Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5242/20.0T9BRG.G1
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: CRIME DE BURLA TRIBUTÁRIA
ACORDOS DE COOPERAÇÃO
DECRETO-LEI N.º 126-A/2021
CONTRA-ORDENAÇÃO
DESCRIMINALIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- O Decreto-Lei n.º 126-A/2021, de 31 de Dezembro, procedeu à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março, introduzindo a comunicação prévia como forma de autorização de funcionamento dos estabelecimentos de apoio social. De igual modo alargou o leque das condutas tipificadas como infracções graves, acrescentando ao artigo 39.º-C, a alínea f) com o seguinte teor: “A inexistência de comunicação mensal de dados ou a comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação”. Com esta nova alínea o legislador pretendeu regular a comunicação de dados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação, independentemente do resultado, o que antes não sucedia.

II- Para a verificação da contra-ordenação basta, portanto, a omissão da comunicação ou a simples comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação, enquanto que a verificação do crime de burla tributária exige que a comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação, esteja associada ao propósito de determinar a Segurança Social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro, como sucedeu no caso concreto

III- A tipificação da contra-ordenação não conduz ao esvaziamento do ilícito criminal porque há situações que poderão ser enquadráveis apenas na prática do ilícito de mera ordenação social, designadamente os casos em que se verifiquem todos os elementos do tipo objectivo do ilícito penal (a conduta fraudulenta mediante falsas declarações, o erro da AT ou Administração da Segurança Social, o respetivo nexo de causalidade, e a realização da atribuição patrimonial, com o consequente enriquecimento do agente) mas a actuação caia no âmbito da negligência, as situações em que, verificando-se a actuação dolosa, o propósito do agente seja distinto da determinação da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte o enriquecimento para o agente ou para o terceiro ou as situações de mero erro de cálculo dos utentes comunicada ao ISS, IP, em benefício ou em prejuízo da instituição.

IV- Conclui-se, pois, que com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 126-A/2021, de 31/12, que alterou o Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14/03, introduzindo a alínea f) do artigo 39.º-C, não se operou a descriminalização da conduta pela qual os arguidos foram acusados e condenados nos autos.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1. No processo comum singular n.º 5242/20.0T9BRG, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Local Criminal ... - Juiz ..., realizado o julgamento, foi proferida sentença em 02-10-2023, depositada na mesma data, com o dispositivo seguinte (transcrição):
«Por tudo o exposto, decide-se julgar procedente a acusação do Ministério Público e, por consequência:
a) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de burla tributária, previsto e punível, pelo artigo 87.º, n.ºs 1 e 3 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, na pena de 3 (três) anos de prisão;
b) Suspender a execução da pena de prisão referida em a) por igual período de 3 (três) anos, subordinada à condição do pagamento ao Instituto da Segurança Social, I.P., no referido período, da quantia mínima de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros).
c) Condenar o Centro Social e Paroquial de ... pela prática de um crime de burla tributária, previsto e punível, pelo artigo 87.º, n.ºs 1 e 3 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, na pena de 900 (novecentos) dias de multa, à taxa diária de 5,00 €, o que perfaz a quantia de 4.500,00 € (quatro mil e quinhentos euros);
d) Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil formulado nos autos e, por consequência condenar os arguidos AA e Centro Social e Paroquial de ... a pagar ao demandante Centro Distrital de ... do Instituto de Segurança Social IP a quantia de 499.070,10 € (quatro centos e noventa e nove mil setenta euros e dez cêntimos) acrescidos de juros de mora, à taxa legal supletiva de 4%, desde a data da atribuição das comparticipações patrimoniais indevidas por parte do ISS, IP e sobre os respetivos montantes até integral pagamento.
e) Condenar os arguidos nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça devida por cada um deles em 2 UC, já reduzida a metade por força da confissão – artigos 344.º, n.º 2, alínea c) e 513.º, n.ºs 1 a 3 do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa do Regulamento das Custas Processuais.
Notifique.
Após trânsito:
Remeta boletins ao Registo Criminal.
Vai proceder-se ao depósito da presente sentença na secretaria do Tribunal, conforme disposto no artigo 372.º n.º 5 do Código de Processo Penal.»
2. Inconformados com a decisão, recorreram os arguidos AA e Centro Social e Paroquial de ..., formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
«1. Os Recorrentes não se conformam e não concordam com a Sentença proferida, mais concretamente no que se refere à não descriminalização dos crimes que lhe são imputados por via da aplicabilidade do Decreto-Lei n.º 126-A/2021, de 31 de Dezembro, que alterou o Decreto-lei n.º 64/2007, de 14 de Março e que determinou que os factos de que os arguidos vinham acusados passaram a ser mera contraordenação.
2. Foi publicado o Decreto-Lei n.º 126-A/2021, de 31 de Dezembro, que alterou o Decreto Lei n.º 64/2007, de 14 de Março e que nesta medida instituiu um novo comportamento como contraordenação, designadamente no artigo 39-C (alínea f) para o presente caso).
3. Tal norma entrou em vigor no dia 10 de Janeiro de 2022 (art.9 º do citado diploma) e determinou que “a comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação” passa a ser considerada contra ordenação, verificando-se assim uma descriminalização dos factos de que são acusados os arguidos nos presentes autos.
4. O que faz com que a presente imputação criminal deixe de ter fundamento legal.
5. Deste modo, inexistindo normativo de índole criminal que puna os alegados comportamentos dos recorrentes, deveria ter sido declarado extinto o procedimento criminal, bem como o respetivo pedido de indeminização civil.
6. No âmbito do processo-crime n.º 1238/20...., que correu termos no Juízo Local Criminal ... - Juiz ... foi proferida promoção e decisão, sobre a matéria em causa e na qual foi partilhado o mesmo entendimento dos recorrentes.
7. Constitui doutrina e jurisprudência devidamente assente que quando um comportamento passa a constituir ilícito de mera ordenação social, por força das alterações legislativas, dá-se como verificada a descriminalização da conduta.
8. A contraordenação é uma infração de natureza administrativa, distinta na sua natureza essencial e nos fins do seu sancionamento (punição) da infração penal.
9. Ora, desta forma não restam dúvidas de que a conversão legislativa de uma infração penal numa contraordenação constitui uma despenalização da respetiva conduta e, necessariamente, tem eficácia retroativa.
10. Não se trata, pois, de uma verdadeira sucessão de leis penais, não intervindo, assim, o princípio da lexmitior, mas o princípio da lei despenalizadora extintiva da responsabilidade penal.
11. Ressalva-se, naturalmente, a situação em que a lei que altera a qualificação do facto de crime para contraordenação estabelece, mediante norma transitória, a sua aplicabilidade às ações praticadas antes do seu início de vigência, o que não acontece no presente caso.
12. Os recorrentes atendendo aos factos de que vêm acusados, à nova redação do artigo 39.º-C do Decreto-Lei n.º 126-A/2021, de 31 de Dezembro, aos princípios basilares que regem o Código Penal, Processo Penal bem como aqueles que regem a aplicação das penas, tal teria sempre de culminar na extinção do procedimento criminal e PIC deduzidos contra os recorrentes.
13. Os Recorrentes vinham acusados nos presentes autos de vários crimes sustentados, todos eles, em factos relacionados com erro das listagens dos utentes inscritos e frequentadores das respostas sociais (1. Erro quanto ao número de valências frequentadas pelos utentes nas listas enviadas – artigo 5 a 10. da acusação. 2. Erro quanto à identificação dos utentes, tendo sido identificados utentes que nunca frequentaram, a resposta social comparticipada – artigo 11. da acusação. e 3. Erro por envio de utentes nas listas, que já haviam falecido, recentemente. – artigo 12. da acusação).
14. Todos os factos de que os recorrentes vêm acusados e que estes não põem em causa que os mesmos tenham ocorrido, ainda que de forma não intencional, cabem todos eles sem exceção no disposto na alínea f) do artigo 39-C do Decreto-Lei n.º 126-A/2021, de 31 de Dezembro, que alterou o Decreto-lei n.º 64/2007, de 14 de Março.
15. Assim sendo, apesar do artigo 39.º-C ter sido aditado à lei n.º 64/2007, de 14 de Março pelo Decreto-Lei n.º 33/2014 de 2014-03-04, a redação atual da alínea f) do aludido artigo apenas passou a existir com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 126-A/2021, de 31 de Dezembro, isto é em 10-01-2022.
16. Ao contrário do mencionado na sentença recorrida, o artigo 2.º n.º 3 do RGIT não é aplicável ao presente caso e mesmo que o fosse nunca poderia afastar a aplicabilidade dos princípios constitucionais e gerais aplicáveis ao direito penal, à determinação das penas e ao processo penal sob pena de inconstitucionalidade.
17. O artigo 2.º n.º 3 do RGIT, independentemente da sua interpretação violará sempre as normas constitucionais e princípios gerais aplicáveis às penas e ao processo penal.
18. No presente caso, aquilo que sucedeu foi o inverso, na data da prática dos factos o comportamento era sancionado como crime e posteriormente foi publicada uma lei que considerou aquele comportamento específico uma mera contraordenação.
19. Pelo que atendendo ao disposto nos artigos 2.º e 31.º n.º 1 do Código Penal e a diversa jurisprudência anteriormente mencionada, teria de ser sempre aplicada a lei mais favorável aos arguidos.
20. Pelo que por via da aplicação deste princípio constitucional, o processo penal deveria ser extinto e prosseguir como mera contraordenação e consequentemente ser extinto o PIC deduzido pelo Instituto da Segurança Social.
21. A não extinção do procedimento criminal e do PIC deduzido, viola vários e diversos princípios constitucionais, consagrados na Constituição, no Direito Penal e no Processo Penal (designadamente o da legalidade (dentro do qual se inclui o principio da tipicidade das penas), culpa, necessidade das penas, da tutela penal ou da máxima restrição das penas (dentro do qual se inclui o da aplicação da lei mais favorável ao arguido), igualdade, entre outros).
22. Com a não extinção do procedimento criminal e do PIC por via da descriminalização dos comportamentos imputados aos recorrentes, foram violadas várias normas constitucionais designadamente as previstas nos artigos 12.º, 13.º, 18.º, 20.º, 29.º, 32.º. todos das Constituição da República Portuguesa.

TERMOS EM QUE,
revogando a douta sentença em mérito farão Vossas Excelências a habitual
J U S T I Ç A!»

3. O Ministério Público e o assistente Instituto da Segurança Social, I. P. responderam ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na vista a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal([1]), emitiu parecer no sentido de que o recurso dos arguidos não deverá obter provimento.
5. No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2, não houve resposta.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida
1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
«1. O Centro Social Paroquial de ... é uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), pessoa coletiva n.º ...65, com sede na Rua ..., em ..., ..., tendo como finalidade a concessão de bens, prestação de serviços e outras iniciativas de promoção do bem-estar e qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades, nomeadamente, nos seguintes domínios de creche, estrutura residencial para pessoas idosas, centro de dia e apoio domiciliário, entre outras respostas sociais.
2. No período que infra se descreverá, entre janeiro de 2013 e setembro de 2019, a Direção da referida IPSS esteve a cargo do arguido AA, que, efetivamente, geriu os destinos da Instituição, competindo-lhe administração e representação de toda a atividade exercida, a decisão de afetação dos seus recursos financeiros à satisfação das respetivas necessidades, a responsabilidade pelo apuramento do valor das mensalidades de todas as respostas sociais, pela entrada dos utentes na estrutura residencial para pessoas idosas, pela inscrição de utentes no apoio domiciliário e no centro de dia, pela celebração de contratos de prestação de serviços com utentes, pela realização de comunicações de listagens de utentes ao ISS e pelo recebimento e afetação dos apoios sociais fornecidos por tal entidade.
3. No decurso da atividade, o Centro Social Paroquial de ... celebrou acordo de cooperação para a resposta social de Estrutura Residencial de Pessoas Idosas, em fevereiro de 2004, onde foi definida a capacidade de frequência para 10 utentes, todos comparticipados.
4. Foi ainda celebrado um acordo de cooperação para a resposta social de Serviço de Apoio Domiciliário – SAD, em 29/11/2013, onde foi definida a capacidade de frequência para 70 utentes, dos quais apenas 42 seriam comparticipados.
5. Em 29/11/2013 foi ainda celebrado um acordo de cooperação para a resposta social Centro de Dia, onde foi definida a capacidade de frequência para 20 utentes, dos quais apenas 15 seriam comparticipados.
6. Por fim, para a resposta social de Creche foi também celebrado um acordo de cooperação, 01/08/2013, onde foi definida a capacidade de frequência para 50 utentes, dos quais apenas 31 seriam comparticipados.
7. Através desses acordos o Instituto de Segurança Social efetuava o pagamento de verbas sociais, mediante a comunicação pela IPSS, através da respetiva plataforma, até ao dia 5 de cada mês da listagem nominal, com identificação do respetivo Número de Identificação da Segurança Social (NISS,) dos utentes em cada uma das valências, sendo imperioso para o pagamento, no caso do Serviço de Apoio Domiciliário, que a cada utente fossem prestados pelo menos dois serviços considerados indispensáveis.
8. Ciente disto, o arguido AA, em representação do Centro Social Paroquial de ..., elaborou mensalmente uma listagem dos utentes inscritos e frequentadores das respostas sociais, que enviou para o Instituto da Segurança Social, a fim daquele efetuar o pagamento do correspetivo apoio social.
9. Sucede que o arguido elaborava e enviava listagens com dados que sabia não corresponderem à verdade, com vista a obter do Instituto da Segurança Social a comparticipação de verbas que sabia não lhe serem devidas, designadamente através da inserção de utentes que nunca frequentaram a resposta comparticipada, da inserção de utentes que beneficiaram de um único serviço e relativamente aos quais era comunicada a prestação de dois, três ou quatro serviços (que nunca foram prestados) e através da inserção de utentes na listagem de frequência após o óbito dos mesmos.
 10. Assim, no período de janeiro de 2013 a setembro de 2019 o arguido AA, em representação do Centro Social Paroquial de ... enviou, mensalmente, listagens onde eram incluídos utentes a que apenas foi prestado um serviço essencial mas relativamente aos quais foi comunicada a prestação de dois, três ou quatro serviços (que nunca foram prestados), o que levou a que o Instituto da Segurança Social tenha indevidamente comparticipado a quantia de €275.782,63, conforme o quadro seguinte:
[Imagem]

11. Do mesmo modo, no período de janeiro de 2013 a setembro de 2019 o arguido AA, em representação do Centro Social Paroquial de ... enviou, mensalmente, listagens onde eram incluídos utentes que nunca frequentaram a resposta comparticipada, o que levou a que o Instituto da Segurança Social tenha indevidamente comparticipado a quantia de €222.163,16, conforme o quadro seguinte:
[Imagem]

12. Por fim, no período de janeiro de 2013 a setembro de 2019 o arguido AA, em representação do Centro Social Paroquial de ... enviou, mensalmente, listagens onde eram incluídos utentes após a data do seu falecimento, o que levou a que o Instituto da Segurança Social tenha indevidamente comparticipado a quantia de €1.124,31, conforme o quadro seguinte:

(IMAGEM)

13. Assim, como consequência da atuação do arguido AA, a pessoa coletiva arguida Centro Social de Paroquial de ... recebeu do Instituto da Segurança Social, indevidamente, durante o período de janeiro de 2013 a setembro de 2019, comparticipações no montante de global €499.070,10 (quatrocentos e noventa e nove mil e setenta euros e dez cêntimos).
14. O arguido sabia que era sua obrigação comunicar ao Centro Distrital do Instituto de Segurança Social factos verdadeiros e que, ao não o fazer, determinava a administração da Segurança Social a efetuar atribuições patrimoniais indevidas àquela IPSS.
15. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente que o Centro Social Paroquial de ... não tinha direito às comparticipações do ISS supra mencionadas e que, ao atuar do modo supra descrito, obtinha um enriquecimento ilegítimo, prejudicando a Segurança Social em igual montante.
16. Agiu sempre o arguido na execução de um plano, mediante uma resolução única que se protelou temporalmente ao longo de todo o referido período, com o propósito de ver enriquecido o património da IPSS referida, bem conhecendo o carácter proibido e criminalmente punível de tal conduta e, mesmo assim, não se coibiu de a praticar.
17. O arguido, com as suas condutas, quis obter para a IPSS um benefício pecuniário que não lhe era devido, à custa de um engano que provocou à Segurança Social, sabendo que causava prejuízos patrimoniais no valor de €499.070,10, o que conseguiu.
18. Bem sabia o arguido que os comportamentos descritos são proibidos e punidos por lei.
19. O arguido AA atuou sempre em seu nome e no interesse coletivo do Centro Social Paroquial de ....

Dos autos:

20. Os arguidos não têm antecedentes criminais averbados nos seus CRCs.
21. O arguido AA tem averbada em seu nome na CRA a propriedade de um veículo automóvel de matrícula ..-AD-.., de marca ..., modelo ... (...).
22. O Centro Social Paroquial de ... tem averbada em seu nome na CRA a propriedade dos veículos automóveis de matrícula ..-..-CJ, de marca ..., modelo E, ..-TL-.., de marca ..., modelo W, ..-TL-.., de marca ..., modelo W, ..-TL-.., de marca ..., modelo W, ..-TX-.., de marca ..., modelo ... e ..-..-XF, de marca ..., modelo ... S.
23. O Centro Social Paroquial de ... apresentou no ano de 2023 resultados líquidos do ano de 2023 de 0,00.

Da audiência de discussão e julgamento:

24. A requerimento dos arguidos, o Conselho Diretivo do ISS, IP deliberou, em 27/07/2023, autorizar o pagamento em 150 prestações mensais, do valor de 499.070,10 €, a realizar pelos arguidos, mediante acordo a celebrar, com prestação de garantias e confissão de dívida, entre o CDSS de ... e os arguidos.

Quanto às condições pessoais e sociais do arguido:

25. O processo de socialização de AA decorreu com normalidade tendo usufruído de um enquadramento familiar organizado constituído pelos pais e dois irmãos mais novos.
26. Provém de uma família com recursos socioeconómicos suficientes para a manutenção de um estilo de vida estável.
27. Beneficiou de uma dinâmica familiar positiva, com laços de proximidade e afetividade.
28. AA entrou no sistema de ensino em idade normal, tendo efetuado um percurso normal.
29. Teve apenas uma retenção no primeiro ciclo por problema de saúde.
30. No terceiro ciclo ingressou no seminário Nossa Senhora da ... em ... onde prosseguiu os seus estudos até concluir o secundário.
31. Durante o seminário AA esteve envolvido em atividades estruturadas, nos escuteiros, grupo de jovens, foi ainda fundador de um jornal/revista.
32. Frequentou depois o curso de Teologia na Universidade ..., uma pós-graduação em Pastoral e fez ainda formação especifica na variante Educação.
33. Depois de ter concluído sua formação em Teologia esteve um ano em missão pastoral na Igreja Matriz ....
34. Após a ordenação sacerdotal foi nomeado em 2001 pároco de ..., ....
35. Em 2005 acumula a Paróquia de ... e em 2019 a Paróquia de ....
36. AA constituiu agregado autónomo, residindo há 22 anos em ... na residência paroquial.
37. Mantém contacto com família de origem que se encontra a residir na freguesia ... na ... com quem mantém uma relação de proximidade.
38. AA apresenta rotinas estruturadas, com as várias atividades inerentes à administração das paróquias a seu cargo e desenvolvimento de projetos pastorais para a comunidade.
39. Além do trabalho religioso tem ainda ao trabalho social que desenvolve no Centro Social da Paróquia de ....
40. A sua subsistência encontra-se assegurada com recurso a um vencimento suportado pela Fábrica da Igreja Paroquial de ....
41. Recebe uma remuneração base no valor de 1320 euros, a que acrescem verbas para ajudas de transporte e isenção de horário, auferindo um valor líquido mensal de aproximadamente 2150 euros.
42. Para despesas com a gestão do orçamento doméstico, tem gastos mensais na ordem dos 300 euros.
43. AA goza de uma imagem social positiva, sendo descrita como uma pessoa com visibilidade social, de relação e trato adequado.
44. O seu trabalho social e religioso é reconhecido e bem referenciado pela comunidade.»
*
1.2. Inexistem factos não provados.
*
1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«A convicção do Tribunal resultou da avaliação englobante do contexto probatório dos autos, designadamente, as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento, que confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe vêm imputados, com reforço na prova documental junta aos autos.
Concretizando:
Toda a matéria que se deu como provada (1 a 19) foi prontamente confessada pelo arguido, sem que nada fizesse ao Tribunal duvidar da veracidade das suas declarações.
Ademais, as declarações confessórias do arguido são sustentadas pela prova documental junta aos autos, designadamente:
- O relatório elaborado pelo ISS IP a fls. 5 e seguintes, vistas as fontes em que assentam as respetivas conclusões, designadamente os documentos a ele anexos;
- As cópias das listagens comunicadas ao CDSS pela instituição arguida para efeitos de comparticipação, que compõem o anexo.
Mais confirmou o arguido as informações relativas à sua situação económica vertidas no relatório social, junto a fls. 477 e seguintes, e no print do ISS, IP de fls. 454, de cuja conjugação resultou a prova dos factos vertidos em 25 a 44.
A ausência de antecedentes criminais dos arguidos emana dos CRCs de fls. 451 e 455.
Os factos aludidos em 21 e 22 resultaram dos prints da CRA de fls. 452 e 456-458.
O propósito de pagamento das vantagens obtidas pelos arguidos e da decisão que sobre ele recai, nos termos vertidos em 24 resultam das declarações prestadas pelo próprio e do teor dos documentos juntos a fls. 459 e 508.
A prova do vertido em 23 resultou da declaração de IRC junta aos autos.»
*
1.4. A respeito da eventual despenalização da conduta dos arguidos consignou-se na sentença recorrida o seguinte (transcrição):

«Da eventual despenalização
Aqui chegados, importa tomar posição quanto à questão suscitada pelos arguidos no decurso da audiência, a propósito da requerida extinção do procedimento criminal, bem como do pedido de indemnização civil, sustentando a despenalização da conduta que constitui o objeto dos autos, mercê da publicação do DL n.º 126-A/2021, de 31 de dezembro, que alterou o DL n.º 64/2007, de 14 de março.
Alegaram, em suma, que o artigo 39.º-C, na sua alínea f) do DL n.º 64/2007, de 14 de março passou a punir como contraordenação a comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação, o que se reconduz à descriminalização da conduta imputada ao arguido.
Pronunciando-se quanto a tal matéria, o Ministério Público sustentou posição diversa, pugnando não ter ocorrido a invocada despenalização.
Antecipando a conclusão a que chegaremos, cremos assistir integral razão à sustentação do Ministério Público que, pela clareza que lhe reconhecemos, acompanhamos.
Com efeito, o DL n.º 64/2007, de 14/03/2007, que define o regime jurídico de instalação, funcionamento e fiscalização dos estabelecimentos de apoio social geridos por entidades privadas - aplicável às instituições particulares de solidariedade social ou instituições legalmente equiparadas (cfr. artigo 2.º, n.º 1, alínea b))-, na redação anterior à introduzida pelo DL n.º 126-A/2021, de 31 de dezembro, previa já um regime sancionatório aplicável às entidades que desenvolvem atividades e serviços de apoio social, tipificando como contraordenações as infrações ao regime nele instituído vertidas nos artigos 39.º-B (infrações muito graves), 39.º-C (infrações graves) e 39.º-C (infrações leves).
Tal regime sancionatório foi introduzido pelas alterações decorrentes do DL 33/2014, de 04 de março (normativo que, como resulta do seu preâmbulo, visou ajustar à realidade o regime sancionatório implementado pelo pretérito DL 133-A/87, de 30 de maio, prosseguindo, designadamente, a dissuasão da prática de ilícitos, em particular do exercício da atividade sem licenciamento, de situações de negligência e maus tratos, com caráter de reincidência e do exercício ilegal de atividades de apoio social).
Na versão anterior à introduzida pelo DL n.º 126-A/2021, de 31 de dezembro, o artigo 39.º-C do DL 64/2007, de 14/03 definia como infrações graves:
“a) A não apresentação, no prazo de 30 dias contados da sua ocorrência, de requerimento de substituição da licença de funcionamento, na sequência de alteração da denominação do estabelecimento, da localização, da identificação da entidade requerente, da atividade prosseguida ou da capacidade autorizada;
b) A falta de comunicação, aos serviços competentes do Instituto da Segurança Social, I.P., da interrupção ou cessação da atividade do estabelecimento por iniciativa do proprietário, no prazo de 30 dias;
c) A falta de comunicação prévia, aos serviços competentes do Instituto da Segurança Social, I.P., das alterações ao regulamento interno do estabelecimento, até 30 dias antes da sua entrada em vigor;
d) A falta da remessa anual, aos serviços competentes do Instituto da Segurança Social, I.P., dos mapas estatísticos dos utentes e da relação do pessoal existente no estabelecimento, bem como do preçário em vigor.”
O DL n.º 126-A/2021, de 31 de dezembro, veio alterar o referido artigo 36.-ºC, designadamente alargando o leque das condutas tipificadas como infrações graves.
Do seu preâmbulo não resulta expressa a intenção do legislador neste particular domínio.
Dentre as alterações introduzidas acrescentou a alínea f) da qual resulta constituir infração grave “f) A inexistência de comunicação mensal de dados ou a comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação”.
Movemo-nos no campo do ilícito de mera ordenação social ora consagrado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro. Como constava do preâmbulo do seu antecessor, Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de julho, “[O] direito de mera ordenação social surgiu entre nós como um aspeto da reforma do direito penal, tendo sido justificado pelo legislador como um “ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal” com a mira de “libertar este ramo do direito” quer de certo número de infrações julgadas ultrapassadas e desajustadas em termos de ética e de valores democráticos, quer “do número inflacionário e incontrolável das infrações destinadas a assegurar a eficácia dos comandos normativos da Administração, cuja desobediência se não reveste da resistência moral característica do direito penal”, e, por fim, para que “permita, outrossim, reservar a intervenção do direito penal para a tutela dos valores ético-sociais fundamentais e salvaguardar a sua plena disponibilidade para retribuir e prevenir com eficácia a onde crescente de criminalidade, nomeadamente da criminalidade violenta”.
O ilícito de mera ordenação social corresponde, assim, uma censura de natureza social e administrativa cujo fundamento dogmático é a subsidiariedade do Direito Penal e a necessidade de sancionar comportamentos ilícitos mas axiologicamente neutros.
Como refere Eduardo Correia (cfr. “Direito penal e direito de mera ordenação social”, separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. XLIX, 1973, págs. 15 e 16) “as contraordenações, no ponto em que exprimem apenas uma censura de natureza social e se traduzem num mal com o sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica, devem «enquadrar-se, não no ilícito criminal, mas no ilícito administrativo e, portanto, em vez de penas criminais, só podem corresponder-lhes reacções desprovidas dos sinais que caracterizam aquelas sanções”.
Daí que “… em vez de uma culpa fundamentada eticamente, só pode a seu respeito falar-se de uma censura social. A expressão desta censura não envolve, portanto, um sentido de retribuição ou de expiação ética, ligado a uma finalidade de recuperação do delinquente, mas exprime, apenas, a ideia de uma advertência de que está ausente o pensamento de qualquer mácula ético-social” (idem, pag.19).
Tendo em vista tais ensinamentos, e analisando a referida alínea f) do 39.º-C do DL 64/2007, de 14/03, constata-se que integra o tipo contraordenacional a conduta omissiva de quem não comunique mensalmente os dados relativos à frequência de utentes e a conduta ativa de quem proceda à comunicação de dados errados a ela relativos, no caso das respostas com acordo de cooperação.
 No que ao elemento subjetivo concerne, tais condutas são punidas a título de dolo ou de negligência (artigo 39.º-F).
Em suma, na referida alínea pune-se, como contraordenação, a violação da obrigação da comunicação de dados relativos à frequência de utentes ou a sua comunicação inexata, no caso das respostas com acordo de cooperação.
Se atentarmos no disposto na Portaria 196-A/2015, de 01/07, constatamos que o número de utentes abrangido pelos acordos de cooperação celebrados entre o ISS, IP e as instituições particulares de solidariedade social ou legalmente equiparadas, é um elemento essencial da formalização da parceria, devendo constar do anexo ao acordo de cooperação – cfr. artigo 14.º alínea c) da referida Portaria.
Com peculiar relevância para a questão que nos ocupa, atente-se que essa quantificação não releva apenas para a medida da comparticipação financeira do ISS, IP para apoio ao funcionamento de uma resposta social. Afigura-se-nos que o universo dos destinatários da resposta social configura, desde logo, e na perspetiva do ISS, IP, um fator determinante da decisão de cooperar, essencial para a aferição dos requisitos específicos para a concretização da cooperação, designadamente a verificação de que a resposta social supre uma efetiva necessidade da comunidade, sem conduzir a assimetrias na disposição geográfica dos serviços e equipamentos, que satisfaz uma necessidade coletiva (cfr. artigo 6.º da Portaria 196-A/2015, de 01/07), a justificar a celebração do acordo de cooperação e o alcance dos seus objetivos (cfr. artigo 10.º da citada Portaria).
Por outro lado, os números relativos à frequência de utentes são essenciais para a avaliação da capacidade da resposta social, por referência ao espaço físico do equipamento ou aos recursos humanos afetos ao serviço, relevância que perdura durante todo o tempo da execução do acordo. Refira-se ainda que, dentre as obrigações assumidas pelo ISS, IP no âmbito da celebração dos acordos de cooperação, consta a colaboração com a instituição, “garantindo o acompanhamento e o apoio técnico, através de um conjunto de atuações que visam avaliar o estabelecido no acordo e caso se justifique, propor as alterações necessárias” (cfr. artigo 11.º, alínea a), da citada Portaria). O número de frequência de utentes releva, pois, para a monitorização da resposta social por parte do ISS, IP, essencial à avaliação da manutenção dos acordos firmados, sendo certo que a diminuição da frequência do número de utentes pode, em determinadas circunstâncias, dar lugar à revisão do acordo (cfr. artigo 18.º).
Daí que, em contraponto, se estipule como obrigação das instituições a comunicação aos serviços da segurança social da frequência da resposta social (cfr. artigo 12.º, alínea i), da Portaria 196-A/2015, de 01/07).
Note-se que esta obrigação de comunicação da frequência da resposta social é de âmbito genérico, não respeitando apenas aos “utentes em acordo”, conceito que a Portaria define como “o número de utentes contemplados no acordo de cooperação e pelos quais é atribuída uma comparticipação financeira”. Quanto a estes, prevê-se uma específica obrigação de comunicação, no artigo 17.º da Portaria, estabelecendo-se, no seu n.º 2 que, para efeitos do pagamento da comparticipação financeira da segurança social, a instituição deve comunicar ao ISS, I. P., a frequência verificada no mês anterior, através da Segurança Social Direta, sob pena de suspensão do pagamento.
Tendo em vista o explanado, e apelando ao recorte típico do crime de burla tributária, analisado supra, afigura-se-nos que não foi intenção do legislador operar a despenalização da conduta de quem comunica dados inexatos ao ISS, IP, no caso das respostas com acordo de cooperação, verificados que estejam os demais elementos objetivos e subjetivos típicos.
Com efeito, situações há que poderão ser enquadráveis apenas na prática do ilícito de mera ordenação social, designadamente os casos em que se verifiquem todos os elementos do tipo objetivo do ilícito penal (a conduta fraudulenta mediante falsas declarações, o erro da AT ou Administração da Segurança Social, o respetivo nexo de causalidade, e a realização da atribuição patrimonial, com o consequente enriquecimento do agente) mas a atuação caia no âmbito da negligência; as situações em que, verificando-se a atuação dolosa, o propósito do agente seja distinto da determinação da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte o enriquecimento para o agente ou para o terceiro; ou as situações de mero erro de cálculo dos utentes comunicada ao ISS, IP, em benefício ou em prejuízo da instituição.
Em suma, a tipificação da contraordenação não conduz ao esvaziamento do ilícito criminal.
Já nos casos em que a atuação do agente integra todos os elementos típicos do crime de burla tributária, ocorre uma situação de concurso aparente entre a contraordenação e o crime, havendo, nesse caso, que lançar mão do disposto no artigo 2.º, n.º 3 do RGIT onde se prevê que “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, o agente será punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contra-ordenação.”
Do exposto resulta inverificada a despenalização invocada pelo arguido, razão pela qual improcede a requerida extinção do procedimento criminal e civil.»
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2. Apreciando

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, a única questão a apreciar consiste em saber se o crime de crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87.º, nºs 1 e 3 do RGIT, por que os arguidos foram condenados foi objecto de descriminalização.
Alegam os recorrentes que a publicação do Decreto-Lei n.º 126-A/2021, de 31/12, que alterou o Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14/03, instituiu um novo comportamento como contra-ordenação, designadamente no artigo 39.º-C [(alínea f)], ao determinar que “a comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação” passa a ser considerada contra-ordenação, verificando-se, assim, uma descriminalização dos factos de que os arguidos são acusados nos presentes autos.
O Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 99/2011, de 28 de Setembro, aprovou o regime de instalação, funcionamento e fiscalização dos estabelecimentos de apoio social geridos por entidades privadas.
O regime sancionatório aplicável às entidades que desenvolvem actividades e serviços de apoio social estava previsto no capítulo IV do Decreto-Lei n.º 133-A/97, de 30 de Maio, aplicável nos termos do n.º 1 do artigo 45.º do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março.
Este regime sancionatório encontrava-se desajustado da realidade, designadamente no que concerne aos limites mínimos e máximos das coimas aplicáveis, que se mantinham inalterados desde 1997.
Os tipos de ilícitos previstos exigiam uma reformulação no sentido de uma melhor adaptação à realidade e à legislação entretanto publicadas, procurando que os mesmos fossem dissuasores da prática de ilícitos, em particular do exercício da atividade sem licenciamento e de situações de negligência e maus tratos com carácter de reincidência.
A premente necessidade de combater estas práticas ilícitas sancionando-as de forma rigorosa, particularmente no que concerne ao exercício ilegal de actividades de apoio social, que funcionavam ao arrepio dos mais elementares direitos dos cidadãos, adultos e crianças ou jovens institucionalizados, levou à publicação do Decreto-Lei n.º 33/2014, de 4 de Março, que procedeu à segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 99/2011, de 28 de Setembro.
O Decreto-Lei n.º 33/2014, de 4 de Março, no seu Capítulo VIII, passou a prever um regime sancionatório próprio aplicável às entidades que desenvolvem atividades e serviços de apoio social, tipificando como contra-ordenações as infrações previstas nos artigos 39.º-B (infracções muito graves), 39.º-C (infracções graves) e 39.º-D (infracções leves).
O Decreto-Lei n.º 126-A/2021, de 31 de Dezembro, procedeu à terceira alteração ao Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14 de Março, alterado pelos Decretos-Leis nºs 99/2011, de 28 de Setembro, e 33/2014, de 4 de Março, introduzindo a comunicação prévia como forma de autorização de funcionamento dos estabelecimentos de apoio social.
De igual modo alargou o leque das condutas tipificadas como infracções graves, acrescentando, ao artigo 39.º-C, a alínea f) com o seguinte teor:
“A inexistência de comunicação mensal de dados ou a comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação”.
Posto isto.
Os arguidos foram acusados e condenados pela prática de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87.º, nºs 1 e 3 do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (doravante designado por RGIT).

O artigo 87.º do RGIT dispõe o seguinte:

«1 - Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Se a atribuição patrimonial for de valor elevado, a pena é a de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e a de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
3 - Se a atribuição patrimonial for de valor consideravelmente elevado, a pena é a de prisão de dois a oito anos para as pessoas singulares e a de multa de 480 a 1920 dias para as pessoas colectivas.
4 - As falsas declarações, a falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou a utilização de outros meios fraudulentos com o fim previsto no n.º 1 não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber.
5 - A tentativa é punível.»

Discutida a causa ficou provado que, no decurso da sua actividade, o Centro Social Paroquial de ... celebrou um acordo de cooperação para a resposta social de Estrutura Residencial de Pessoas Idosas, em Fevereiro de 2004, onde foi definida a capacidade de frequência para 10 utentes, todos comparticipados, um acordo de cooperação para a resposta social de Serviço de Apoio Domiciliário – SAD, em 29/11/2013, onde foi definida a capacidade de frequência para 70 utentes, dos quais apenas 42 seriam comparticipados, um acordo de cooperação para a resposta social Centro de Dia, em 29/11/2013, onde foi definida a capacidade de frequência para 20 utentes, dos quais apenas 15 seriam comparticipados e um acordo de cooperação para a resposta social de Creche, em 01/08/2013, onde foi definida a capacidade de frequência para 50 utentes, dos quais apenas 31 seriam comparticipados – pontos 1 a 6 dos factos provados.
Através desses acordos o Instituto de Segurança Social efetuava o pagamento de verbas sociais, mediante a comunicação pela IPSS, através da respectiva plataforma, até ao dia 5 de cada mês da listagem nominal, com identificação do respectivo Número de Identificação da Segurança Social (NISS,) dos utentes em cada uma das valências, sendo imperioso para o pagamento, no caso do Serviço de Apoio Domiciliário, que a cada utente fossem prestados pelo menos dois serviços considerados indispensáveis – ponto 7 dos factos provados.
Ciente disto, o arguido AA, em representação do Centro Social Paroquial de ..., elaborou mensalmente uma listagem dos utentes inscritos e frequentadores das respostas sociais, que enviou para o Instituto da Segurança Social, a fim daquele efectuar o pagamento do correspectivo apoio social – ponto 8 dos factos provados.
Mais se provou que o arguido elaborava e enviava listagens com dados que sabia não corresponderem à verdade, com vista a obter do Instituto da Segurança Social a comparticipação de verbas que sabia não lhe serem devidas, designadamente através da inserção de utentes que nunca frequentaram a resposta comparticipada, da inserção de utentes que beneficiaram de um único serviço e relativamente aos quais era comunicada a prestação de dois, três ou quatro serviços (que nunca foram prestados) e através da inserção de utentes na listagem de frequência após o óbito dos mesmos – ponto 9 dos factos provados.
Assim, no período de Janeiro de 2013 a Setembro de 2019, o arguido AA, em representação do Centro Social Paroquial de ..., enviou, mensalmente, listagens onde eram incluídos utentes a que apenas foi prestado um serviço essencial mas relativamente aos quais foi comunicada a prestação de dois, três ou quatro serviços (que nunca foram prestados), o que levou a que o Instituto da Segurança Social tenha indevidamente comparticipado a quantia de €275.782,63, conforme o quadro constante do ponto 10) dos factos provados.
Do mesmo modo, no período de Janeiro de 2013 a Setembro de 2019, o arguido AA, em representação do Centro Social Paroquial de ..., enviou, mensalmente, listagens onde eram incluídos utentes que nunca frequentaram a resposta comparticipada, o que levou a que o Instituto da Segurança Social tenha indevidamente comparticipado a quantia de €222.163,16, conforme o quadro constante do ponto 11) dos factos provados.
Por fim, no período de Janeiro de 2013 a Setembro de 2019, o arguido AA, em representação do Centro Social Paroquial de ..., enviou, mensalmente, listagens onde eram incluídos utentes após a data do seu falecimento, o que levou a que o Instituto da Segurança Social tenha indevidamente comparticipado a quantia de €1.124,31, conforme o quadro constante do ponto 12) dos factos provados – pontos 10, 11, e 12 dos factos provados.
Assim, como consequência da atuação do arguido AA, o Centro Social de Paroquial de ... recebeu do Instituto da Segurança Social, indevidamente, durante o período de Janeiro de 2013 a Setembro de 2019, comparticipações no montante de global € 499.070,10 (quatrocentos e noventa e nove mil e setenta euros e dez cêntimos) – ponto 13 dos factos provados.
Provou-se ainda que o arguido sabia que era sua obrigação comunicar ao Centro Distrital do Instituto de Segurança Social factos verdadeiros e que, ao não o fazer, determinava a administração da Segurança Social a efetuar atribuições patrimoniais indevidas àquela IPSS – ponto 14 dos factos provados.
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, ciente que o Centro Social Paroquial de ... não tinha direito às comparticipações do ISS supra mencionadas e que, ao atuar do modo supra descrito, obtinha um enriquecimento ilegítimo, prejudicando a Segurança Social em igual montante – ponto 15 dos factos provados.
Agiu sempre o arguido na execução de um plano, mediante uma resolução única que se protelou temporalmente ao longo de todo o referido período, com o propósito de ver enriquecido o património da IPSS referida, bem conhecendo o carácter proibido e criminalmente punível de tal conduta e, mesmo assim, não se coibiu de a praticar – ponto 16 dos factos provados.
O arguido, com as suas condutas, quis obter para a IPSS um benefício pecuniário que não lhe era devido, à custa de um engano que provocou à Segurança Social, sabendo que causava prejuízos patrimoniais no valor de €499.070,10, o que conseguiu – ponto 17 dos factos provados.
Bem sabia o arguido que os comportamentos descritos são proibidos e punidos por lei – ponto 18 dos factos provados.
O arguido AA atuou sempre em seu nome e no interesse coletivo do Centro Social Paroquial de ... – ponto 19 dos factos provados.
Em face da matéria de facto provada, dúvidas não restam que o arguido AA, ao agir da forma descrita, sabia e quis induzir a Segurança Social em erro de modo a determiná-la a efectuar atribuições patrimoniais e que, ao actuar do modo descrito, o Centro Social Paroquial de ... obteve um enriquecimento ilegítimo, incorrendo, portanto, na prática de um crime de crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87.º, nºs 1 e 3 do RGIT.
Ao contrário do que sustentam os recorrentes não ocorreu a descriminalização das descritas condutas, por via da publicação do DL n.º 126-A/2021, de 31 de Dezembro, que alterou o DL n.º 64/2007, de 14 de Março, ao determinar que “a comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação” passou a ser considerada contra-ordenação – alínea f) do artigo 39.º-C.
Como é sabido, constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima – artigo 1.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas.
Dispõe o citado artigo 39.º-C, alínea f), que constituem infracções graves “A inexistência de comunicação mensal de dados ou a comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação”.
O artigo 39.º-E do mesmo diploma prescreve que às infracções previstas no artigo 39.º-C é aplicável uma coima entre 2500 EUR e 5000 EUR, podendo, ainda, cumulativamente com as coimas previstas pela prática de infracções graves, ser aplicadas ao infractor as sanções acessórias previstas no n.º 1 do artigo 39.º-H.
Assim, na dita alínea f) passou a punir-se, como contra-ordenação, a violação da obrigação de comunicação mensal de dados ou a comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação.
Embora do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 126-A/2021, de 31/12, não resulte expressa a intenção do legislador neste particular domínio, o que se verifica é que, ao introduzir a alínea f) do artigo 39.º-C, o legislador pretendeu regular a comunicação de dados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação, independentemente do resultado, o que antes não sucedia.
Para a verificação da contra-ordenação basta, portanto, a omissão da comunicação ou a simples comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação, enquanto que a verificação do crime de burla tributária exige que a comunicação de dados errados relativos à frequência de utentes, no caso das respostas com acordo de cooperação, esteja associada ao propósito de determinar a Segurança Social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro, como sucedeu no caso concreto – cfr. pontos 13 a 19 dos factos provados.
Como refere a sentença recorrida, a tipificação da contra-ordenação não conduz ao esvaziamento do ilícito criminal porque há situações que poderão ser enquadráveis apenas na prática do ilícito de mera ordenação social, designadamente os casos em que se verifiquem todos os elementos do tipo objectivo do ilícito penal (a conduta fraudulenta mediante falsas declarações, o erro da AT ou Administração da Segurança Social, o respetivo nexo de causalidade, e a realização da atribuição patrimonial, com o consequente enriquecimento do agente) mas a actuação caia no âmbito da negligência, as situações em que, verificando-se a actuação dolosa, o propósito do agente seja distinto da determinação da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte o enriquecimento para o agente ou para o terceiro ou as situações de mero erro de cálculo dos utentes comunicada ao ISS, IP, em benefício ou em prejuízo da instituição.
Conclui-se, pois, que com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 126-A/2021, de 31/12, que alterou o Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14/03, introduzindo a alínea f) do artigo 39.º-C, não se operou a descriminalização da conduta pela qual os arguidos foram acusados e condenados nos autos.
Improcede, portanto, o interposto recurso.
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III – DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelos arguidos AA e Centro Social e Paroquial de ... e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
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Custas pelos recorrentes, fixando-se, para cada um, a taxa de justiça em 4 (quatro) UC (artigos 513.º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa a este diploma).
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
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Guimarães, 05.03.2024

Fernando Chaves (Relator)
Fátima Furtado (1ª Adjunta)
Isabel Gaio Ferreira de Castro (2ª Adjunta)                                            


[1] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.