Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
47/14.0TAPTL.G1
Relator: JOÃO LEE
Descritores: ADMOESTAÇÃO
REQUISITOS DE APLICABILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário: I) São requisitos da aplicabilidade da medida de admoestação, previstos no artº 60º, do Código Penal, que o tribunal tenha fixado para o caso concreto uma pena de multa não superior a 240 dias; que tenha havido reparação do dano causado pelo arguido, que seja possível antecipar que a mera advertência do arguido seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.

II) Na conformação deste juízo de prognose, o tribunal deverá ter presente ainda uma condição de natureza negativa, referente ao comportamento anterior do arguido: "em princípio", a sanção de admoestação não deve ser aplicada se o agente sofreu alguma condenação penal no período de três anos anteriores ao facto.

III) Atendendo ao circunstancialismo que envolveu a prática da infracção, tem de concluir-se, no caso dos autos, que a gravidade dos factos e o juízo de censurabilidade da conduta da arguida se revelam de uma intensidade mediana, mas significativa.

IV) Por isso, a aplicação desta medida, in casu, não corresponde a exigências mínimas de tutela do ordenamento jurídico, nem às concretas necessidades de prevenção especial, tendo em conta que as exigências de reposição da confiança e de tranquilização da consciência jurídica são muito relevantes nos crimes contra a administração da justiça.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Nestes autos de processo comum nº 47/14.0TAPTL e após a realização da audiência de julgamento, o tribunal singular da Instância Local de Ponte de Lima da Comarca de Viana do Castelo condenou a arguida Ana P., pela prática do crime de falsidade de testemunho, previsto no artigo 360.º, n.º 1 e 3 do Código Penal, na pena de cento e oitenta dias de multa, à razão diária de cinco euros.

Inconformado, a arguida interpôs recurso e das motivações extraiu as seguintes conclusões (transcrição):

“a) As declarações não verdadeiras da arguida ao afirmar que era ela que conduzia o velocípede fê-lo , não com a intenção de impedir a realização da justiça, mas na tentativa de minorar a pena do arguido.

b) A arguida é uma mulher do campo, submissa á direcção masculina, receosa da atitude deste e com a ideia gerada pelo próprio meio onde foi educada, de que a função da esposa, é sempre defender o marido.

c) Jamais teve a intenção de praticar qualquer crime, de prejudicar a realização da justiça, pois , fê-lo numa posição de submissão ao marido.

d) Não tinha por objectivo enganar o Tribunal, mas responder ao seu dever de esposa- defender o seu marido .

e) obediência cega , numa cultura do interior, de uma aldeia minhota, em que , a esposa faz o que o marido lhe manda .

f) A recorrente, é pessoa humilde, com escolaridade básica, é domestica, vive com dificuldades económicas, com uma pensão de reforma da sua filha, vivendo deste rendimento fixo, o marido, a filha, um filho menor , a neta e ela própria, com dificuldades financeiras , não tendo o alcance das suas declarações ..

g) E tem sofrido de depressão, que afectam a sua saúde física e psíquica .

h) Deve entender-se que , o crime constitui um crime de perigo abstracto e um crime de mera actividade, mas a declaração falsa, não consubstancia a pratica de um crime, quando a testemunha fôr esposa do arguido e prestar falsa declaração .

i) Designadamente num crime de condição de ciclomotor sem habilitação legal.

j) Devendo entender-se que a arguida não goza de total independência subjetiva e objetiva , que lhe permita ter a consciência da licitude na prática do crime de falsas declarações, afirmando ser ele a condutora do ciclomotor, para o que detinha habilitação legal, em vez do marido que a não possuía., impondo se a sua absolvição .

k) não deixa de ter aplicação a causa de justificação da licitude , perante tal afirmação , subjugada ao domínio do marido e á intrínseca obrigação de defesa do marido e família.

l) Sendo permitido, por essas razões, que o cônjuge se recuse a prestar declarações que in criminem o outro, quando este seja julgado..

m) O que leva á absolvição da arguida ou no mínimo á isenção da pena ou a uma pena de admoestação.

n) Não é apenas legitima a recusa de depôr, mas deve entender-se que a inverdade das suas declarações é altamente justificável pelos sentimentos de submissão e família que a prendem ao arguido.

o) O valor da condenação , pelo crime praticado, é altíssimo, para os seus escassos rendimentos familiares, que põe em risco a sobrevivência , não só da recorrente, mas de todos os que compõem o agregado, mormente, a filha incapaz, o filho menor e a neta menor .

p) Ocorrendo a sua condenação, numa punição extensível a toda a família que certamente é possível evitar .

q) É um valor, pesado, mesmo que seja pedido o pagamento em prestações, deixando este agregado familiar em dificuldades de sobrevivência.

r) Sendo deste modo, a media da pena elevada, deve, a ser condenada, optar-se por uma pena mais leve, nunca superior, em termos económicos a 400,00 euros.

s) Impõem-se por isso absolvição da arguida, por ter atuado numa submissão ao marido, em defesa deste e da família, ou isentar- se de pena, fazendo ainda , caso assim se não se entenda, a sua condenação na pena de admoestação, ou mesmo, a redução da pena de multa em que foi condenada.

t) A mui douta decisão violou os normativos do artº 360º do CP, 73º, 74º e s do CP e ainda os princípios de equidade e de causas de exclusão da ilicitude.”

O Ministério Público, por intermédio da magistrada na Instância Local de Ponte de Lima, formulou resposta, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos e emitiu parecer, concluindo que o recurso da arguida deverá ser julgado improcedente, mantendo-se integralmente a sua condenação e a pena aplicada.

Recolhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. O objecto e o âmbito do recurso definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal - naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

Impõe-se notar que a recorrente não formula qualquer impugnação da decisão em matéria de facto, nem pela invocação de qualquer um dos vícios decisórios do artigo 410.º, nem no plano consentido e regulado no artigo 412.º, ambos do Código do Processo Penal. As questões a resolver consistem em saber se se verifica causa de exclusão de ilicitude e, no caso negativo, se deve ser aplicada admoestação, dispensa de pena ou pena de multa.

3. O tribunal judicial de primeira instância julgou provada a seguinte matéria de facto (transcrição) :

“1. No dia 19 de Dezembro de 2013, cerca das 11h00, a arguida foi ouvida como testemunha, neste Tribunal, nesta comarca, no âmbito dos autos do Processo Crime nº. 377/13.8GAPTL, e no qual era imputado ao ali arguido Manuel M., seu marido, a prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nº1 do DL2/98.

2. A ora arguida foi advertida pelo Mmo. Juiz que presidia à audiência de Julgamento de que estava obrigada a responder com verdade às perguntas que lhe iam ser feitas sobre a matéria dos autos, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal.

3. Em tal depoimento a arguida declarou, para além do mais, que, nas circunstâncias de tempo e lugar em discussão naqueles autos, era ela quem conduzia o ciclomotor e não o marido.

4. Ao prestar tal depoimento, a arguida inventou factos que sabia serem relevantes para a decisão da causa, nomeadamente da condenação/ absolvição do arguido, apesar de bem saber que acabara de prestar juramento e que tinha a obrigação de dizer a verdade, relativamente aos factos de que tinha conhecimento.

5. Com a prestação desse depoimento, nos moldes em que o fez, a arguida pretendeu impedir ou, pelo menos, dificultar a realização da Justiça, tentando criar no espírito de quem tinha que julgar o caso a convicção de que o arguido não tinha tripulado o ciclomotor, e, por conseguinte, não tinha praticado o crime pelo qual vinha acusado.

6. Tinha a arguida perfeita consciência de que as declarações por si prestadas em depoimento prestado perante Tribunal eram falsas e não obstante, agiu livre voluntária e conscientemente, com o propósito de prejudicar a administração da Justiça.

7. Bem sabia a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Mais se provou que:

- a arguida tem os antecedentes criminais que constam do CRC junto a fls. 141 e ss.

- é doméstica.

- o marido encontra-se desempregado e não recebe subsídio de desemprego.

- vive com o marido, uma filha, um filho menor e um neto menor.

- a filha aufere 410,00€ mensais a título de reforma de invalidez.

- vive em casa pela qual paga 160,00€ mensais, a título de amortização de empréstimo bancário.”

4. A arguida recorrente pretende ver excluída a ilicitude da sua conduta ou dirimida a culpa invocando um conjunto de factos ou circunstâncias referentes à motivação da sua conduta, à sua personalidade e ao relacionamento familiar.

Porém, todas essas circunstâncias não encontram o mínimo fundamento no conjunto dos factos discutidos na audiência de julgamento e que o tribunal de primeira instância julgou provados. Se a recorrente pretendia ver modificada a condenação tendo em conta essas considerações, então deveria ter especificado os factos incorrectamente julgados e deveria ter indicado as concretas provas que impunham uma decisão diferente.

Em nossa apreciação, não existe vício decisório nem fundamento para alteração da decisão e a matéria de facto provada evidencia que a arguida agiu de forma voluntária e consciente, com pleno conhecimento da ilicitude da sua conduta.

5. A opção do tribunal por uma dispensa de pena, admitida no artigo 364.º do Código do Processo Penal) depende da verificação cumulativa dos requisitos previstos nas três alíneas do n.º 1 do artigo 74.º do mesmo compendio normativo, ou seja, que a ilicitude e a culpa sejam diminutas, que o dano já tenha sido reparado e que à dispensa de pena não se oponham razões de prevenção .

No caso concreto, não se verifica nenhum destes requisitos: nos termos constantes da matéria de facto provada, nenhum elemento existe que possa fundamentar uma ilicitude diminuta ou uma culpa mitigada da arguida. Ao mesmo tempo, a profusão de crimes desta natureza na nossa sociedade e os correspondentes efeitos nocivos na administração da justiça levam-nos a concluir que as exigências de reprovação e de prevenção geral desaconselham frontalmente a aplicação da dispensa de pena.

6. O tribunal recorrido optou pela pena de multa prevista em alternativa no preceito incriminador e concluiu que a arguida deve beneficiar de atenuação especial por ter cometido o crime de falsidade de testemunho para evitar que o marido fosse condenado pelo crime de condução de veículo sem habilitação legal.

Como se encontra adquirido pela doutrina e jurisprudência, na determinação da medida concreta da pena, o tribunal deve atender à culpa do agente, que constitui o limite inultrapassável da pena a aplicar, sob pena de, ultrapassando-o, se afrontar a dignidade humana do delinquente. Por seu turno, o limite mínimo da moldura concreta há-de ser dado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e pretende corresponder a exigências de prevenção positiva ou de integração.

Assim, esse limite inferior decorrerá de considerações ligadas às exigências de prevenção geral, não como prevenção negativa ou de intimidação, mas antes como prevenção positiva ou de integração, já que a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos com um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade e vigência das normas infringidas. Estão em causa a integração e reforço da consciência jurídica comunitária e o seu sentimento de segurança face às ocorridas violações das normas.

Finalmente, o tribunal deve fixar a pena concreta de acordo com as exigências de prevenção especial, quer na vertente da socialização, quer na advertência individual de segurança ou inocuização do delinquente Dias, Jorge de Figueiredo As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 1995, págs. 228 e segs, Rodrigues, Anabela Miranda, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora pag. 570 a 576 Jescheck, HH Tratado, Parte General , II, pag. 1189 a 1199.

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Os factores concretos de medida da pena, enunciados de forma exemplificativa no artigo 71º nº 2 do Código Penal, compreendem quer circunstâncias referentes à execução do facto, quer relativas à personalidade do agente e, por último, as circunstâncias que relevam da conduta do agente anterior e posterior ao facto.

Entre os elementos referentes à execução do facto incluem-se realidades tão distintas quanto o grau de ilicitude do facto, o modo de execução, os danos causados, os sentimentos, motivos e fins do agente manifestados no facto.

Os elementos a considerar no caso vertente são os seguintes:

- A arguida revelou vontade delituosa de mediana intensidade ao longo da audiência de julgamento e agiu sob dolo directo;

- O desvalor do resultado não assume particular relevância, uma vez que a versão dos factos exposta falsamente pela arguida não mereceu acolhimento do tribunal e o seu marido foi condenado pelo cometimento do crime de condução ilegal ;

-A arguida beneficia de integração familiar, mas regista antecedentes criminais.

- As exigências de prevenção geral são elevadas, pela profusão na nossa sociedade de crimes desta natureza.

Sopesando em conjunto os elementos enunciados e no quadro de uma moldura abstracta com um mínimo de 10 e um máximo de 400 dias, o tribunal recorrido, optando pelos cento e oitenta dias, fixou a pena perfeitamente adequada para as exigências de tutela dos bens jurídicos e as concretas necessidades de prevenção especial, assim como ainda consentida pela culpa exteriorizada nos factos.

7. Afigura-se-nos liminarmente afastada a hipótese de aplicação de uma mera admoestação:

São requisitos da aplicabilidade desta medida, previstos no artigo 60.º do Código Penal, que o tribunal tenha fixado para o caso concreto uma pena de multa não superior a 240 dias; que tenha havido reparação do dano causado pelo arguido, que seja possível antecipar que a mera advertência do arguido seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição ou seja, para garantir a tutela dos bens jurídicos e a reinserção do agente na sociedade. Na conformação deste juízo de prognose, o tribunal deverá ter presente ainda uma condição de natureza negativa, referente ao comportamento anterior do arguido: “em princípio”, a sanção de admoestação não deve ser aplicada se o agente sofreu alguma condenação penal no período de três anos anteriores ao facto (n.º 3 do artigo 60.º do C.P.).

Atendendo ao circunstancialismo que envolveu a prática da infracção, tem de se concluir que a gravidade dos factos e o juízo de censurabilidade da conduta da arguida se revelam de uma intensidade mediana, mas significativa. A aplicação desta medida no caso destes autos não corresponde a exigências mínimas de tutela do ordenamento jurídico, nem às concretas necessidades de prevenção especial, tendo em conta que as exigências de reposição da confiança e de tranquilização da consciência jurídica são muito relevantes nos crimes contra a administração da justiça.

8. Conforme o disposto no nº 2 do art. 47º do Código Penal, a razão diária da multa deve ser fixada entre o montante de 5 € e de 500 € , que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

A norma do Código Penal não indica os critérios para a determinação daquela situação económica relevante, nem sequer sugere algum princípio de orientação, sendo de admitir que o juiz contabilize o que se possa apurar desde logo quanto à totalidade dos rendimentos próprios do condenado, qualquer que seja a origem, devendo deduzir-lhes os gastos com impostos, prémios de seguro e encargos análogos, assim como os deveres e obrigações, sendo ainda possível ter em conta o património ou riqueza do condenado, na parte em que aquele património se revele disponível ou transaccionável;

Em qualquer caso, a condenação em multa de natureza criminal tem necessariamente de traduzir uma efectiva censura do facto, de corresponder às expectativas da comunidade na validade e vigência das normas jurídicas e, por isso, de significar um sacrifício real ao arguido.

No caso concreto, o tribunal de primeira instância fixou a razão diária no mínimo legal e recorre apenas a arguida, pelo que nada há a alterar neste âmbito

9. A arguida decaiu no recurso que interpôs e deverá ser responsabilizada pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal). De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça a fixar a final varia entre três e seis UC. Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em quatro UC.

10. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso e em manter na íntegra a sentença recorrida.

Condena-se a arguida nas custas do recurso, com quatro UC de taxa de justiça.

Guimarães, 2 de Maio de 2016.

Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.