Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3007/17.5T8BCL-A.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: ALTERAÇÃO DO REGIME DE ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) A alteração do regime fixado quanto à atribuição da casa de morada de família pedida nos termos dos artºs 1793º, do CC, e 990º, do CPC, constitui um incidente sujeito à disciplina adjectiva do processo especial de jurisdição voluntária.
2) Mesmo na jurisdição contenciosa e no processo comum, fruto da evolução da respectiva filosofia jurídica no sentido de potenciar as decisões de mérito em detrimento das de forma e em que, por isso, as regras mais rígidas emanadas do princípio dispositivo cederam às mais flexíveis inspiradas no do inquisitório, assim ampliando as possibilidades de intervenção oficiosa do juiz, o ónus de alegação dos factos essenciais à procedência da pretensão está hoje mais atenuado.
3) Daí que o sentido e alcance da ineptidão geradora da nulidade de todo o processo quando fundada na falta de causa de pedir devam entender-se e aplicar-se em conformidade com aquela perspectiva e em função de um conceito de tal elemento mais ajustado à mesma.
4) Não se concebendo que o processo de jurisdição voluntária, apesar dos seus princípios e regras específicos, possa, de todo, prescindir de um pedido do interessado e da alegação de uma causa de pedir que baseie a intervenção judicial, este pressuposto deve considerar-se mitigado e as exigências de alegação mais flexíveis. 5) Se, em requerimento, um dos ex-cônjuges peticiona, nos termos dos artºs 990º, nº 1, CPC, e 1793º, nº 1, CC, invocados, que seja alterado o regime de utilização da casa de morada de família (antes fixado, como de utilização conjunta até à partilha) para utilização exclusiva, existe pedido formulado, claro e conciso.
6) Se no mesmo requerimento se alegou que o requerido “mudou as fechaduras” para impedir o acesso da autora à casa e “sempre que ultimamente” ela se lá procura deslocar, ele “não só a impede como a ameaça de morte” e afirma que “alguém o fará”; a habitação conjunta “é totalmente impossível” porque “já correram autos de violência doméstica contra o réu”; foi por isso que a requerente “se viu obrigada a deixar a habitação” e “tendo arrendado um apartamento” onde vive mas que “tem muitas dificuldades em manter” porque “vive apenas da sua magra reforma” e “não tem possibilidades económicas”; em contrapartida, o requerido “deixou de dormir e confeccionar as suas refeições” na dita casa porque o faz na “da companheira com quem vive”, “retirou” dela “muito do seu recheio”, auferindo ele reforma “choruda” – existe causa de pedir e a petição não é inepta uma vez que estão, mínima e concretamente, alegados factos supervenientes com base nos quais entende dever alterar-se o decidido antes e ser-lhe atribuído tal direito em exclusivo (artº 990º, nº 1, CPC).
7) A insuficiência ou imprecisão do requerimento podem ser colmatadas não só por via do convite ao seu aperfeiçoamento (artº 590º, nº 2, alínea b), e 4), como pelo da consideração de factos relevantes e a esse respeito resultantes da instrução (artº 5º, nº 2) como, ainda, da investigação livre dos factos e das diligências que (como a requisição de documentos) para tal forem entendidas como convenientes, vias estas cometidas ao juiz (artºs 986º, nº 2, e 990º, nº 3).
Decisão Texto Integral:
Relator (por vencimento): -José Fernando Cardoso Amaral
Adjunta: Des.ª Dr.ª Helena Maria de C. G. de Melo
Relator (vencido): -Des. Dr. Jorge A. M. Teixeira

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

M. C., no âmbito de processo de divórcio e na sequência do respectivo incidente que decidiu sobre a atribuição da casa de morada de família (propriedade do ex-casal), deduziu, em 04-09-2019, no Tribunal de Família de Barcelos, em um novo apenso, incidente de alteração do regime fixado, “nos termos do disposto nos artºs 990º, nº 4, do CPC, e 1793º, nº 3, do CC”, contra D. P..

Pediu que lhe seja “atribuída a utilização exclusiva” da mesma.

No requerimento, articulou o seguinte:

1 – Na conferência realizada na acção de divórcio a que se refere o processo em epígrafe, foi acordado incompreensivelmente que «a utilização da casa de morada de família fica atribuída à Autora e ao Réu, até à partilha».
2 – Acontece que é totalmente impossível a Autora e Réu habitarem a mesma habitação. Até porque já correram autos de violência doméstica contra o Réu.
3 – Foi em consequência da mesma que a Autora se viu obrigada a deixar a habitação do casal, tendo arrendado um apartamento em Braga.
4 – A Autora tem muitas dificuldades em manter o arrendamento do apartamento, onde vive. Até porque vive apenas da sua magra reforma, enquanto a do Réu é choruda.
5 – Por sua vez, o Réu deixou de dormir e confeccionar as suas refeições na casa de morada de família.
6 – Na verdade fá-lo em casa da companheira com quem vive.
7 – Além disso, mudou as fechaduras da casa para impedir que a Autora tenha acesso à mesma.
8 – Sempre que ultimamente a Autora tenta deslocar-se à habitação, o Réu não só a impede como a ameaça de morte. Aliás, até afirma que não será ele a matar a Autora, mas alguém o fará.
9 – Além disso, o Réus retirou da habitação muito do seu recheio.
10 – Como se alegou, a Autora não tem possibilidade económicas para se manter no arrendado.
11 – Por outro lado, o Réu vive com a sua companheira, mantendo-se a casa de morada de família desocupada, quando é um bem do casal.

Indicou meios de prova e juntou procuração.

No despacho inicial a que se refere o nº 1, do artº 931º, do CPC (aplicável ex vi do artº 990º, nº 2), e abrigando-se em tal disposição, designou-se, sem mais, a data para a realização da tentativa de conciliação.

Citado o requerido após diligências diversas, aquela frustrou-se, desde logo por ausência dele. No acto, ordenou-se a sua notificação para contestar, o que fez.

No articulado respectivo, e em que concluiu que deve julgar-se “improcedente por não provado o pedido formulado, mantendo-se o já decidido”, alegou que a requerente para “a alteração” pretendida “alega factos totalmente inverídicos”, “não alega quaisquer fundamentos sérios que constituam circunstâncias supervenientes” que a justifiquem, que aquela livremente “escolheu residir na cidade de Braga” próximo da filha e que a sua situação económica não se modificou desde o divórcio (aufere rendimentos mensais de cerca de 1.500€).
Acrescentou, ainda, que “não tem qualquer dificuldade de convivência na mesma casa” (a que foi morada de família), onde “nunca deixou de dormir, confeccionar e tomar as refeições”, que a alegada “violência doméstica” é “inverídica e maliciosa”, que ali “todos os dias é visto por vizinhos, visitado por amigos” pois “não tem companheira que lhe dê abrigo”, que “não mudou quaisquer fechaduras” e “apenas procedeu à reparação de uma danificada” (pois quem fez isso foi a autora, obrigando-o a ir buscar uma cópia), “não retirou rigorosamente nada” (a autora é que retirou “alguns móveis para seu uso pessoal”). Negou, ainda, ter feito quaisquer ameaças.
Em suma: tudo pode continuar na mesma, desde que com respeito recíproco.

Indicou meios de prova.

Após diligências várias para notificar o requerido da renúncia ao mandato e constituído novo patrono, por despacho de 04-12-2019, determinou-se que a requerente identificasse o imóvel em causa, o que ela fez juntando aos autos cópia da caderneta e do registo predial.

Sem terem sido prevenidas as partes de tal intuito, por decisão de 19-02-2020, o Mº Juiz [1] resolveu conhecer, oficiosamente, da “excepção de ineptidão da petição inicial” e, julgando-a verificada, “absolver o R. da instância”.

Para tal, depois de enunciar o regime legal e de sublinhar, por um lado, o disposto no nº 1, do artº 990º, CPC, quanto à exigência de indicação dos factos fundamentadores da atribuição da casa (no caso alteração) e, por outro, o critério das “necessidades de cada um dos cônjuges” e, ainda, de citar doutrina que enfatiza, na perspectiva do arrendamento, no sentido de deverem ser tidos em conta a situação patrimonial e rendimentos dos cônjuges e, bem assim, a idade, estado de saúde, localização do imóvel, etc., entendeu, em face do alegado no requerimento inicial, que:

Quanto às necessidades de cada uma das partes, a A. não quantifica a sua “magra reforma” ou a reforma “choruda” do R.
Não concretiza em que se traduzem as “dificuldades” em manter o arrendamento do apartamento onde vive, não dizendo sequer o valor da renda e por que razão afirma que não tem possibilidade económicas para se manter no arrendado.
Não concretiza que “autos de violência doméstica” correram contra o R., qual o respetivo desfecho ou sequer que factos concretos ficaram demonstrados ou foram, ao menos, denunciados.
Refere que o R. abandonou a casa de morada de família, que mantém desocupada, o que nada nos diz quanto à necessidade de atribuição da sua utilização, posto que também a A. deixou a habitação, passando a residir em local arrendado.”

Argumentou ainda:

Mais, se em sede de divórcio as partes acordaram que a utilização da casa de morada de família ficou atribuída a A. e R., até à partilha – a confirmar-se que o R. abandonou a habitação – sempre poderia a A. voltar a ocupar a casa por dispor de título para o efeito.”

Depois de observar que o problema “não se coloca, todavia, na verificação do interesse em agir” mas sim “na ausência da alegação de factos”, de invocar as regras previstas para as acções declarativas comuns sobre a exposição dos factos integrantes da causa de pedir e noção desta, bem como a sua relevância e consequências de tal omissão (artºs 552º, nº 1, alínea d), e 581º, nº 4, alínea d), 186º, nºs 1 e 2, alínea a), 196º e 200ºCPC), e de citar sobre a matéria Alberto dos Reis, Antunes Varela, Anselmo de Castro e Miguel Teixeira de Sousa, discorreu:

E compreende-se a exigência legal, porquanto não só o juiz tem de saber o que está em causa nos autos, isto é, o que as partes pretendem que seja dirimido na ação, como ainda tal alegação é de manifesta importância para a definição da causa de pedir e do pedido, elementos estes de primordial importância à delimitação do âmbito do caso julgado e também à arguição de uma possível litispendência (art.os 580º e 581º do CPC).”

Por fim, asseverou-se:

Numa ação judicial, quando se diz que as partes têm de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir (art.º 552º, n.º 1, al. d) do CPC) é precisamente isso que se quer dizer: elas têm de fazer as precisas afirmações dos factos que, provados, conduzem à constituição do seu direito. Não se podem ficar por dúvidas, porque as dúvidas, por natureza, não são afirmações de facto que possam ser provadas.
A causa de pedir num procedimento de atribuição da casa de morada de família consiste, fundamentalmente, na alegação de factos que permitam ao Tribunal ter a perceção das necessidades de cada um dos cônjuges e, sendo o caso, o interesse dos filhos do casal.
É certo que estamos no domínio de um processo de jurisdição voluntária, em que o Tribunal não está subordinado a critérios de legalidade estrita, devendo, antes, adoptar as soluções que julgue mais convenientes e oportunas para o caso (art.º 987º do CPC).
Isso não dispensa as partes de alegar um núcleo de factos essencial à procedência da sua pretensão, sob pena de subversão do papel que processualmente lhes incumbe.”.

A autora não se conformou e apelou a que este Relação revogue o assim decidido e ordene o prosseguimento dos autos, tendo rematado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1- Na conferência da acção de divórcio, a que se reportam os autos principais, a casa de morada de família ficou atribuída à Autora e ao Réu, até à partilha.
2- Nos termos do disposto no artº 1793º nº3 do C. C. “O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do Tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária”.
3- Foi com base nesse dispositivo que a apelante veio pedir a alteração daquele regime.
4- Pra o feito alegou:
[…] [2]
5- Foi com base na situação factual descrita - a causa de pedir-, que a Apelante veio pedir alteração do regime acordado e lhe fosse atribuída a casa de morada de família- o pedido
6- A Meritíssima Juiz, titular do processo, recebeu a petição inicial, que leu e, porque entendeu que reunia os requisitos necessários ao seu recebimento e ao prosseguimento dos autos, designou dia para a tentativa de conciliação, por douto despacho de fls.
7- Em 15/05/2019 foi efectuada a tentativa de conciliação, conforme acta de fls..
8- A Meritíssima Juiz agiu em conformidade com o dispositivo no artº 931º nº1 1 do C. P. C. por força do disposto no artº 990º nº2 daquele Código.
9- Mais tarde, o Réu veio contestar e entendeu muito bem tanto a causa de pedir como o pedido, não arguindo de inepta a petição inicial.
10- Veio agora o Meritíssimo Juiz a quo proferir decisão, em que considera inepta a petição inicial.
11- O Meritíssimo Juiz veio pôr em causa a competência profissional da Magistrada que proferiu o despacho inicial e presidiu à tentativa de conciliação.
12- Tal decisão, para além de violar o caso julgado formal, pondo em causa o douto despacho que ordenou o prosseguimento dos autos e designou dia para a tentativa de conciliação, viola ainda o disposto nos artºs. 931º, nº1 e 990, nº2, ambos do C. P. C.”.

Não houve contra-alegações.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir de imediato, nos autos, com efeito devolutivo.

Uma vez distribuídos os autos nesta Relação e corridos os Vistos legais, foi submetido o caso à apreciação e julgamento colectivo, cumprindo agora proferir a decisão, tomada por maioria na sequência da discussão e votação do projecto inicial apresentado pelo Exmº Relator vencido, pois que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.

Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, como já se definira no projecto inicial que não obteve acolhimento, a questão consiste em saber se a declarada, mas ora impugnada, “existência da excepção dilatória de nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicialnão se conforma com a lei, designadamente atento o regime aplicável a este procedimento especial, e se, portanto, a decisão recorrida deve ser revogada e ordenar-se o prosseguimento dos autos.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Relevam, para o caso, as circunstâncias fácticas decorrentes do relato precedente, emergentes dos autos.

IV. APRECIAÇÃO

Movemo-nos no âmbito de procedimento incidental para alteração do regime fixado quanto à casa de morada de família dos ex-cônjuges, de cuja instância o requerido foi absolvido pela decisão recorrida com fundamento na oficiosamente conhecida e julgada verificada excepção dilatória de ineptidão do requerimento inicial e consequente nulidade de todo o processo.

Por definição legal, a petição ou, no caso concreto, o requerimento que dá início ao incidente, são ineptos e determinam a nulidade de todo o procedimento “quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir” – artº 186º, nºs 1 e 2, alínea a), CPC.

Está fora de dúvida que, no caso aqui em apreço, o pedido existe e é claro: atribuição da utilização exclusiva da casa de morada de família.

A discussão restringe-se à causa de pedir.

Na perspectiva da decisão impugnada, “o problema”, por um lado, colocou-se “na ausência da alegação de factos” relativos à “necessidade” mas, por outro, parece ter-se colocado também na incerteza sobre os mesmos.

Com efeito, depois de nela o Mº Juiz acentuar que, nos termos gerais, a lei impõe que as partes exponham os factos essenciais e que, portanto, “têm de fazer as precisas afirmações dos factos”, observou – parecendo ter tido em mente e querido referir-se ao caso em apreço – que “não se podem ficar por dúvidas, porque as dúvidas, por natureza, não são afirmações de facto”.

Simplesmente ao dizer que “é o que sucede no caso concreto” depois de se referir à dicotomia resultante da norma, não foi assertivo quanto ao vício exactamente considerado: falta ou ininteligibilidade?

Ora, a narração de factos em termos duvidosos pode integrar ininteligibilidade tão viciante do requerimento quanto a da sua falta.

Sucede é que tal deficiência – seja ela arguida ou não pela parte contrária, e, no caso, não o foi – não releva e deve mesmo ser julgada improcedente caso se verifique que a mesma interpretou convenientemente o articulado – nº 3, do citado artigo.

Como resulta do relato precedente, o requerido compreendeu bem o sentido das razões expendidas e a pretensão formulada pela requerente e contraditou-os nos termos que considerou adequados.

Logo, se porventura a hipótese de ineptidão fundada no vício de ininteligibilidade pesou no juízo requerido, fica claro que este não existe e que, portanto, não a gera.

Resta, pois, a falta de indicação da causa de pedir, ou seja, a ausência absoluta de alegação ou exposição dos factos essenciais dela constitutivos – artºs 5º, nº 1, e 552º, nº 1, d), CPC.

*

Como se sabe, o processo civil, maxime o comum, é dominado pelo princípio dispositivo, embora com notórias cedências ao do inquisitório.

As partes têm de pedir a resolução do conflito de interesses que as oponha (artº 3º, nº 1) e, como já referido, de descrever o evento da vida [3] a que uma qualquer norma de direito atribua os efeitos jurídicos de que a tutela da sua pretensão há-de decorrer. [4]

O pedido e a causa de pedir definem o objecto da causa e, juntamente com as partes, a identidade da instância – artº 260º.

Esta deve manter-se, aqueles não podem ser alterados e o juiz tem de, em princípio, subordinar-se e guiar-se pelos respectivos limites – artºs 608º, nº 2, 609º, nº 1, e 615º, nº 1, alíneas d) e e).

Com aquele princípio conexiona-se o da auto-responsabilidade das partes e ambos se fundamentam no da liberdade e autonomia da vontade e no direito à propriedade privada.

Subjacente ao processo civil está um litígio de direito privado, em regra disponível, pelo que são as partes que têm o exclusivo interesse na sua propositura em tribunal. O interesse público, neste âmbito, limita-se à correta aplicação do seu Direito para que haja segurança e paz nas relações privadas. Assim, o exato limite da intervenção estadual é fixado pelas partes que não só têm a exclusiva iniciativa de propor a ação (e de se defender), como delimitam o seu objeto.
O princípio dispositivo traduz-se, assim, na liberdade das partes de decisão sobre a propositura da ação, sobre os exatos limites do seu objeto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às exceções perentórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transacionar).
No fundo, é um princípio que estabelece os limites de decisão do juiz — aquilo que, dentro do âmbito de disponibilidade das partes, estas lhe pediram que decidisse. Só dentro desta limitação se admite a decisão.
[…]
O princípio dispositivo é, portanto, uma regra basilar do nosso processo civil, ele traduz o respeito pela liberdade, pela iniciativa privada. A sua saída do Código seria, sem exagero, catastrófica. Permitiria ao juiz julgar o que lhe apetece e não o que lhe é pedido.
[…]
Em suma, a estrutura não foi alterada: às partes cabe iniciar o processo e fixar o seu objeto. Ao juiz cabe decidir dentro desse objeto, tendo ampla liberdade (com cumprimento do contraditório) para aplicar regras de direito não alegadas pelas partes.” [5]

Assim se percebe a importância e a discórdia na doutrina processualista em torno da questão da definição de um exacto conceito de causa de pedir e, mais ainda, também na jurisprudência, a dificuldade de com ele operar na prática concreta, para os diversos fins de que aquela serve de critério.

Disso é exemplo a tradicional repartição doutrinária entre a teoria da substanciação e a teoria da individuação. [6]

Por tal razão, é que, como refere o Supremo: “sendo o pedido e a causa de pedir conceitos de matriz e função processual, a sua densificação ou concretização, em termos de determinar em concreto cada causa de pedir, só poderá ser feita com base nas normas substantivas aplicáveis à situação litigiosa singular”, ou seja, em face de cada problema a resolver. [7]

Importará, pois, mais do que compulsar e enfatizar, a propósito da decisão do caso, os múltiplos entendimentos em abstracto arquitectados sobre o tema, discernir, perante cada situação de vida apresentada em juízo, qual o reduto fáctico essencial da mesma de que não pode prescindir-se e tem de ser alegado como constitutivo do direito invocado e como fundamento justificativo da pretensão deduzida, para, a partir daí, se poder concluir, com a devida segurança, se não existe causa de pedir e, por isso, se o processo deve morrer à partida, ou se, apesar de padecer de deficiências ou não estar completo, tal núcleo é concretamente identificável e juridicamente viável e, portanto, o processo deve prosseguir na perspectiva de que, mediante a administração possível das terapêuticas adequadas existentes, tais deformidades sejam sanadas.

Haverá, por certo, falta de causa de pedir se de todo não for possível, perante o alegado, estabelecer suficiente individualização da acção nem perspectivar, mesmo com recurso ao possível aperfeiçoamento do articulado, ao legal aproveitamento dos factos complementares ou concretizadores ou, ainda, em processos especiais como este, à actividade oficiosa cometida ao juiz, que o pedido poderá ter êxito. [8]

Não pode esquecer-se que à rigidez mais tradicional dos conceitos e ao arquétipo de processo que, exclusivamente iluminado pelo dispositivo, tudo exigia das partes e nada cometia ao juiz – a não ser decidir e, à mínima falha, indeferir –, vêm-se sucedendo, muito por via de cedências ao inquisitório e à preocupação de privilegiar a decisão de mérito à de forma, entendimentos mais maleáveis e que, no CPC de 2013, encontram reflexos evidentes e mais consolidados em disposições várias, evidenciando-se, no que à alegação, averiguação, demonstração e decisão dos factos concerne, as dos artigos 5º, nº 2 (consideração oficiosa dos factos concretizadores e complementares resultantes da instrução da causa), 411º (poder de o juiz realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade), 436º (dever de o tribunal requisitar informações e provas necessárias ao esclarecimento da verdade), 590º, nºs 2 a 4 (dever de o juiz providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, pelo aperfeiçoamento dos articulados e de determinar a junção de documentos, designadamente mediante convite às partes para suprirem irregularidades daquelas peças, incumbindo-o mesmo de as exortar ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada).

*

Se isto já é assim no processo contencioso comum e se, portanto, não pode hoje afirmar-se em absoluto que ao tribunal jamais compete recolher factos com interesse para a resolução do litígio, mais evidente se torna o poder de iniciativa, de investigação e a liberdade de decisão em certos procedimentos especiais nos quais se cruzem interesses específicos com revérberos não exclusivamente privados e, em particular, no processo de jurisdição voluntária. [9]

Conquanto se tenha por incontornável, ainda assim, que o procedimento depende sempre da iniciativa da parte, da identificação, no seu requerimento, do género de providência pretendido e da alegação de mínimas circunstâncias fácticas justificativas da sua necessidade [10], o certo é que nele cabe ao juiz uma maior carga de poderes inquisitórios, podendo investigar livremente os factos, coligir as provas e recolher as informações convenientes, não estando sujeito a critérios de legalidade estrita e devendo antes adoptar a solução que em cada caso julgue mais conveniente e oportuna e tomar a que lhe parecer mais justa e equilibrada, podendo as suas resoluções ser alteradas com fundamento em circunstâncias supervenientes – artºs 986 a 988º, CPC. [11]

Se, em tais processos, a providência concreta visada não está subordinada a estrito critério jurídico e se os factos necessários para a tomar podem ser oficiosamente indagados em vista da conveniência e oportunidade daquela, bem se compreende que a causa de pedir neles se conceba e apresente como menos densa, mais contida e, portanto, algo mitigado o ónus de alegação dos factos essenciais, e, assim, que, dificilmente a respectiva petição seja de considerar “imprestável” a tal ponto que possa e deva reputar-se como inepta por falta do referido “núcleo”.

Se, com o delinear da referida excepção dilatória, se pretende obstar a acções e impedir procedimentos de tal maneira viciados que, logo em face do articulado inicial, se constata estarem fatalmente comprometidos a sua viabilidade e o seu mérito por não ser possível traçar com certeza e clareza, em conformidade com o princípio dispositivo, os limites e objectivos da actividade jurisdicional solicitada pelo demandante, nem garantir ao demandado o cabal exercício da defesa contraditória [12], e se, portanto, se opta, em vista também da economia de meios e racionalização do acesso à justiça, pela absolvição da instância, dificilmente se concebem casos em que, nos processos de jurisdição voluntária, uma tal situação de debilidade, tão extrema e fatal, se verifique, a ponto de se poder concluir que “nada se alega” e que, por isso, de todo em todo, a petição não reúne elementos aptos a satisfazer aquelas finalidades. [13]
*
Ora, por meio deste procedimento, almeja a recorrente alterar a decisão antes tomada sobre o destino da casa de morada de família.

A própria lei substantiva prevê tal possibilidade, “nos termos gerais da jurisdição voluntária” – artº 1793º, nº 3, CC, in fine.

Não há, pois, dúvidas que, por isso e porque tal procedimento – regulado no artº 990º, do CPC – se insere no respectivo âmbito sistemático, que o mesmo está subtraído às regras da jurisdição contenciosa e antes subordinado às da voluntária.

O pedido – artºs 990º, nº 1, CPC, e 1793º, nº 1, CC – foi formulado e é claro e conciso: alteração do regime antes fixado e atribuição da utilização exclusiva à recorrente.

A causa de pedir não o é tanto, mas está lá: havia sido fixada a utilização conjunta; o requerido “mudou as fechaduras” para impedir o acesso da autora à casa e “sempre que ultimamente” ela se lá procura deslocar, ele “não só a impede como a ameaça de morte” e afirma que “alguém o fará”; a habitação conjunta “é totalmente impossível” porque “já correram autos de violência doméstica contra o réu”; foi por isso que a requerente “se viu obrigada a deixar a habitação” e “tendo arrendado um apartamento” onde vive mas que “tem muitas dificuldades em manter” porque “vive apenas da sua magra reforma” e “não tem possibilidades económicas”; em contrapartida, o requerido “deixou de dormir e confeccionar as suas refeições” na dita casa porque o faz na “da companheira com quem vive”, “retirou” dela “muito do seu recheio”, auferindo ele reforma “choruda”.

Em face disto, não podendo dizer-se que o requerimento constitui o melhor exemplo, na sua técnica e no seu conteúdo, da indicação, desejavelmente perfeita e completa, dos “factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito” [14], não temos dúvidas que a requerente alega circunstâncias não só de considerar como supervenientes mas também justificativas da sua pretensa necessidade exclusiva da casa e, portanto, propendemos para concluir que aquele não é inepto. [15]

Se naquela alteração e nesta carência ela faz radicar a “causa” da solicitação da nova providência, temos de convir que o essencial da factualidade concreta para que a mesma possa e deva ser apreciada e para o juiz decidir “depois de proceder às diligências necessárias”, como preconiza o nº 3, do artº 990º, está alegado.

Está-o, aliás, mais concreta e impressivamente, quando ela diz que ele, pelos actos e ameaças descritos, a impede de lá aceder e, portanto, de a usufruir em conjunto como estava decidido antes e quando refere que dela precisa, a título exclusivo, por isso e por não conseguir pagar a renda do apartamento que habita, e não ele, que não só deixou de lá morar e vive noutra casa como que tem reforma “choruda”.

Mostra-se, pois, por ela feita a “indicação” dos factos “com base” nos quais pede a atribuição, designadamente os integrantes das suas “necessidades”. Há, portanto, causa de pedir.

Analisando-se a decisão recorrida, constata-se que esta, ao compulsar o requerimento inicial e ao pretender salientar a escassez da sua alegação, omitiu dois pontos fulcrais de onde resulta a razão da alteração e a necessidade exclusiva.

É que, segundo eles, o requerido tem obstaculizado a utilização conjunta e até ameaçado que a mata se a tentar.

Com efeito, ao querer evidenciar aqueles que, segundo a sua expressão, “alega tão só…”, omitiu aí os itens 1, 7 e 8, nos quais se refere que havia sido acordada aquela utilização por ambos mas que o requerido “mudou as fechaduras da casa para impedir que a autora tenha acesso à mesma” e que “sempre que ultimamente a autora tenta deslocar-se à habitação, o réu não só a impede como a ameaça de morte. Aliás, até afirma que não será ele a matar a autora, mas que alguém o fará.”

É verdade que ela, como refere o tribunal a quo:

Quanto às necessidades de cada uma das partes, a A. não quantifica a sua «magra reforma» ou a reforma «choruda» do R.
Não concretiza em que se traduzem as «dificuldades» em manter o arrendamento do apartamento onde vive, não dizendo sequer o valor da renda e por que razão afirma que não tem possibilidade económicas para se manter no arrendado.
Não concretiza que «autos de violência doméstica» correram contra o R., qual o respetivo desfecho ou sequer que factos concretos ficaram demonstrados ou foram, ao menos, denunciados.”

Porém, mostrando-se alegado e em concreto (não apenas em afirmações conclusivas ou de carácter normativo sem significado vulgar) um núcleo, ainda que mínimo, de factos essenciais, todavia suficientes para constituírem uma causa de pedir, nos moldes mitigados exigidos por este específico procedimento e em função da providência requerida [16], ele pode, em vista dos necessários à procedência, ser ainda complementado e concretizado não só por via do convite ao aperfeiçoamento do requerimento (artº 590º, nº 2, alínea b), e 4), como pelo da consideração de factos relevantes e a esse respeito resultantes da instrução (artº 5º, nº 2) como, ainda, da investigação livre dos factos e das diligências que para tal forem entendidas como convenientes (artºs 986º, nº 2, e 990º, nº 3).

Aquela quantificação pode ser feita e documentada. As dificuldades de manter o arrendamento do apartamento, designadamente em função do valor da renda e dos rendimentos, tal como o procedimento criminal por “violência doméstica”, respectivo objecto e resultados, podem ser investigados, complementados, concretizados e documentados.

O mesmo sucede com todos os demais aspectos que se mostrarem relevantes no caso, como os exemplificados no texto doutrinário citado.

Sendo também certo que, como se observa, a requerente “Refere que o R. abandonou a casa de morada de família, que mantém desocupada”, discorda-se da afirmação de que isso “nada nos diz quanto à necessidade de atribuição da sua utilização, posto que também a A. deixou a habitação, passando a residir em local arrendado”, uma vez que, a provar-se aquela circunstância, dela resultará a desnecessidade da casa pelo requerido e, ainda que se demonstre esta, está também alegada a necessidade superveniente e exclusiva da casa pela autora.

De resto, o argumento de que “se em sede de divórcio as partes acordaram que a utilização da casa de morada de família ficou atribuída a A. e R., até à partilha – a confirmar-se que o R. abandonou a habitação – sempre poderia a A. voltar a ocupar a casa por dispor de título para o efeito” é infundado e inconsequente, posto que resultante da desatenção aos já referidos itens 7 e 8 do requerimento, de onde decorre a inacessibilidade e impossibilidade de utilização conjunta, por certo não susceptível de ser justamente conseguida por via de execução coerciva.

Aceitando-se igualmente que, como refere a decisão recorrida, a propósito das exigências alegatórias, “não só o juiz tem de saber o que está em causa nos autos, isto é, o que as partes pretendem que seja dirimido na ação, como ainda tal alegação é de manifesta importância para a definição da causa de pedir e do pedido, elementos estes de primordial importância à delimitação do âmbito do caso julgado e também à arguição de uma possível litispendência”, cremos que, como se tentou demonstrar, o thema decidendum proposto (pedido de alteração da atribuição conjunta da utilização da casa para utilização exclusiva dela à requerente com base na modificação das circunstâncias relativas às suas necessidades) está suficientemente definido para os efeitos visados, notando-se que, nos processos de jurisdição voluntária, o valor e alcance das resoluções não é exactamente o mesmo do de qualquer sentença transitada proferida em processo contencioso – artº 988º, CPC). Não se perspectiva, pois, risco de ofensa daqueles institutos.

Conquanto se admita, tal como o Mº Juiz recorrido, ainda que com as nuances já atrás referidas, que “a causa de pedir num procedimento de atribuição da casa de morada de família consiste, fundamentalmente, na alegação de factos que permitam ao Tribunal ter a perceção das necessidades de cada um dos cônjuges” – melhor e na expressão legal: na indicação dos factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito (artº 990º, nº 1, in fine) – e que o regime da jurisdição voluntárianão dispensa as partes de alegar um núcleo de factos essencial à procedência da sua pretensão”, julgamos que esse núcleo mínimo existe e pode ser complementado e concretizado, sem que seja de temer qualquer “subversão do papel que processualmente lhes incumbe”, nem o do tribunal [17].

Estando definido esse núcleo essencial não pode falar-se em “ausência da alegação de factos que permitam ao Tribunal concluir que [a requerente/apelante] tem necessidade de ocupar a casa de morada de família ou, pelo menos, mais necessidade do que o R.”.

Não pode falar-se, pois, de falta de causa de pedir e de ineptidão do requerimento.

De resto, como diz o Supremo, em Acórdão de 26-03-2015 [18]:

A mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omite a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas podendo implicar a improcedência, no plano do mérito, se o A. não tiver aproveitado as oportunidade de que beneficia para fazer adquirir processualmente os factos substantivamente relevantes, complementares ou concretizadores dos alegados, que originariamente não curou de densificar em termos bastantes.”.

E se assim é em geral por maioria de razão deve ser neste tipo de processo especial face à específica juris dictio que convoca.

Daí que estejamos em linha com o entendimento da Relação de Coimbra, assim resumido no sumário do seu acórdão de 11-06-2019 [19]:

1.- A providência de atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges pode ser decidida com matéria de facto não alegada pelo requerente ou pelo requerido. Na verdade, tal providência, embora sujeita ao princípio do pedido (cfr. art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil e 3.º, n.º 1, do CPC), tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (cfr. art.ºs 1409.º, n.º 2, e 1413.º do CPC - 986º e 990º NCPC), em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da “providência”, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos.
2.- O tribunal pode decidir o mérito da mesma por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita (cfr. art.º 1410.º do CPC - 987º NCPC).
3.- A necessidade da casa (ou, melhor, a premência da necessidade) é o factor principal e determinante a atender na decisão judicial, porque é a ela que se reportam tanto a “situação patrimonial” dos cônjuges, como o “interesse dos filhos”.
[…]
6.- Não tendo o juiz "a quo" tomado a iniciativa de suprir a insuficiência de factos e não constando do processo todos os elementos de prova que permitam a (re)apreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no art.º 662.°. n.º. 2, aI. c) do NCPC, deve a Relação, mesmo oficiosamente, anular a decisão proferida pela 1.ª instância, devendo o Tribunal "a quo" ordenar, oficiosamente, a realização das diligências necessárias, com vista a alcançar a verdade material, também no âmbito do poder-dever de direcção do processo, produzindo decisão de conformidade.
[…].”.

Acresce que se a ineptidão se destina a impedir a subsistência de uma acção que se apresente ferida de morte à nascença, o tribunal recorrido não a considerou ab initio como tal. [20]

Com efeito, como salienta a recorrente, ele liminarmente recebeu o requerimento, determinou o seu prosseguimento, designou e realizou a tentativa de conciliação e efectuou diligências, nomeadamente instrutórias [21], deduzindo-se daí que, tal como mostrou o requerido na sua contestação, compreendeu o objecto da lide, entendeu que ela estava “em condições de prosseguir” (artº 931º, nº 1, aplicável) e perspectivou apreciar e decidir sobre o seu mérito. [22]

Por isso, se bem que tal postura não o vincule na medida em que o vício de nulidade de todo o processo pode ser oficiosamente conhecido mais tarde (artºs 196º e 200º) [23], sempre a decisão ora proferida acaba por se apresentar, além de contrária ao regime jurídico citado, destoante da inicial, e esta mesma, tal como a por nós adoptada, mais em sintonia com as regras e princípios aplicáveis contra cuja inobservância a apelante se manifestou, urgindo pois dar-lhe razão.

Deverá, em suma, prover-se o seu recurso, revogar-se a decisão recorrida, determinar-se o prosseguimento do incidente, conforme preconizado acima e, para tal, desde já, convidar-se, em 1ª instância, a requerente a completar e concretizar o seu requerimento nos moldes supra referidos.
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V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação, por maioria, julgar procedente o recurso e, em consequência, dando provimento à apelação, revogam a sentença recorrida e, em consequência, determinam que os autos prossigam e, em 1ª instância, mediante prévio despacho de convite ao aperfeiçoamento (artº 590º, nº 2, alínea b), e 4, CPC), se ordene a notificação da requerente para completar e concretizar o seu requerimento, nos moldes traçados.
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Uma vez que a recorrida não contra-alegou, as custas são da responsabilidade da recorrente que, porém, já pagou a respectiva taxa de justiça.
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Notifique.

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Guimarães, 05 de Novembro de 2020


Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes-Desembargadores:

Relator (por vencimento): José Fernando Cardoso Amaral

Adjunta: Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo

Relator vencido: Jorge Alberto Martins Teixeira, este com a seguinte

Declaração de Voto [24]:


“Salvo muito e devido respeito que nos merece a decisão proferida, até em razão da consistente argumentação nela aduzida, não é, no entanto, de molde a que deixemos de considerar que a presente situação constitui um caso paradigmático de total falta de alegação de factos integrantes da causa de pedir invocada, pelas razões que passaremos a explicitar.

Como é sabido, a narrativa em que se consubstancia a petição inicial há-de conter, pelo menos, «os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o Autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido».

A causa de pedir consiste no acto ou facto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer, sendo certo que este direito não pode ter existência (e por vezes nem pode identificar-se) sem um acto ou facto jurídico que seja legalmente idóneo para o condicionar ou produzir (25).

Dito de outro modo: a causa de pedir consiste no acto ou facto jurídico em que o autor se baseia para formular o seu pedido (26), traduzindo-se a indicação da causa de pedir na individualização daquele acto ou facto.

É evidente que não é exigível que o autor faça uma exposição completa do elemento factual (27).

Todavia, não pode deixar de considerar-se que uma indicação de qualquer um dos elementos integradores da causa de pedir em termos genéricos pode importar uma individualização da causa de pedir que não constitui especificação suficiente do facto jurídico de que procede a pretensão e que leva à ineptidão da petição inicial (28).

Como ensina o Prof. A. de Castro (29), não deve buscar-se uma noção de causa de pedir única para todos os efeitos, v. g., caso julgado, litispendência, alteração do pedido no decurso da causa (ou, acrescentamos nós, para aplicação do instituto da ineptidão da petição inicial), antes se devendo procurar a solução que melhor se ajuste para cada efeito, havendo que adoptar o conceito mais adequado aos fins próprios de cada instituto – causa de pedir referida a factos concretos (para efeitos de caso julgado) e causa de pedir referida a categorias factuais abstractas (no que toca à alteração superveniente da causa de pedir e da litispendência).

Ao delinear o regime da ineptidão da petição inicial a intenção e finalidade da lei foi “impedir o prosseguimento duma acção viciada por falta ou contradição interna da matéria objecto do processo, que mostra desde logo não ser possível um acto (unitário) de julgamento, «judicium»” (30), ou dito de outro modo, com “a figura processual da ineptidão da petição inicial visa-se, em primeiro lugar, evitar que o juiz seja colocado na impossibilidade de julgar concretamente a causa, decidindo sobre o mérito, em face da inexistência do pedido ou da causa de pedir, ou do pedido e da causa de pedir que se não encontrem deduzidos em termos inteligíveis, visto só dentro dessas balizas se mover o exercício da actividade jurisdicional declaratória do direito”, sendo certo que além desse propósito de circunscrever e definir os poderes do juiz quanto à actividade decisória, a figura da ineptidão propõe-se “ainda impedir se faça um julgamento sem que o réu esteja em condições de se defender capazmente, para o que carece de conhecer o fundamento do pedido contra ele deduzido” (31).

Pode afirmar-se, pois, que com o instituto da ineptidão da petição inicial se visa obstar ao prosseguimento de acções onde esteja logo à partida coarctada a possibilidade de o juiz proceder a um julgamento sobre o fundo da causa (julgamento de facto e de direito) por a peça que introduz o feito em juízo padecer de qualquer dos vícios enumerados no nº 2 do art. 186º do C.P.C. – seja porque impede ou dificulta em termos irrazoáveis e desproporcionados a defesa do réu, seja porque não carreia para os autos os factos que constituem o objecto do processo e nos quais o juiz se pode basear para decidir o litígio (art. 5, nº 1 a 3 do C.P.C.).

A opção do nosso legislador (art. 581º, nº 4 do C.P.C.) pela teoria da substanciação, em detrimento da teoria da individualização, no que à causa de pedir concerne, implica que o preenchimento da causa de pedir supõe a alegação dos factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas definidoras do direito cuja tutela se busca através do processo (32).

Essa individualização do acto ou facto concreto que suporta a pretensão de tutela formulada em juízo deve ser efectuada em termos inteligíveis, permitindo apreender com segurança a causa de pedir. Devem ser expostos com clareza os fundamentos da pretensão, devendo ser considerada inepta a petição que se apresente em termos obscuros ou ambíguos, por forma a impedir a apreensão segura da causa de pedir (33).

Importa distinguir entre falta de causa de pedir e causa de pedir deficiente, já que apenas o primeiro caso configura o vício da ineptidão da petição inicial, gerador da nulidade de todo o processo (art. 193º, nº 1 e 2, a) do C.P.C.), sendo que só o segundo permite o recurso ao aperfeiçoamento, nos termos do art. 508º, nº 1, b) e 3 do C.P.C..

A petição deficiente (quando tal vício não seja colmatado) é censurada ao nível do mérito da causa, enquanto a petição inepta importa a absolvição da instância (por nulidade de todo o processo).

A petição deficiente (e sendo certo que se descura aqui a deficiência que implica a ineptidão – a ausência de alegação de factos essenciais à delimitação do fundamento factual da pretensão constitui também uma deficiência, mas uma deficiência radical e absoluta) é constituída por aqueles casos em que ocorre uma insuficiência – sendo a peça em questão clara e suficiente quanto à causa de pedir, omite todavia factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor (34).

Não sendo fácil distinguir entre situações de causa de pedir imperfeita (mas ainda assim meramente deficiente) e situações em que falta a causa de pedir, designadamente os casos em que o autor faz, na petição, afirmações mais ou menos vagas e abstractas, que umas vezes descambam na ineptidão por omissão de causa de pedir, outras na improcedência por falta de material de facto sobre que haja que de assentar o reconhecimento do direito (35), temos por seguro, para encontrar a linha de fronteira entre as duas situações, um critério pragmático que assenta num juízo de prognose acerca da delimitação do caso julgado, pressupondo uma sentença favorável ao autor (36) - ‘projectando no futuro a decisão, se for então possível determinar concretamente qual a situação jurídica que foi objecto de apreciação jurisdicional, sem correr riscos de repetição da causa, não se verificará a falta de causa de pedir; já quando, por falta de invocação de qualquer matéria de facto, por grave deficiência na sua descrição ou por falta de localização no espaço e no tempo, for previsível o risco de repetição da causa ou se tornar impossível a averiguação da relação jurídica anteriormente litigada deverá concluir-se pela ineptidão da petição inicial’.

Realce-se que apenas a petição deficiente pode ser objecto de despacho de aperfeiçoamento, nos termos dos art. 265º, nº 2, 278º, nº 3 e 590º, nº 1, b) e 3 do C.P.C..

Sendo irrefutável que a reforma processual operada pelos DL 329-A/95, de 12/12 e 180/96, de 25/09, tentou reduzir, até limites razoáveis, as situações em que, por falta dos pressupostos processuais ou por qualquer outra razão relacionada com a constituição da relação jurídica processual, o tribunal se veja confrontado com a necessidade de proferir decisão de absolvição da instância, consagrando um alargamento da possibilidade de salvar a acção inquinada por algum dos vícios impeditivos do conhecimento de mérito, onde avulta a solução arrojada plasmada no nº 3 do art. 278º do C.P.C., o certo é que o alargamento (relativamente ao regime processual pretérito) de tal possibilidade de sanação ficou ainda reservada para aquelas situações resultantes de falhas menores que deixam intacta a estrutura fundamental da instância (37).

Assim, nem todas as situações que configurem excepções dilatórias são susceptíveis de sanação (são insusceptíveis de sanação a ilegitimidade singular, a incompetência absoluta, o caso julgado e a litispendência, assim como a falta de personalidade judiciária, fora dos casos previstos no art. 14º do C.P.C.).

A ineptidão da petição inicial, traduzindo-se em nulidade absoluta que afecta todo o processo, constitui uma excepção dilatória nominada (art. 577º, nº 1, b) do C.P.C.).

Trata-se de excepção dilatória cuja sanação está prevista tão só em dois casos – através do mecanismo constante do nº 3 do art. 186º do C.P.C. ou em função da ampliação da matéria facto feita no articulado réplica, quando este for admitido (38).

A falta ou ininteligibilidade da causa de pedir são insupríveis através do instituto da correcção dos articulados (39) – solução diversa implicaria violação do princípio da estabilidade da instância prescrito no art. 260º do C.P.C. (note-se que as alterações à matéria de facto alegada na petição em decorrência do convite para correcção deste articulado estão circunscritas aos limites do art. 6º do C.P.C., o que logo pressupõe que a causa de pedir esteja já contida na petição, ainda que de forma deficiente, imperfeita ou insuficiente, o que arreda, no nosso modesto entendimento, a possibilidade de considerar que o alargamento dos casos de sanação das excepções dilatórias operadas pela reforma processual civil de 95/96 se afastou da nossa tradição processual civil, que no então art. 477º do C.P.C. (anterior à revisão) reservava o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial aos casos da petição deficiente, excluindo desse remédio as petições ineptas).

Assente tudo o exposto, e definida a causa de pedir e estabelecidos os corolários que a configuram, importa agora averiguar da sua existência no caso vertido nos autos.

Ora, a da factualidade invocada, como, em nosso entender, correctamente se refere na decisão recorrida, foi a seguinte:
(…)
- É impossível A. e R. habitarem a mesma habitação, até porque já correram autos de violência doméstica contra o R., em consequência da mesma que a Autora se viu obrigada a deixar a habitação do casal, tendo arrendado um apartamento em Braga.
- A Autora tem muitas dificuldades em manter o arrendamento do apartamento, onde vive, porque vive apenas da sua “magra reforma”, sendo a do R. “choruda”;
- O R. deixou de dormir e confecionar as suas refeições na casa de morada de família, o que passou a fazer na casa da companheira com quem vive, tendo retirado da habitação muito do seu recheio.
- a A. não tem possibilidade económicas para se manter no arrendado.
- o R. vive com a sua companheira, mantendo-se a casa de morada de família desocupada, quando é um bem do casal.”.
Quanto às necessidades de cada uma das partes, a A. não quantifica a sua “magra reforma” ou a reforma “choruda” do R.
(…)

Assim sendo, e por decorrência, tal como se entendeu na decisão recorrido, parece-nos também incontornável concluir pela ineptidão da petição inicial, pois que, conforme aí igualmente se refere:
(…)
Não concretiza em que se traduzem as “dificuldades” em manter o arrendamento do apartamento onde vive, não dizendo sequer o valor da renda e por que razão afirma que não tem possibilidade económicas para se manter no arrendado.
Não concretiza que “autos de violência doméstica” correram contra o R., qual o respetivo desfecho ou sequer que factos concretos ficaram demonstrados ou foram, ao menos, denunciados.
Refere que o R. abandonou a casa de morada de família, que mantém desocupada, o que nada nos diz quanto à necessidade de atribuição da sua utilização, posto que também a A. deixou a habitação, passando a residir em local arrendado.
Mais, se em sede de divórcio as partes acordaram que a utilização da casa de morada de família ficou atribuída a A. e R., até à partilha – a confirmar-se que o R. abandonou a habitação – sempre poderia a A. voltar a ocupar a casa por dispor de título para o efeito.

De tudo decorre, o problema coloca-se, efectivamente, no âmbito da ausência da alegação de factos que permitam ao Tribunal concluir que tem necessidade de ocupar a casa de morada de família ou, pelo menos, mais necessidade do que o R., resultando assim incontroversa a fala da causa de pedir (n.º 2, alínea a) do artigo 186, do C.P.C..

Na verdade, a servir de fundamento ao peticionado, são efectuadas afirmações conclusivas, sem qualquer suporte material que as suporte e concretize, de todo insuficientes para determinar concretamente qual a situação jurídica que se pretende seja objecto de apreciação jurisdicional.

Alega a Recorrente que o artº 931º do C. P. C., nº1, aplicável por força do disposto no artº 990º, nº2, do mesmo Código, dispõe que “apresentada a petição, se acção estiver em condições de prosseguir o Juiz designa dia para a tentativa de conciliação…”.

Assim é seu entendimento o de que o juiz depois de bem ler a petição inicial, entendeu que a mesma reunia os requisitos necessários e indispensáveis ao prosseguimento dos autos e, por isso, designou dia para a tentativa de conciliação.

E nunca o teria feito se considerasse que a petição era inepta, como pretende o tribunal a quo, com a decisão recorrida, a qual, violando a lei, pretende, pelos vistos, passar um atestado de incompetência à Magistrada que, tendo percebido bem a causa de pedir e o pedido formulado, marcou dia para a tentativa de conciliação.

Mais alega que há matéria de direito, que, pela sua especificidade, é, simultaneamente, matéria de facto, e, como tal, é utilizada na enunciação da causa de pedir, como, embora não o afirme expressamente, parece considerar suceder na situação ora em apreço.

No que concerne ao primeiro argumento ele carece de qualquer consistência, pois que, como é consabido, a posição do juiz que determina o prosseguimento do autos baseado numa implícita apreciação da existência de consistentes fundamentos da causa de pedir invocada, não assume qualquer carácter vinculativo no processo, tendo mesmo de admitir-se que possa ter analisado mal os fundamentos aduzidos.

No que concerne ao segundo argumento, atinente à distinção entre matéria de facto e matéria de direito tem sido controversa, quer na doutrina quer na jurisprudência.

A propósito desta questão refere o acórdão do S.T.J., de 1/01/2019, proferido no processo n.º 109/17.1T8ACB.C1.S1 (40), o seguinte:
(…)
Nesta perspectiva, não está em causa determinar se ocorreu ou não um concreto facto, ou seja, “sindicar a convicção formada pelo tribunal com base nas provas produzidas e de livre apreciação, mas avaliar se matéria considerada como um facto provado reflecte, indevidamente, uma apreciação de direito por envolver uma “qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica” (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 312)”.
Daí que, neste caso, o STJ tenha poderes cognitivos.
E, verificando-se esta situação, constando da selecção da matéria de facto questões de direito, devem as mesmas ser consideradas não escritas (à semelhança do que dispunha o anterior CPC no seu art.º 646.º, n.º 4, 1.ª parte, embora o NCPC não contenha norma correspondente, mas cuja conclusão se impõe por imperativo do disposto no seu art.º 607.º, n.º 4, segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os “factos” que julga provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos).
A distinção entre matéria de facto e matéria de direito tem sido controversa, quer na doutrina quer na jurisprudência.

O acórdão deste Tribunal e desta Secção, de 9/9/2014, proferido no processo n.º 5146/10.4TBCSC.L1.S1, faz um resumo dos entendimentos, até então, adoptados, que aqui reproduzimos deste modo:
“Na formulação de Alberto dos Reis, «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei».
Segundo Karl Larenz, a “questão de facto” reporta-se ao que efectivamente aconteceu, enquanto a “questão de direito” se identifica com a qualificação do ocorrido em conformidade com os critérios da ordem jurídica.
Existe, contudo, um continuum entre matéria de facto e matéria de direito e não uma oposição absoluta entre ambos os conceitos, pois na concreta aplicação do direito acaba por verificar-se uma correlatividade entre ambos os elementos.
Há que partir, portanto, da unidade do caso jurídico decidendo e dos problemas jurídicos por si colocados, devendo distinguir-se dois tipos de questões: uma que se refere aos dados pressupostos pelo problema concreto – questão de facto – e outra que tem a ver com o fundamento e o critério do juízo e com o próprio e concreto juízo decisório – questão de direito. Na matéria de facto concorrem não apenas dados empíricos, mas todos os pressupostos objectivos do problema colocado, por exemplo, elementos sócio-culturais e até jurídicos.
Contudo, a tradição do nosso pensamento jurídico, no seguimento de Alberto dos Reis, considera que a actividade do juiz se circunscreve ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo, apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos. Continua o autor, afirmando que «tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória».
Se na resposta a determinado quesito houver matéria de facto e matéria de direito, deve aproveitar-se a decisão na parte relativa à primeira e considerar-se não escrita na parte relativa à segunda.
Tem-se entendido, na jurisprudência e na doutrina, que as respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas e que se equiparam às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados.
Para Teixeira de Sousa, «A selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica (cfr. STJ – 13/12/1983, BMJ 332, 437).
Abrantes Geraldes defende que “devem ser erradicadas da condensação as alegações com conteúdo técnico-jurídico de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem”».
Este sentido tem sido seguido pela melhor doutrina e jurisprudência.
Assim, embora só acontecimentos ou factos concretos possam integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão (“o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstractos com que os descreve a norma legal, por que tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”), são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objecto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objecto de disputa das partes.
Deste modo, “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”. O que num caso pode ser facto ou juízo de facto, noutro pode ser juízo de direito.
De forma idêntica, adoptando o mesmo critério, tem decidido a jurisprudência, entendendo que são de afastar expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam susceptíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial.
Assim, a natureza conclusiva do facto pode ter um sentido normativo quando contém em si a resposta a uma questão de direito ou pode consistir num juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real. No primeiro caso, o facto conclusivo deve ser havido como não escrito. “No segundo, a solução depende de um raciocínio de analogia entre o juízo ou conclusão de facto e a questão de direito, devendo ser eliminado o juízo de facto quando traduz uma resposta antecipada à questão de direito”.

O facto de se dever considerar as respostas dadas pelo tribunal aos quesitos da base instrutória sobre questões de direito, tal como sucedia com a norma que expressamente assim o previa (antigo artigo 646, nº 4, do C.P.C., já revogado), tem subjacente a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, sendo que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.

Dito isto, e retomando o caso dos autos, de linear evidência resulta que se não está perante uma situação deste género, ou seja, perante alegacões com conteúdo técnico-jurídico de cariz normativo ou conclusivo, que tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem, mas antes perante uma pura e dura ausência de alegação dos factos materiais relevantes passível de permitir fundamentar a pretensão de tutela jurídica deduzida pela Autora, pois que, como se disse a Autora:
- Não concretiza em que se traduzem as “dificuldades” em manter o arrendamento do apartamento onde vive, limitando-se a alegar que “vive apenas da sua “magra reforma” sendo a do R. “choruda”, e não indica valores de renda nem das reformas.
- Não concretiza que “autos de violência doméstica” correram contra o R. ou que actos foram praticados contra si;
- Refere que o R. abandonou a casa de morada de família, que mantém desocupada, o que nada nos diz quanto à necessidade de atribuição da sua utilização, posto que também a A. deixou a habitação;
- A confirmar-se que o R. abandonou a habitação – sempre poderia a A. voltar a ocupar a casa por dispor de título para o efeito.

Destarte, padecendo destas insuficiências a referida e alegada materialidade é indubitavelmente, em si mesma, completamente imprestável para poder fundamentar qualquer alteração do regime de atribuição da casa de morada de família fixado, pelo que, e por decorrência, nos termos do disposto no art.º 186º, n.º 1 do CPC, é nulo todo o processo, por ineptidão da petição inicial (art.º 186º, n.º 1).

E não obsta a esta conclusão o facto de se estar perante um processo de jurisdição voluntária, pos que, como se refre no no Acórdão da Relação de Guimarães de 19.03.2013, proc. 6558/05.0TBGMR-D.G1, disponível em www.dgsi.pt “No âmbito da acção de alteração de acordo ou decisão final referente à regulação do exercício do poder paternal, (…) nada obsta a que, conclusos os autos, e em sede de despacho liminar, venha o juiz titular a proferir decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial. 2.- O referido (…) poderá verificar-se, designadamente, quando, apesar de o requerente no articulado onde deduz o pedido, estar obrigado a expor os fundamentos do mesmo – v.g. a ocorrência de circunstâncias supervenientes - nada de concreto alega que o justifique. 3.- É que, ocorrendo a omissão (…) padece em rigor o articulado referido do vício de ineptidão, por falta de indicação de causa de pedir, consubstanciando ele uma excepção dilatória de conhecimento oficioso insuprível, não podendo ser sanada, fulminando o legislador a sua verificação com a nulidade de todo o processo. 4.– Ademais, não se olvidando que os processos tutelares cíveis são considerados de jurisdição voluntária, (…) o certo é que, mesmo no âmbito da respectiva tramitação, lícito não é postergarem-se os necessários pressupostos processuais e substantivos aplicáveis”.

Estas são, em súmula, as razões da minha discordância com a decisão proferida.”



1. Que não é o mesmo que inicialmente conduziu os autos.
2. Transcrevemos acima o teor do aqui transposto articulado.
3. Sobre a consideração do “acontecimento natural” ou “acontecimento da vida” como critério de definição da causa de pedir experimentado na tentativa de superar a dicotomia entre as exigências postas pela teoria da substanciação e as requeridas pela da individuação, pode ver-se J. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 1996, páginas 56 e 57.
4. Nisso se traduz a alegação dos factos essenciais em que se consubstancia a causa de pedir, tal como ela resulta definida no artº 581º, nº 4, e é entendida pela maioria da doutrina e da jurisprudência adoptantes da teoria da substanciação.
5. Mariana França Gouveia, in “O princípio dispositivo e a alegação de factos em processo civil: a incessante procura da flexibilidade processual”, páginas 602 a 604, acessível na internet em http://www.oa.pt/upl/%7Bede93150-b3ab-4e3d-baa3-34dd7e85a6ef%7D.pdf.
6. A sentença recorrida cita os seus mais destacados arautos, desde Alberto dos Reis a Teixeira de Sousa e, por isso, aqui nos dispensamos de tal repetir.
7. Acórdão de 18-09-2018, processo 21852/15.4T8PRT.S1.
8. Relativamente ao ensino do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, também citado na sentença recorrida a propósito do conceito de causa de pedir e aparentemente como defensor do mesmo entendimento dos citados autores mais tradicionais, haverá que ter em atenção que, segundo ele “a teoria da substanciação deixou de ter correspondência com os dados do direito positivo” e, assim, a destrinça que ele preconiza, para acabar com as confusões, entre os factos abrangidos pelo referido conceito (segundo ele, de natureza e com função exclusivamente processual) e os factos necessários à procedência da causa. Os primeiros são, apenas, os indispensáveis para cumprir a sua função individualizadora do pedido, para justificar o motivo da tutela pretendida e tornar perceptível o respectivo fundamento, enfim, para balizar o objecto do processo; os segundos, são todos os necessários (essenciais) para assegurar ou garantir a efectiva procedência da acção e referem-se ao plano substantivo dos elementos componentes do tipo legal que, segundo ele, não deve ser confundido com o plano processual da causa de pedir. Pode haver causa de pedir ainda que não estejam reunidos todos aqueles elementos. É possível que haja factos essenciais não necessários para constituir uma causa de pedir (ou seja, para individualizar um certo objecto) mas indispensáveis para se obter a procedência do pedido. Logo, aquela não tem de coincidir nem de comportar todos os elementos do tipo legal, e só se não houver causa de pedir, tal como restritivamente pelo citado autor entendida, é que a consequência se desencadeia no plano processual (ou de admissibilidade), em concreto, ou seja, na ineptidão da petição. Se, diferentemente, os elementos do tipo legal não estiverem todos preenchidos, a consequência produz-se já no plano da fundamentação, ou seja, na improcedência da acção. Para melhor explicação, cfr., na internet, o Blog do IPPC, posts inseridos em 19 e em 21 de Julho de 2014, intitulados “Factos complementares e causa de pedir” e “Factos complementares e função da causa de pedir”. É nesta perspectiva e, se bem vemos, com tal sentido que alguns autores (caso de Mariana França Gouveia) apelidam como factos principais apenas os componentes da causa de pedir e como não principais os outros, ainda que complementares ou concretizadores – ob. acima cit.)
9. Como se referiu no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 25-05-2010, proferido no processo nº 3554/05.1TBVCT-B.G1: “A providência de atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges, embora sujeita ao princípio do pedido, tem natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes, em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da providência, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos, podendo também o tribunal decidir o seu mérito por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita.”.
10. Na verdade, não se concebe que, apesar da natureza e características específicas da jurisdição voluntária, tanto mais evidentes quando contrapostas à jurisdição contenciosa, e da consequente diversidade de regras em consonância, naquela, com a atribuição de uma mais ampla liberdade de intervenção do juiz (inquisitório) e, nesta, com a opção pelo primado quase exclusivo da vontade e autonomia privadas (dispositivo), a lei consinta qualquer hipótese de livre e espontânea intromissão da Justiça no reduto dos interesses titulados por particulares, mesmo quando estes se apresentam matizados com os de ordem pública (como sucede em matéria de família e menores), a tal ponto que se possa afirmar dispensável um pedido e uma causa de pedir.
11. A este respeito, refere J. Lebre de Freitas (ob. cit., páginas 50 e 51) que, na jurisdição voluntária, o princípio inquisitório, ao dispor-se na lei que o tribunal pode investigar livremente os factos, substituiu o dispositivono campo da alegação”, pois segundo este “as partes têm o monopólio, quase absoluto, da introdução dos factos principais na causa”.
12. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume II, Almedina, 1982, páginas 219 e 220.
13. Não obstante, no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 19-03-2013, processo nº 6558/05.0TBGMR-D.G1, confirmou-se uma decisão que indeferira liminarmente um pedido de alteração da regulação do exercício do poder paternal, com fundamento na falta de indicação de causa de pedir não só porque se entendeu admissível despacho liminar mas também porque, como no caso melhor se explica, se considerou que “nada de concreto” fora alegado a justificá-la. Ao invés, no da Relação do Porto, de 12-04-2011, processo nº 941/07.4TBPRT-B.P1, admitindo-se embora a prolação do referido despacho vestibular, revogou-se o mesmo por, ao contrário da 1ª instância, se ter considerado, segundo entendimento que se depreende mais flexível e em linha com o aqui maioritariamente defendido, que, “pese embora a singeleza do alegado” em tal caso, existia causa de pedir, “podendo ainda ser comprovados, no decurso do processo” os elementos fácticos em falta.
14. Neste procedimento nem sequer é obrigatória a constituição de advogado, salvo nesta fase de recurso – artº 986º, nº 4, CPC.
15. Insiste-se: assim o não considerou o requerido ao contestar matéria que, ele próprio, qualificou como factos alegados pela requerente, mostrando a sua postura que, por aí, a sua defesa não foi prejudicada e que, portanto, o direito a um processo equitativo consagrado no nº 4, do artº 20º, da nossa CRP, e no artº 6º, nº 1, da CEDH, à luz do qual sempre deve compreender-se o conteúdo e a forma dos actos, foi cabalmente respeitado.
16. Como refere Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, volume II, Almedina, 1982, páginas 209 a 211, parece-lhe “não haver que procurar-se uma noção de causa de pedir única para todos os efeitos”, pois a lei consagra “conceitos diversos de causa de pedir” e não deve “partir-se de uma noção única preconcebida”, havendo que adoptar daquela “o conceito mais adequado aos fins próprios de cada instituto”.
17. Cfr. precedente nota 10.
18. Processo nº 6500/07.4TBBRG.G2.-S2.
19. Processo nº 3607/17.3T8PBL-A.C1.
20. Conquanto, do nº 1, do artº 931º, aplicável por força do nº 2, do artº 990º, possa deduzir-se por argumento a contrario, que, uma vez apresentado o requerimento de alteração, se ele não estiver em condições de prosseguir, poderá haver despacho liminar a indeferi-lo ou a corrigi-lo (o que é controverso na alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais – igualmente processo de jurisdição voluntária antes previsto no artº 182º, da OTM, e, actualmente, no artº 42º, da Lei 141/2015, conhecida pelo RGPTC – como se colhe do acórdão da Relação de Coimbra, de 02-02-2010, processo nº 1108/08.0TBCNT.C1, por confronto com os já antes indicados na precedente nota 13), no caso nenhuma falta de condições foi então detectada.
21. Mandou juntar documentos relativos à casa.
22. Como observa Anselmo de Castro, ob. citada na precedente nota 11, página 222, fora do momento inicial da acção, a ineptidão, seja ela fundada na falta da causa de pedir ou na sua ininteligibilidade, só relevará verdadeiramente no caso de revelia absoluta do demandado, pois se este contesta, como neste caso sucedeu, e mesmo que ele tivesse arguido o vício com qualquer daqueles fundamentos, o juiz não o julgará procedente se se verificar que o réu compreendeu convenientemente a petição, solução que bem se compreende porque, então, os pressupostos justificativos da consagração na lei de tal nulidade já se encontram ultrapassados (definição do thema decidendum, cabal exercício da defesa, utilização racional dos meios de acesso à justiça).
23. Nem, ao contrário do que argumenta a apelante, ponha em causa a “competência profissional” da magistrada encarregada dos autos, muito menos represente qualquer violação de “caso julgado formal”.
24. Cujas notas de rodapé vão identificadas com numeração sequencial à do acórdão por o processador de texto word, ao inserir-se o Voto, assim as numerar automaticamente.
25. Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 111.
26. Cfr. J. A. dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, p. 369.
27. Cfr. A. de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1981, Vol. II, pag. 221.
28. Cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, pag. 48.
29. Direito Processual Civil Declaratório, 1981, Vol. I, pp. 209 a 211
30. Cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, III, pag. 47.
31. Cfr. A. de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1981, Vol. II, pp. 219 e 220.
32. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª edição revista e ampliada, p. 193.
33. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª edição revista e ampliada, p. 211.
34. J. A. do Reis, Comentário …, Vol. 2º, p. 372.
35. J. A. dos Reis, Comentário …, Vol. 2º, p. 374.
36. Critério proposto por Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol, 2ª edição revista e ampliada, reimpressão, p. 209, em nota (nota 377), sendo daí retirada a citação que se segue em texto.
37. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol, 2ª edição revista e ampliada, pp. 64 e 65.
38. Assento nº 12/94, no DR, Iª Série A, de 21/07/94, que fixou jurisprudência no sentido de que a nulidade resultante de simples ininteligibilidade da causa de pedir é sanável através de ampliação fáctica em réplica, se o processo a admitir.
39. Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol, 2ª edição revista e ampliada, reimpressão, pp. 65 e 66 e Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol, 2ª edição revista e ampliada, reimpressão, p. 208 (nota 375).
40. Cfr. acórdão do S.T.J., de 1/01/209, proferido no processo n.º 109/17.1T8ACB.C1.S1, in www.dgsi.pt