Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
38/17.9GAMNG-A.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: DETENÇÃO
FLAGRANTE DELITO
TERRITÓRIO ESPANHOL
PRISÃO PREVENTIVA
ARTº 41º DA CONVENÇÃO DE APLICAÇÃO DO ACORDO SCHENGEN
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I – Constitui uma detenção em flagrante delito a feita por militares da GNR, numa cidade portuguesa sita na fronteira com Espanha, na sequência de ter sido detectada na posse do detido produto estupefaciente que se encontrava dissimulado no interior do veículo por ele conduzido, depois de o mesmo, ao reconhecer o veículo em que circulavam dois elementos da polícia do país vizinho, ter guinado e nele embatido, em resultado do que o seu veículo ficou imobilizado, o que possibilitou a sua abordagem e retenção pelos policiais espanhóis durante dois minutos, até surgirem os militares da GNR.
II – Não se verificou qualquer irregularidade no procedimento adoptado até à detenção do arguido (pelos militares da GNR), pois a descrita actuação dos policiais espanhóis foi legitimada pelo disposto no artigo 41º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen – face à «urgência especial» – e, complementarmente, no Acordo entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha em Matéria de Perseguição Transfronteiriça, assinado em Albufeira em 30-11-1998 e aprovado pelo Decreto 48/99, de 9/11.
III – De todo o modo, uma vez que estavam reunidos os pressupostos exigidos pelo artigo 256º, nº 2, do CPP, a detenção do arguido não seria ilegal e, mesmo que, porventura, se tratasse de uma detenção afectada de eventual ilegalidade, esta não acarretaria a ilegalidade da prisão preventiva determinada subsequentemente, uma vez verificados os pressupostos legais desta.
IV – No caso, não só a medida de prisão preventiva imposta é, em abstracto, admissível, uma vez que os factos indiciados integram o crime de tráfico de estupefacientes previsto pelo art. 21º do DL 15/91, a que corresponde pena de prisão de 4 a 12 anos, como também tal medida coactiva se revela ser a necessária e a única adequada para evitar os perigos de continuação da actividade criminosa e de fuga.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Penal, do Tribunal da Relação de Guimarães:

Nos autos de inquérito nº 38/17.9GAMNG do Juízo de Competência Genérica de Monção, da Comarca de Viana do Castelo, o arguido I. R., de nacionalidade Espanhola, foi submetido a primeiro interrogatório judicial, tendo sido proferido pela Sra. Juíza que presidiu ao acto o seguinte despacho (sic):
(…) Indiciam fortemente os autos que:
1. No dia 01 de fevereiro de 2017, cerca das 13h:45m, o arguido I. R. circulava na Avenida da Galiza, da U.f. de Mazedo e Cortes, do concelho de Monção, ao volante do veículo automóvel ligeiro misto, da marca Citrõen, da marca Berlingo, com a matrícula ..-..-...
2. Ao se aperceber que, no seu encalço, mas em sentido contrário, seguia uma viatura da Polícia Nacional Espanhola, o arguido despistou-se, acabando por embater naquela mesma viatura, ficando ambas imobilizadas no local.
3. Na sequência da busca, devidamente autorizada pelo arguido, efetuada à sua viatura foram encontrados e apreendidos, dissimulados no interior das portas do veículo id.° em 1 e num fundo falso por baixo dos bancos dianteiros do mesmo, vários pedaços (bolotas) de produto estupefaciente acondicionados em película aderente, com peso aproximado de 94,270 kg. ».
4. Submetido a Teste Rápido (MMC), o produto apreendido ao arguido apresentou um resultado positivo para a substância de Cannabis Resina (Haxixe), com peso aproximado de 94,270kg.
5. Ao arguido foram ainda encontrados, na sua posse, um telemóvel com o n.°…… munido com o respetivo cartão SIM e a quantia de €110 (cento e dez euros) em notas.
6. O arguido conhecia a natureza e as características das substância estupefaciente suprareferida, não ignorando que a respetiva compra, detenção, transporte, venda e / ou cedência a terceiros lhe estava legalmente vedada, pois que não se encontrava autorizado para o efeito.
7. Agiu deliberada, livre e conscientemente, muito embora conhecesse o carácter proibido da sua conduta.
8. O arguido não tem antecedentes criminais.
*
Elementos do processo que indiciam os factos imputados, resultam das diligências de inquérito realizadas até ao momento e dos consequentes elementos probatórios que foram comunicados integralmente ao arguido e supra elencados, nomeadamente:
-Auto de inquirição de testemunha a fls. 17;
-Auto de inquirição de testemunha a fis. 19;
-Auto de notícia de fls. 2 e 3,
-Auto de teste rápido, de fls. 4,
-Auto de busca e apreensão de fis. 15,
- Auto de apreensão de fls. 5,
-Participação de acidente de viação de fls. 21 e 22,
-Registos fotográficos de fis. 23 a 40,
-CRCdefls.46.
Dos elementos probatórios constantes dos autos supra elencados, indicia-se fortemente a prática, pelo arguido, de um crime de tráfico de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 21º, n.° 1 do Decreto-lei n.° 15/93 de 22 de janeiro, punível com pena de prisão de 4 a 12 anos.
O arguido remeteu-se ao silêncio, mas dos autos resulta que o mesmo se fazia transportar num veículo, no qual de forma dissimulada se encontrava acondicionados 94,270Kg de Cannabis Resina (Haxixe). Tal produto encontrava-se dividido em bolotas. Para estes factos basta atentarmos, no auto de notícia, nos autos de apreensão, na participação do acidente e no teste rápido, donde estes factos resultam corroborados.
A isto acresce que a polícia espanhola já vinha no seu encalce, acabando este por ter um acidente com a mesma (depoimentos).
Desconhecem-se quaisquer circunstâncias de vida do arguido, sendo certo que dos autos resulta que o intuito do arguido seria obter contrapartida económica mediante a prática dos factos acima referidos, pois que atenta a quantidade de haxixe que transportava nunca se poderia destinar apenas ao consumo ou até mesmo a uma actividade pequena.
Não obstante a inexistência de antecedentes criminais conhecidos teremos de levar em consideração a natureza e as circunstâncias do crime atendendo sobretudo ao seu modo de execução e a facilidade demostrada pelo arguido, em deslocar-se entre Portugal e Espanha.
Em face do exposto e porque o ilícito em causa reveste-se de elevada gravidade, impõe-se a aplicação ao arguido de uma medida cautelar.
As medidas de coacção e de garantia patrimonial são meios processuais de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial dos arguidos pelo que assumem natureza excepcional e estão taxativamente previstas na lei.
Por conseguinte, nenhuma medida de coacção à excepção do Termo de Identidade e Residência previsto no artigo 196.° do Código de Processo Penal, pode ser aplicada se em concreto não se verificar, pelo menos um dos requisitos referidos no artigo 204.° do Código de Processo Penal:
a) fuga ou perigo de fuga; b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem ou tranquilidade públicas.
A medida de coacção aplicada deve, em concreto, ser adequada às exigências cautelares e proporcional à gravidade do crime e sanção que previsivelmente venha a ser aplicada (artigo 193.°, n.° 1 do Código de Processo Penal.
Cumpre, assim, apreciar qual ou quais as medidas a que o arguido deverá ficar sujeito.
A factualidade indiciariamente apurada reveste-se de elevada gravidade, sendo de molde a incutir no julgador a necessidade de aplicação ao arguido de uma medida de coacção para além do termo de identidade e residência (já prestado) uma vez que, ainda que sejam desconhecidas as condições de vida do arguido, a quantidade que o arguido detinha de produto estupefaciente com o inerente beneficio patrimonial que acarretaria, bem com o a forma como vinha acondicionada e escondida, fazem antever que o mesmo venha a persistir na prática de crime de natureza análoga àquele que se encontra em investigação. De facto, ao arguido não é conhecida actividade profissional com carácter de permanência.
Face a tal circunstancialismo e ainda à natureza do crime em causa, propiciador de avultados rendimentos ao seu agente, existe sério perigo de continuação da actividade criminosa.
A danosidade social associada a este tipo de crime é perturbadora da ordem e tranquilidade pública, não sendo alheia, mais uma vez, a elevadíssima quantidade de produto estupefaciente transportado pelo arguido.
Por outro lado, é de realçar que existe, a nosso ver, perigo de fuga, pois trata-se de um arguido com residência em Espanha, ao qual não se conhece nenhuma ligação a Portugal. Não obstante a inexistência de antecedentes criminais conhecidos temos que levar em consideração a natureza e as circunstâncias do crime atendendo sobretudo ao seu modo de execução e a facilidade demostrada em deslocar-se entre Portugal e Espanha, sendo certo que o acidente ocorrido foi com polícias do CNP de Espanha que o estavam no seu encalce. Apesar de se tratar de haxixe, a quantidade apreendida 94,270KG assume grande expressão, tendo em conta o número de doses possíveis e o elevadíssimo lucro susceptível de ser obtido. A isto acresce a natureza do crime em causa e a moldura abstracta aplicável que, tendo em conta as possíveis sanções susceptíveis de virem a ser aplicadas, tomam ainda mais premente esse perigo de fuga.
Ora, tais situações são susceptíveis de enquadrar as previstas no art. 204.°, alins. a) e c) do CPP.
Vejamos, então, quais as medidas de coacção que se revelam adequadas às exigências cautelares.
As medidas de coacção são “meios processuais” que limitam ou restringem a liberdade pessoal do arguido com o fim de acautelar a eficácia do procedimento criminal, tendo em vista a boa administração da justiça, a descoberta da verdade e o restabelecimento da própria paz jurídica abalada pela prática do crime. Tratando-se de restrições a um direito fundamental, estão condicionadas pelas regras definidas nos n°s 2 e 3 do art. 180 da Constituição da República Portuguesa. Ao julgador cabe fazer uma ponderação dos interesses em conflito em ordem a determinar a respectiva prevalência e grau de restrição. Em tal tarefa, deverá o julgador nortear-se pelos princípios da legalidade, da necessidade, adequação, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da precaridade, corolários do princípio da presunção de inocência do arguido.
Conforme já supra se referiu, o arguido está indiciado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21°, no i do Decreto-Lei n° 15/93, de 22/01, crime esse punível com pena de prisão de 4 a 12 anos.
Tendo presente a moldura abstracta do crime de tráfico, é susceptível de ser aplicada ao arguido qualquer medida de coacção, incluindo a prisão preventiva, contanto que tal medida se mostre necessária e adequada às necessidades cautelares e proporcional à sanção que concretamente venha a ser aplicada ao arguido. Contudo, para a aplicação, quer da prisão preventiva, quer ainda da obrigação de permanência da obrigação, exige-se a existência de “fortes indícios de prática de crime doloso”, punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos (cfr. ai. a) do n° 1 do art. 202° do CPP).
No tocante à existência de “fortes indícios”, não obstante a fase precoce em que nos encontramos, podemos com segurança afirmar, como já o expusemos em sede de motivação, que os elementos probatórios já adquiridos nos autos nos permitem relacionar, de forma idónea e suficiente, o arguido com a prática do crime de tráfico de estupefacientes.
Por outro lado, tendo presentes os perigos que se pretendem acautelar (perigo de continuação da actividade criminosa, perturbação da ordem e tranquilidade pública e perigo de fuga), entendemos que só medida detentiva de liberdade, a prisão preventiva, se mostra suficiente para salvaguardar as exigências cautelares do processo, sendo ainda aquelas que se mostram proporcionais à gravidade do crime em causa e às sanções que previsivelmente lhe virão a ser aplicadas, atenta a moldura penal do crime.
Nestes termos avaliada a gravidade dos factos, as circunstâncias em que foram praticados e as exigências cautelares que o caso requer e que supra se evidenciaram, entende ser adequada e proporcional a aplicação ao arguido da medida de prisão preventiva.
Pelo exposto, aderindo à douta promoção que antecede e ao abrigo do disposto nos artigos 191°, no 1, 193°, 194°, n°2, 195°, 196°, 202°, no 1 ai. a) e 204°, al. a) e c), todos do CPP, decido que o arguido lago Rodriguez Grobas, além do TIR, aguarde os ulteriores termos do processo, em prisão preventiva.».

Inconformado com a referida decisão, o arguido interpôs recurso, invocando a ilegalidade da detenção por ter sido efectuada fora de flagrante delito e por quem não tinha jurisdição no estado português, sustentando ainda que não se verifica qualquer um dos perigos que fundamentaram a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, sendo esta excessiva, inadequada, desnecessária e desproporcional, tendo reputado como adequada às exigências cautelares do caso a medida de termo de identidade e residência e ou, eventualmente, de uma caução pecuniária, formulando na sua motivação as seguintes conclusões:
«A Polícia Nacional de Espanha teria iniciado o seguimento do veículo conduzido pelo arguido, no sul de Espanha, que, passando por Portugal, se dirigia de novo para Espanha, sendo que a Polícia espanhola contava que o mesmo atravessasse a fronteira em Valença, no entanto, o veículo dirigiu-se para Monção.
Tendo de se adaptar ao percurso inesperado do veículo, e na avidez de capturar o seu condutor, os agentes da Polícia espanhola não esperaram que o mesmo atravessasse a fronteira - assim que o avistaram, de modo precipitado e com completa desconsideração pela soberania da República Portuguesa, decidiram proceder imediatamente à detenção!
Fizeram-no, quando vinham em sentido contrário ao veículo conduzido pelo arguido, levando o seu veículo a embater na traseira esquerda do veículo do arguido, fazendo com que este rodopiasse e ficasse imobilizado na via.
Dizem os autos, no entanto, numa primeira versão, que o arguido avistou o veículo da Polícia espanhola – veículo que dizem ser descaracterizado – e dirigiu o veículo que conduzia contra o veículo da Polícia espanhola; numa segunda versão, dizem que, ao avistar o veículo da Polícia, o arguido se despistou e acabou por embater naquele. Fica por saber porque é que o arguido haveria de reagir, de um modo ou de outro, a um veículo descaracterizado, igual a qualquer outro.
Fica por saber porque é que o arguido haveria de reagir, de um modo ou de outro, a um veículo descaracterizado, igual a qualquer outro.
Seguem os autos afirmando que a Polícia espanhola, após o embate, “reteve” o arguido. No entanto, tal “retenção” é uma efectiva detenção.
Ora, é fácil concluir que o que ocorreu foi uma detenção fora de flagrante delito, em território português, efectuada pela Polícia Nacional espanhola.
Na verdade, do modo como o crime indiciado é descrito, ele assume-se como crime permanente e, nos termos do artigo 256º nº 3 do C.P.P., o estado de flagrante delito apenas se mantém enquanto houver sinais claros de que o crime está a ser cometido. Acontece que, nos autos, não consta qualquer evidência ou indício de que existissem quaisquer sinais de que o crime estava a ser cometido, antes ou no momento em que os agentes da Polícia espanhola “retiveram” o arguido.
Sem prescindir, mesmo que se pudesse caracterizar como detenção em flagrante delito, defendemos que a mesma sempre seria ilegal, pois os agentes da Polícia espanhola estavam a actuar na sua qualidade de agentes de força policial, estrangeira.
10ªNão integram, por isso, o conceito de “qualquer pessoa”, referido na alínea b) do nº 1 do artigo 255º do C.P.P. - agentes da autoridade estrangeiros não são qualquer pessoa e, actuando nessa qualidade em território português, estão a violar a soberania nacional.
11ªNão se pode interpretar a alínea b) do nº 1 do artigo 255º do C.P.P. no sentido de reduzir tais agentes à qualidade de “qualquer pessoa”, para integrar a previsão de tal preceito. Tal seria algo que violaria o princípio da soberania nacional, consagrado nos artigos 1º, 3º e 5º nº 3 da Constituição. Portanto, seria uma interpretação que resultaria em inconstitucionalidade da referida alínea b).
12ª - A conclusão necessária é que a “retenção” do arguido pelos agentes da Polícia espanhola, sendo uma verdadeira detenção, será sempre uma detenção ilegal.
13ª - Deste modo, quando os agentes da GNR receberam o arguido das mãos dos agentes da Polícia espanhola – e não lhe tendo sido indicados, por estes, sinais claros de que o crime estava a ser cometido (nos autos nada consta nesse sentido) – teriam de ter libertado imediatamente o arguido, perante a detenção ilegal, nos termos ordenados pelo artigo 261º nº 1 do C.P.P.
14ª - Ao invés, mantendo a detenção, a mesma reteve a sua ilegalidade, a partir de tal momento com a violação acrescida do artigo 261º nº 1 do C.P.P.
15ª - Assim, o despacho recorrido não deveria ter validado a detenção, mas antes concluído pela sua ilegalidade; com as respectivas consequências legais.
Da Prisão Preventiva
16ª – O tribunal recorrido decidiu pela aplicação da prisão preventiva, por considerar verificada a cumulação de três perigos: alarme social/intranquilidade pública causado pelo tipo de crime, perigo de continuação da actividade criminosa e perigo de fuga. Defendemos que não se verifica nenhum destes perigos.
17ª - Antes do mais, diremos que o despacho recorrido baseia a fundamentação da existência dos perigos muito no tipo de crime e em algumas circunstâncias de como ele poderá ter sido praticado pelo arguido; mas para aplicar uma medida de coacção tão gravosa, têm de existir indícios fortes de tais circunstâncias.
18ª - Se podemos aceitar que tal tipo de indício exista em relação à verificação do crime de tráfico de estupefacientes, teremos porém de negar que existam indícios – fortes ou não – de que o arguido tivesse, ele próprio, ocultado o haxixe, soubesse a quantidade que transportava e muito menos que viria a obter, para si, o lucro da venda do haxixe apreendido.
19ª - Pelo contrário, o que poderá estar minimamente indiciado é que o arguido fosse um mero transportador da substância e que certamente iria receber uma quantia relativamente pequena pelo transporte.
20ª - Com as quantidades em causa, a experiência comum e a falta de indícios em contrário, leva a considerar que aquele que lucraria com a venda do estupefaciente não é a mesma pessoa que o transporta.
21ª - Portanto, não havendo fortes indícios – aliás, não havendo nenhum indício – de que o arguido viria a obter o benefício patrimonial correspondente à quantidade em causa, nem que fosse ele a conceber o modo como se ocultou a resina de cannabis em causa; tais elementos não devem ser considerados para a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, nem para a existência dos perigos em que se fundamenta.
22ª – Não esquecendo, da nossa parte, que apenas se encontra indiciado que o arguido fosse um mero transportador da substância; o alarme social/perturbação da tranquilidade pública, invocado no despacho recorrido, apoia-se muito no tipo de crime em causa e na quantidade apreendida.
23ª - No entanto, isto vai contra o entendimento, cremos que pacífico, que as medidas cautelares, particularmente a prisão preventiva, não podem servir como uma antecipação da condenação final (vide acórdão do TEDH no caso Letellier vs. França) ou dos fins de prevenção geral ou especial visados pela decisão final (vide Pinto de Albuquerque, Comentário do C.P.P., p. 602).
24ª - Ponderando a natureza da substância em causa – cannabis – que não é considerada, pela sociedade, como tão grave ou nociva como qualquer das outras substâncias estupefacientes, e que o arguido será um mero transportador (pois não há quaisquer indícios de que seja algo mais), concluímos que uma eventual perturbação da tranquilidade pública será mínima.
25ª - Ora, a aplicação de uma medida de coacção, maxime de prisão preventiva, exige que a perturbação seja grave. Não vemos, na decisão recorrida, uma justificação ou uma referência à gravidade da possível perturbação.
26ª - Pelo exposto, afirmamos convictamente que não pode resultar, no presente caso, perturbação grave da tranquilidade pública da falta de aplicação de medida de coacção; e particularmente, tal perturbação nunca será suficientemente grave ao ponto de justificar a aplicação da prisão preventiva.
27ª – Embora a decisão recorrida a invoque; com o devido respeito, é evidente, nestes casos, que de modo algum irá haver continuação da actividade criminosa.
28ª - O tipo de crime em causa é caracterizado pelo elevado secretismo. Na verdade, tendo sido identificado o arguido, quer pela Polícia espanhola, quer pelas autoridades portuguesas, o arguido está “queimado”. Não lhe será possível continuar a actividade criminosa, pois isso frustrará o secretismo que lhe é inerente e o próprio sucesso da mesma.
29ª - Certamente, tal como nós, este venerando tribunal chega à conclusão que o arguido não será chamado a transportar ou, por qualquer modo, participar neste tipo de crime.
30ª - Insistimos que não existem quaisquer indícios de que o arguido seja o beneficiário dos montantes resultantes da venda do estupefaciente, mas antes se indicia que fosse um mero transportador.
31ª - A isto acresce que o arguido não tem antecedentes criminais, não lhe sendo conhecida uma personalidade ou circunstância de vida que o leve a praticar (mais) crimes.
32ª - Não existe, portanto, o perigo de continuação da actividade criminosa.
33ª – Quanto ao perigo de fuga, temos duas objecções à decisão recorrida: primeiro, não é só a prisão preventiva que pode controlar o perigo de fuga, e segundo, na situação em concreto não existe verdadeiro perigo de fuga.
34ª - Começando pela inexistência do perigo de fuga, o despacho recorrido fundamenta com a residência do arguido em Espanha e o facto de não lhe ser conhecida ligação a Portugal.
35ª - Ora, o arguido vive em Vigo, a poucos quilómetros da fronteira com Portugal, e, portanto, na União Europeia e dentro do espaço Schengen.
36ª - É interessante notar que, já em 1981, isto, antes do Acordo de Schengen (1985), do Acto Único Europeu (1986), do Tratado de Maastricht (1992) e da criação e desenvolvimento de uma série de mecanismos de cooperação judiciária dentro destes espaços, o Prof. Cavaleiro de Ferreira ensinava que “Não é de exagerar, ampliando-o, o perigo de fuga. É um perigo real, mas relativo; pode o arguido ausentar-se para o estrangeiro ou esconder-se em território nacional. Mas a coordenação internacional da repressão criminal e o instituto da extradição tornam cada vez menos seguro” este meio de fuga. Então, se este insigne Professor tinha razões para assim se pronunciar em 1981, hoje muitas mais teria.
37ª - Note-se, no entanto, que no caso especialíssimo do arguido há uma circunstância absolutamente decisiva, que preclude radicalmente a possibilidade de o arguido fugir à justiça: o arguido foi detido, em território português, pela Polícia espanhola, sendo que existe uma investigação em curso, quanto a factos relacionados com os dos autos, nessa mesma Polícia. Desde então, a Polícia espanhola conhece o arguido. Se o arguido for libertado e se dirigir para território espanhol, ficará, certamente, sob a mira e vigilância das autoridades espanholas. Na prática, não existe perigo de o arguido fugir ou se esconder; mesmo tendo residência fora de Portugal.
38ª - Mesmo que se pudesse admitir um qualquer perigo de fuga, ela seria mínimo e de difícil concretização: seja em Portugal, seja em Espanha, o arguido está “no radar” das respectivas autoridades; e não se lhe conhece qualquer capacidade especial para fugir ou esconder-se. Quer isto dizer que o perigo de fuga é inexistente ou diminuto, pelo que é excessiva e desproporcionada a aplicação da prisão preventiva para obviar a tal perigo. Deste modo, o despacho recorrido está a violar o artigo 193º do C.P.P.
39ª - Neste estado de coisas, embora nos pareça desnecessário, se o tribunal quisesse jogar pelo seguro, bastar-lhe-ia aplicar uma caução - esta medida seria garantia suficiente e exerceria a necessária coacção sobre o arguido.
40ª – Entendemos que faltando apenas um dos perigos invocados, a prisão preventiva seria excessiva e desproporcionada, atendendo a que todos eles, a existirem, são diminutos ou de ínfima gravidade.
41ª - Defendemos, cremos que com forte evidência, que nenhum deles existe, pelo que, deverá ser revogado o despacho recorrido, na parte em que aplica a medida de coacção de prisão preventiva.
42ª - Não deverá ser aplicada qualquer outra, para além do TIR. Eventualmente, poderá este tribunal entender aplicar uma caução; o que, se entendemos ser desnecessário, pelo menos não será desproporcionado.».
Conclui, pedindo que, na procedência do recurso, deve revogar-se o despacho recorrido e, consequentemente, ser declarada a ilegalidade da detenção e ser lhe aplicada a medida de coacção de TIR ou, eventualmente, de uma caução pecuniária.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público, em 1ª Instância, apresentou resposta à motivação, pugnando pela manutenção da medida de coacção aplicada, dizendo, em suma, que a detenção foi legal, não só por ter sido efectuada em flagrante delito, mas por quem era competente para o efeito, verificando-se em concreto, os perigos assinalados no despacho recorrido, quer em face da quantidade de produto estupefaciente que foi encontrado na posse do arguido e respectivo valor monetário, quer porque o mesmo não possui residência em Portugal, deslocando-se facilmente entre Portugal e Espanha, o que indicia que o mesmo, facilmente, poderá, em liberdade, eximir-se às autoridades portuguesas e/ou espanholas.
Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral adjunto emitiu parecer, sufragando o entendimento expendido pelo Ministério Público em 1ª instância, dando por reproduzidas as considerações por este tecidas.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.
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Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscitam-se neste recurso as questões de saber se foi devidamente validada a detenção do arguido e se deve manter-se a decisão que decretou a sua prisão preventiva.

Importa apreciar tais questões e decidir. Para tanto, deve considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso os factos considerados indiciados no despacho recorrido e respectiva motivação acima transcritas e os demais elementos documentais juntos aos autos, a que se fez expressa referência no despacho em apreciação.
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1. A detenção.
Sustenta o arguido que a sua detenção, por ter sido efectuada fora de flagrante delito e por quem não tinha jurisdição no território português, não deveria ter sido considerada legal.
Como se considerou no Parecer nº 35/99, DR, II, de 24 de Janeiro de 2001 [citado pelo Exmo. Sr. Procurador - Geral Adjunto deste tribunal, in CPP, Notas e Comentários] «a detenção, prevista no art. 254º do CPP, constitui uma medida cautelar e precária, directamente vinculada a servir as finalidades expressamente fixadas na lei.».
A definição de flagrante delito consta do art. 256º do mesmo código, estabelecendo o nº 1 que é flagrante delito todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer e o nº 2, estabelece que se reputa também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou de nele participar.
Por outro lado, dispõe o art. 255º do mesmo diploma que em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão, qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção e/ou qualquer pessoa pode proceder à detenção, se uma das entidades referidas na alínea anterior não estiver presente ou puder ser chamada em tempo útil, quando se verificar esta última situação (al b), a pessoa que tiver procedido à detenção entrega imediatamente o detido a uma das entidades referidas a alínea a), a qual redige auto sumário da entrega e procede de acordo com o estabelecido no artigo 259º do CPP.
Resulta do processo (auto de notícia, ponto 13) que o arguido foi detido em Monção – cidade portuguesa sita na fronteira com Espanha – pelos militares da GNR aí identificados e na sequência de ter sido detectada na sua posse produto estupefaciente que se encontrava dissimulado no interior do veículo por si conduzido. Ora, essa detenção é suscptível de constituir crime punível com uma pena de prisão de 4 a 12 anos.
Assim, contrariamente ao alegado pelo arguido, estamos perante uma situação de detenção em flagrante delito, feita por militares da GNR no pleno exercício das suas funções.
É certo que constam dos autos dois depoimentos feitos por cidadãos de nacionalidade espanhola e elementos da polícia do país vizinho, em que os mesmos descrevem o circunstancialismo que antecedeu a detenção do arguido, dizendo: este, ao reconhecer o veículo em que aqueles circulavam, guinou e embateu no mesmo; em resultado do embate, o veículo conduzido pelo arguido ficou imobilizado, o que possibilitou a sua abordagem e retenção, durante dois minutos até surgirem os militares da GNR.
É precisamente com base neste segmento das declarações dos elementos da polícia espanhola que o arguido sustenta que foi detido por quem não tinha jurisdição no território português.
Contudo, perante o realmente sucedido, independentemente da terminologia usada em tais depoimentos para a respectiva descrição, o arguido não tem qualquer razão, face ao que dispõe o artigo 41º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen:
«Os agentes de uma das Partes Contratantes que, no seu país, persigam uma pessoa apanhada em flagrante delito a cometer um dos crimes a que se refere o n.º 4 ou a neles tomar parte são autorizados a continuar a perseguição no território de uma outra Parte Contratante sem autorização prévia, sempre que as autoridades competentes da outra Parte Contratante não puderem ser avisadas previamente da entrada neste território devido a urgência especial, por um dos meios de comunicação previstos no artigo 44.º, ou não puderem chegar ao local a tempo de retomar a perseguição. (…) A pedido dos agentes perseguidores, as autoridades localmente competentes interpelarão a pessoa perseguida a fim de determinar a sua identidade ou de proceder à sua detenção. (…) Se não for formulado um pedido de interrupção da perseguição e se as autoridades localmente competentes não puderem intervir com suficiente rapidez, os agentes perseguidores podem interpelar a pessoa perseguida até que os agentes da Parte Contratante em cujo território a perseguição se efectua, os quais devem ser imediatamente informados, possam determinar a sua identidade ou proceder à sua detenção.».
Complementarmente, também o Acordo entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha em Matéria de Perseguição Transfronteiriça, assinado em Albufeira em 30-11-1998 e aprovado pelo Decreto 48/99, de 9/11, além do mais, prevê:
«(…) As disposições contidas no presente Acordo aplicam-se à perseguição transfronteiriça exercida através das fronteiras terrestres comuns às Partes (…) São autorizadas operações de perseguição transfronteiriça sempre que, tendo-se verificado no território de uma das Partes alguma das situações previstas na alínea a) do n.º 4 do artigo 41.º da Convenção, as pessoas presumivelmente nelas envolvidas se desloquem para o território da outra Parte (…) A perseguição transfronteiriça no território da outra Parte pode realizar-se até 50 km da fronteira comum ou durante um período de tempo não superior a duas horas a partir da passagem da fronteira comum.
(…) Para os efeitos do presente Acordo, as Partes consideram autoridades e agentes competentes os seguintes: (…) Da Parte espanhola: b.i) Para efectuar as operações de perseguição transfronteiriça e, em colaboração com os agentes policiais perseguidores da outra Parte, para determinar a identidade das pessoas perseguidas ou proceder à sua detenção, os funcionários do Cuerpo Nacional de Policía e os membros do Cuerpo de la Guardia Civil e os funcionários da Dirección General de Aduanas del Ministerio de Hacienda no referente ao âmbito da sua competência em matéria de tráfico ilícito de estupefacientes (…).
Não se verificou, pois qualquer irregularidade no procedimento adoptado até à detenção do arguido pelos militares da GNR.
De todo o modo, impõe-se assinalar que, uma vez que estavam reunidos os pressupostos exigidos pelo referido artigo 256º, nº 2, do CPP, a detenção do arguido não seria ilegal e, mesmo que, porventura, se tratasse de uma detenção afectada de eventual ilegalidade, esta não acarretaria a ilegalidade da prisão preventiva determinada subsequentemente, uma vez verificados os pressupostos legais desta, e é só esta a questão que agora nos ocupa.

2. A medida de coacção aplicada ao recorrente.
As medidas de coacção visam, sobretudo, a descoberta da verdade, através do normal desenvolvimento do processo, a par do restabelecimento da paz jurídica abalada pela prática do crime, sendo, pois, meros instrumentos processuais da eficácia do procedimento penal e da boa administração da justiça.
Todavia, não pode olvidar-se que com tais meios processuais estão em causa, não apenas a eficácia da investigação criminal, mas também a protecção de direitos fundamentais das pessoas – como são os direitos à liberdade e à segurança – sendo, por isso, «necessário, em cada caso concreto, fazer uma ponderação dos interesses em conflito para determinar a respectiva prevalência e grau ou medida da sua restrição» (1).
Daí que, por um lado, as medidas de coacção previstas, exceptuado o termo de identidade e residência, só possam ser aplicadas desde que, em concreto, se verifique qualquer dos requisitos indicados no art. 204º do CPP (2) e que, por outro lado, essa aplicação esteja sempre sujeita ao respeito do princípio da proporcionalidade (3), que se desdobra em quatro subprincípios: a necessidade (indispensabilidade das medidas restritivas para obter os fins visados, com proibição do excesso (4)); a adequação (idoneidade das medidas para a prossecução dos respectivos fins); a subsidiariedade e da precariedade, todos eles corolários do princípio da presunção de inocência (5).
Tais princípios são impostos pelo preceito contido no art. 193º (6), decorrendo o da necessidade, ainda, da regra de «a liberdade das pessoas só [poder] ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar» (cfr. art. 191º, nº 1), devendo optar-se, em cada caso concreto, pela medida de coacção adequada e proporcionada, tendo em atenção as exigências por aqueles colocadas (7).
Contudo, nos termos do nº 4 do art. 194º, a aplicação referida só pode ser fundamentada em factos concretos que possam preencher os respectivos pressupostos, incluindo os previstos nos aludidos artigos 193º e 204º (princípios e requisitos). Não bastará, pois, o mero apelo, em abstracto, a tais pressupostos.
Tudo isto significa que a prisão preventiva não pode, obviamente, ser encarada como uma pena (por antecipação), nem tão pouco como uma medida de segurança, porquanto se trata de uma simples medida cautelar, «uma medida de defesa e protecção da funcionalidade do processo» (8) e que, sendo a mais grave das medidas de coacção, como é sabido, só excepcionalmente pode ser aplicada e nas situações previstas no nº 1 do 202º, ou seja, entre outras, quando houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos.
Sustenta o arguido que a decisão recorrida não contém uma fundamentação suficientemente consistente que justifique uma restrição tão gravosa dos seus direitos, liberdades e garantias, já que, concluiu pela verificação dos perigos em que alicerçou a aplicação da medida de coacção, apenas no tipo de crime e em algumas circunstâncias de como ele poderá ter sido por si praticado, mas sem a concreta e real existência de indícios fortes de todas as circunstâncias que rodearam a sua prática.
Na concretização desta alegação, aduz que aceita a existência de indícios apenas em relação à verificação do crime de tráfico de estupefacientes, mas nega todas as demais circunstâncias que envolveram a prática desse crime, ou seja, que tenha ocultado o haxixe, que soubesse a quantidade que transportava e muito menos que viesse a obter, para si, o lucro da venda do produto estupefaciente apreendido, apenas admitindo a sua condição de mero transportador e daí o apelo à não verificação dos perigos que foram considerados no despacho recorrido.
Vejamos:
Aproximando-nos da noção apresentada por Paulo Pinto de Albuquerque, entendemos que existem indícios fortes, nomeadamente para efeitos da aplicação de prisão preventiva, quando constem dos autos elementos de prova que sustentem e revelem a convicção de que um facto se verifica no momento da decisão. Este grau de convicção é o mesmo que levaria à condenação se os elementos conhecidos no final do processo fossem os conhecidos no momento em que é proferida a decisão interlocutória. (cf. Comentário do Código de Processo penal, 2007 p. 337).
Ora, partindo deste critério e sem olvidar que mesmo nesta fase processual, em conformidade com o disposto no art. 127º do CPP, o julgador forma a sua convicção com base na apreciação, de forma livre, crítica e à luz das regras da lógica e da experiência comum, como se colhe dos elementos indiciários do processo, referidos no despacho recorrido, é incontornável [e não obstante nos situarmos numa fase inicial do processo, em que ainda não é possível ter-se uma ideia de toda a actuação do arguido na actividade do crime de tráfico de estupefacientes], que o mesmo foi detido porque nas circunstâncias de tempo e lugar descritos nos factos conduzia um veículo automóvel que transportava dissimulado no seu interior 94,270KG de haxixe. Este crime de tráfico de estupefacientes encontra-se previsto pelo art. 21º do Dec. Lei 15/93 de 22/1 e é abstractamente punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.
Sendo um crime “de perigo”, o legislador, através dessa norma, enuncia um largo espectro de actividades ilícitas relativas a estupefacientes e ao seu tráfico, descrevendo a factualidade típica de modo a abranger na incriminação todos «os momentos relevantes do ciclo da droga» (9).
Com efeito, o citado artigo «contém, no nº 1, a descrição fundamental – o tipo essencial – relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo e cuja tipicidade, de largo espectro, abrange qualquer contacto com produto estupefaciente de modo a compreender todos os momentos relevantes do ciclo da droga. Nos artigos seguintes estão legalmente previstas situações de privilegiamento e de agravamento». «Como resulta da amplitude da moldura penal abstracta, que parte dum mínimo bastante elevado, o crime-base do art. 21º encontra-se já por si projectado para a punição dos casos de tráfico de média e grande dimensão» (10).
Ora, em face do tipo de ilícito em causa não assume a relevância conferida pela argumentação que o arguido desenvolve em torno da ausência de indícios quanto ao eventual desconhecimento da real quantidade de produto por si transportado e detido e ao lucro advindo da sua posterior transacção: nesta sede, bastam os indícios sérios e precisos do envolvimento do arguido nos factos, no caso, no (mero) transporte do produto estupefaciente, não sendo o seu indiciado comportamento antecedente ao seu encontro imediato com os agentes policiais seus concidadãos coadunável com a sua pretensa ignorância de que efectuava tal transporte, para já não mencionar o silêncio a que se remeteu – como era seu direito – em sede de primeiro interrogatório judicial.
Relativamente à existência dos concretos perigos, foram considerados na decisão recorrida os de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, de continuação da actividade criminosa e de fuga.
No que respeita ao perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, tem-se entendido que se exige a verificação de circunstâncias particulares que em concreto tornem previsível a alteração da ordem e tranquilidade públicas, não bastando a convicção de que certo tipo de crimes podem em abstracto causar emoção ou perturbação públicas (11).
Expendeu-se no acórdão da RE de 26/06/2007, proferido no âmbito do processo nº 1463/07-1, posição, que sufragamos inteiramente, que: «este perigo se reporta ao fundado risco de grave, concreta e previsível alteração da ordem e tranquilidade públicas, operando a medida de coacção apenas como meio de esconjurar o risco de lesão significativa de bens jurídicos de natureza penal em resultado de alteração previsível. Não contemplando o ordenamento jurídico português actual entre os fundamentos das medidas de coacção e, em especial da Prisão preventiva, a ideia de alarme social, com o sentido amplo e abstracto que detinha à época dos crimes incaucionáveis do CPP de 1929.».
No mesmo sentido, se pronunciou o actual Conselheiro Manuel Joaquim Braz, a propósito das alterações introduzidas pela Reforma de 2007, ao escrever: «Acerca das condições de aplicação das medidas, foi alterada a redacção da alínea c) do artº 204º, exigindo-se agora quanto ao requisito de perturbação da ordem e tranquilidade que o perigo seja de perturbação grave e seja imputável ao arguido. Na Exposição de Motivos explica-se que desse modo se retira o “cunho estritamente objectivo” a esse requisito geral de aplicação de medidas de coacção» (12).
Em suma este perigo encontra-se particularmente relacionado com o direito à liberdade e à segurança dos cidadãos que possam ser potenciais vítimas da conduta criminosa indiciada (13).
A Sra. Juíza de 1ª instância justificou este perigo dizendo: «(…) a quantidade que o arguido detinha de produto estupefaciente com o inerente benefício patrimonial que acarretaria, bem com o a forma como vinha acondicionada e escondida, fazem antever que o mesmo venha a persistir na prática de crime de natureza análoga àquele que se encontra em investigação. De facto, ao arguido não é conhecida actividade profissional com carácter de permanência.
Face a tal circunstancialismo e ainda à natureza do crime em causa, propiciador de avultados rendimentos ao seu agente, existe sério perigo de continuação da actividade criminosa.
A danosidade social associada a este tipo de crime é perturbadora da ordem e tranquilidade pública, não sendo alheia, mais uma vez, a elevadíssima quantidade de produto estupefaciente transportado pelo arguido.».
Ora, à luz dos entendimentos supra expostos, atenta a gravidade dos factos fortemente indiciados, entendemos que sobressaem dos autos indícios de factos concretos, imputáveis ao arguido, que permitem afirmar a existência de perigo de grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas, no sentido supra apontado.
Com efeito, não pode ser olvidado que o bem protegido por este ilícito é a saúde pública, a prevenção dos prejuízos a esta causados pela difusão de produtos estupefacientes, colocando elevadas necessidades de prevenção geral, pois as situações de risco relacionadas com o perigo de difusão de estupefacientes são geradoras de justificado alarme e muita insegurança aos cidadãos em geral. Assim, tendo em conta a elevada quantidade de produto estupefaciente efectivamente detido pelo arguido e ao possível número de pessoas por quem iria ser distribuído, não existem dúvidas, que se encontra devidamente considerado este perigo.

Relativamente ao perigo de continuação da actividade criminosa, o Professor Germano Marques da Silva salienta que «A aplicação de uma medida de coacção não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão só a continuidade criminosa pela qual o arguido está indiciado. (…). Assim, se atentas as circunstâncias do crime e a personalidade do arguido for de presumir a continuação da actividade criminosa pelo qual o arguido está indiciado no processo pode justificar-se a aplicação de uma medida de coacção» (14).
Ou como se escreveu no acórdão Da RL de 12-07-2016 (proc. 838/15.4T9STC) «perigo de reiteração da actividade criminosa é quase conatural do crime de tráfico de estupefacientes na modalidade típica da venda a terceiros, «por conta própria», dada a sua natureza de actividade lucrativa».
Este perigo decorrerá de um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, a efectuar a partir de circunstâncias anteriores ou contemporâneas à conduta que se encontra indiciada e sempre relacionada com esta.
No caso vertente, a Sra. Juíza justificou a existência deste perigo na circunstância de não só serem desconhecidas as condições de vida do arguido, mas sobretudo de ao mesmo não ser conhecida actividade profissional com carácter de permanência, a par da elevada quantidade de produto estupefaciente com o inerente beneficio patrimonial que acarretaria, bem com o a forma como vinha acondicionada e escondida, fazendo antever que o arguido mesmo venha a persistir na prática de crime de natureza análoga àquele que se encontra em investigação.
Sabe-se que, para respeitar o princípio da presunção de inocência, a medida de coacção deverá fundar-se num juízo rigoroso e preciso de plausibilidade de reiteração criminosa, apoiado nas circunstâncias do caso e na personalidade revelada pelo arguido: no caso, para além de estar fortemente indiciada prática do crime de tráfico de estupefacientes, onde ressuma um dolo directo, aliado à motivação que lhe subjaz de obtenção de meios económicos, segundo as regras da experiência, os proclamados indícios apontam para a alta probabilidade ou, pelo menos, para o receio de que o arguido possa prosseguir com tal actividade. Embora se desconheça se sobre o mesmo pendem outros processos tendentes à averiguação de factos semelhantes aos aqui em causa, indiciadores da sua indiferença pelos bens jurídicos protegidos pela norma incriminatória, estamos, pois, perante circunstâncias donde ressalta, indiciariamente, a existência do perigo concreto de continuação da actividade criminosa por parte do arguido, tal como foi considerado no despacho recorrido.
No que respeita ao perigo de fuga, o Prof. Germano Marques da Silva (15) adverte que «(…) a lei não presume o perigo de fuga, exige que esse perigo seja concreto, o que significa que não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstractas e genéricas presunções, v.g da gravidade do crime, mas que se deve fundamentar sobre elementos de facto que indiciem concretamente aquele perigo, nomeadamente porque revelam a preparação da fuga.».
Maia Costa, na supra citada obra, também sustentou que o perigo de fuga deve fundar-se numa análise rigorosa e precisa da situação concreta, sendo elementos a ponderar a gravidade da pena cominada para o crime imputado, a personalidade revelada pelo arguido, a sua situação financeira, a sua situação familiar, profissional e social, as suas ligações a países estrangeiros, enfim, todas as circunstâncias que possam revelar a sua vontade e a sua capacidade ou facilidade para se por em fuga. Sendo com base num juízo global de todas as circunstâncias do caso que se pode fundamentar um juízo deste tipo.
Identicamente, escreveu-se no acórdão da RE de 15/02/2011 (proferido no proc. nº 1/09.3JAPTM.E1) que «O perigo de fuga tem de ser real, traduzido ou concretizado em factos». Também o Ac. da RP de 9/10/13, www.dgsi.pt., afirmou que o perigo de fuga tem por base o risco do arguido se subtrair ao exercício da acção penal, mediante a existência de certas circunstâncias, que, de modo consistente, possam favorecer a fuga ou potenciar a mesma. Existirá esse perigo, sempre que subsistam elementos objectivos, donde se possa aferir que o arguido em liberdade se ausentará para parte incerta, no país ou no estrangeiro, com o propósito de se eximir à acção penal.
No despacho recorrido foi sustentado este perigo do seguinte modo: «(…) é de realçar que existe, a nosso ver, perigo de fuga, pois trata-se de um arguido com residência em Espanha, ao qual não se conhece nenhuma ligação a Portugal. Não obstante a inexistência de antecedentes criminais conhecidos temos que levar em consideração a natureza e as circunstâncias do crime atendendo sobretudo ao seu modo de execução e a facilidade demostrada em deslocar-se entre Portugal e Espanha, sendo certo que o acidente ocorrido foi com polícias do CNP de Espanha que o estavam no seu encalce. Apesar de se tratar de haxixe, a quantidade apreendida 94,270KG assume grande expressão, tendo em conta o número de doses possíveis e o elevadíssimo lucro susceptível de ser obtido. A isto acresce a natureza do crime em causa e a moldura abstracta aplicável que, tendo em conta as possíveis sanções susceptíveis de virem a ser aplicadas, tomam ainda mais premente esse perigo de fuga.».
O simples facto de o arguido ser estrangeiro, por si só, não pode ser tido como suficiente para estribar a verificação do perigo de fuga, com a relevância necessária e proporcional, assim como também não o poderá ser a mera possibilidade de uma condenação futura nestes autos em provável pena de prisão efectiva (a pena abstracta cominada é a de 4 a 12), uma vez que o que se pretende acautelar com a exigência da verificação do perigo de fuga é a presença do arguido no decurso do processo e a execução da decisão final (16).
Contudo, ressalta dos autos que o arguido, de nacionalidade espanhola, não possui residência em Portugal, é solteiro, encontra-se desempregado e, sobretudo, que se movimentava muito facilmente entre Portugal e Espanha, factores que, todos devidamente conjugados, permitem extrair que, no caso concreto, a sua ligação a um País estrangeiro, com ausência de vínculo ao nosso País, aponta para a real existência de um elevado risco de o mesmo se furtar aos ulteriores termos do processo, proporcionado pela sua facilidade em sair do território nacional.
Consequentemente, entendemos que houve acerto ao ter-se considerado existir também este perigo, sendo que, conforme decorre do corpo do art. 204º, para a aplicação de qualquer medida de coacção, à excepção do TIR, basta a existência de um dos requisitos ínsitos nas diversas alíneas deste preceito.
Ora, o recorrente pugna pela revogação da imposta (prisão preventiva) e sua substituição por TIR e ou, eventualmente, de uma medida de caracter económico.
Vejamos:
Reconduzindo ao caso sub judice as expostas considerações gerais, não só a medida de prisão preventiva imposta é, em abstracto, admissível, nos termos do art. 202º, nº1, al. a), uma vez que os factos indiciados integram o crime de tráfico de estupefacientes previsto pelo art. 21º do Dec. Lei 15/91, a que corresponde pena de prisão de 4 a 12 anos, como também entendemos que tal medida coactiva se revela ser a necessária e a única adequada para evitar os perigos de continuação da actividade criminosa e de fuga, sendo insuficiente e inidónea para os acautelar a sugerida pelo recorrente.
Em suma, o recurso não pode obter provimento.
*
Decisão:
Nos termos expostos, julgando improcedente o recurso interposto, decide-se confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC´s.
Guimarães, 24/04/2017
Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado

Ac. da RP de 20/11/2013 (p. 832/10.1JAPRT-A.P1 - Maria do Carmo Silva Dias).
2 Pertencerão a este código todas as normas subsequentemente invocadas sem menção da proveniência. Os aludidos pressupostos consistem no perigo de fuga, perigo de perturbação da investigação (ou da aquisição da prova), ou perigo de continuação da actividade criminosa ou da perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas.
3 Que tem sede constitucional no artigo 18º, nº 2, 2ª, parte da CRP.
4 A medida só será legítima se a que se segue (na escala decrescente da gravidade) não assegurar o fim cautelar visado e for proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
5 Como disse Figueiredo Dias (cit. no referido Ac. da RP de 20/11/2013), exige-se que só sejam aplicadas ao arguido «as medidas que ainda se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente».
6 Cujo nº 1 dispõe: «As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas».
7 Na verdade, como refere o Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, II, 4º ed., p., «Não basta (…) a admissibilidade em abstracto da aplicação ao arguido de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial; importa que ela se mostre necessária no caso concreto, objectiva e subjectivamente. Em cada caso é preciso que a medida se mostre objectivamente idónea para assegurar a finalidade para que a lei a permite, mas é preciso também que ela se mostre necessária para realizar esse mesmo fim, o que significa que não pode prosseguir-se uma finalidade distinta da prevista da lei, pois isso seria utilizar uma norma de cobertura para defraudar o direito fundamental cuja limitação está legalmente preordenada à satisfação de fins legítimos previstos pela lei.».
8 Maia Costa, “Prisão preventiva: medida cautelar ou pena antecipada?”, RMP nº 96, Out/Dez 2003, p. 98, citado no Ac. da RP já referenciado. Acrescenta o mesmo Autor que «se se extravasar esse sentido cautelar, a medida adquire inevitavelmente um carácter punitivo, ilegítimo porque o arguido goza ainda da presunção de inocência».
9 Cf. Lourenço Martins, A Droga e o Direito, Aequitas, Editorial Notícias, 1994, p.122, citado pelo Ac. do STJ de 12/9/2007 (Soreto de Barros, Proc. 06P2165, in www.dgsi.pt).
10 Ac do STJ de 15/4/2010 (p. 631/03.7GDLLE.S1 - Arménio Sottomayor – in www.dgsi.pt), que acrescenta: “A construção e a estrutura dos crimes ditos de tráfico de estupefacientes como crimes de perigo, de protecção (total) recuada a momentos anteriores a qualquer manifestação de consequências danosas, e com a descrição típica alargada, pressupõe a graduação em escalas diversas dos diferentes padrões de ilicitude em que se manifeste a intensidade (a potencialidade) do perigo (um perigo que é abstracto-concreto) para os bens jurídicos protegidos”.
11 Cfr. Maia Costa, in comentário ao CPPenal, p. 823. Também Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, p. 602, escreve que «só é relevante o perigo baseado em factos capazes de mostrar que a libertação do arguido poderia efectivamente “perturbar”, isto é, alterar negativamente a ordem pública”, acrescentado que “ A ordem e tranquilidade “pública” não é a do grupo social a que pertence o arguido ou o ofendido, mas a ordem ou a tranquilidade da sociedade em geral».
12 Cfr. “As medidas de coacção no Código de Processo Penal Revisto – Algumas notas”, in CJ, ano XXXII, tomo IV, pág. 5 e seguinte.
13 Cfr. Ac. da RP de 25/03/10, Recurso n° 1 936/09.9JAPRT.
14 In ob. cit., p. 301.
15 Ob. cit., p. 297.
16 Cfr. Germano Marques da Silva, Ob. cit. pág. 297.