira, pretendendo-se, assim, atingir uma maior responsabilização das partes.
A negligência grave é entendida como uma “imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um” (Menezes Cordeiro, in Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in agendo, pág. 26).

No caso concreto, como resulta do excerto da sentença que já supra transcrevemos, a recorrente foi considerada litigante de má fé por ter alegado que a requerente nunca lhe prestou qualquer serviço ou forneceu qualquer bem e que qualquer fatura que em seu nome tivesse sido emitida seria falsa, e que, ao ter esta atuação, alterou a verdade dos factos e deduziu oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar.
A recorrente vem dizer que não alterou a verdade dos factos porque a requerente é a massa insolvente X SHOES, Lda. a qual assume autonomia jurídica face à sociedade insolvente. Ora, a recorrente nunca estabeleceu qualquer relação comercial com a massa insolvente e nunca negou que tenha estabelecido relações comerciais com a sociedade insolvente X SHOES, Lda.

Alega ainda que não agiu com dolo.
Esta argumentação da recorrente, em nosso entender não colhe nem tem validade, perante a realidade processual ocorrida, analisada de acordo com um padrão médio de normalidade.
Qualquer pessoa que leia o requerimento de injunção na parte relativa à exposição dos factos percebe, sem esforço nem dificuldade, que embora a requerente seja a massa insolvente de X SHOES, Lda. e apesar de esta ter autonomia jurídica relativamente à X SHOES, Lda., o crédito que está a ser reclamado à recorrente não é originariamente da massa insolvente, mas sim da empresa que foi declarada insolvente, ou seja, da X SHOES, Lda. Em lado algum do requerimento de injunção se afirma que houve relações comerciais estabelecidas entre a massa insolvente e a recorrente das quais resultou uma dívida. O que se afirma é que essas relações comerciais ocorreram entre a empresa insolvente, que é a X SHOES, Lda., e a recorrente.
A massa insolvente apenas é a requerente porque, na sequência da insolvência da X SHOES, Lda. todo o património da insolvente, incluindo os créditos de que dispõe sobre terceiros, passaram a integrar essa massa insolvente sendo esta que passou a dispor de legitimidade para interpor ações judiciais com vista a obter a cobrança desses créditos.
Como é consabido, a massa insolvente é um património de afetação especial, um património separado adstrito à satisfação dos interesses dos credores que conforme estabelecido no n.º 1 do art. 46º do CIRE, se destina à satisfação dos credores da insolvência, uma vez satisfeitas as dívidas da massa insolvente, património esse que é integrado por todo o património do devedor insolvente à data da declaração de insolvência.
Como tal, os créditos de que seja titular o devedor insolvente, porque são elementos do seu património, após a declaração de insolvência passam a integrar a massa insolvente.
Conforme decorre do art. 81º, n.º 1, do CIRE, com a declaração da insolvência os poderes de administração e de disposição dos bens que integram a massa insolvente transitam imediatamente do devedor insolvente para o administrador de insolvência.
Por isso, em conformidade com estas disposições legais, e esclarecendo devidamente a situação na exposição efetuada no requerimento de injunção, a massa insolvente da X SHOES, Lda. veio pedir o pagamento à recorrente de uma dívida que esta tinha para com a X SHOES, Lda., e não para com a massa insolvente.
Como tal, não se mostra minimamente conforme ao princípio da cooperação com vista à obtenção com brevidade de uma justa composição do litígio nem ao princípio da boa fé vir apresentar uma argumentação como a expendida, de que nunca negou ter tido relações comerciais com a X SHOES, Lda. e que só negou ter tido relações comerciais com a massa insolvente, e que isso que não resulta em alteração da verdade porque são duas entidades distintas.
Partindo da linha de raciocínio da recorrente, nenhum interesse jurídico teria negar a existência de relações comerciais com a massa insolvente porque não está alegada a existência dessas relações comerciais. O que está alegado é a existência de relações comerciais entre a empresa insolvente, a X SHOES, Lda., e a ora recorrente.
Consequentemente, uma oposição com esse alcance e sentido sempre seria inócua e juridicamente irrelevante. Por isso, a posição assumida pela recorrente na oposição que deduziu constitui efetivamente uma negação de que manteve relações comerciais com a X SHOES, Lda. e o afirmado, em sede de recurso, de que a X SHOES, Lda. e a sua massa insolvente são entidades distintas, embora sendo verdadeiro, não passa de um subterfúgio para tentar justificar a real atitude assumida na oposição consistente na negação de existência de relações comerciais entre as duas empresas – a X SHOES, Lda. e a recorrente.
De todo o modo, vamos admitir, apenas e exclusivamente para efeitos de raciocínio, que a requerida não percebeu da leitura do requerimento de injunção que a alegação era relativa à X SHOES e que quando deduziu oposição se estava unicamente a referir à massa insolvente e foi unicamente quanto a esta que negou ter tido relações comerciais e que impugnou a falsidade das faturas.
De seguida, foi apresentado o requerimento aperfeiçoado no qual a requerente novamente explicou toda a situação e inclusivamente pediu a condenação da requerida como litigante de má fé por invocar a falsidade de factos que são do seu conhecimento e que são verdadeiros, tendo junto o extrato de conta corrente entre a X SHOES, Lda. e a requerida.
Perante esta nova e clara explicação feita pela requerente a recorrente manteve a mesma postura de negação pois, em resposta ao requerimento aperfeiçoado, designadamente na parte respeitante à litigância de má fé, nunca esclareceu, como se lhe impunha, que não teve relações comerciais com a massa insolvente mas que as teve com a X SHOES, Lda. Bem pelo contrário impugnou os arts. 3º a 15º desse articulado, nos quais se incluem os factos que se referem à existência de relações comerciais entre a empresa insolvente (X SHOES, Lda.) e a recorrente.
De seguida, quando foi junta a fatura emitida pela X SHOES, Lda. e na qual consta a recorrente, a mesma impugnou o teor do documento.
Portanto, e no que respeita à fase de articulados, toda a oposição da recorrente se baseou sempre na inexistência de relações comerciais e na consequente inexistência de qualquer dívida.
Ora provou-se, na sequência da confissão judicial, que houve relações comerciais entre as duas empresas, - a X SHOES, Lda. e a recorrente - e que a X SHOES, Lda. vendeu à recorrente os bens melhor identificados na fatura n.º FTR1800032, datada de 24/12/2018, no valor global de €31.980,00.
E, por isso, é para nós cristalino que a recorrente alterou a verdade dos factos e deduziu oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar.
E fê-lo de forma, senão dolosa, pelo menos gravemente negligente pois não podia ignorar a existência dessas relações comerciais e a emissão de faturas, designadamente da que é objeto dos presentes autos, posto que se trata de factos pessoais. Foi a própria legal representante da ré que aludiu ao negócio em causa dizendo que quando a X SHOES encerrou, o que situa nos anos de 2018 ou 2019, lhes comprou umas peles, tendo sido emitida uma fatura de cerca €30.000,00.
Mais revelador ainda da impossibilidade de desconhecimento das relações comerciais entre as duas empresas é o facto de haver uma grande proximidade entre ambas as sociedades pois, como a legal representante da recorrente declarou no seu depoimento, a X SHOES, Lda. tinha como gerente L. R., sua sobrinha, mas quem de facto geria a empresa era Paula Susana, mãe daquela, a qual também é sua sobrinha. Ou seja, não se trata de duas empresas anónimas, que estabelecem relações meramente comerciais, mas antes de duas empresas geridas por pessoas com relações de parentesco entre si, pelo que, de acordo com as regras da vida, a normalidade das coisas e a experiência comum, não é credível que a recorrente pudesse desconhecer as relações comerciais existentes, muito menos a que é objeto destes autos e que acabou por ser confessada no depoimento de parte prestado.
Pelo exposto, entende-se que a atuação da requerida foi pelo menos gravemente negligente, a mesma alterou a verdade dos factos e deduziu oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar, estando preenchidas as als. a) e b) do nº 2, do art. 542º, do CPC, justificando-se a sua condenação como litigante de má fé.
Assim, improcede esta questão recursória.

VI – Excesso ou desproporção do montante da multa

Como já supra deixámos dito, a multa por litigância de má fé pode oscilar entre 2 UC e 100 UC e na sua fixação deve ter-se em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste, como estabelecido no art. 27º, nºs 3 e 4, do RCP.
A multa por litigância de má-fé tem uma função repressiva de punição daquele que não cumpre com os deveres de boa-fé, lealdade, correção e cooperação processuais, e uma função preventiva visando evitar a prática de futuros comportamentos dessa natureza.
Por conseguinte, o tribunal deve fixar o montante que considere adequado, dentro dos aludidos limites, de modo a que a multa exerça efetivamente as aludidas funções repressiva e preventiva, norteando-se pelos critérios consagrados no art. 27º, nº 4, do RCP, fazendo uma análise casuística quanto aos concretos atos praticados pelo litigante de má fé, levando em linha de conta a sua natureza, gravidade, reiteração, tipo de culpa e demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.
Já supra expusemos a conduta assumida pela requerida ao longo do processo e a sua atitude gravemente negligente. Essa oposição infundada e alteração dos factos teve reflexos negativos no andamento do processo, retardando-o e fazendo com que em vez de se estar a discutir, como deveria, se a dívida estava ou não paga e em que medida, se tenha estado a averiguar e discutir a existência do próprio fornecimento de bens.
No entanto, a requerida acabou por confessar os factos quando ouvida em tribunal. Atendendo a todas as circunstâncias já referidas, ao grau de gravidade da atuação, à circunstância de terem sido negados factos pessoais de forma reiterada, à necessidade de desincentivar comportamentos idênticos e ainda à relação entre o valor da dívida e o montante da multa, considera-se mais adequada e proporcional a fixação da multa no montante de 20 UC, do que no montante de 50 UC que foi fixado na sentença recorrida.
Assim, procede parcialmente esta questão recursória, pelo que nesta parte revoga-se a sentença recorrida, reduzindo para 20 UC o valor da multa.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado parcialmente procedente, são recorrente e recorrida responsáveis pelo pagamento das custas, na proporção dos seus decaimentos, em conformidade com a disposição legal citada, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza a recorrida.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:
A) revogam parcialmente a sentença recorrida e reduzem para 20 UC a multa devida pela requerida Y, FABRICAÇÃO DE CALÇADO, LDA. relativa à sua condenação como litigante de má fé;
B) Quanto ao mais, confirmam a sentença recorrida.
Custas pela recorrente e pela recorrida, na proporção dos respetivos decaimentos, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza a massa insolvente de X SHOES, Lda.
Notifique.
*
Guimarães, 15 de junho de 2022.

Relatora – Rosália Cunha;
1.ª Adjunta - Lígia Venade;
2.º Adjunto - Fernando Barroso Cabanelas.