Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
131/08.9TAFLG-A.G1
Relator: ANA TEIXEIRA E SILVA
Descritores: ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/09/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: A notificação da acusação penal a uma sociedade declarada insolvente deve ser feita a quem a representa, nos termos do pacto societário, e não ao administrador da insolvência.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes, em conferência, na Secção Criminal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

O MINISTÉRIO PÚBLICO veio interpor recurso do despacho da Mmª Juiz do 3º Juízo de Felgueiras que declarou a nulidade da notificação da acusação efectuada à arguida “M..., S.A.”.

Da motivação, extrai as seguintes conclusões:

1. Apenas cabe ao AI a representação da insolvente para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.

2. A notificação da acusação aos arguidos, tal como a notificação estabelecida e imposta pelo art. 105°, n° 4, al. b), do RGIT, tem uma dimensão criminal.

3. O que extravase os aspectos patrimoniais relativos à insolvência, em que se inclui a nosso ver a notificação da acusação, não cabe nos poderes de administração do administrador.

4. Consideramos, portanto, que não se verifica a nulidade declarada no despacho recorrido e, nessa conformidade, mostram-se violados os arts. 81º, n° 4, do CIRE e 119°, al. c), do CPP.

Os arguidos não responderam.

Nesta instância, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

II - FUNDAMENTOS

1. O OBJECTO DO RECURSO.

A única razão de discordância: a notificação da acusação deduzida contra uma sociedade comercial declarada insolvente deve ser efectuada ao “gerente”[Nota de Rodapé] e não ao administrador da insolvência.

2. O DESPACHO RECORRIDO.

Conforme resulta dos autos, a sociedade arguida M..., S.A. foi declarada insolvente por meio de sentença transitada em julgado em 04/06/2007, sendo que o despacho de acusação pública foi proferido em 13/06/2011 e notificado, não ao administrador de insolvência nomeado no processo de insolvência, mas sim ao gerente da sociedade arguida em causa (cfr. fis. 3 16-317).

Ora, estabelece o artigo 81° n° 4 do CIRE que “O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”.

Considerando que no âmbito dos presentes autos, a eventual condenação da sociedade arguida M..., S.A. pela prática do crime de que vem acusada implica a sua condenação em pena de multa e consequentes custas processuais, considera o tribunal que os presentes autos têm também um carácter patrimonial que interessa à insolvência, na medida em que tais valores teriam de ser reclamados e reconhecidos no processo de insolvência.

Assim sendo, e por força da citada norma, é entendimento do tribunal que quem representa a sociedade arguida nos presentes autos, desde a sua declaração de insolvência, transitada em julgado, é o administrador de insolvência, até porque o gerente é, também ele, arguido nos presentes autos atenta essa mesma qualidade.

Cabendo ao Administrador de Insolvência a representação da sociedade arguida M..., S.A., o despacho de acusação deveria ter sido notificado a este, nos termos do disposto no artigo 81° n°4 do CPP, pelo que, com tal omissão, gerou-se a nulidade prevista no artigo 119° alínea c) do mesmo diploma legal, ou seja, a “ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência”.

Tal nulidade é insanável e deve assim ser conhecida oficiosamente, podendo ser declarada a qualquer altura do processo, conforme preceitua o artigo 119° do CPP, e implica a invalidade do acto viciado, neste caso a notificação do despacho de acusação pública, bem como todos aqueles que dele depender, nos termos do disposto no artigo 122° n°s. 1 e 2 do mesmo diploma legal.

Assim sendo, face a todo o exposto e nos termos das disposições legais citadas, declaro a nulidade notificação do despacho de acusação pública, bem como de todos os actos processuais subsequentes, devendo os autos ser remetidos aos serviços do Ministério Público junto deste Tribunal, a fim de serem feitas as diligências julgadas adequadas, atento o supra exposto, seguindo-se os demais termos subsequentes e dando-se as competentes baixas.

Notifique.

3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO.

Resulta dos autos:

· o Ministério Público deduziu acusação contra “M..., S.A. – Manufactura Industrial de Calçado, S.A.” e outros[Nota de Rodapé], imputando-lhe um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artºs 103º, nº1, als. a) e c), 104º, nºs 1, als. a), d), e), g), 2 e 3, 7º e 8º, do RGIT;
· a “M..., S.A.” foi declarada insolvente por sentença de 29/03/2007, transitada em julgado em 04/06/2007;
· a notificação da acusação terá[Nota de Rodapé] sido efectuada na pessoa de um administrador[Nota de Rodapé] da sociedade.

A questão suscitada afigura-se de decisão necessariamente favorável ao Digno Recorrente.

O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolventeartº 1º do CIRE.

Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência – artº 81º, nº1 do CIRE.

Está este preceito em consonância com o artº 55°, n.º 1, do CIRE, que rege sobre as funções e exercício do administrador da insolvência dispondo que:

Além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir:

a) Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram;

b) Prover, no entretanto, à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa, se for o caso, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica.

A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo – artº 46º, nº 1, do CIRE.

O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvênciaartº 81º, nº 4, do CIRE; mas os órgãos sociais do devedor mantém-se em funcionamento após a declaração de insolvência (artº 82º, nº1, do CIRE), competindo a representação da sociedade anónima ao respectivo conselho de administração e aos administradores (artºs 405º e 408º do Cód. Soc. Com.).

Deste regime legal, extrai-se, por um lado, que as funções do administrador da insolvência se direccionam, essencialmente, para a liquidação da massa insolvente, e, por outro, que os seus poderes de representação se restringem aos efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. No fundo, o âmbito funcional do administrador da insolvência é recortado pela limitação do insolvente inerente à declaração de falência.

Finalmente, deve ter-se presente que a função do administrador da insolvência traduz o cumprimento de um dever legal de interesse público.

Dentro de semelhante quadro legal, não se descortina norma que atribua ao administrador da insolvência a tarefa da representação da sociedade insolvente para efeitos penais; e é só desta que aqui se trata, uma vez que está em causa a comunicação do teor de libelo deduzido contra a sociedade arguida “M..., S.A.”, pela prática de crime de fraude fiscal qualificada.

Como bem se refere no ac. da RC de 28/09/2011[Nota de Rodapé], “tudo o que extravase os aspectos patrimoniais relativos à insolvência não cabe nos poderes de administração do administrador. Ora, um dos aspectos que extravasa o âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência são todas aquelas relativas a processos-crime (…)”.[Nota de Rodapé]

Mas mesmo que assim se não entendesse, sempre se dirá que nunca estaríamos perante uma nulidade, insanável ou sanável.

Estatui o artº 118º, nº1, do CPP: “A violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”.

Perante tal princípio da tipicidade e não se descortinando disposição que fulmine, de nulidade, sanável ou não, a falta ou irregularidade da notificação da acusação ao arguido (afigurando-se evidente que o invocado “artº 119º, al. c), do CPP” não tem qualquer aplicação, conforme decorre da sua mera leitura[Nota de Rodapé]), careceria de fundamento legal a declaração de nulidade operada pela Mmª Juiz a quo.

Assim já decidiu, por exemplo, a RE, em ac. de 06/11/2012[Nota de Rodapé], como decorre do seguinte excerto do sumário respectivo “I – A falta ou a irregularidade de notificação da acusação não consubstancia nulidade.

Em conclusão: não se vê fundamento legal para que a acusação fosse notificada na pessoa do administrador da insolvência, o que também não consubstanciaria a declarada “nulidade insanável”; por isso, impõe-se a revogação do despacho recorrido, proferido em 22/01/2013[Nota de Rodapé].

III - DECISÃO

Concede-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, revoga-se o despacho recorrido.

Sem tributação.