Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ANA TEIXEIRA E SILVA | ||
Descritores: | ACUSAÇÃO NOTIFICAÇÃO ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 09/09/2013 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO | ||
Sumário: | A notificação da acusação penal a uma sociedade declarada insolvente deve ser feita a quem a representa, nos termos do pacto societário, e não ao administrador da insolvência. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes, em conferência, na Secção Criminal da Relação de Guimarães
I – RELATÓRIO O MINISTÉRIO PÚBLICO veio interpor recurso do despacho da Mmª Juiz do 3º Juízo de Felgueiras que declarou a nulidade da notificação da acusação efectuada à arguida “M..., S.A.”. Da motivação, extrai as seguintes conclusões: 1. Apenas cabe ao AI a representação da insolvente para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. 2. A notificação da acusação aos arguidos, tal como a notificação estabelecida e imposta pelo art. 105°, n° 4, al. b), do RGIT, tem uma dimensão criminal. 3. O que extravase os aspectos patrimoniais relativos à insolvência, em que se inclui a nosso ver a notificação da acusação, não cabe nos poderes de administração do administrador. 4. Consideramos, portanto, que não se verifica a nulidade declarada no despacho recorrido e, nessa conformidade, mostram-se violados os arts. 81º, n° 4, do CIRE e 119°, al. c), do CPP. Os arguidos não responderam. Nesta instância, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso. II - FUNDAMENTOS 1. O OBJECTO DO RECURSO. A única razão de discordância: a notificação da acusação deduzida contra uma sociedade comercial declarada insolvente deve ser efectuada ao “gerente”[Nota de Rodapé] e não ao administrador da insolvência. 2. O DESPACHO RECORRIDO. Conforme resulta dos autos, a sociedade arguida M..., S.A. foi declarada insolvente por meio de sentença transitada em julgado em 04/06/2007, sendo que o despacho de acusação pública foi proferido em 13/06/2011 e notificado, não ao administrador de insolvência nomeado no processo de insolvência, mas sim ao gerente da sociedade arguida em causa (cfr. fis. 3 16-317). Ora, estabelece o artigo 81° n° 4 do CIRE que “O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”. Considerando que no âmbito dos presentes autos, a eventual condenação da sociedade arguida M..., S.A. pela prática do crime de que vem acusada implica a sua condenação em pena de multa e consequentes custas processuais, considera o tribunal que os presentes autos têm também um carácter patrimonial que interessa à insolvência, na medida em que tais valores teriam de ser reclamados e reconhecidos no processo de insolvência. Assim sendo, e por força da citada norma, é entendimento do tribunal que quem representa a sociedade arguida nos presentes autos, desde a sua declaração de insolvência, transitada em julgado, é o administrador de insolvência, até porque o gerente é, também ele, arguido nos presentes autos atenta essa mesma qualidade. Cabendo ao Administrador de Insolvência a representação da sociedade arguida M..., S.A., o despacho de acusação deveria ter sido notificado a este, nos termos do disposto no artigo 81° n°4 do CPP, pelo que, com tal omissão, gerou-se a nulidade prevista no artigo 119° alínea c) do mesmo diploma legal, ou seja, a “ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência”. Tal nulidade é insanável e deve assim ser conhecida oficiosamente, podendo ser declarada a qualquer altura do processo, conforme preceitua o artigo 119° do CPP, e implica a invalidade do acto viciado, neste caso a notificação do despacho de acusação pública, bem como todos aqueles que dele depender, nos termos do disposto no artigo 122° n°s. 1 e 2 do mesmo diploma legal. Assim sendo, face a todo o exposto e nos termos das disposições legais citadas, declaro a nulidade notificação do despacho de acusação pública, bem como de todos os actos processuais subsequentes, devendo os autos ser remetidos aos serviços do Ministério Público junto deste Tribunal, a fim de serem feitas as diligências julgadas adequadas, atento o supra exposto, seguindo-se os demais termos subsequentes e dando-se as competentes baixas. Notifique. 3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO. Resulta dos autos: · o Ministério Público deduziu acusação contra “M..., S.A. – Manufactura Industrial de Calçado, S.A.” e outros[Nota de Rodapé], imputando-lhe um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artºs 103º, nº1, als. a) e c), 104º, nºs 1, als. a), d), e), g), 2 e 3, 7º e 8º, do RGIT; A questão suscitada afigura-se de decisão necessariamente favorável ao Digno Recorrente. O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente – artº 1º do CIRE. Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência – artº 81º, nº1 do CIRE. Está este preceito em consonância com o artº 55°, n.º 1, do CIRE, que rege sobre as funções e exercício do administrador da insolvência dispondo que: “Além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir: a) Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram; b) Prover, no entretanto, à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa, se for o caso, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica.” A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo – artº 46º, nº 1, do CIRE. O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência – artº 81º, nº 4, do CIRE; mas os órgãos sociais do devedor mantém-se em funcionamento após a declaração de insolvência (artº 82º, nº1, do CIRE), competindo a representação da sociedade anónima ao respectivo conselho de administração e aos administradores (artºs 405º e 408º do Cód. Soc. Com.). Deste regime legal, extrai-se, por um lado, que as funções do administrador da insolvência se direccionam, essencialmente, para a liquidação da massa insolvente, e, por outro, que os seus poderes de representação se restringem aos efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. No fundo, o âmbito funcional do administrador da insolvência é recortado pela limitação do insolvente inerente à declaração de falência. Finalmente, deve ter-se presente que a função do administrador da insolvência traduz o cumprimento de um dever legal de interesse público. Dentro de semelhante quadro legal, não se descortina norma que atribua ao administrador da insolvência a tarefa da representação da sociedade insolvente para efeitos penais; e é só desta que aqui se trata, uma vez que está em causa a comunicação do teor de libelo deduzido contra a sociedade arguida “M..., S.A.”, pela prática de crime de fraude fiscal qualificada. Como bem se refere no ac. da RC de 28/09/2011[Nota de Rodapé], “tudo o que extravase os aspectos patrimoniais relativos à insolvência não cabe nos poderes de administração do administrador. Ora, um dos aspectos que extravasa o âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência são todas aquelas relativas a processos-crime (…)”.[Nota de Rodapé] Mas mesmo que assim se não entendesse, sempre se dirá que nunca estaríamos perante uma nulidade, insanável ou sanável. Estatui o artº 118º, nº1, do CPP: “A violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”. Perante tal princípio da tipicidade e não se descortinando disposição que fulmine, de nulidade, sanável ou não, a falta ou irregularidade da notificação da acusação ao arguido (afigurando-se evidente que o invocado “artº 119º, al. c), do CPP” não tem qualquer aplicação, conforme decorre da sua mera leitura[Nota de Rodapé]), careceria de fundamento legal a declaração de nulidade operada pela Mmª Juiz a quo. Assim já decidiu, por exemplo, a RE, em ac. de 06/11/2012[Nota de Rodapé], como decorre do seguinte excerto do sumário respectivo “I – A falta ou a irregularidade de notificação da acusação não consubstancia nulidade.” Em conclusão: não se vê fundamento legal para que a acusação fosse notificada na pessoa do administrador da insolvência, o que também não consubstanciaria a declarada “nulidade insanável”; por isso, impõe-se a revogação do despacho recorrido, proferido em 22/01/2013[Nota de Rodapé]. III - DECISÃO Concede-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, revoga-se o despacho recorrido. Sem tributação. |