Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3058/18.2T8BCL-B.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I- Compete aos tribunais do trabalho conhecer dos litígios emergentes de acidente de trabalho entre o trabalhador por conta própria e a seguradora para quem tenham transferido a responsabilidade pela sua reparação.
II- Essa competência mantém-se ainda que um dos pedidos seja o de condenação da seguradora em danos não patrimoniais por incumprimento contratual, dada a complexidade da causa de pedir e sua conexão com a prévia apreciação do acidente de trabalho e suas consequências, questões para as quais a jurisdição laboral está especialmente vocacionada.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

AUTOR - J. L..
RÉ – COMPANHIA DE SEGUROS X, SA.

O autor intentou acção emergente de acidente de trabalho pedindo a condenação da ré a pagar-lhe: (i) indemnização a título de danos não patrimoniais de valor não inferior a € 10.000,00 por incumprimento de obrigações contratualmente assumidas por via do seguro; (ii) indemnizações por incapacidade temporária absoluta e parcial para o trabalho; (iii) despesas médicas e medicamentosas; (iV) despesas de transporte; (v) os montantes necessários à realização das cirurgias para tratamento das lesões ou condenação da ré a realizar tais serviços clínicos; (vi) juros de mora; (vii) caso as referidas cirúrgicas e tratamentos subsequentes se revelem insuficientes, a condenação no que se vier a liquidar em execução de sentença.
Alega, em síntese, e na parte que mais releva ao recurso, que: é empresário em nome individual, trabalhando por conta própria, como madeireiro; transferiu para a ré a responsabilidade civil por acidentes de trabalho; que em 7-07-18, sofreu um acidente de trabalho que consistiu num capotamento da viatura que conduzia quando ia entregar um carregamento de lenha, tendo sofrido lesões no ombro e membro inferior direito, com ITA; que a ré recusou assumir a realização da cirurgia ao ombro; que carece de tratamento médico e de intervenções cirúrgicas; as lesões ora apresentadas devem-se, quer a incorrecto diagnóstico por parte dos serviços clínicos contratualizados pela ré, quer ao facto de a mesma, injustificadamente, ter recusado os tratamentos de que carecia; a ré obstaculizou o restabelecimento do seu estado de saúde e da capacidade produtiva num mais breve espaço de tempo, fazendo perdurar o seu sofrimento, o que lhe causou angústia e medo enquanto aguardava um correto diagnostico do seu estado de saúde, sendo que o autor se sustenta com o rendimento da sua actividade; que a Ré ao agir nos moldes supra descritos incumpriu com as obrigações contratualmente assumidas constituindo-se na obrigação de o indemnizar pelos danos morais, pelo que deve ser condenada em indemnização de valor não inferior a € 10.000,00.
A ré contestou, aceitando a existência de seguro e dizendo que, o mais, ou é falso ou está descontextualizado.
Findos os articulados o senhor juiz a quo oficiosamente decidiu ouvir as partes sobre a eventualidade de ocorrer incompetência material relativamente a um dos pedidos, tendo em conta que: “ Para além dos pedidos de condenação nas prestações previstas na lei para reparação do acidente de trabalho, o autor pede ainda a condenação da ré seguradora no pagamento da quantia de 10.000,00€ a título de compensação por danos não patrimoniais que alega ter sofrido por força da recusa (em seu entender injustificada) da ré em prestar-lhe assistência médica, o que considera ser um incumprimento do contrato de seguro consigo celebrado.
As partes pronunciaram-se. O autor entende que não se verifica incompetência material do tribunal do trabalho. A ré defendeu o contrário, porque a causa do pedir não advirá directamente do acidente de trabalho, mas da invocada recusa de assistência médica que se insere no âmbito da responsabilidade contratual. Ora, o pedido por dano moral na jurisdição laboral somente é admissível quando resulta de culpa do empregador ou de violação de regras de segurança, que no caso não se coloca porque o autor é trabalhador independente
Foi proferido despacho saneador, conhecendo-se deste excepção e decidindo ser o “…tribunal competente para a apreciação de todos os pedidos deduzidos pelo autor.”
O recurso recai sobre esta questão
A ré interpôs recurso.

FUNDAMENTOS DO RECURSO DA RÉ -CONCLUSÕES:…

2. O despacho/decisão referida em 1. e 2. extravasa totalmente o âmbito do artigo 126.º n.º 1 al. c) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que consagra como competência dos tribunais de trabalho, as questões emergentes de acidentes de trabalho.
3. Violando, ainda, o disposto no artigo 18.º n.º 2 da Lei n.º 98/2009, de 04/09.
4. Ora, a causa de pedir em discussão não se enquadra numa “questão emergente de acidente de trabalho”:
5. As causas de pedir são perfeitamente autonomizáveis, precisamente porque uma emerge de um acidente de trabalho e outra insere-se no âmbito da responsabilidade contratual.
6. Trata-se de uma relação jurídica autónoma da lateral decorrente do acidente de trabalho, onde se discute a responsabilidade da seguradora na reparação dos danos dele resultantes.
7. Como se pode ler no próprio despacho recorrido: “… esse pedido traduz-se numa indemnização fundada em responsabilidade contratual e não na lei dos acidentes de trabalho, conforme se afirmou no acórdão da Relação do Porto de 07/09/2015 (disponível em www.dgsi.pt, com n.º de processo: 2027/12.0TTPNF.P1).”
8. É certo que, a extensão da competência material do Tribunal de Trabalho prevista no artigo 18.º n.º 1 da Lei nº 98/2009, de 04/09, é uma típica competência por conexão.
9. Isto é, se a pretensão principal tem em vista o direito à reparação especialmente prevista na lei laboral, então a competência do tribunal poderá estender-se à apreciação de indemnização por não patrimoniais.
10. Mas tal só acontecerá, nos casos em que tal indemnização é admissível, ou seja, quando o acidente tiver sido provocado pela entidade patronal ou resultar da falta de observância das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.
11. Sendo o Autor trabalhador independente, tal pedido é inadmissível em sede de reparação por acidente de trabalho.
12. Não se encontra previsto, em qualquer das suas cláusulas, particulares ou gerais, a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais sofridos pelo segurado, trabalhador por conta própria, em consequência de acidente de trabalho, remetendo para a legislação sobre acidentes de trabalho o âmbito do direito à reparação.
13. O respectivo regime não comtempla os danos não patrimoniais, a não ser em casos em que haja culpa da entidade empregadora na produção do acidente de trabalho.
14. Não abrangendo o pedido de danos não patrimoniais qualquer “questão emergente de acidente de trabalho”, encontrando-nos, eventualmente, perante uma normal acção de responsabilidade civil com fundamento no incumprimento contratual, a competência para a sua apreciação e julgamento residirá nos tribunais comuns.
15. O tribunal a quo, desta forma fez errada aplicação do disposto no artigo 126.º n.º 1 al. c), da Lei n.º 62/2013 de 26/08 e do artigo 18.º n.º 2 da Lei n.º 98/2009 de 04/09, uma vez que, ao contrário de dar por verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta, fez precisamente o contrário.
16. Deve o despacho/decisão ser revogado e substituído por outro em que seja proferido despacho, dando por verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta.

CONTRA-ALEGAÇÕES - a decisão recorrida deve ser mantida.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: a apelação deve ser julgada improcedente.
Não foram apresentadas respostas ao parecer.
O recurso foi apreciado em conferência.

QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (1)): excepção de incompetência material- será o tribunal de trabalho materialmente competente para conhecer de todos os pedidos formulados nos autos, mormente do pedido de condenação da ré no pagamento de €10.000 a título de compensação por danos não patrimoniais por incumprimento do contrato de seguro de trabalho?

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS:
São os constantes do relatório.

B) EXCEPÇÃO de INCOMPETÊNCIA MATERIAL

A competência “designa a repartição do poder jurisdicional pelos diversos tribunais do Estado…”. Visa-se “…determinar se o poder de julgar uma certa causa pertence, não ao tribunal a que está afecta, mas a um outro tribunal…” José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol.1, 2º ed., p 104.
A distribuição da competência interna entre os tribunais portugueses é feita com recursos a diversos critérios, entre eles a matéria (a par do valor da causa, da hierarquia e do território) - 60º CPC.
Desde logo, serão da competência dos tribunais judiciais (comuns) todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem judicial, designadamente aos tribunais administrativos e fiscais, ao tribunal de contas, ao tribunal constitucional, etc… – 60º, 64º CPC.
Nas relações entre os próprios tribunais judiciais vigora também uma regra da especialização em função da natureza das questões, atribuindo-se competência própria a juízos especializados. Subsistindo depois uma competência residual atribuída aos juízos cíveis, de acordo com a regulamentação feita pelas leis de organização judiciária (2). Esta é uma competência por exclusão de partes, pois somente o que não couber aos juízos especializados será da competência do foro cível – 60º, 65º CPC, 33º, 37º/1, 40º, 80º, 81º LSOJ.
Assim, aos juízos de trabalho em matéria cível compete conhecer, entre outras, das “questões emergente de acidente de trabalho” – 126º/1, c, LOSJ.
Já os juízos cíveis (centrais e locais) têm, nos termos referidos, uma competência residual, ou seja, só se ocupam de causas que não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunais de competência territorial alargada –81º/3, a/b, 117º, 130/1, LSOJ.
Compreenda-se que o fim que se almeja com a criação e repartição de competências entre tribunais especializados é o de “adaptar o órgão à função”. Procura-se que a causa seja decidida por quem na matéria tenha adequada e maior preparação técnico-jurídica - José Alberto do Reis, ob. citada, p. 107.
É também pacífico que a competência se afere pela causa de pedir e pelo pedido formulado.

No caso, diz-se na decisão recorrida:

“…para além dos pedidos de condenação nas prestações previstas na lei para reparação do acidente de trabalho, o autor pede ainda a condenação da ré seguradora no pagamento da quantia de 10.000,00€ a título de compensação por danos não patrimoniais que alega ter sofrido por força da recusa (em seu entender injustificada) da ré em prestar-lhe assistência médica, o que considera ser um incumprimento do contrato de seguro consigo celebrado.
Tal pedido decorre do facto de estarmos perante um sinistrado que é trabalhador independente e que, nessa medida (e ao contrário do que normalmente ocorre com os sinistrados em acidentes de trabalho, em que são beneficiários mas não tomadores do seguro), é simultaneamente tomador e beneficiário do seguro de acidentes de trabalho. Sucede que esse pedido traduz-se numa indemnização fundada em responsabilidade contratual e não na lei dos acidentes de trabalho…
Nos termos do disposto no art.º 126.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, é da competência dos juízos do trabalho a apreciação das questões emergentes de acidentes de trabalho. Conforme se disse, a causa de pedir na qual se baseia o pedido em apreciação não é o acidente de trabalho por cuja reparação se pretende responsabilizar a ré, mas sim o incumprimento do contrato de seguro com ela celebrado pelo autor. À partida, pois, estaríamos perante questão de natureza cível cuja competência cairia no âmbito da competência residual dos juízos cíveis, consagrada no art.º 40.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto. Sucede que apesar de a fonte da responsabilidade invocada pelo autor ser aquele contrato de seguro, a apreciação desse pedido depende totalmente dos factos em discussão para apuramento do direito à reparação pelo acidente de trabalho – saber quando (e se) se deu a consolidação das lesões, se deveria a ré ter prestado outro tipo de assistência médica ao autor e se a eventual falta de tal assistência gerou ou agravou as lesões por este sofridas.

Concordamos com a apreciação feita.

O pedido de indemnização por danos morais não emerge só de um alegado incumprimento do contrato de seguro de trabalho, mas sim de uma relação jurídica mais ampla e complexa que implica a análise do acidente de trabalho e das consequências que dele resultaram para o autor. Ora, tal análise cai ainda dentro da alçada atribuída aos tribunais de trabalho.
Recordamos a razão que subjaz à atribuição da competência material. A saber, o reconhecimento da maior preparação técnico-jurídica de que o magistrado de um juízo especializado estará dotado. Porque mais vocacionado para conhecer de causas que, por lhe estarem a priori atribuídas e com elas diariamente se ocupar, lhe aumentarão o saber advindo da experiência, em detrimento de um juízo de competência residual e genérica.
Ora, o pedido de danos morais formulado nos autos depende essencialmente de toda uma prévia actividade judicial tipicamente laboral, qual seja a de saber se ocorreu um acidente de trabalho, se existe dano na capacidade de ganho e de trabalho, bem como a fixação de incapacidade com perícias sujeitas a regras próprias do foro laboral.
A análise do dano moral é uma actividade para o qual tal jurisdição está preparada, porquanto já o faz, embora noutro âmbito, mormente em caso de violação de regras de segurança pelo empregador, sendo utilizados critérios parcialmente comuns, mormente na fixação do que se considera dano moral relevante e na sua quantificação monetária.
Acresce que é suposto o tribunal o trabalho estar familiarizado com a análise de contratos de seguro por acidentes de trabalho, incluindo o caso específico do contrato de seguro de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes. Em suma, disporá, à partida, de um maior grau de especialização para apreciar a questão do que um tribunal cível de competência residual.

Finalmente, numa outra ordem de razões, concordamos como o tribunal recorrido quando afirma:

“…mal se compreenderia que tivesse o trabalhador/tomador/beneficiário do seguro de lançar mão de duas ações em duas jurisdições distintas para obter o total ressarcimento dos danos que entende ter sofrido. Tal incongruência seria ainda maior quando se verifica que a decisão da ação na qual fosse pedir apenas os danos não patrimoniais estaria totalmente dependente da decisão a proferir na ação de reparação do acidente de trabalho, uma vez que para aferir da existência do dano se teria primeiramente de apurar quando ocorreu a alta, se deve ou não ser o autor sujeito aos tratamentos que reclama e que a ré se terá negado a prestar e qual a incapacidade de que se mostra afetado. “.
Assim, diremos nós, aconselham esta solução também razões de economia processual, de eficiência e eficácia do sistema, bem como de harmonia no julgar.

Ocorrendo uma absorção de competências por parte da jurisdição laboral, conforme acórdão do STJ de 30-04-2019, www.dgsi.pt, onde se refere:

Consagra-se, assim, o princípio da absorção das competências, o que equivale a dizer que tendo os Tribunais de trabalho a competência exclusiva para a apreciação das problemáticas decorrentes dos acidentes de trabalho, a eles competirá, mutatis mutandis, igualmente, o conhecimento de todas as questões cíveis relacionadas com aqueles que prestem apoio ou reparação aos respectivos sinistrados, já que, o cerne da discussão se concentra na ocorrência do sinistro e eventual violação por banda da entidade empregadora das regras de segurança.”

Também o acórdão do STJ de 8-06-2017 (R. Leones Dantas), www.dgsi.pt, assinala:
“1 – Incumbe à Jurisdição do Trabalho, através das Secções Especializadas do Trabalho, conhecer «c) das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais», nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto. 2 – Cabe na competência daquelas secções conhecer dos litígios emergentes de acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria, no exercício das suas funções, litígios esses que ocorram entre aqueles trabalhadores e as seguradoras para quem tenham transferido a responsabilidade pela reparação das consequências daqueles acidentes, mesmo quando ocorridos antes de 1 de janeiro de 2000.”
O caso em análise não se debruçou em específico sobre um pedido de dano moral, mas a fundamentação é inteiramente aproveitável, designadamente na parte em que se concluiu:

Deste modo, tendo em conta as razões que justificam a existência da Jurisdição do Trabalho no sistema jurídico português e a sua melhor aptidão para a realização da Justiça do caso, pode concluir-se que cabem na competência desta jurisdição os litígios emergentes de acidentes sofridos por trabalhadores por conta própria, no exercício das suas funções, que envolvam esses trabalhadores e as seguradoras para quem tenham transferido o risco inerente ao exercício dessas funções, nos termos de contrato de seguro…”.

Assim sendo, concordamos que o pedido de indemnização por danos não patrimoniais formulado nos autos, pese embora parcialmente fundado na responsabilidade contratual, pode e deve, ainda, enquadrar-se nas “questões emergentes de acidentes de trabalho” que são da competência do tribunal do trabalho.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, de acordo com o disposto nos artigos 87º, CPT e 663º, CPC, acorda-se em negar provimento ao recurso mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
10-09-2020

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins


1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
2. Lei 62/2013 de 26-08, com as sucessivas alterações, doravante LOSJ.