Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1508/16.1T8CHV.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE
PESSOA COLECTIVA
PRESCRIÇÃO
ILÍCITO CRIMINAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - É de cinco anos, por aplicação do nº 3 do artigo 498. do CC, o prazo de prescrição da acção de responsabilidade civil proposta contra uma pessoa colectiva para obter indemnização por ofensas corporais causadas por acidente de viação, porque se trata de responsabilidade por factos ilícitos que se fossem imputados a pessoas físicas determinadas - como os agentes da pessoa colectiva que omitiram os deveres que sobre esta impendiam - podiam integrar o ilícito penal do artigo 144º do C. Penal, cujo procedimento criminal está sujeito a prescrição no prazo de cinco anos - artigo 118º nº 1, c) do CP.
II - Não é pelo facto de a pessoa colectiva não ser responsabilizada penalmente, nem pelo facto de não se terem individualizado na acção as pessoas físicas sobre as quais deve recair a censura pela omissão causadora do acidente e dos danos (tal como descritos na petição), que deixa de se aplicar a previsão do nº 3 do artigo 498º do CCiv.
Decisão Texto Integral: N, melhor identificado nos autos,instaurou, em 8.8.2016,contra«Z» e «L», também melhor identificadas nos autos, a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo a condenação das rés a pagar-lhe uma indemnização pelos danos sofridos, em consequência do acidente de viação de que foi vítima, ocorrido em 11.8.2011, em quantia a liquidar em execução de sentença, assim como a quantia, também a liquidar em execução de sentença, correspondente às despesas médicas, exames médicos e outros que se mostrem necessários à correcção estética e funcional das suas lesões, decorrentes do acidente em causa.
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Alega para tanto que no verão de 2011 se encontrava ao serviço da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Salvação Pública de Chaves como bombeiro voluntário, conduzindo a viatura com a matrícula FT, tendo sido mobilizado para combater um incêndio próximo da aldeia de Sapiãos, concelho de Boticas.
O autor entrou na auto-estrada A 24, circulando no sentido Chaves - Vila Real, dentro dos limites de velocidade e ao chegar à saída 20 da auto-estrada, circulando na via mais à direita, iniciou a manobra para sair pela via de acesso à Estrada Nacional 103 para Sapiãos o que fez de forma cuidada e com a normal diligência.
Ao descrever a curva à sua direita, na saída da auto-estrada, indo a uma velocidade inferior a 50 km/h o pneu direito traseiro da viatura rebentou de forma inopinada, não sendo previsível que tal viesse a acontecer. Em consequência, o autor perdeu o controlo da viatura tendo capotado.
Quando o autor tomou conta do veículo foi-lhe garantido que o mesmo estava em perfeitas condições de segurança pelos responsáveis da AHBVSP.
Porém, no decurso da condução veio a apurar-se que a viatura apresentava deficiências várias ao nível dos pneus, cabendo a culpa pela ocorrência do acidente à AHBVSP que entregou ao autor um veículo em deficientes condições de funcionamento, colocando em risco a sua vida e a dos demais ocupantes.
A AHBVSP tinha conhecimento das condições precárias da viatura em que circulava o autor, bem como dos problemas nos seus pneus, vindo a verificar-se que possuíam protuberâncias que diminuíam a textura do seu piso podendo rebentar a qualquer momento.
Mesmo assim conformaram-se com a sua conduta, ordenando ao autor que seguisse com a viatura e informando-o que estava tudo bem, agindo com indiferença e desprezo pela segurança dos passageiros e conformando-se com o resultado que dali pudesse advir.
Praticando, assim, um crime de ofensa à integridade física grave com dolo eventual, previsto e punido pelo art-144°, do Cód. Penal.
No que se refere à responsabilidade, alegou que a AHBVSP transferiu para a ré Zurich a responsabilidade pela indeminização dos danos decorrentes de acidente de viação, através de contrato titulado pela apólice 00462794 e transferiu a responsabilidade pela ocorrência de acidentes pessoais dos seus bombeiros voluntários para a ré Lusitânia através de contrato de seguro titulado pela apólice 2153.
Tratando-sede um acidente de viação e de um acidente pessoal,diz que a responsabilidade deve ser imputada a ambas as rés no limite das apólices contratadas.
Em resultado do acidente, o A. diz que sofreu lesões várias, que descreve, relegando a sua quantificação para momento posterior.
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Ambas as rés vieram contestar a acção, impugnando, além do mais, a ré Lusitânia, os factos alegados pelo A. relacionados com os danos sofridos no acidente, e deduzindo a ré Z, além do mais, a exceçãoperentória da prescrição do direito do A.por ter intentado a acção para além do prazo de três anos previstos no artº 498º nº1 do CC.
Impugna também os danos alegadamente sofridos pelo A.
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O A veio responder às contestações das rés, nomeadamente à exceção da prescrição invocada pela ré Z, pugnando pela sua improcedência.
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Foi então proferido o seguinte despacho:
“…Nos termos do art. 597°, do Cód. Proe. Civil, atento o valor da acção, não se realiza a audiência prévia.
Considerando que os autos reúnem todos os elementos necessários e tendo sido a questão debatida nos articulados pelas partes, profere-se despacho saneador ao abrigo do disposto no art. 595°, nº 1, al. b), parte final do Cód. Proe. Civil.
(…)
N instaurou contra «Z» e «L» a presente acção declarativa de condenação.
Alegou que, no verão de 2011 se encontrava ao serviço da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Salvação Pública de Chaves como bombeiro voluntário, conduzindo a viatura com a matrícula FT, tendo sido mobilizado para combater um incêndio próximo da aldeia de Sapiãos, concelho de Boticas (…).
Ao descrever a curva à sua direita, na saída da auto-estrada, indo a uma velocidade inferior a 50 km/h o pneu direito traseiro da viatura rebentou de forma inopinada, não sendo previsível que tal viesse a acontecer.
Em consequência, o autor perdeu o controlo da viatura tendo capotado.
Quando o autor tomou conta do veículo foi-lhe garantido que o mesmo estava em perfeitas condições de segurança pelos responsáveis da AHBVSP.
Porém, no decurso da condução veio a apurar-se que a viatura apresentava deficiências várias ao nível dos pneus cabendo a culpa pela ocorrência do acidente aos AHBVSP que entregou ao autor um veículo em deficientes condições de funcionamento colocando em risco a sua vida e a dos demais ocupantes.
A AHBVSP tinha conhecimento das condições precárias da viatura em que circulava o autor, bem como dos problemas nos seus pneus vindo a verificar-se que possuíam protuberâncias que diminuíam a textura do seu piso podendo rebentar a qualquer momento.
Mesmo assim conformaram-se com a sua conduta ordenando ao autor que seguisse com a viatura e informando-o que estava tudo bem.
Agindo com indiferença e desprezo pela segurança dos passageiros e conformando-se com o resultado que dali pudesse advir.
Praticando, assim, um crime de ofensa à integridade física grave com dolo eventual, previsto e punido pelo art-144°, do Cód. Penal (…).
Conclui pedindo que sejam as rés condenadas a pagar ao autor uma indemnização pelos danos sofridos em consequência do acidente de quantia a liquidar em execução de sentença.
Mais devem ser condenadas a pagar a quantia a liquidar em execução de sentença correspondente às despesas médicas, exames médicos e outros que se mostrem necessários à correcção estética e funcional das suas lesões decorrentes do acidente em causa.
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Regularmente citada a ré «L» apresentou contestação (…)
Por sua vez, a ré «Z» contestou a fls. 51 e ss, invocando, desde logo que o autor sustenta que a AHBVSP praticou um crime de ofensa à integridade física simples com dolo eventual previsto e punido pelo art. 144°, do Cód. Penal.
Para o efeito afirma que a AHBVSP sabendo das condições precárias da viatura com a matrícula FT, nomeadamente do estado dos pneus considerou-a, mesmo assim, apta para o serviço, o que fez com que, ao ser mobilizado para combater um incêndio próximo da localidade de Sapiãos, um dos pneus rebentasse e provocasse o acidente de viação.
Nos termos do art. 11°, nº 1, do Cód. Penal, salvo nos casos especialmente previstos na lei, e o disposto no n.02, do art. 11°, só são susceptíveis de responsabilidade criminal as pessoas singulares.
Oart. 144°, nº l , não prevê que o crime de ofensa à integridade física simples possa ser imputado a uma pessoa colectiva.
Não pode assim o autor beneficiar do alargamento do prazo de prescrição previsto no art. 498°, nº 3, do Cód. Civil, pelo que se considera ser de aplicar o prazo de 3 anos previsto no nº 1.
Tendo o acidente ocorrido a 11 de Agosto de 2011 e a acção instaurada a 8 de Agosto de 2016 já decorreu o prazo de prescrição, pelo que o direito se encontra prescrito.
Notificado para se pronunciar quanto à matéria de excepção arguida pelas rés, veio o autor afirmar que na sua petição inicial alega de forma clara o acidente sofrido e a quem entende dever ser imputada a responsabilidade pelos danos suportados na sua sequência.
No que se refere à prescrição determina o art. 498°, nº 2, do Cód. Civil que o prazo é mais alargado desde que o facto constitua crime, independentemente de quaisquer outras questões de punibilidade
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Apreciando.
Por uma questão de ordem lógica começa por ser apreciar a excepção peremptória da prescrição arguida pela ré «Z» (…).
O autor sustenta que o pedido de indemnização formulado na presente acção tem subjacente a prática de factos que consubstanciam o ilícito criminal de ofensa à integridade física grave previsto no art. 144°, do Cód. Penal, acrescentando que o art. 498°, nº 3 do Cód. Civil prevê que, nesse caso, o prazo de prescrição para o referido ilícito criminal seria de 5 anos.
A presente acção apresenta-se estruturada com base na responsabilidade civil extracontratual ou por factos ilícitos prevista nos artºs 486° e ss do Cód. Civil.
«E, por assim ser, estatuiu o n° 1 do artigo 498.° do referido diploma legal que"o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos (a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos) sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso". Dispõe por sua vez o n° 3, da mesma disposição legal, que "Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo é este o prazo aplicável'.
Ora, a este respeito, cremos ser pacífico que a aplicação do prazo de prescrição previsto na lei penal não depende do efectivo exercício de procedimento criminal, assim como não impede a acção cível, o facto de o processo crime ter sido arquivado, ou amnistiado, mas a conduta ilícita que constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, há-de estar alegada (…).
Efectivamente, o alongamento do prazo de prescrição constante do nº 3 do citado artigo 498.° do C. Civil não exige que naquele caso concreto tenha existido um processo-crime em que se tenha apurado a prática de um crime, bastando que a factualidade geradora de responsabilidade civil e da respectiva obrigação de indemnizar preencha os elementos de um tipo legal de crime, relativamente ao qual a lei penal admite o seu apuramento judicial em prazo mais alargado que o previsto no número daquele inciso.
Assim, mesmo arquivado o processo-crime, podem os lesados intentar a acção cível para além do prazo de 3 anos, previsto no referido n.º 1 do artigo 498.°, desde que aleguem e provem, nessa mesma acção, que o facto ilícito invocado constitui crime, cujo prazo prescricional é superior, uma vez que o alongamento do prazo prescricional radica na especial qualidade do ilícito e não na circunstância de se demonstrar, em sede penal, o respectivo crime, sendo suficiente para a dedução da acção cível que o facto ilícito constitua crime e que a prescrição do respectivo procedimento penal esteja sujeito a um prazo mais longo que o previsto para aquela, não estando subordinada à condição de simultaneamente correr procedimento criminal contra o lesante, pelos mesmos factos.» ( ... )
Contudo, o lesado que pretenda beneficiar deste prazo mais alargado tem o ónus de, por um lado, alegar que os factos praticados pela pessoa a quem pede a indemnização, além de constituírem um ilícito civil, constituem, igualmente, um ilícito criminal, e por outro, de concretizar, através dessa mesma alegação, os factos emcausa.» (…)
Ao autor cabe a afirmação dos factos que, segundo a norma substantiva servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido. O autor terá, assim, o ónus de afirmar os factos (constitutivos) correspondentes à situação de facto traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão.
Retornando ao caso em apreço constata-se que o autor pretende beneficiar do alargamento do prazo prescricional invocando que os factos por si alegados integram a prática de um crime de ofensa à integridade física grave previsto pelo art. 144°, do Cód. Penal e punido com uma pena de prisão de 2 a 10 anos.
Imputa a prática do crime à AHBVSP.
Conforme supra se referiu para que o lesado possa exigir a reparação civil que lhe é devida fora do prazo normal de prescrição nos termos do art. 498°, nº 3, do Cód. Civil não é necessário que simultaneamente corra procedimento criminal contra o lesante baseado nos mesmos factos. Torna-se suficiente que o facto ilícito gerador da responsabilidade civil constitua crime e que a prescrição do respectivo procedimento criminal esteja sujeita a um prazo mais longo do que o estabelecido para a acção civil.
Basta que haja em princípio a possibilidade de instauração de procedimento criminal ainda que, por qualquer causa, ele não possa ser efectivamente instaurado.
Sendo a AHBVSP uma entidade de natureza colectiva, coloca-se a questão, se tal obsta a que o prazo prescricional seja alargado.
De acordo com o art. 11°, nº 1 do Cód. Penal a regra é a de que, apenas as pessoas singulares são susceptíveis de serem penalmente responsáveis, o que vale dizer que, apenas estas, em princípio podem cometer crimes.
No entanto, a própria lei estabelece situações ou tipos de crime em que a responsabilidade penal pode ser assacada a pessoas colectivas.
São elas as situações previstas no nº 2, do art. 11°, do Cód. Penal, sendo que no seu elenco não se integra os crimes de ofensa à integridade física, designadamente, o crime de ofensa à integridade física grave.
Para que possa existir um ilícito criminal tem de existir um autor do crime, mesmo que o mesmo não esteja, em determinado caso concreto, individualizado ou determinado, bastando que, em abstracto, seja possível proceder à sua individualização.
Na situação de que se ocupa, a AHBVSP, atenta a sua natureza colectiva (associação) não pode praticar o crime que lhe é imputado pelo autor. Logo, em abstracto não poderia ter lugar qualquer procedimento criminal pelos factos alegados pelo autor.
Ou seja, não se está perante uma questão de punibilidade (que exige a verificação do tipo legal de crime, mas que, por alguma razão, não é possível a aplicação da sanção), mas sim perante a própria inexistência do ilícito.
Deste modo, tal obsta à aplicação do disposto no art. 498°, nº 3, do Cód. Civil, sendo de aplicar o prazo de 3 anos consagrado no nº l , do preceito.
Tendo em conta que os factos ocorreram a 11 de Agosto de 2011 e a presente acção foi instaurado a 8 de Agosto de 2016 há muito que tinha decorrido o prazo de 3 anos, pelo que não resta senão declarar prescrito o direito de que o autor se arroga.
Por sua vez, o art. 301°, do Cód. Civil determina que a prescrição aproveita a todos que dela possa tirar benefício sem excepção dos incapazes, pelo que, aproveita a ambas as rés.
A prescrição configura uma excepção peremptória, o que, nos termos do art. 576°, nº 3 do Cód. Proc. Civil importa a absolvição total ou parcial do pedido.
Em face do exposto, julgo procedente por provada a excepção da prescrição arguida e em consequência absolvo as rés «Z» e «L» do pedido formulado pelo autor…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio o A/recorrente interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:
“A) O Autor ora Recorrente apresentou a presente ação pedindo a condenação das Rés ora Recorridas no pagamento de uma indemnização em resultado de um acidente de viação sofrido no dia 11 de agosto de 2011. O Tribunal a quo, tendo visto a questão suscitada por uma das Recorridas, a ZInsuranceplc - Sucursal em Portugal, proferiu sentença no despacho saneador, julgando procedente a exceção de prescrição e absolvendo as Recorridas do pedido.
B) O Tribunal a quo entendeu que o prazo de prescrição aqui em causa é de três anos e não de cinco anos, fazendo, salvo devido respeito, uma errada leitura do disposto no artigo 498.°, nº 2 e nº 3 do Código Civil (CC). É apenas esta a questão em apreciação no presente recurso.
C) As normas referidas prevêem a aplicação do prazo de prescrição mais longo do que o dos três anos subordinada apenas a uma condição: a que o facto ilícito constitua crime.
D) Não cremos que haja dúvidas que o facto ilícito descrito na petição inicial constitui crime de ofensas à integridade física grave com dolo eventual, nos termos do artigo 144.° do CP. Como não cremos que haja dúvidas que o prazo de prescrição penal para apreciação deste facto é de cinco anos, nos termos do artigo 118.°, nº 1, alínea c) do CP.
E) Na tese do Tribunal a quo, estando em causa a responsabilidade de uma pessoa de natureza coletiva (a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Salvação Pública de Chaves - AHBVSP) e não podendo ela praticar o crime que o Recorrente lhe imputa, estamos diante de uma situação de inexistência de ilícito (v. p. 9 da sentença recorrida).
F) O Recorrente não se conforma com este entendimento e crê que a jurisprudência já o afastou de forma clara e, julgávamos nós, definitiva.
G) Neste sentido, veja-se, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 19.04.2005, no Processo 0211/05 (…), que esclarece de forma clara a questão: porque se trata de responsabilidade por factos ilícitos que se fossem imputados a pessoas físicas determinadas, como os agentes da pessoa colectiva que omitiram os deveres que sobre esta impendiam, podiam integrar o ilícito penal do artigo 148º nº 1 do C. Penal, cujo procedimento criminal está sujeito a prescrição no prazo de cinco anos - artigo 118º nº 1 - c) do CP.
H) Na verdade, um único é o requisito constante do artigo 498.°, nº 3 do CC: que o facto ilícito constitua crime. Sem se preocupar com o possível autor ou pessoa responsabilizável. Sem se preocupar com quaisquer condições de punibilidade. Sem se preocupar sequer com a instauração de qualquer processo crime.
I) Perante tal simplicidade de redação, não vemos como possa o Tribunal a quo defender a sua interpretação. Certo é que na sua sentença viola as normas constantes do artigo 498.°, nº 2 e nº 3 do CC.
Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, determinando-se a revogação da sentença recorrida em conformidade…”.
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As recorridas vieram apresentar contra-alegações, pugnando ambas pela manutenção da decisão recorrida.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é apenas a de saber se se aplica ao caso dos autos o prazo de prescrição mais alargado, de 5 anos.
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Os factos a considerar para a decisão da questão colocada são os mencionados no relatório deste acórdão, assim como os mencionados na decisão recorrida.
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Da questão da prescrição do direito do A:
Insurge-se o recorrente contra a decisão recorrida, que julgou prescrito o seu direito de indemnização contra as rés, defendendo que o facto ilícito por si alegado, praticado pela Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Salvação Pública de Chaves - AHBVSP –, constitui crime de ofensa à sua integridade física grave, com dolo eventual, pelo que o prazo de prescrição do seu direito é de 5 anos e não de 3.
E temos de concordar com o recorrente.
De acordo com o nº 1 do artigo 498º do Código Civil, o direito de indemnização derivado da responsabilidade civil extracontratual prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, mas se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável (nº 3).
Ora, segundo o recorrente, deve ser aplicável ao caso o prazo de prescrição mais alargado de 5 anos – o prazo previsto no artº 118º nº 1, alínea c) do Código Penal–, porque o facto ilícito imputado á AHBVSP integra a prática de um crime de ofensa à integridade física grave com dolo eventual, previsto e punido pelo artigo 144º do Código Penal – conforme foi por si alegado nos artºs 20º a 28º da p.i.
E efectivamente alegou o A. naqueles artºsque a ocorrência do acidente de que foi vítima ficou a dever-se à deficiência dos pneus da viatura que conduzia – que apresentavam protuberâncias que diminuíam a textura do seu piso podendo rebentar quando menos se esperasse -, nada podendo fazer o Autor, na qualidade de condutor, para evitar o seu rebentamento e o consequente capotamento, facto que não depende do seu cuidado de condução.
Mais alegou que a AHBVSP tinha conhecimento das condições precárias da viatura em que circulava o Autor, assim como dos problemas nos seus pneus, e mesmo assim conformou-se com a situação, ordenando ao autor que seguisse viagem, informando-o de que estava tudo em ordem, não devendo preocupar-se.
Porém, no decurso da condução veio a apurar-se que a viatura apresentava deficiências várias ao nível dos pneus, cabendo a culpa pela ocorrência do acidente à AHBVSP que entregou ao autor um veículo em deficientes condições de funcionamento, colocando em risco a sua vida e a dos demais ocupantes.
Segundo o A., praticou aquela associação um crime de ofensa à integridade física grave com dolo eventual p. e p. pelo artigo 144º do Código Penal.
Alegou assim o A. factos que, a provarem-se, são susceptíveis de integrarem o crime de “Ofensa à integridade física grave” previsto e punido pelo artº 144º, alínea c) do Código Penal, no qual se prevê que “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a (…) Provocar-lhe perigo para a vida (alínea d) é punido com pena de prisão de dois a dez anos” cujo prazo de prescrição é de 5 anos nos termos do artº 118º, nº1, alínea c) do mesmo diploma legal (por se tratar de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos).
Nesta matériatemos de concordar com o recorrente de que foram alegados factos suficientes para a integração do alegado ilícito praticado no tipo legal de crime invocado.
Mas também temos de concordar com o tribunal recorrido, de que à AHBVSP, enquanto pessoa colectiva, não pode ser imputada a prática daquele tipo legal de crime, - crime de ofensas corporais -, pois de acordo com o artº 11°, nº 1 do Cód. Penal a regra é a de que apenas as pessoas singulares são susceptíveis de serem penalmente responsáveis, o que vale dizer que, apenas estas, em princípio, podem cometer crimes, sendo a própria lei a estabeleceras situações ou tipos de crime em que a responsabilidade penal pode ser assacada a pessoas colectivas – as elencadas no nº 2 do art. 11° do Cód. Penal (nelas não se incluindo o tipo legal de crime previsto no artº 144º.)
Concordamos também com o ali decidido de que “Para que possa existir um ilícito criminal tem de existir um autor do crime, mesmo que o mesmo não esteja, em determinado caso concreto, individualizado ou determinado, bastando que, em abstracto, seja possível proceder à sua individualização”.
E por isso, acompanhamos o que consta da mesma decisão de que, “Na situação de que se ocupa, a AHBVSP, atenta a sua natureza colectiva (associação) não pode praticar o crime que lhe é imputado pelo autor. Logo, em abstracto, não poderia ter lugar qualquer procedimento criminal (contra a mesma) pelos factos alegados pelo autor…”
E daí conclui que “…tal obsta à aplicação do disposto no art. 498°, nº 3, do Cód. Civil…”
É, no entanto, deste último segmento da decisão que discordamos, porque entendemos que a leitura que se tem de fazer do disposto no artº 498º nº 3 do CC – quando esteja em causa a responsabilidade civil das pessoas colectivas – é a de que o que releva para efeitos de prescrição é o facto ilícitoem si, a sua natureza criminal, e não a entidade que o pratica – no pressuposto de que a pessoa colectiva demandada está a sê-lo enquanto entidade responsável pelos atos praticados pelos seus subordinados.
Como se sumariou no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 19.04.2005 (citado pelo recorrente e disponível em www.dgsi.pt):
“I - É de cinco anos, por aplicação do nº 3 do artigo 498. doCCiv., o prazo de prescrição da acção de responsabilidade civil proposta contra um Município para obter indemnização por ofensas corporais e danos causados por obras e obstáculos não sinalizados em via municipal aberta ao trânsito, porque se trata de responsabilidade por factos ilícitos que se fossem imputados a pessoas físicas determinadas, como os agentes da pessoa colectiva que omitiram os deveres que sobre esta impendiam, podiam integrar o ilícito penal do artigo 148º nº 1 do C. Penal, cujo procedimento criminal está sujeito a prescrição no prazo de cinco anos - artigo 118º nº 1, c) do CP.
II - Não é pelo facto de o R. Município não ser responsabilizado penalmente, nem pelo facto de não se terem individualizado as pessoas físicas sobre as quais deve recair a censura pela omissão causadora do acidente e do dano (tal como descritos na petição), que deixa de se aplicar a previsão do nº 2 do artigo 498º do CCiv., porque tais pessoas ou podiam também ser réus na acção ou se não podiam é por razões especificas da repartição da responsabilidade entre os entes públicos e os seus agentes, sendo certo que se estivessem na acção não poderia existir um prazo diferente de prescrição para cada responsável…”.
Como consta também do texto do acórdão citado “Para saber se o facto constitui ou não crime é necessário que a materialidade das ocorrências que integram o ilícito civilintegrem também um lícito penal.O ilícito penal assenta necessariamente numa censura moral que apenas é possível desferir contra uma pessoa física.
Desta perspectiva pareceria que em acções propostas contra pessoas colectivas de direito privado ou de direito público a regra do n.º 3 do artigo 498 do CCiv. nunca seria aplicável.
Mas não é assim, porque as pessoas colectivas são integradas por um substrato humano e são as pessoas físicas que agem em nome e no interesse das pessoas colectivas e entes públicos.
Ora, as pessoas físicas é que têm determinados comportamentos entre os quais omissões de deveres de diligência que podem estar na base de responsabilidade civil dos entes públicos em cuja esfera de interesses se inscreve a actividade em que surgiu o dano.
Evidentemente que a culpa individual não se transfere, dada a sua natureza psicológica e pessoal para as pessoas morais.
Mas, quando se diz que o Município demandado em acção de responsabilidade civil mantinha, devido a obras, uma elevação do pavimento e da tampa de saneamento da rua a seu cargo, onde continuava a autorizar a circulação de veículos, sem que tal obstáculo estivesse sinalizado, dando assim origem a que nas circunstâncias específicas do caso o A. não tivesse podido evitar o embate sem culpa sua na elevação, do que resultaram ferimentos e danos, isto significa que houve pessoas físicas que terão deixado de cumprir o dever que incumbia ao Município de manter devidamente sinalizadas as obras e obstáculos ocasionais, para evitar consequências como as que estão na origem da acção.
E, como tais omissões, reportadas à pessoa colectiva pública são, pelo mecanismo jurídico da personalidade colectiva, as imputáveis às pessoas físicas que actuaram na esfera de gestão que à pessoa colectiva incumbe, então é de justiça e tem sido admitido que se considere existir a culpa do ente público que serve de fundamento à responsabilidade civil.
E, sendo assim efectuada esta transposição também nada impede, antes se justifica, que para efeitos de apreciação da prescrição desta responsabilidade civil se atenda também à existência de condutas dos servidores da pessoa colectiva, ainda que não individualmente identificados, para averiguar se elas tal como alegadas pelo A. são susceptíveis de integrar o ilícito criminal como se fossem acções ou omissões de uma pessoa física concreta e identificada.
No caso de se verificarem os requisitos que seriam aplicáveis à responsabilidade penal das pessoas físicas, tem entendido a jurisprudência que é de aplicar o prazo de prescrição mais longo referido no n.º 3 do artigo 498.º do CCiv., solução que se considera como mais ajustada, visto que de outro modo ficaria injustificadamente sujeito a um tratamento diferente e menos exigente a responsabilidade das pessoas colectivas apenas pelo facto de os interesses ou actividades que estão na origem do dano estarem na órbita do património ou das competências ou dos fins da pessoa colectiva.
Releva também decisivamente a favor da aplicação do prazo do n.º 3 o facto de existindo responsabilização conjunta ou mesmo em exercício de direito de regresso da pessoa ou pessoas físicas que deram origem ao dano imputável à esfera da pessoa colectiva em cujo nome e interesse agiram, tal responsabilidade criminal e civil poder ser exercida em cinco anos, pelo que não faria sentido submeter a prazo diferente a responsabilidade de apenas um dos obrigados civilmente a tal reparação dos danos, a pessoa colectiva.
Efectivamente, se em muitos casos não são demandados como Réus as pessoas físicas que cometeram a falta que está na origem da responsabilidade do ente público é apenas pela particular divisão de responsabilidades entre a administração e os actos culposos dos seus funcionários e agentes decorrente dos art.ºs 2.º n.º 2 e 3.º do DL 48051, de 21.11.67, e não pelo facto de não existir tal responsabilidade pessoal.
E referindo-se ao acórdão do mesmo tribunal, de 2.12.2004 (também disponível em www.dgsi.pt) refere que o mesmo “…ao referir que se devem provar os elementos do crime, ainda que imputável a algum ou alguns dos Réus, quer-se significar a algum dos réus em sentido amplo, mesmo aos que podiam ser réus na acção ou demandados por aquela responsabilidade, quer estejam ou não concretamente como Réus na concreta situação em apreciação.
No mesmo sentido se decidiu também nos acórdãos do STA de 14.01.2004 (P. 01035/03); de 19.11.2003 (P. 01602/03); de 16.01.2003 (P. 046481); de 12.04.2000 (P. 044060) e de 26.06.86 (P. 020386) - todos eles mencionados no acórdão de 19.04.2005.
Ora, e reportando-nos agora ao caso dos autos, não há dúvida de que a responsabilidade penal em causa – imputada pelo A. à pessoa colectiva em questão -, seria também imputável às pessoas físicas que ordenaram ao A. a saída das instalações da Associação dos Bombeiros de Chaves para ir combater o incêndio, asseverando-lhe que a viatura que lhe destinaram estava em bom estado, quando a mesma estava, alegadamente, em mau estado.
Isso mesmo é, aliás, alegado expressamente pelo A na p.i.: “Quando o autor tomou conta do veículo foi-lhe garantido que o mesmo estava em perfeitas condições de segurança pelos responsáveis da AHBVSP”, mostrando-se ainda subentendido noutro facto, também por ele alegado, de que foi mandado sair das instalações dos bombeiros por alguém com competência para o efeito: “… encontrava-se ao serviço da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Salvação Pública de Chaves como bombeiro voluntário (…) tendo sido mobilizado para combater um incêndio próximo da aldeia de Sapiãos, concelho de Boticas…”
Ou seja, embora o A. demande apenas a Associação de Bombeiros de Chaves (como segurada das verdadeiras demandadas, as seguradoras), a quem imputa a prática do ilícito penal, subentende-se da sua alegação que houve ordens de alguém – dos responsáveis dos bombeiros – para seguir com aquela viatura, que apresentava deficiência a nível dos pneus, e que lhe garantiu que a viatura se encontrava em bom estado – sendo essas as pessoas responsáveis penalmente, caso fossem demandadas.
Ora, à luz do que vem alegado pelo A., o facto ilícito praticado (pelos responsáveis da Associação demandada) constitui crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo artigo 144.° do Código Penal, cujo prazo de prescrição é de 5 anos (nos termos previstos no artº 118º, nº1, c) do CP).
Assim sendo, conforme foi decidido nos acórdãos do STA citados– a cuja tese aderimos -, tal alegação é suficiente para ser aplicado ao caso o disposto no nº 3 do artº 498º do CC.
Procedem, assim, as conclusões do recurso do apelante, com a revogação da decisão recorrida, em conformidade.
Uma vez que carece ainda o A. de provar os factos por si alegados – susceptíveis de integrar a previsão legal do artº 144º do CP – factos que foram impugnados por ambas as rés, os autos devem prosseguir para ser conhecida a final, a exceção invocada.
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Sumário do acórdão:
I - É de cinco anos, por aplicação do nº 3 do artigo 498. do CC, o prazo de prescrição da acção de responsabilidade civil proposta contra uma pessoa colectiva para obter indemnização por ofensas corporais causadas por acidente de viação, porque se trata de responsabilidade por factos ilícitos que se fossem imputados a pessoas físicas determinadas - como os agentes da pessoa colectiva que omitiram os deveres que sobre esta impendiam - podiam integrar o ilícito penal do artigo 144º do C. Penal, cujo procedimento criminal está sujeito a prescrição no prazo de cinco anos - artigo 118º nº 1, c) do CP.
II - Não é pelo facto de a pessoa colectiva não ser responsabilizada penalmente, nem pelo facto de não se terem individualizado na acção as pessoas físicas sobre as quais deve recair a censura pela omissão causadora do acidente e dos danos (tal como descritos na petição), que deixa de se aplicar a previsão do nº 3 do artigo 498º do CCiv.
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Decisão:
Pelo exposto, julga-se procedente a Apelação e revoga-se a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir para ser apreciada e julgada a final, mediante a prova produzida, a exceção invocada pela ré Z.
Custas (da Apelação) pelas recorridas.
Notifique
Guimarães, 27.4.2016.