Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1631/12.1PBBRG.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: ACUSAÇÃO
NARRAÇÃO SUFICIENTE DOS FACTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/23/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – A norma do art. 283 nº 3 al. b) do CPP apenas impõe a obrigatoriedade da narração dos factos da acusação conter a indicação do lugar, do tempo e da motivação da sua prática, se tal for possível.
II – No crime de violência doméstica o que está normalmente em causa não é a punição autónoma de cada um dos atos que integram o conceito de violência doméstica, mas um comportamento reiterado. Balizando a acusação o período em que tal comportamento persistiu, com indicação do início e do fim do mesmo, mostra-se cumprida a exigência daquela norma quanto à indicação do «tempo».
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

No 3º Juízo Criminal de Braga, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. nº 1631/12.1PBBRG), foi proferida sentença que concluiu com a seguinte decisão (transcreve-se):
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Pelo exposto, decide-se:
a) Declarar inimputável perigoso o arguido Jacinto M... por ter praticado um facto ilícito típico p. e p. pelo art° 152° n"I a) e n~ CP e, em consequência, determinar o seu internamento em estabelecimento de segurança pelo período máximo de cinco anos, cuja execução se suspende, nos termos do art. 98 do CP (pelo período máximo de cinco anos, sem prejuízo da cessação imediata logo que se verifique estar cessada a necessidade de tratamento psiquiátrico ou medicamentoso do arguido), ficando sujeito ao dever de se submeter aos tratamentos psiquiátricos e medicamentosos que lhe forem prescritos, ao dever de se sujeitar à prestação de exames e observações, ficando ainda colocado sob vigilância dos serviços de reinserção social, que deverão traçar um plano individual adequado às suas circunstâncias pessoais, devendo ele acatar as directrizes que lhe vierem a ser assinaladas.
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O arguido Jacinto M... interpôs recurso desta sentença, suscitando as seguintes questões:
- argui a nulidade da acusação por não obedecer aos requisitos do art. 283 nº 3 al. b) do CPP;
- impugna a decisão sobre a matéria de facto;
- questiona o enquadramento jurídico dos factos; e
- a “pena aplicada”
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Respondendo, a magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.
Nesta instância, a magistrada do MP emitiu parecer no mesmo sentido.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):

1. O arguido Jacinto M... e Maria P... contraíram matrimónio em 13 de Janeiro de 1957.

2. Em data não concretamente apurada, mas seguramente há mais de 10 anos, o arguido, por sua decisão, deixou de dormir na mesma cama que a sua esposa.

3. A dada altura, há pelo menos 8 anos, o arguido alterou o seu comportamento para com a sua esposa Maria P... e, desde então, por ciúmes, de forma constante e repetida, praticamente todos os dias, no interior da residência do casal sita na Praceta Padre Diamantino Martins, nesta cidade e comarca de Braga, apelida-a de "puta ", "vaca" e "canhão ", afirmando ainda que tem amantes, atingindo-a assim na sua honra e consideração.

4. Para além disso, chegou a afirmar por várias vezes que um dia havia de lhe bater, assim causando à sua esposa receio de vir a concretizar tal mal futuro contra a sua pessoa, o que coarctou a sua liberdade de determinação.

5. E ainda no passado dia 24 de Agosto de 2012, cerca das 16 horas, no interior da residência do casal, o arguido Jacinto, dirigindo-se à sua esposa Maria, chamou-a de "puta ", "vaca ", "canhão" e disse-lhe que andava metida com outros, assim a atingindo na sua honra e consideração.

6. O arguido Jacinto, apesar de padecer de perturbação delirante crónica de ciúme há cerca de três décadas, quis actuar do modo supra descrito, sem que todavia fosse capaz de avaliar a ilicitude da sua conduta e de se determinar de acordo com essa avaliação.

7. Na verdade, o arguido sofre de uma perturbação delirante crónica e evolutiva, sendo por força de tal anomalia psíquica de que padece incapaz de efectuar um discernimento crítico da sua conduta e de se determinar em consonância com o mesmo.

8. Todavia, atenta a anomalia psíquica de que padece e considerando a gravidade do ilícito que lhe vai imputado, que leva imanente uma reiteração no tempo das condutas ilícitas contra a sua esposa Maria P..., é fundado o receio de o arguido vir a cometer novos factos idênticos aos supra relatados, sendo provável a sua repetição caso não seja objecto de tratamento psiquiátrico.

Mais se provou:

9. O arguido Jacinto M... não tem antecedentes criminais.

10. Encontra-se reformado, auferindo de pensão de reforma cerca de €900,00 mensais.

11. É casado.

12. Não tem filhos a cargo.

13. Vive em casa arrendada, pagando de renda cerca de €250,00 mensais.


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Transcreve-se igualmente a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto:

O arguido Jacinto M... recusou-se a prestar declarações no uso de um direito que, por lei, lhe assiste, à excepção dos factos respeitantes à sua situação pesssoal e económica.

Assim, a convicção do tribunal quanto aos elementos constitutivos do crime e ao modo como foi cometido baseou-se, antes de mais e sobretudo, nas declarações da própria ofendida Maria P..., a qual teve um depoimento preciso, seguro, circunstanciado e, por conseguinte, bastante credível, descrevendo o seu casamento com o arguido, o facto de, há cerca de 8 anos, ele ter alterado o seu comportamento, as expressões insultuosas que lhe passou a dirigir, por ciúmes, no interior da casa de morada de família e a sua frequência (praticamente diária), para além de a ter ameaçado que lhe batia.

A ofendida relatou ainda o sucedido no dia 24 de Agosto de 2012.

Em segundo lugar, levaram-se em conta os depoimentos das testemunhas Maria G... e Maria M..., filhas do casal constituído pela ofendida e pelo arguido, as quais, de forma serena, precisa e coincidente no essencial, esclareceram que, por diversas vezes e de alguns anos a esta parte, presenciaram o seu pai a insultar a sua mãe, apelidando-a de "puta", "vaca" e "canhão ", acusando-a de ter amantes, tendo ainda conhecimento de ameaças de agressão fisica. Salientaram que o arguido, obcecado com o facto da ofendida poder ter amantes, persegue-a na rua na expectativa de confirmar tais suspeitas.

Dando mostras de um considerável discernimento, atribuem o comportamento do arguido a problemas mentais que se foram agravando ao longo do tempo, frisando que a única coisa que pretendem é que ele se trate.

As testemunhas José L... e Júlio S..., que foram colegas de trabalho do arguido, não demonstraram conhecimento dos factos em causa nos presentes autos, limitando-se a considerações vagas e genéricas sobre a sua personalidade.

Quanto aos factos atinentes à situação psiquiátrica do arguido Jacinto M..., baseou-se o tribunal no relatório psiquiátrico de fls 49 a 51 ,devidamente examinado em sede de audiência de julgamento.

Levou-se ainda em conta a certidão do assento de casamento de fls 22 a 24.

Quanto à situação pessoal, familiar e económica do arguido, as suas declarações, as quais, à falta de outros elementos, se mostraram credíveis.

No que concerne aos antecedentes criminais do arguido, o CRC de fls 72.


FUNDAMENTAÇÃO

1 – A nulidade da acusação por não obedecer aos requisitos do art. 283 nº 3 al. b) do CPP

Dispõe a norma invocada que a acusação deve conter, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética, dos factos (…), incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática…”.
Alega o arguido que “a descrição factual é demasiado genérica para sustentar a indiciação pela prática de um crime tão gravoso, como a violência doméstica. Com efeito, as afirmações de “puta, vaca e canhão” e as afirmações de que tem amantes e de que lhe há-de bater, só por si, sem referência às circunstâncias e ao contexto em que foram proferidas, não são reveladoras nem indiciam a prática de um crime de violência doméstica, apesar de proferidas quase todos os dias e desde 1995”.
Mais alega (referindo-se implicitamente ao facto provado nº 5) que “a simples prática de crime de ofensa à integridade física simples, ameaça, ou injúria, não configura um crime de violência doméstica só por a vítima ser cônjuge, ou ex-cônjuge, do agente”.
Ao assim alegar, o recorrente mistura duas questões. A primeira, é a da nulidade decorrente da falta de narração de factos na acusação. A outra, é a de saber se os factos narrados são suficientes para sustentar uma condenação (ou, no caso, o juízo de que foi praticado um facto ilícito típico). O que constitui nulidade é só a «falta» de narração de factos. A sua «insuficiência» tem como consequência a improcedência da acusação.
Vejamos, pois, quanto à nulidade.
O que está em causa, não é a punição autónoma de cada um dos atos que integram o conceito de violência doméstica (caso em que, sob pena de se postergar os direitos de defesa, normalmente, teriam de ser indicadas as circunstâncias de tempo, modo e lugar de cada um deles), mas um comportamento reiterado ao longo dos anos. A acusação balizou o tempo em que tal comportamento persistiu – desde meados de 1995. Sendo esse comportamento reiterado que foi submetido a julgamento, e não cada um dos atos em que se materializou, foi cumprida a norma do art. 283 nº 3 al. b) do CPP.
Há comportamentos, sancionados pelo direito, em relação aos quais não é humanamente exigível a concretização, quanto a dia e hora, de todos os atos que o integram. Deixa-se um exemplo: se um merceeiro for acusado de, durante o período de um ano, vender determinado produto alimentar avariado, não é exigível que cada um dos clientes indique em que dia e hora foi à mercearia (onde eventualmente ia todos os dias) comprar o produto em causa. As regras da experiência indicam-nos que a quase totalidade dos compradores não seria capaz de concretizar esse pormenor, embora possam afirmar que foi durante determinado período que fizeram a aquisição. O ordenamento jurídico é um todo harmonioso, não sendo pensável que o direito penal substantivo puna um comportamento, que, depois, seria indemonstrável face às regras do direito processual.
É assim também nos casos do crime de violência doméstica em que houver a imputação de comportamentos reiterados. Foi para prevenir situações como as descritas que a norma do art. 283 nº 3 al. b) do CPP impõe que as concretizações nela indicadas apenas serão feitas «se possível». Em todo o caso, a acusação balizou minimamente o comportamento no tempo e no espaço, bem como a motivação para o mesmo: ocorreu a partir de meados de 1995, no interior da residência do casal, tendo sido motivado por “ciúmes”.
Improcede, pois, a arguida nulidade da acusação.
Quanto à «insuficiência» dos factos para se considerar preenchida a previsão do tipo legal, tratar-se-á mais à frente.

2 – A impugnação da decisão sobre a matéria de facto

A impugnação limita-se aos factos provados sob os nºs 6, 7 e 8, para cuja prova foi nuclear o conteúdo do relatório pericial do INML, que está junto a fls. 49 e ss, que concluiu, nomeadamente, que o recorrente sofre de “perturbação delirante crónica de ciúme desde há cerca de três décadas” e que “esta perturbação constitui uma anomalia psíquica grave que incapacita o examinando de avaliar a ilicitude dos atos por si praticados e de se determinar de acordo com essa avaliação pelo que deve ser considerado inimputável”.

São de duas ordens as razões invocadas pelo recorrente, a saber:

a) O relatório “não foi examinado (…) em sede de julgamento, pelo que sobre as condições desse relatório não foi exercido o contraditório. Nem o arguido poderia exercer o pretendido direito ao contraditório, pela razão simples de o responsável técnico pela elaboração não ter sido notificado para comparecer em julgamento…”.

Nesta parte, o recorrente esgrime contra jurisprudência que, tanto quanto se sabe, é uniforme.

Assim, porque as decisões judiciais não devem ser pretexto para alardes de falsa erudição, apenas se referirá o seguinte:

Dispõe o art. 355 nº 1 do CPP que “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”. Tem sido jurisprudência constante do nosso mais Alto tribunal que os documentos constantes do processo consideram-se produzidos em audiência independentemente da sua leitura, sendo irrelevante que as atas sejam omissas quanto aos que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. Os documentos juntos aos autos são provas que, forçosamente, estão presentes na audiência e submetidas ao contraditório, sem necessidade de serem lidas, já que as partes têm conhecimento do seu conteúdo. Várias decisões do STJ neste sentido são referidas por Maia Gonçalves em anotação ao mencionado art. 355 do CPP.
Neste sentido ver também o acórdão do Tribunal Constitucional de 2-3-2010, proferido no Proc. n.º 691/2010, nos termos do qual aquele tribunal não julgou inconstitucional a norma, extraída, por interpretação, dos artigos 355º, n.º 1, 327º, n.º 2, e 340º, n.º 2, todos do CPP, segundo a qual o tribunal pode suportar uma decisão condenatória num documento que, embora integre os autos desde o inquérito, não foi indicado na acusação, nem tão-pouco apresentado e discutido na audiência de julgamento, quando esse documento seja o relatório da colheita e análise de sangue para quantificação da taxa de álcool, elaborado pelo agente de autoridade que conduziu o arguido ao estabelecimento de saúde e assinado pelo próprio arguido e pelo médico.
b) “o relatório pericial limita-se a indicar as conclusões a que o perito chegou, sem que as mesmas se mostrem fundamentadas”.
Só uma leitura apressada do relatório de perícia de fls. 49 e ss pode explicar estar alegação.
Antes das “conclusões” o relatório debruça-se sobre os “antecedentes pessoais e familiares” do examinando, os seus “hábitos de consumo”, a “história dos factos na versão do examinando” e sobre o “exame do estado mental”.
Os desembargadores, naturalmente, não têm conhecimentos específicos para ajuizarem se estas premissas permitem as conclusões a que o perito chegou (cfr. art. 163 nº 1 do CPP). Porém, conhecedor do conteúdo do relatório, se as conclusões face às premissas lhe suscitassem dúvidas, o recorrente podia ter suscitado a presença do perito, ou a realização de nova perícia, fundamentando a sua pretensão (art. 158 do CPP), ou, da forma que entendesse mais conveniente, argumentar no sentido de convencer da existência de erros, nomeadamente arrolando o depoimento de médico especialista. Não pode é, depois de ter tido um comportamento passivo até ao final da audiência, vir suscitar questões que deviam ter sido apresentadas ao tribunal recorrido.
Tem-se, assim, por definitivamente assente a matéria de facto fixada pela primeira instância.
3 – O enquadramento jurídico
Nesta parte, toda a argumentação pressupõe a procedência das questões acima tratadas nos pontos 1 e 2 da fundamentação deste acórdão.
Ainda assim, dir-se-á o seguinte, resumidamente:
Na “violência doméstica”, essencial, é que haja um comportamento que, quando considerado globalmente, permita a formulação do juízo de que, quem o teve, manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou desconsideração pela vítima. Esse comportamento, muitas vezes, decompor-se-á em atos que, quando considerados isoladamente, constituem crime, mas tal não é necessário, nomeadamente quanto aos maus tratos psíquicos.
Por outro lado, se for imputado um comportamento reiterado, é indiferente, para que se possa afirmar estarem verificados os elementos típicos, determinar com exatidão quantas vezes foi ocorreu o comportamento. O que está em causa, não é a punição autónoma de cada um dos atos, mas um comportamento reiterado ao longo do tempo. A sentença balizou as circunstâncias em que persistiu o comportamento descrito – restringiu-o aos últimos oito anos (facto nº 3).
Posto isto, considerando a matéria concretamente provada, o facto nº 5 não é decisivo, nem ganha relevância autónoma. É só a concretização de um episódio, idêntico a outros que ocorreram nos últimos oitos anos.
Finalmente, não pode deixar de ser formulado o juízo de que é motivado por sentimentos de desprezo, desejo de humilhar, ou desconsideração, o comportamento de um cônjuge que, ao longo de oito anos, praticamente todos os dias, apelida o outro de "puta ", "vaca" e "canhão ", afirmando ainda que tem amantes e que lhe havia de bater. Não se vê mesmo que outro juízo poderia ser feito.
Assim, sem necessidade de mais considerações, os factos integram a previsão do tipo objetivo do crime de violência doméstica.
4 – A “pena aplicada
Uma primeira nota: ao contrário do que parece ser o entendimento do recorrente, não foi condenado numa “pena”, mas sujeito a uma “medida de segurança”.
A alegação resume-se ao seguinte: “A pena aplicada, mostra-se manifesta e completamente desajustada, atentas as condições do respetivo agente, um indivíduo de oitenta anos e sem antecedentes criminais”.
Nesta parte, verdadeiramente, o recurso não tem objeto.
É que, alegar não é só afirmar que se discorda da decisão recorrida, mas sim atacá-la, especificando não só os pontos em que se discorda dela, mas também as razões concretas de tal discordância. Como referem Simas Santos e Leal Henriques em Recursos em Processo Penal, pag. 47, “Os recursos concebidos como remédios jurídicos (...) não visam unicamente a obtenção de uma melhor justiça, tendo o recorrente que indicar expressa e precisamente, na motivação, os vícios da decisão recorrida, que se traduzirão em error in procedendo ou in judicando”.
Os antecedentes criminais nada têm a ver com a decisão de se aplicar uma medida de segurança, nem foram invocados na sentença para fundamentar a decisão. O arguido nada alega em concreto, por exemplo, sobre a inadmissibilidade da medida decidida, a desproporção da mesma, ou a violação do período máximo legalmente permitido.
Improcede, pois, o recurso.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso confirmando a sentença recorrida.
O recorrente pagará 3 UCs de taxa de justiça.