Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6777/19.2T8BRG.G1
Relator: RAMOS LOPES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

I- O processo especial de acompanhamento de maior caracteriza-se pela preponderância do princípio do inquisitório, com atribuição de poder reforçado ao juiz – poder orientado, vinculado pela prossecução da finalidade última do processo, no caso, apurar se um maior, por razões de saúde, está impossibilitado de plena, pessoal e conscientemente exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres e de adoptar, em caso afirmativo, medida que assegure o seu bem-estar, a sua recuperação e o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres (arts. 138 e 140º do CC).
II- Nestes processos (sem que possa questionar-se vigorar o princípio do processo justo e equitativo – o direito à jurisdição e consequente direito a influenciar a decisão e, por isso, o direito à proposição de provas, ao controlo das provas oferecidas pela contraparte e à pronuncia sobre o valor e resultado das provas produzidas), o direito à prova reconhecido às partes tem uma limitação funcionalmente ordenada à célere e justa prossecução da finalidade do processo – a conveniência e necessidade do meio probatório para a demonstração dos factos pertinentes à boa decisão da causa (os meios probatórios admissíveis são os necessários à boa decisão da causa - arts. 897º, nº 1 e 986º, nº 2 do CPC).
III- Na jurisdição voluntária (e regimes processuais que comunguem das suas regras) impõe-se ao juiz que que assuma o controlo das provas a produzir, em atenção ao critério da sua necessidade em vista da demonstração dos factos pertinentes à decisão da causa.
IV- A necessidade (e, por contraponto, a desnecessidade) do meio probatório será aferida (julgada) por referência à finalidade do processo – as provas a produzir serão aquelas que, num juízo de racionalidade objectiva, se revelarem aptas, adequadas e necessárias à demonstração da materialidade pertinente à boa decisão da causa, considerando a concreta finalidade dos autos.
V- A condenação de uma parte como litigante de má fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, com o marcado intuito de moralizar a actividade judiciária.
VI- A afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros e inequívocos para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência e fundada segurança.
VII- O conceito de negligência grave que a censura da litigância de má fé pressupõe caracteriza-se pela exigência do extraordinário desleixo na actuação da parte no cumprimento do dever de indagação que sobre si impende – indagação dos fundamentos de facto e/ou de direito atinentes à retensão que defende no processo.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
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Intentou a requerente processo especial de acompanhamento de maior pretendendo que, por razões de saúde, fosse decretado o acompanhamento da beneficiária (requerida), sua mãe, com nomeação de acompanhante e decretamento medida de acompanhamento, alegando para tanto factualidade tendente a demonstrar que face ao seu estado de saúde mental (sua afectação por patologias do foro psíquico - com ‘episódios de descontrolo emocional, comportamentos disruptivos, crises ansiosas como interna activação neurovegetativa e episódios conversivos), agravado (ao que conseguiu apurar a requerente – sustenta estar impedida pela sua irmã, que dela vem cuidando, de contactar a requerida) após o divórcio, necessitando de constante supervisão, estando completamente prejudicados o seu ‘funcionamento social e autonomia’, encontrando-se ‘impossibilitada de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e cumprir os seus deveres’.

Citada (na sua pessoa), apresentou-se a requerida a contestar, sustentando a improcedência da acção e pedindo a condenação da requerente em multa e indemnização como litigante de má-fé por alegar factos que sabe serem falsos, com o objectivo de impedir que a requerida proceda à gestão do seu património.

Citado o Ministério Público, procedeu-se à audição da requerida (fazendo-se constar, finda a audição, ter a requerida mostrado entendimento das questões e respondendo a todas as colocadas) e à realização de exame pericial, neste se concluindo não apresentar a requerida ‘antecedentes psiquiátricos nem patologia psiquiátrica’, apresentando um ‘Exame de Estado Mental normativo para a sua faixa etária’, demonstrando, apesar ‘do discreto comprometimento da memória recente e de alguma dificuldade em valorizar simbolicamente bens de elevado valor’, ser ‘capaz de gerir a sua pessoa e bens’, não existindo ‘critérios, por enquanto, que justifiquem a atribuição de medida de Maior Acompanhado’.

Notificado o relatório, apresentou-se a requerida (sustentando que o mesmo confirmava estar na posse das suas faculdades mentais, como sempre afirmara nos autos e como pudera ser comprovado pelo tribunal aquando da sua audição) a alegar existir nos autos evidência técnico-científica que permitia, com total segurança, concluir pela sua capacidade para reger a sua pessoas e bens, defendendo (e impetrando) dever a acção ser decidida com dispensa da produção de quaisquer outras, por desnecessárias.

Convidados para se pronunciarem sobre o assim requerido, mantiveram-se, a propósito, revéis a requerente e o Ministério Público.
Para tanto expressamente convidada pelo tribunal, pronunciou-se a requerente sobre a sua litigância de má-fé – alegou preocupar-se (como sempre) com o bem-estar da requerida, pelo que em razão do impedimento de com ela contactar, porque sabedora das doenças de que a mesma padece e por lhe ter chegado ao conhecimento que a mesma se encontraria nas condições alegadas na petição, importava, se tal correspondesse à verdade (e na impossibilidade de verificar do seu estado in loco) a tomada de providências, entendendo nesse sentido ser a presente acção o meio processual próprio, não lhe podendo ser imputado qualquer tipo de má-fé.
Por entender fornecerem os autos os elementos probatórios indispensáveis à prolação da decisão de mérito (assim dispensando a produção doutras provas requeridas pelas partes, mormente testemunhais), proferiu o Exmo. Juiz sentença julgando improcedente a acção e condenando a requerente como litigante de má-fé em setenta e cinco UC de multa e no pagamento à requerida de indemnização no montante de três mil euros.

Apela a requerente, terminado as suas alegações formulando as conclusões que se transcrevem:
1.ª Versa o presente recurso de facto e de direito, e vem interposto da douta sentença de 11/11/2020, que julgou improcedente a acção, e em consequência não decretou qualquer medida de acompanhamento da requerida e condenou a Recorrente com litigância de má fé em setenta e cinco UC’s de multa e no pagamento à requerida duma indemnização no montante de três mil euros.
2.ª Salvo o devido respeito entende a Recorrente entende que o tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria de facto por omissão de diligência de inquirição de testemunhas e por não ter solicitado os registos clínicos da requerida às entidades indicadas no seu requerimento inicial.
3.ª Tal omissão de diligências de prova afecta o julgamento da matéria de facto por défice instrutório.
4.ª Em face do exposto, a decisão recorrida está inquinada de erro de julgamento, por deficiente juízo valorativo da dispensa de prova testemunhal e documental, pelo que, deverá a decisão recorrida ser anulada, possibilitando à Recorrente o cumprimento do ónus que lhe incumbe, e ser proferida nova decisão de acordo com o julgamento da matéria de facto que vier a ser feito.
5.ª Poroutrolado,insurge-se aRecorrentequanto àapreciação da matéria de direito, feita pela Meritíssima Juiz a quo, no que respeita à litigância de má fé, entendendo que, não resultou dos autos que a Recorrente agiu com intenção (dolosa) de falsear a verdade dos factos e deduzir uma pretensão sem qualquer fundamento.
6.ª In casu, como foi referido pela Recorrente no requerimento inicial, e mais tarde no contraditório que exerceu quanto à litigância de má fé, a Recorrente não inventou quaisquer factos relativos ao dia a dia da sua mãe, antes sim limitou-se a descrever na petição inicial os factos que advieram ao seu conhecimento por terceiros, alicerçando-se aindanuma informaçãoclínica junta com a p.i. sob o documento n.º 3 junto onde constava que “ a Requerida sofre de episódios de descontrolo emocional, comportamentos distruptivos, crises ansiosas com interna activação neurovegetativa e episódios conversivos.”
7.ª Para o efeito de comprovar os factos narrados na p.i., a Recorrente arrolou testemunhas e requereu que fossem juntos elementos clínicos da Requerida, testemunhas essas que não foram inquiridas, e elementos clínicos que não foram solicitados, mas que certamente comprovariam aqueles factos.
8.ª Assim a Recorrente não agiu com intenção dolosa de falsear a verdade dos factos, nem de deduzir uma pretensão sem qualquer fundamento, não havendo fundamento legal para a sua condenação como litigante de má fé.
9.ª Sem prescindir, entende a Recorrente que a multa aplicada e a indemnização por litigância de má fé, é manifestamente excessiva, injusta e desproporcional.
10.ª Quanto à multa estabelece o artigo 27.º n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais que o seu montante é fixado tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste.
11.ª Mas a multa sendo um tipo de sanção deverá sempre obedecer aos princípios de adequação e proporcionalidade, o que, salvo o devido respeito, nãoaconteceunacondenaçãodaRecorrente, pois amesmafoi condenada em 75 UCS.
12.ª Ora, a Meritíssima Juiz a quo não tomou conhecimento nem ponderou a situação económica da Recorrente e a repercussão da condenação no património destes, conforme se verifica da fundamentação ou da falta da mesma nestes pontos, pelo qual violou a douta sentença o disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea b) do C.P.C., nulidade que se invoca para os legais e devidos efeitos.
13.ª No que respeita à indemnização no valor de três mil euros, entende a Recorrente que o montante da indemnização não é equitativo, sendo injusto e desproporcional, sendo que um quantum indemnizatório, observando os critérios de razoabilidade, proporcionalidade, a ajustado ao caso concreto, devia ser reduzido, por prudente arbítrio, para um valor global não superior a 1.000,00 €.
14.ª Em face do exposto, deve julgar-se procedente o recurso, devendo a douta sentença recorrida ser anulada, pela falta de inquirição das testemunhas, e ser proferida nova decisão de acordo com o julgamento da matéria de facto que vier a ser feito. Ou sem prescindir, deverá a douta sentença recorrida ser declarada nula, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1 al. b) do C.P.C. Ou ainda caso assim não se entenda a sentença incorre em erro na apreciação da matéria de facto e em erro de apreciação da matéria de direito, em violação dos artigos 542.º e 543.º do CPC, e artigo 27.º n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, devendo por conseguinte ser revogada.
Contra-alegaram a requerida e o Ministério Público em defesa da sentença recorrida sustentando a improcedência da apelação, defendendo a integral manutenção da decisão e a adequação e justeza da condenação da apelante enquanto litigante de má-fé (argumentando a requerida que o montante indemnizatório arbitrado fica muito aquém dos danos que sofreu em consequência da propositura da presente acção).
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Colhidos os vistos, cumpre decidir
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Do objecto do recurso

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões no mesmo formuladas (artigos 608º, nº 2, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, podem enunciar-se as questões decidendas como segue:
- do erro de julgamento quanto à decisão da matéria de facto decorrente da omissão da diligência de inquirição de testemunhas e da solicitação de informação clínica,
- da litigância de má-fé da requerente apelante, incluindo do doseamento (medida concreta) da multa e do montante indemnizatório fixados.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto

Na decisão recorrida consideraram-se:

Factos provados:
1º- A autora é filha da requerida.
2º- A requerida, divorciada, nasceu no dia -/12/1943.
3º- A requerida vive com a filha C., irmã da requerente.
4º- A requerida não apresenta antecedentes psiquiátricos nem doença ou patologia do foro psiquiátrico.
5º- A requerida apresenta um quadro mental normal para a sua idade.
6º- A requerida está capaz de gerir a sua pessoa e bens.
7º- A requerida conhece o dinheiro.
8º- A requerida tem noção do valor simbólico do dinheiro para adquirir pequenos bens do quotidiano.
9º- A requerida sabe ler e assinar.
10º- A requerida não apresenta sinais de depressão.
11º- A requerida tem noção do espaço onde se encontra e do tempo.
12º- A requerida é capaz de realizar autonomamente as tarefas do dia-a-dia, embora lentamente.
13º- A requerida possui juízo crítico e tem noção das normas sociais.
14º- A requerente, quanto intentou a presente acção, não tinha qualquer contacto pessoal com a requerida e entendeu ser ‘este o meio processual próprio para verificar o estado da requerida’.

Factos não provados

1º- A requerida necessita de supervisão constante, está incapaz de gerir a medicação, o dinheiro ou confeccionar a sua alimentação, marcha autónoma limitada no exterior pela desorientação
2º- … o seu funcionamento social e autonomia encontram-se completamente prejudicadas.
3º- … consegue ainda comer pela sua mão, mas, não consegue confeccionar ou preparar as suas refeições.
4º- … toma medicação diariamente, mas é incapaz de a seleccionar, e saber quando e como deve administrar a mesma, estando ainda incapaz de se arranjar e administrar a sua pessoa.
5º- … mostra pouco equilíbrio ao caminhar embora ainda conheça os espaços de sua casa, não sai sozinha à rua, nem sequer para fazer pequenos percursos perto da casa.
6º- … não é capaz de usar transportes próprios ou usar transporte público, nem se orientar em lugar que não conheça.
7º- … não consegue sequer fazer qualquer transacção comercial, e o dinheiro baralha-a,
8º- … não sabendo sequer o valor material das coisas.
9º- … para se vestir tem que ser supervisionado por terceiros.
10º- A requerente tem um discurso parco e pouco mais do que o necessário às necessidades básicas da vida diária, confundindo-se frequentemente.
11º- … por vezes não consegue dizer ao certo o dia, mês e ano.
12º- A requerida encontra-se, assim, impossibilitada de exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e cumprir os seus deveres
13º- A requerida deve beneficiar de acompanhamento na administração dos bens e rendimentos.
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Fundamentação de direito

A. Do erro de julgamento quanto à decisão de facto por omissão de diligências probatórias.

Argumenta a apelante ter o tribunal a quo julgado incorrectamente a matéria de facto em razão de ter omitido diligências requeridas (inquirição de testemunhas e solicitação de registos clínicos da requerida) – tal omissão de diligências probatórias, alega, inquina o julgamento da matéria de facto por défice instrutório e, em consequência, inquina a decisão de erro de julgamento, impondo-se assim a sua anulação em vista de lhe ser possibilitado o cumprimento do ónus que lhe incumbe (proferindo-se após nova decisão de acordo com o julgamento da matéria de facto que vier a ser feito).
Na actual conformação normativa (resultante da Lei nº 49/2018, de 14/05, que eliminou os institutos da interdição e da inabilitação, introduzindo – art. 3º da referida Lei 49/2018 – alterações no Código de Processo Civil, modificando a redacção dos artigos 16º, 19º, 20º, 27º, 164º, 453º, 495º, 891º a 904º, 948º a 950º, 1001º, 1014º e 1016, revogando ainda, nesse diploma processual o nº 3 do artigo 20º, o artigo 905º e a alínea d) do artigo 948º), ao processo especial de acompanhamento de maiores é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério da decisão e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (art. 891º do CPC).
Não sendo um processo de jurisdição voluntária, faz suas (por expressa remissão) algumas das regras destes processos, mormente as atinentes aos poderes do juiz – poder de investigar livremente os factos, de coligir as provas, de ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes e, ainda, a prerrogativa de admitir tão só as provas que considere necessárias para a boa decisão da causa (art.º 986º, nº 2 do CPC).
Caracteriza-se, pois, o processo especial de acompanhamento de maior, pela preponderância do princípio do inquisitório (em detrimento do princípio do dispositivo que marca o processo comum), o que todavia não significa que os poderes reforçados do juiz lhe confiram poderes discricionários ou arbitrários – ainda que latitudinário, trata-se de poder orientado, vinculado pela prossecução da finalidade última do processo, no caso, apurar se um maior (a apelada), por razões de saúde está impossibilitado de plena, pessoal e conscientemente exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres e de adoptar, em caso afirmativo, medida que assegure o seu bem-estar, a sua recuperação e o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres (arts. 138 e 140º do CC). A necessidade (e, por contraponto, a desnecessidade) do meio probatório será aferida (julgada) por referência à finalidade do processo – as provas a produzir serão aquelas que se revelarem aptas, adequadas e necessárias à demonstração da materialidade pertinente à boa decisão da causa, considerando a concreta finalidade dos autos.
Nestes processos (e sem que possa questionar-se que vigora também neles o princípio do processo justo e equitativo – o direito à jurisdição e consequente direito a influenciar a decisão e, por isso, o direito à proposição de provas, ao controlo das provas oferecidas pela contraparte e à pronuncia sobre o valor e resultado das provas produzidas), o direito à prova (enquanto actividade destinada à demonstração da realidade dos factos em juízo) tem uma limitação funcionalmente ordenada à célere e justa prossecução da finalidade do processo – a conveniência e necessidade do meio probatório para a demonstração dos factos pertinentes à boa decisão da causa: diversamente da jurisdição contenciosa, onde só podem ser recusadas as provas impertinentes, dilatórias ou irrelevantes (v. g., arts. 411º, 413º, 443º, 476º e 490º do CPC), no processo especial de acompanhamento de maior (que nesta parte comunga das regras dos processos de jurisdição voluntária), os meios de prova admissíveis são os necessários à boa decisão da causa (arts. 897º, nº 1 e 986º, nº 2 do CPC).
A pedra de toque de tal conceito (necessidade do meio probatório) não é dada pela arbitrariedade ou pelo subjectivo voluntarismo do juiz, antes pela adequação do meio probatório (num juízo de objectiva racionalidade) à demonstração do facto e por isso, a pro-actividade exigida ao juiz acarreta maior exigência e rigor no ajuizamento – se na jurisdição contenciosa se deixa a cargo da parte ajuizar sobre a aptidão do meio de prova proposto para lograr a demonstração do facto em juízo, limitando-se o papel do juiz a repelir o impertinente, irrelevante e dilatório, na jurisdição voluntária (e regimes processuais que comunguem das suas regras) o papel do juiz é mais exigente, impondo-se-lhe que assuma o controlo das provas a produzir, em atenção ao critério da sua necessidade em vista da demonstração dos factos pertinentes à decisão da causa.
Papel que no caso trazido em recurso o juiz assumiu, tendo considerado, em resultado da audição da requerida (diligência obrigatória – art. 897º, nº 2 do CPC) e do exame pericial realizado (perícia médica) ser desnecessária a produção doutras provas (mormente testemunhal) – referiu expressamente na decisão considerar, face ao teor das declarações proferidas pela requerida e ao teor do exame pericial, fornecerem os autos os elementos probatórios indispensáveis à prolação de decisão de mérito.
Juízo que não merece censura, pois que (mais do que o resultado da audição da requerida) a conclusão do relatório pericial apresenta-se clara e inequívoca, arredando qualquer margem para a consideração do que ao bom julgamento da matéria de facto poderia trazer o empírico contributo da prova testemunhal (ainda que prestada por pessoa com conhecimento da ciência médica) ou até de outros elementos clínicos.
Estando em causa a apreciação de factos que demandam conhecimentos especiais que os julgadores não possuem (art. 388º do CC) – mormente o estado de saúde mental da requerida (e, por via dele, a sua capacidade, ou não, de gerir a sua pessoa e bens) – o meio probatório próprio, idóneo e adequado à sua demonstração em juízo é a prova pericial (art. 388º do CC).
Não sendo o seu resultado vinculativo, ‘estando sempre sujeito à livre apreciação do julgador’ (1), tem de reconhecer-se, sob pena de completa frustração da racionalidade em que a formação da convicção se traduz, que o princípio da livre apreciação (art. 389º do CC) sofre, a propósito da prova pericial, importante restrição motivada pelo ‘diferencial de conhecimentos técnicos’ (2), sendo difícil ao tribunal afastar-se da validade científica das conclusões periciais, por para tanto lhe faltarem os necessários conhecimentos técnicos (designadamente quando as suas conclusões se sustentem em conhecimentos científicos que não suscitem dúvidas e tanto mais quando os resultados da perícia, expostos em conclusões seguras e inequívocas, notificados às partes, não são por elas questionados).

No caso dos autos, ponderando que o resultado da audição da requerida (na diligência entendeu todas as questões que lhe foram colocadas, a todas respondendo) foi corroborado pelas conclusões do exame pericial a que foi sujeita (nele se concluiu não apresentar a requerida ‘antecedentes psiquiátricos nem patologia psiquiátrica’, apresentando um ‘Exame de Estado Mental normativo para a sua faixa etária’, demonstrando, apesar ‘do discreto comprometimento da memória recente e de alguma dificuldade em valorizar simbolicamente bens de elevado valor’, ser ‘capaz de gerir a sua pessoa e bens’, não existindo ‘critérios, por enquanto, que justifiquem a atribuição de medida de Maior Acompanhado’) e que a conclusão da perícia se mostrava inequívoca, a desnecessidade (por irrelevância) de produção doutras provas era patente e manifesta.
Fazendo-se notar, preliminarmente, ter sido nos autos respeitado o princípio do processo justo e equitativo, pois que facultado às partes o direito a influenciar a decisão (quer pelo controlo da prova produzida, pois lhes foi permitido pronunciar-se sobre o resultado da perícia, quer até pela possibilidade de se pronunciarem pela suficiência da produzida e desnecessidade de produção doutra - a requerente foi chamada a pronunciar-se sobre a possibilidade de decidir de mérito sem a realização das demais provas oferecidas pelas partes, como impetrado pela requerida quando notificada do relatório pericial), tem de reconhecer-se que a produção doutras provas, considerando o resultado da perícia e os termos em que decorrera a audição da requerida, se apresentava como desnecessária, inútil, supérflua – o meio de prova apropriado, idóneo e adequado à demonstração em juízo da materialidade nuclear à boa decisão da causa apresentava resultado claro e inequívoco, não demandando corroboração doutros elementos probatórios, mormente de elementos clínicos (se os aludidos no requerimento inicial, ou outros, fossem necessários, certamente que o perito teria cuidado de que eles fossem obtidos em vista de emitir o seu laudo) ou de prova testemunhal.
Acertado e ponderado, pois, o juízo da decisão recorrida sobre a desnecessidade de produção doutras provas – produzido o meio probatório idóneo à demonstração do facto em juízo e apresentando este resultado claro e inequívoco, que nenhuma das partes questionou, a produção doutras provas assumiria relevo meramente secundário, tão só corroborando e/ou atestando o que já estaria adquirido (ou, até noutra perspectiva, mas sem mesmo assim perder o seu carácter de prova desnecessária ou dispensável, questionando a valia da conclusão pericial sem para tanto ter a necessária validade técnico-argumentativa – prova testemunhal).
Nenhum erro de julgamento se detecta, pois, na decisão de considerar desnecessária a produção doutras provas (mormente da proposta pela requerente no seu requerimento inicial) para decidir do mérito da causa – a prova realizada nos autos apresentava-se como a mais apta e adequada à demonstração da matéria pertinente à decisão da causa, repelindo a inequivocidade dos seus resultados (das conclusões periciais) a necessidade de se recorrer a outros meios probatórios para obter confirmação ou corroboração.

B. Da litigância de má fé.

B.1. O instituto da litigância de má fé, previsto nos arts. 542º e segs. do CPC, constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso do dever de cooperação e das regras da boa fé (3) (ou probidade) processual (arts. 7º e 8º do CPC).

A condenação de uma parte como litigante de má fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, com o marcado intuito de moralizar a actividade judiciária.
O instituto acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça (esse o seu fundamento ético), destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má fé processual: a de transformar a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial (4).
A litigância de má fé tanto pode ser substancial (dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ser ignorada, alteração da verdade dos factos e/ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa) como instrumental (seja porque se pratica grave omissão do dever de cooperação, seja porque se faz do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável, com qualquer das finalidades assinaladas na alínea d) do nº 2 do preceito) – a má fé material (ou substancial) ‘relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objectivo que se afasta da função processual’; a má fé instrumental ‘abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo.’ (5)
Em ambas as modalidades – mesmo na má fé substancial – está em causa sempre ‘um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais’ com uma das finalidades apontadas no nº 2 do art. 542, circunscrevendo-se o âmbito de aplicação do instituto ‘às situações configuradoras de meras violações de deveres e ou obrigações processuais’ (6).
A proposição de uma acção que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, de per si, actuação dolosa ou gravemente negligente da parte – a falta de razão com que uma das partes litiga não basta para justificar a má fé, apenas podendo provocar a improcedência da sua pretensão (7) e assim que a simples circunstância de se dar como provada uma versão factual contrária à alegada não é suficiente para fundar e fundamentar a condenação da parte que viu triunfar a versão da parte contrária, como litigante de má fé: para ‘se imputar a uma pessoa a qualidade de litigante de má fé, imperioso se torna que se evidencie, com suficiente nitidez, que a mesma tem um comportamento processualmente reprovável, isto é, que com dolo ou negligência grave, deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou que altere a verdade dos factos ou omita factos relevantes ou, ainda, que tenha praticado omissão grave do dever de cooperação (8).
Na verdade, o direito à tutela jurisdicional efectiva (que compreende a garantia de amplo acesso aos tribunais e a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos através do direito de acção), próprio do Estado de Direito, é incompatível com interpretações apertadas do art. 542º do CPC, ‘nomeadamente no que respeita às regras das alíneas a) e b) do nº 2’, pelo que não é por ‘se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má fé’ (9).
A afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má fé (10) – a ‘lide processual arrasta um afrontamento/conflito de interesses, pouco propício a uma ponderação serena e objectiva das intervenções processuais, obnubilando o todo processual e deixando «ver» apenas a «verdade» do «seu» caso’ (11).
Exige-se, pois, particular prudência e fundada segurança para se afirmar a litigância de má fé, a qual depende sempre de uma apreciação casuística onde deverá caber a natureza dos factos e a forma como a afirmação, a negação ou a omissão são feitas (12).
Para se concluir pela verificação de uma tal conduta dolosa ou gravemente negligente deverá o processo revelar, de forma segura e inequívoca, que a parte negou factos cuja veracidade conhecia ou não podia deixar de conhecer ou que afirmou a existência de uma realidade que sabia falsa ou que não podia deixar de saber ser falsa (de acordo com o padrão de conduta exigível a uma pessoa normalmente prudente, diligente, sagaz e sensata).
A par do dolo (em qualquer das suas modalidades – desiderato de deduzir pretensão infundada ou de alterar a verdade dos factos, actuação com pleno conhecimento de tal falta de fundamento, factual e/ou jurídico, e da não correspondência do alegado à veracidade conhecida ou conformando-se com a alegação da materialidade factual em versão que se aceita não seja verdadeira), censuram-se comportamentos gravemente negligentes.
O conceito de negligência grave que a censura da litigância de má fé pressupõe caracteriza-se pela exigência do extraordinário desleixo na actuação da parte – cabendo à parte que se dirige a juízo para formular pretensão (ou contestar pretensão contra si deduzida) indagar do seu concreto fundamento, no plano do facto e do direito, pratica a mesma ‘um ato desconforme e provocador de um dano num bem juridicamente protegido’ se não observou tais deveres de indagação (sendo-lhe imputável o desconhecimento quanto à falta de fundamento), consubstanciando-se o parâmetro de aferição do dever de diligência da parte (nessa indagação) nos seguintes termos: ‘a generalidade das pessoas ou todas as pessoas, pertencentes à categoria social e intelectual da parte real, colocadas naquela situação em concreto, ter-se-iam abstido de litigar, uma vez que, cumpridos os seus deveres de indagação, teriam concluído’ não ter a pretensão fundamento (13).
O tipo de ilícito previsto nas diversas alíneas do nº 2 do art. 542º do CPC demanda, pois (no que ao ilícito negligente concerne), não o desleixo caracterizador da negligência (consciente ou inconsciente), mas o extraordinário desleixo que eleva a respectiva gravidade, tornando-a grosseira (negligência grave).

B.2. A decisão recorrida censurou a apelante como litigante de má fé por entender que actuou com intenção (dolosamente) de falsear a verdade dos factos e de deduzir pretensão sem fundamento.

Argumentou, para tanto:
No caso em apreço, será que ao agir como agiu, a requerente teve intenção de adulterar a verdade dos factos e de deduzir uma pretensão sem fundamento?
A resposta a esta questão só poderá ser positiva.
E esta nossa resposta é sustentada na afirmação da própria requerente de que a presente ação visou apenas e tão “apurar o estado de saúde da requerida”.
Ora, facilmente se percecionará, o instrumento para atingir tal desiderato não foi o mais feliz nem do ponto de vista moral nem judiciário.
É, pois, indiscutível que a requerente, caso tivesse dúvidas sobre o estado atual de saúde da sua mãe, podia e devia ter recorrido a outro tipo de expediente para se inteirar desse estado ao invés de “inventar” que a mesma, na presente data, “necessita de supervisão constante, está incapaz de gerir a medicação, o dinheiro ou confecionar a sua alimentação, marcha autónoma limitada no exterior pela desorientação”, “o seu funcionamento social e autonomia encontram-se completamente prejudicada”, “é incapaz de selecionar a sua medicação e saber quando e como deve administrar a mesma, estando ainda incapaz de se arranjar e administrar a sua pessoa”, “não sai sozinha à rua, nem sequer para fazer pequenos percursos perto da casa”, “não é capaz de usar transportes próprios ou usar transporte público, nem se orientar em lugar que não conheça”, “não consegue sequer fazer qualquer transação comercial, e o dinheiro baralha-a, não sabendo sequer o valor material das coisas”, “para se vestir tem que ser supervisionado por terceiros”, “tem um discurso parco e pouco mais do que o necessário ás necessidades básicas da vida diária, confundindo-se frequentemente, “por vezes não consegue dizer ao certo o dia, mês e ano”...
Na verdade, o seu comportamento processual, para além de moralmente censurado, traduziu-se num incompreensível falseamento de factos relativos ao dia a dia da sua mãe.
Note-se que nem mesmo “convidada” pelo Tribunal a desistir desta imensa “mentira”, a requerente não cedeu e manifestou o desejo de manter todos estes seus intentos.
Assim, em face do exposto, resultando dos autos que a requerente agiu com intenção (dolosa) de falsear a verdade dos factos e de deduzir uma pretensão sem qualquer fundamento, julgamos haver fundamento legal para a condenar como litigante de má-fé.
Insurge-se a apelante contra o assim decidido argumentando não resultar dos autos ter actuado com intenção (dolosa) de falsear a verdade dos factos e/ou deduzir pretensão sem fundamento, sublinhando que logo no seu requerimento inicial deu nota (o que renovou no articulado que apresentou no cumprimento do contraditório quanto ao pedido da sua condenação como litigante de má fé) de que o conhecimento dos factos que alegava como fundamento da pretensão assentava no relato de terceiros (por impedimento do contacto directo com a requerida, promovido pela pessoa aos cuidados de quem se encontra - irmã da requerente/filha da requerida) e ainda em informação clínica (logo junta aos autos) donde resultava padecer a requerida de episódios de descontrolo emocional, comportamentos distruptivos, crises ansiosas com interna activação neurovegetativa e episódios conversivos.
Na decisão apelada, considerou o tribunal a quo provado (facto 14º) que a requerente, quando intentou a presente acção, não tendo com ela qualquer contacto, entendeu ‘ser este o meio processual próprio para verificar o estado da requerida’, fundamentando-se para tanto (para o julgamento de tal facto) no requerimento apresentado por ela em 24/09/2020 – e já em sede de fundamentação jurídica concluiu ter tido a requerente intenção de adulterar a verdade dos factos e deduzir pretensão sem fundamento, pois que com a presente acção visara tão só e apenas apurar do estado de saúde da requerida (inventando os factos descritos na petição).
No articulado em questão (de 24/09/2020), apresentado no cumprimento do contraditório quanto ao pedido da sua condenação como litigante de má fé, a requerente alegou i) preocupar-se (como sempre se preocupou) com o bem-estar da requerida, ii) que a sua irmã criou impedimentos a que ela, requerente, e o irmão pudessem contactar a requerida, iii) que sabendo as doenças que a mãe sofre e tendo-lhe chegado ao conhecimento que a requerida, sua mãe, se encontraria nas condições que alegou na petição, iv) importava, correspondendo tal situação à verdade, tomar providências, entendendo, por isso (e sendo-lhe impossível verificar in-loco o estado da requerida), ser a presente acção o meio processual próprio.
Constata-se da análise de tal requerimento que o julgamento do tribunal recorrido, no que concerne à segunda parte do facto 14º da fundamentação de facto, não pode manter-se, pois que ele não sustenta a conclusão de que a requerente intentou a causa para verificar do estado de saúde da requerida (por entender que o presente processo representava o meio processual próprio para verificar do estado de saúde da requerida).
Efectivamente, apreciando tal requerimento (interpretando-o, atendendo às regras da hermenêutica negocial estabelecidas nos artigos 236º e seguintes do CC – as peças processuais constituem actos jurídicos, objecto de interpretação) não pode concluir-se (ao contrário do que fez a decisão recorrida) que a requerente admitiu/confessou ter intentado a presente acção por entender ‘ser este o meio processual próprio para verificar o estado da requerida’ – o que do referido requerimento se retira (em vista de apurar do seu sentido e alcance decisivo) é tão só que a requerente, impossibilitada de contactar directamente com a requerida, e tendo sido informada por terceiros que esta se encontrava no estado que descreveu na petição, diligenciou pela tomada de providências que a situação impunha, sendo a presente acção o meio processual próprio para tal (para tal tomada de providências), ou seja, intentou a presente acção porque é o meio processual próprio para a tomada das providências que a situação da requerida (considerando as informações de que dispunha a propósito) impunha.
Do exposto resulta que os elementos fornecidos pelo processo (mormente os articulados apresentados pela requerente – neles se fundou a decisão recorrida e nenhuns outros elementos probatórios foram a propósito produzidos nos autos) impõem decisão diversa insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova, o que determina que este tribunal da Relação modifique a decisão (alteração que não depende de iniciativa da parte - arts. 607º, nº 4, 662º, nº 1 e 663º, nº 2 do CPC) (14) no que especificamente concerne à segunda parte do facto provado número 14º – a segunda parte do facto 14º (parte em que se se refere ter a requerente intentado a presente acção por entender ser o meio processual próprio para verificar o estado da requerida) não pode manter-se, havendo que ser retirada (por ilegitimamente julgado provado).
Assim que do facto provado com o número 14 ficará a constar, apenas, que a requerente, quando intentou a presente acção, não tinha qualquer contacto pessoal com a requerida.
Abordando agora, no plano jurídico, a questão – a litigância de má fé substancial da requerente (por alteração da verdade dos factos e/ou dedução de pretensão infundada).
Permitem os autos uma primeira constatação segura e objectiva – a de que a requerente alegou matéria que se não provou. Melhor e mais preciso: provou-se o contrário do que a requerente alegou no requerimento inicial, pois se julgou demonstrado que a requerida, apresentando quadro mental normal para a sua idade, está capaz de gerir a sua pessoa e bens, tem noção do espaço e do tempo, é capaz de realizar autonomamente as tarefas quotidianas e possui juízo crítico, tendo noção das regras sociais (além de conhecer o dinheiro e ter noção do seu valor simbólico para adquirir bens do quotidiano), sendo que a requerente alegara que a requerida, não conseguindo realizar qualquer transacção comercial por o dinheiro a baralhar e não saber o valor material das coisas, não tinha noção do tempo, estando comprometida a sua autonomia e o seu funcionamento social, necessitando de constante supervisão para gerir a medicação, para gerir o dinheiro e para se alimentar, encontrando-se impossibilitada de exercer pessoal e plenamente os seus direitos.
Tal circunstância não é todavia bastante para alicerçar a condenação da requerente como litigante de má fé – como já acima se realçou, tal circunstância vê o seu relevo circunscrito à decisão do mérito da causa, determinado a sua improcedência.
Decisivo é apurar se os autos revelam elementos que permitam alicerçar a conclusão segura e inequívoca de que a requerente se apresentou em juízo a formular pretensão que sabia ou não podia ignorar ser infundada ou afirmou a existência de realidade que sabia ser falsa ou que não podia deixar de saber ser falsa.
Considerou a decisão apelada que a requerente inventou a factualidade alegada na petição quanto ao estado de saúde da requerida.
Conclusão que não encontra válido suporte nos autos – tal não resulta dos factos provados nem nenhum elemento probatório o demonstra.
Efectivamente, se não pode considerar-se demonstrado que a matéria alegada na petição a propósito do estado de saúde da requerida foi transmitida à requerente por terceiros – como a mesma alegou –, certo também que se não pode ter por demonstrado o contrário (que tal factualidade não lhe foi levada ao conhecimento por terceiros).
Noutra perspectiva, não resulta seguro nem inequívoco que a requerente tenha voluntariamente distorcido ou alterado factualidade alegada concernente a informação clínica respeitante à requerida, emitida por médico que a acompanhava (elemento que logo juntou com a sua petição inicial) – certo que citou (alegou) excertos de tal informação clínica, mas os mesmos não se mostram truncados, estando conformes com a realidade constante em tal informação (nela se dá efectivamente nota, como alegado, de que a requerida padece de episódios de descontrolo emocional, comportamentos distruptivos, crises ansiosas com interna activação neurovegetativa e episódios conversivos). O alegado a propósito do estado revelado por tal informação clínica não representa, pois, a afirmação de realidade que a requerente sabia falsa ou a alegação de realidade adulterada.
Não revelam, assim, os autos qualquer elemento que permita alicerçar a conclusão segura e inequívoca de que a requerente, dolosamente, alegou factualidade que sabia ser falsa (que alterou a verdade dos factos) e/ou deduziu pretensão que sabia não ter fundamento (factual ou jurídico) – ponderando que o estado de saúde da requerida tal qual descrito na petição demandava a tomada das providências pretendias.
Afastada a possibilidade de imputar à requerente actuação dolosa, tem ainda de considerar-se, numa análise prudente, ponderada e objectiva que não pode concluir-se, de forma segura e definitiva, pela existência de elementos que permitam ao tribunal fundar a convicção de que, com grave negligência, a requerente alterou a verdade dos factos e/ou deduziu pretensão infundada.
Para afirmar que à requerente era exigível conhecer a falta de fundamento (no plano do facto e/ou do direito) da sua pretensão (e que tal desconhecimento lhe é imputável e censurável por grave negligência), haveria que poder concluir, com inteira segurança, não ter ela cumprido diligentemente o dever de indagação prévio – ou seja, que só por extraordinário desleixo pôde a requerente concluir, após a indagação feita, que a pretensão que veio deduzir a juízo se apresentava (de facto e de direito) fundada ou, de outra forma, que a generalidade das pessoas (ou todas as pessoas), nas suas concretas circunstâncias, com os elementos em concreto obtidos (após a indagação feita), ter-se-iam abstido de propor a acção (ou, no mínimo, teriam diligenciado por aprofundar a indagação feita).
Ponto seguro (trata-se de facto julgado provado - a requerente admite-o, logo o alegando, e a requerida corrobora-o) e objectivo para esta análise o de que a requerente não tinha contacto com a requerida – o que a impossibilitava de percepcionar directamente o estado de saúde da sua mãe, sequer de diligenciar pela realização dos necessários exames clínicos.
Falta de contacto originada pelo mau relacionamento existente entre a requerente (e irmão) e a irmã aos cuidados de quem a requerida se encontra (como assumido pela própria requerida nos articulados), que se reconhece ser limitador das possibilidades de indagação, por parte da requerente, do estado de saúde da requerida – a indagação, por percepção directa da realidade, estava, no caso, impossibilitada.
Situação em que a observância do dever de indagação implica, forçosamente, o recurso às informações de terceiros – nenhuma outra forma existe de obter conhecimento sobre o estado de saúde de familiar com quem se não tem contacto directo que não através do que seja transmitido por terceiros.
Se por um lado não pode censurar-se (por não ser inadequado, considerando as circunstâncias alegadas – a falta de contacto directo entre requerente e requerida, bem como a pessoa a cujos cuidados se encontra) o alegado método (ou meio) de recolha de informação (em vista do cumprimento do referido dever de indagação), por outro não se extraem dos autos elementos que permitam considerar que as informações obtidas de terceiros se mostravam insuficientes, parcas, sequer não fidedignas – o que seria essencial (serem as informações parcas, inquinadas pela falta de fidedignidade, pela incompletude ou até por assentarem em razão de ciência sustentada em fugazes e/ou superficiais contactos) para se ponderar o cumprimento extraordinariamente desleixado do dever de indagação por parte da requerente.
Como se afirmou, a litigância de má fé acautela o interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, visando assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça. O indelével dever traçado às partes pelo instituto da litigância de má fé é o do cumprimento da probidade, da boa fé e da cooperação – tem-se em vista evitar que comportamentos eivados de má fé processual se transformem em erros ou irregularidades judiciais, com o prejuízo que daí advém para a justiça.
Não tendo em vista colocar entraves ao direito de acção ou de defesa, impõe o instituto que as partes indaguem do fundamento (factual e/ou jurídico) das suas pretensões, censurando-as (para lá das situações casos em que dolosamente deduzem oposição infundamentada ou alteram a verdade dos factos) nos casos em que se demonstre, de modo seguro e inequívoco, que a dedução da pretensão infundada (de facto e/ou de direito) teve a sua causa no extraordinário desleixo empregue na observância do dever de indagação.
Não revelam os elementos colhidos nos autos que a requerente tenha sido extraordinariamente desleixada (esse o grau de desleixo característico da negligência grave) no cumprimento do dever de indagação – seja na averiguação da realidade que constitui o núcleo central da causa de pedir da presente acção e/ou dos termos jurídicos da causa –, pelo que não pode considerar-se que, com grave negligência, tenha deduzido pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar ou tenha alterado a verdade dos factos.
Não podendo concluir-se, numa análise prudente, ponderada e objectiva, que a requerente, com dolo ou negligência grave, alterou a verdade dos factos e/ou deduziu pretensão infundada, não pode censurar-se a requerente apelante como litigante de má fé.
Face a tal conclusão, prejudicada fica apurar das questões suscitadas relativamente ao doseamento (medida concreta) da multa e do montante indemnizatório fixados (arts. 608º, nº 2, 2ª parte, ex vi art. 663º, nº 2, ambos do CPC).
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível:
- em julgar improcedente a apelação no que concerne ao mérito da acção, confirmando a decisão recorrida que julgou improcedente a causa recusou a aplicação de medida de acompanhamento à requerida apelada,
- em julgar procedente a apelação e revogar a decisão no segmento em que condenou a requerente apelante em multa e indemnização enquanto litigante de má fé.

Face ao mútuo decaimento, apelante e apelada repartirão a responsabilidade pelas custas do recurso.
*
Guimarães, 18/03/2021
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)



1. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, p. 345.
2. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, pp. 533/534.
3. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol. (2ª edição revista e ampliada), p. 97.
4. Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual Por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude De Actos Praticados No Processo, Almedina, pp. 55 e 56.
5. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, p. 457.
6. Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual Por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude De Actos Praticados No Processo, Almedina, p. 49.
7. A ‘lei confere uma vasta amplitude ao direito de acção ou de defesa, de maneira que, para além da repercussão no campo das custas judiciais, não retira do decaimento qualquer outra consequência a não ser que alguma das partes aja violando as regras e princípios básicos por que devem pautar a sua atuação processual’ - Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), p. 593.
8. Acórdão do STJ de 28/05/2009 (Álvaro Rodrigues), no sítio www.dgsi.pt.
9. Acórdão do STJ de 11/12/2003 (Quirino Soares), no sítio www.dgsi.pt.
10. Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 14/03/2002 (Joaquim de Matos) e 15/10/2002 (Ferreira Ramos), no sítio www.dgsi.pt.
11. Citado acórdão do STJ de 15/10/2002.
12. Ainda o citado acórdão do STJ de 15/10/2002.
13. Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, pp. 394 e 395, apud Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), p. 593.
14. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pp. 288/289.