Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2149/12.8TBVCT.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
DANOS MORAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O art.º 662º. do C.P.C. configura a reapreciação da decisão da matéria de facto dando-lhe a configuração de um novo julgamento, tendo sido intenção do legislador a de reforçar os poderes da Relação no que toca à reapreciação da matéria de facto.
II - Sem embargo, o não cumprimento de um dos ónus impostos ao recorrente nas alíneas a), b), ou c) do n.º 1, ou na alínea a) do n.º 2, do artº. 640º., do C.P.C., determina a rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto.
III – Anteriormente à entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 310/2009, de 26 de Outubro, o contrato, que é de prestação de serviços, celebrado entre um técnico oficial de contas e a entidade a quem presta o serviço, deve considerar-se formalmente válido mesmo que tenha sido celebrado verbalmente, já que a obrigatoriedade da sua redução a escrito apenas constava, à altura, do Código Deontológico que, sendo um instrumento de auto-regulação interna dos membros daquela categoria profissional, não tinha ainda consagração legal.
IV – São passíveis de indemnização os danos de natureza não patrimonial cuja gravidade, apreciada à luz de um padrão objectivo, os faça merecedores da tutela do direito.
Decisão Texto Integral: - ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
A) RELATÓRIO
I.- Os AA., “A.., Ldª.”, E.. e M.., intentaram a presente acção com processo comum, ordinário, contra a Ré A.., pedindo a condenação desta a pagar-lhes a quantia de € 33.485,11.
Fundamentam alegando, em síntese, que a 1.ª A. se dedica à actividade de fabrico e comercialização de extintores e derivados, e o A. M.., na qualidade de seu legal representante, candidatou-se à concessão de fundos do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), em Viana do Castelo, tendo sido aprovado o projecto que apresentou, no âmbito do qual lhe foram concedidos apoios financeiros no montante de € 21.204,80, cuja disponibilização ficava dependente da prova de que a actividade comercial a que se propôs estava a ser desenvolvida e estavam a ser correctamente aplicados os fundos que iam sendo disponibilizados. Para o efeito contratou a Ré para que realizasse toda a gestão contabilística da referida 1.ª Autora. Ora, apesar de lhe fazer chegar os elementos referentes à contabilidade, aquela não organizou nem enviou, nem à Autora nem ao IEFP, a documentação exigida por este que, por via disso, resolveu, por incumprimento, o contrato de concessão de incentivos financeiros que havia celebrado com a 1.ª Autora, exigindo aos Autores a reposição das verbas que havia disponibilizado. Por não disporem de meios financeiros para satisfazer esta exigência, e terem sido demandados em processo executivo, os 2.º e 3.º Autores têm vivido momentos de angústia, profunda tristeza e preocupação, e este último teve de recorrer a tratamentos psicológicos por forma a atenuar os efeitos do problema, pretendendo, assim, serem ressarcidos dos danos não patrimoniais que, alegam, a situação lhes está a provocar.
A Ré contestou arguindo a ilegitimidade daqueles dois Autores e a sua própria ilegitimidade por não ter celebrado o invocado contrato. É que, à data, tinha antes um contrato de prestação de serviços com a “Associação Nacional das Pequenas e Médias Empresas” mediante o qual, como Técnica Oficial de Contas, prestava serviços aos associados daquela associação. Assim, todo o trabalho que prestou à Autora fê-lo no âmbito do referido contrato, sendo que a ANPME tinha um técnico responsável (economista) pela elaboração e acompanhamento do projecto. Mais alega que os motivos que conduziram à resolução do contrato são da exclusiva responsabilidade dos Autores.
Findos os articulados foi proferido despacho saneador que conheceu das excepções arguidas pela Ré e julgou-as improcedentes.
Os autos prosseguiram os seus termos havendo-se procedido ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu a Ré dos pedidos que os Autores contra si formularam.
Inconformados, trazem os Autores o presente recurso pretendendo que aquela sentença seja “parcialmente revogada”, condenando-se a Ré no pagamento “de todos os montantes devidos a título de indemnização e responsabilidade contratual”.
Contra-alegou a Ré propugnando para que seja negado provimento ao recurso e se confirme a sentença impugnada.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II.- Constatando-se a inobservância das imposições vertidas nas alíneas a); b); e c), do n.º 1 do art.º 640.º, do Código de Processo Civil (C.P.C.), acusada, de resto, pela Ré, foi proferido o despacho de fls. 386 e 387, no qual o relator manifestou o propósito de cumprir com a cominação constante do corpo daquele n.º 1 – rejeitar o recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto.
E como, quer nas alegações, quer nas conclusões, (absolutamente) nada se dizia quanto às normas jurídicas violadas, ao serem notificados nos termos e para os fins referidos no n.º 3 do art.º 3.º, do C.P.C., notificaram-se ainda os Apelantes para, se nisso vissem interesse, completarem as conclusões relativamente à matéria de direito, com as indicações constantes do n.º 2 do art.º 639.º, do C.P.C.
Estes vieram apresentar o “requerimento” de fls. 392-399, para “completar as suas alegações”, praticamente mantendo as iniciais conclusões, salvo pontuais alterações de redacção, mas nada referiram quanto à matéria de direito.
Assim, e porque não estava em causa a correcção de deficiências, o esclarecimento de obscuridades ou a eliminação de complexidades (n.º 3 do art.º 639.º do C.P.C.), as conclusões que se têm de considerar são as inicialmente formuladas, e que são do seguinte teor:
A. Fica integralmente provado que a Recorrida tem a integral responsabilidade na resolução do contrato celebrado com o IEFP;
B. Ficou, e bem, provado a existência de um contrato de prestação de serviços de contabilidade a prestar pela Recorrida à Recorrente;
C. Tal contrato, no regime de “avença” mensal, implicava que a Recorrida procedesse ao tratamento de todos os assuntos de cariz contabilístico da sociedade, designadamente declarações de IVA, IRC, processamento de vencimentos e descontos na Segurança Social, e, ainda, a elaboração dos relatórios relativos à execução do projeto do IEFP.
D. Decorre das normais obrigações de um TOC a elaboração dos relatórios relativos à execução do projecto do IEFP.
E. Para além desses projectos decorrem da normal actividade desses contabilistas.
F. A execução dos mesmos reveste normal simplicidade, atendendo à capacidade técnica que a Recorrida tem.
G. Assim, tal obrigação decorre do normal contrato de prestação de serviços celebrado com a Recorrida.
H. Não era, por isso, necessário que os recorrentes provassem a existência de um acordo relativo à elaboração do projecto de execução da empresa.
I. A Recorrida elaborou o primeiro relatório que foi entregue no IEFP (conforme consta Doc nº 2 junto à PI), pelo que expressamente assumiu a obrigação de os elaborar.
J. A falta de entrega da documentação relativa à execução do projecto junto do IEFP foi determinante para a resolução do contrato por esta entidade.
K. A questão das alegadas dívidas às Finanças e Segurança Social foram temporárias e objecto de acordo de pagamento em prestações.
L. A existência dessas dívidas decorre da falta de concessão da tranche de € 4.583,00, que inviabilizaram a aquisição de maquinarias e produtos que faziam parte do projecto de investimento.
M. A não concessão desse valor pelo IEFP motivou o estrangulamento de tesouraria e a existência de alegadas dívidas.
N. Foi pela falta de concessão da mencionada tranche de € 4.583,00 que sucederam os débitos, atendendo ao estrangulamento da tesouraria.
O. Tal fato impossibilitou, ainda, a conclusão do projecto no prazo estipulado no contrato para o efeito – 31.12.2009.
P. A não concessão dessa quantia foi devida à falta de entrega dos relatórios relativos à execução do projecto da Recorrente “A..”.
Q. Os débitos à SS e Finanças foram temporários e transitórios.
R. O IEFP procedeu à resolução do contrato em Junho de 2010, contudo a divida existente ficou regularizada em 2009!
S. Logo, não poderia a IEFP ter procedido à resolução do contrato com base nesse facto, dado que naquele momento inexistia qualquer divida.
T. O fundamento real, concreto e válido para a resolução do contrato pelo IEFP é a falta de entrega da documentação relativa à execução do projecto.
U. Tais documentos/relatórios deviam ter sido celebrados pela ora Recorrida, dado que tal obrigação para si decorria do contrato de prestação de serviços oportunamente realizado entre os Recorrentes e Recorrida.
V. Pelo que deve a sentença recorrida ser parcialmente revogada, condenando-se, assim, a Recorrida ao pagamento de todos os montantes devidos a titulo de indeminização e responsabilidade contratual, conforme descreve a PI.
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III.- A Ré, que no seu requerimento de fls. 403 e 404 reitera que deve ser rejeitado o recurso, concluiu as suas contra-alegações nestes termos:
1 - As alegacões formuladas no presente recurso violam as normas do art. 639 nº 2 als. a), b) e c) do CPC;
2. Porque os Recorrentes não indicam as normas legais que a douta sentença, putativamente ofende. Nem o poderia fazer porque a douta sentença recorrida, não violou qualquer norma legal.
2 - As alegações formuladas no presente recurso violam as normas do art. 640 nº 1 als. a), b) e c) e nº 2 al. a);
3 – As alegações formuladas no presente recurso mais não são do que outra versão das apresentadas na PI;
4 – Com a agravante de conterem matéria que não foi alegada anteriormente no processo;
5 – Tecendo conclusões falsas;
6 – O presente recurso deve ser liminarmente rejeitado por violação das normas supra mencionadas;
7 – Se algum reparo se pode colocar à douta sentença é de não condenar os Autores/Recorrentes como litigantes de má-fé. *
IV.- Como resulta do disposto nos artos. 608º., nº. 2, ex vi do artº. 663º., nº. 2; 635º., nº. 4; 639º., nos. 1 a 3; 641º., nº. 2, alínea b), todos do C.P.C., sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Deste modo, e tendo em consideração as conclusões acima transcritas cumpre:
- decidir da admissibilidade do recurso quanto à decisão da matéria de facto;
- reapreciar a questão da responsabilidade da Ré em satisfazer aos Autores as indemnizações que peticionam.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
V.- O Tribunal a quo, relativamente aos factos:
i) - julgou provado que:
1. A Primeira Autora é uma Sociedade que se dedica à actividade de comercialização de extintores e derivados;
2. O representante legal da Primeira Autora, M.., candidatou-se à concessão de fundos do Instituto do Emprego e Formação Profissional (I.E.F.P.), em Viana do Castelo
3. O I.E.F.P. enviou para a Primeira Autora em 02/06/2010 a missiva cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 34 a 38 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (pela qual, em síntese, aquela entidade notifica esta Autora da resolução do contrato “Face ao incumprimento injustificado do n.º 3 do art.º 13.º da Portaria n.º 196-A/2001, de 10 de Março, com a redacção que lhe foi dada pela Portaria n.º 255/2002, de 12 de Março, e das obrigações estabelecidas na Cláusula 9.ª, n.º 2, alíneas a) e r)” daquele contrato).
4. Para cumprimento do projecto e obtenção dos incentivos financeiros a conceder pelo mencionado I.E.F.P., foi necessário proceder à apresentação de um projecto, com plano de negócios previsível para os anos subsequentes à obtenção dos fundos – cfr. matéria do quesito 1.
5. Para cumprimento dos requisitos, foi, por opção do promotor, criada a sociedade "A.., Lda.", que seria a beneficiária dos apoios financeiros – cfr. matéria do quesito 2.
6. Analisado integralmente todo o projecto pelo mencionado IEFP, foi deferido à Primeira Autora a concessão de incentivos financeiros, nos termos do contrato de concessão de incentivos financeiros, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 15 a 27 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido – cfr. matéria do quesito 3.
7. O custo total do projecto ascendia a € 61.354,77 – cfr. matéria do quesito 4.
8. O contrato de concessão de apoios financeiros previa a concessão de apoios globais de € 21.204,80 – cfr. matéria do quesito 5.
9. Os pagamentos dos incentivos ao investimento dependiam da apresentação de um comprovativo de licenciamento ao exercício da actividade a que a Primeira Autora se propôs, cópia (do documento de comunicação) do início da actividade e demais documentos relativos à regularização da situação contributiva – cfr. matéria do quesito 6.
10. A Primeira Autora, através do seu legal representante e ora Terceiro Autor, cumpriu a apresentação destes requisitos e, consequentemente, foram-lhe concedidos os primeiros adiantamentos relativos ao contrato de concessão de apoios financeiros, nos termos, do projecto aprovado – cfr. matéria do quesito 7.
11. A concessão dos restantes fundos estava dependente da apresentação de restante documentação relativa ao desempenho da Primeira Autora, bem como à demonstração e apresentação dos documentos relativos às quantias anteriormente concedidas no âmbito do contrato de concessão de incentivos financeiros – cfr. matéria do quesito 8.
12. O IEFP apenas continuaria a disponibilizar fundos desde que se provasse que a actividade comercial estava a ser correctamente desenvolvida e que os fundos entretanto concedidos estavam aplicados de acordo com o projecto apresentado e deferido pelo IEFP – cfr. matéria do quesito 9.
13. A Primeira Autora acordou com a ora Ré para que esta, na qualidade de Técnica Oficial de Contas, realizasse a gestão contabilística da sociedade – cfr. matéria do quesito 10.
14. Para tal efeito, a Primeira Autora fazia chegar à Ré toda a documentação contabilística relevante, por forma a que a Ré procedesse à elaboração das responsabilidades declarativas e fiscais da sociedade – cfr. matéria do quesito 11.
15. A Primeira Autora obrigou-se ao pagamento mensal à Ré do valor de € 50,00 – cfr. matéria do quesito 12.
16. O correspectivo trabalho a desenvolver pela Ré, prendia-se com a gestão e tratamento de todas as situações contabilísticas existentes na sociedade da Primeira Autora – cfr. matéria do quesito 13.
17. Em 5 de Março de 2009, o representante legal da Primeira Autora remeteu à Ré um fax a solicitar rectificações e esclarecimentos no âmbito do projecto apresentado no IEFP de Viana do Castelo, designadamente: listagem do investimento realizado no 2.º ano de actividade; entrega de factura e recibo de aquisição de um veículo; justificação de desvios, requisitar a entrega do valor remanescente do apoio – que à data eram € 4.583,00 – cfr. matéria do quesito 15.
18. Apesar de solicitada, a Ré não enviou para o IEFP e para a Primeira Autora a documentação contabilística, designadamente os balanços e balancetes da Sociedade – cfr. matéria do quesito 16.
19. A Primeira Autora estava a ser constantemente contactada pelo IEFP, nomeadamente através do seu representante legal, que lhe solicitava o envio da documentação comprovativa da actividade da sociedade, respectivos custos e despesas, bem como a demonstração do cumprimento integral do contrato de concessão de fundos, sob pena de resolução do contrato de concessão do apoio financeiro – cfr. matéria do quesito 17.
20. Que culminou na recepção da carta do IEFP a resolver o contrato por incumprimento do disposto no nº 3 do nº 13 da Portaria 196-A/2001 de 10.03 e incumprimento da cláusula 9º, nº 2, al. a) e r) do contrato de concessão e incentivos financeiros, nos termos da decisão de fls. 37 e 38 e cujo teor se dá por reproduzido - cfr. matéria do quesito 18.
21. Foi também notificado do teor dessa carta o ora Segundo Autor, que figura no contrato como fiador da Primeira Autora na concessão dos apoios financeiros – cfr. matéria do quesito 19.
22. Recebida a comunicação do IEFP, o representante legal da Primeira Autora, M.., contactou com o IEFP, explicitando que a sociedade estava devidamente gerida, com os fundos regularmente empregues – cfr. matéria do quesito 20.
23. O representante legal da Primeira Autora, tentou, ainda, travar a resolução do contrato de apoios financeiros através da comunicação dirigida à Directora do Centro de Emprego de Viana do Castelo, datada de 29 de Junho de 2010, junta aos autos a fls. 49 e 50 e cujo teor se dá ora por integralmente reproduzido – cfr. matéria do quesito 21.
24. Em consequência da resolução do contrato os ora Autores foram interpelados à devolução da quantia de € 16.620,86 (valor concedido até então – Outubro de 2010), ficando, desde logo, cancelada a concessão do valor remanescente em falta, de cerca de € 4.583,00 – cfr. matéria do quesito 24.
25.Como consequência da resolução a Primeira Autora também não recebeu a quantia de € 4.583,00 – cfr. matéria do quesito 25.
26. Os Segundo e Terceiro Autores, vêem-se na contingência de serem forçados ao pagamento da quantia exequenda fruto da exigência do incumprimento do contrato de concessão de incentivos financeiros – cfr. matéria do quesito 28.
27. O Autor M.. tem, desde a data em que lhe foi comunicada a decisão da resolução do contrato do IEFP, vivido sob intensa tensão, stress e preocupação – cfr. matéria do quesito 29.
28. O Autor M.. candidatou-se a este contrato de incentivos financeiros pelo facto de não ter recursos para autonomamente enfrentar o desafio de ter o seu próprio negócio – cfr. matéria do quesito 30.
29. O Terceiro Autor tem vivido momentos de angústia, profunda tristeza e preocupação, decorrente da resolução do contrato do IEFP, tendo recorrido a tratamento médico – cfr. matéria do quesito 31 e 32.
ii) julgou não provado:
a) Que entre as obrigações que cabiam à R. se englobassem as comunicações com o mencionado IEFP, designadamente a entrega de documentos relevantes relativos à actividade da sociedade e aplicação dos fundos concedidos – cfr. matéria do quesito 14.
b) Que a R. nunca tenha respondido às missivas remetidas pela Primeira Autora, quer através de carta, fax ou E-mail e não tenha respondido às várias tentativas de contacto – cfr. matéria do quesito 22 e 23.
c) Que a concessão do valor de € 4.583,00 se destinasse à aquisição de máquinas e aparelhos para a desenvoltura (desenvolvimento?) de uma actividade complementar à principal, e que se encontra prevista no plano de negócios apresentado com a candidatura aos fundos – cfr. matéria do quesito 26.
d) Que a não concessão deste valor, implicou que a Primeira Autora tivesse que recorrer ao apoio e prestação de serviços de terceiras entidades, por forma a cumprir o desenvolvimento dessa actividade – cfr. matéria do quesito 27.
e) Que a intervenção da Ré junto da Primeira Autora tenha sido feita no âmbito do contrato existente ente a Ré e a ANPME – Associação Nacional das Pequenas e Médias Empresas – cfr. matéria do quesito 33.
f) Que todo o trabalho efectuado pela Ré fosse para a ANPME – Associação Nacional das Pequenas e Médias Empresas, feito por sua indicação e entregue ao responsável desta, a quem eram entregues todas as comunicações – cfr. matéria dos quesitos 34 e 35.
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VI.- 1.- O art.º 662º. do C.P.C. configura a reapreciação da decisão da matéria de facto dando-lhe a configuração de um novo julgamento, tendo sido intenção do legislador, como fez constar da “Exposição de Motivos”, a de reforçar os poderes da Relação no que toca à reapreciação da matéria de facto.
Assim, a alteração da decisão da matéria de facto assume-se agora como um poder vinculado da Relação desde que os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Mantendo-se os poderes cassatórios que permitem à Relação anular a decisão recorrida, nos termos referidos na alínea c), do nº. 2, do referido art.º 662.º, e sem prejuízo da possibilidade de ser ordenada a devolução dos autos ao tribunal da 1ª. Instância, reconheceu-se agora à Relação o poder/dever de investigação oficiosa, devendo realizar as diligências de renovação da prova e de produção de novos meios de prova, com vista ao apuramento da verdade material dos factos, pressuposto que é de uma decisão justa.
Sem embargo, e como decorre do disposto no artº. 640º., do C.P.C., a parte que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto deve, obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Ainda em honra aos princípios da cooperação, da lealdade e da boa fé processuais, que enformam aquele dever, incumbe também à parte recorrente, igualmente com a cominação da imediata rejeição do recurso, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, no caso de os meios probatórios terem sido gravados, como lho impõe a alínea a) do nº. 2 daquele artº. 640º..
Como o próprio legislador reconheceu, entendeu-se que a intervenção legislativa operada no domínio dos recursos pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, “desaconselhava uma remodelação do quadro legal instituído”.
Deste modo, continuam actuais as interpretações doutrinais e jurisprudenciais sobre os deveres impostos ao recorrente que constavam do art.º 685.º-B do anterior Código, e antes da reforma introduzida por aquele Diploma Legal, no art.º 690.º-A.
E como bem observa Abrantes Geraldes, “foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-se a uma repetição do julgamento” assim como foi rejeitada a possibilidade de “recursos genéricos”, visto o legislador ter restringido o âmbito do recurso aos “concretos pontos de facto” relativamente aos quais o recorrente tenha manifestado a sua discordância, justificando-a.
O recurso deve ser rejeitado se nas conclusões não forem especificados os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; ou se não forem especificados os concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados que impõem decisão diversa sobre cada um daqueles pontos de facto; ou ainda se não for indicada a decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre cada um dos pontos de facto impugnados; no caso de a discordância se basear em prova gravada, a falta da indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o dissenso é igualmente motivo bastante de rejeição do recurso.
Como refere ainda aquele Autor, estas exigências devem ser apreciadas à luz de “um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2.ª instância”. E, prossegue afirmando tratar-se “de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (in “Recursos em Processo Civil” 3.ª edição revista e actualizada, Almedina, 2010, págs. 149-159, e “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2013, págs. 124 e 128-129).
Também Lebre de Freitas et al. chamam a atenção para este “ónus rigoroso” que se impõe ao recorrente, “cujo incumprimento implica a imediata rejeição do recurso”, indicando ainda que por esta via se procurou “tornar praticável uma verdadeira reapreciação dos concretos pontos de facto controvertidos, sem custos desmedidos em termos de morosidade na apreciação dos recursos” (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 3.º, pág. 61-62).
Ainda o Ac. do S.T.J. de 23/11/2011 refere que o sentido da expressão “concretos meios probatórios de registo ou gravação ...” é o de impor ao recorrente que alegue “o porquê da discordância, isto é, em que é que tais depoimentos contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido”, ou seja, há-de o recorrente “apontar a divergência concreta entre o decidido e o que consta do depoimento ou parte dele” e, prossegue, “trata-se da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o Recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detectada”, e em segundo lugar “para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório” (in Colectânea de Jurisprudência, Acs. do S.T.J., ano XIX, Tomo III/2011, pág. 127).
É claro que, cumprido aquele ónus pelo recorrente, a Relação terá de se socorrer de todas provas que tenham sido carreadas para os autos, mesmo que não tenham sido indicadas pelo recorrente, para formar a sua própria convicção.
Como resulta do próprio texto legal, se as alegações e conclusões forem omissas quanto ao cumprimento de uma daquelas obrigações, não pode o tribunal convidar o recorrente a sanar a falta.
2.- Na situação sub judicio resulta inequívoco que os Apelantes, quer nas alegações quer nas conclusões que apresentaram não deram integral cumprimento àqueles ónus.
Sendo certo que tinham a tarefa simplificada quanto à identificação precisa dos pontos de facto que pretendiam impugnar, visto ter sido elaborada a selecção da matéria de facto, com os factos assentes e os controvertidos, e a sentença ter separado e identificado com toda a clareza os factos que julgou provados, identificando-os por números, e os que julgou não provados, que identificou por letras, os Apelantes prescindiram desta “ajuda” e optaram por lhes fazer uma referência que saiu imprecisa.
Sem concretizarem os meios probatórios que impunham uma decisão diversa sobre cada um dos pontos de facto que pretendem impugnar, baseiam a sua discordância recorrendo a factos cuja realidade arrimam numa normalidade que não é constatável como regra da experiência comum – v.g. parte final da alínea C); e alíneas D) a H) -, e numa interpretação própria que o facto em si não permite justificar – v.g. alínea J) que, de resto, está em desacordo com o n.º 1 da cláusula 13.ª do contrato, que refere como fundamento de resolução do contrato o incumprimento injustificado de qualquer das obrigações” – e dão como provados factos que a decisão julgou não provados sem indicar a mais leve prova em que se fundamenta – v.g., alíneas L) e sgs..
Relativamente aos dois depoimentos que referem nas alegações – o de E.. e “da Técnica/gestora do processo junto do IEFP, Drª. S..” – não mencionam a passagem da gravação em que se fundam, ficando a convicção de, nas referências que lhes fizeram, terem utilizado palavras próprias, nem sequer citando os dizeres das referidas testemunhas.
Do exposto cumpre concluir que há fundamento de rejeição do recurso da decisão da matéria de facto, nos termos das disposições legais acima citadas.
3.- Sem embargo, sempre diremos que o documento n.º 2 junto com a P.I., constante de fls. 28 dos autos, no qual os Apelantes sustentam que a Ré “elaborou o primeiro relatório que foi entregue no IEFP” (conclusão I), e que será o fax referido no facto transcrito sob o n.º 17, não espelha o que se pretende já que não resulta suficientemente claro dos seus dizeres.
Para além disso são os próprios Apelantes que afirmam nas suas alegações que o projecto foi apresentado no IEFP antes mesmo de ter sido constituída a 1.ª Autora, o qual foi elaborado “pelos técnicos economistas da ANPME, o que exclui a Ré de qualquer intervenção no mesmo projecto.
Como se vê do documento de fls. 34 a 38, a situação de incumprimento do contrato de concessão de incentivos financeiros foi avaliada pelo IEFP em finais de Maio de 2010. E resulta claramente do documento de fls. 330 que a Apelante “Atitudes & Soluções, Ldª.”, a essa data, estava em dívida com a Segurança Social, não havendo liquidado as prestações relativas aos meses de Dezembro de 2009 a Abril de 2010 (o pagamento, feito em prestações, só veio a ficar concluído em 05/09/2013, já depois desta acção ter sido interposta), sendo que a prestação relativa àquele mês de Maio, de 2010, só foi liquidada 25/11/2010, ou seja, quase seis meses após a notificação da decisão de resolução do contrato, e a prestação relativa ao mês de Junho de 2010 só foi liquidada em 27 do mês seguinte, pelo que não é correcto o que se afirma nas alíneas R) e sgs..
Ora, não se podem desvalorizar estes factos, como fazem os Apelantes na conclusão K, porquanto as dívidas referidas constituem (e constituíram) um fundamento a se de resolução do contrato, como resulta inequívoco da alínea a) do n.º 2 do art.º 9.º e do n.º 1 do art.º 13.º do contrato referido, e só foram regularizadas muito depois da decisão de resolução.
Finalmente, os Apelantes sabem (porque a não indicaram nas alegações ou nas conclusões) que não fizeram prova de que a última tranche se destinava à aquisição de maquinaria e produtos que faziam parte do projecto do investimento, e que foi isto que provocou o estrangulamento da tesouraria e a existência das dívidas (conclusões L) a O)) e ainda que “a não concessão desse valor implicou que tivesse que recorrer ao apoio e prestação de serviços de terceiras entidades, por forma a cumprir o desenvolvimento dessa actividade” (nem sequer se mostra junto aos autos o invocado “plano de negócios” nem se especificou, tampouco, a que actividade que vem referida, e mesmo há o mais ténue comprovativo do recurso ao apoio e serviços de terceiros).
Invocaram os Apelantes, e assim passou para a B.I. (artigo 22.º e 23.º), que a Ré “nunca” respondeu às “missivas” que lhe foram enviadas através de “carta, fax, ou E-mail”. No entanto, foram eles mesmo quem juntou aos autos os documentos de fls. 132-160 que são cópias dos e-mails trocados entre o Apelante Manuel Dias e a Ré correspondentes ao período de 29/09/2009 (o mais antigo) até 02/12/2010.
Do exposto se extrai a conformidade da decisão de facto com a prova carreada para os autos, quer a documental, quer a testemunhal, que revisitamos, mau grado o que deixamos referido em 2., para melhor apreendermos toda a envolvência da situação em apreciação.
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VII.- Tendo ficado provado que a A. “A.., Ldª.” acordou com a Ré, Técnica Oficial de Contas (T.O.C.), que esta realizasse a gestão contabilística daquela, tratando de todas as situações relacionadas com a contabilidade, mediante o pagamento de uma importância mensal, é de concluir haverem celebrado um contrato de prestação de serviços, que o art.º 1154.º do Código Civil (C.C.) define como sendo aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
Configura-se, pois, o contrato que celebraram, como sinalagmático, visto dele emergirem obrigações recíprocas interdependentes e oneroso já que ficou estabelecida uma contrapartida económica pelo trabalho a desenvolver.
Deduz-se ainda do que foi alegado pelas partes e da facticidade apurada que o referido contrato foi verbalmente celebrado.
Ora, ainda que se desconheça, em concreto, a data da sua celebração, é notório que tal aconteceu no domínio de vigência do Código Deontológico que os membros da categoria profissional dos Técnicos Oficiais de Contas (T.O.C.’s) fizeram aprovar “por referendo realizado para o efeito”, como se fez constar do respectivo preâmbulo, e que entrou em vigor no dia 1/01/2000.
Este Código Deontológico prescrevia, no seu art.º 9.º, a forma escrita para os contratos de prestação de serviços celebrados pelos T.O.C.’s, estabelecendo aí o prazo mínimo de duração – um exercício económico – e algumas cláusulas obrigatórias: duração do contrato; data de entrada em vigor; forma de prestação dos serviços a desempenhar; o modo, o local e o prazo de entrega da documentação; os honorários a cobrar e a sua forma de pagamento; e a menção de desresponsabilização do T.O.C. “pelo incumprimento contratual imputável à entidade a quem presta serviços”.
Não se prevê, naquela norma, qualquer efeito decorrente da inobservância da forma escrita para o contrato ou da omissão de algum dos elementos que dele devem constar.
Estamos, porém, em presença de um instrumento de auto-regulação interna dos membros de uma categoria profissional, que não teve consagração em nenhum diploma legal e por isso que à inobservância da referida imposição estatutária só possa corresponder uma sanção de natureza disciplinar, em nada podendo afectar a validade e eficácia do contrato (neste sentido, o Ac. da Rel. do Porto de 26/06/2008, Proc.º 0833511, Desemb. Mário Fernandes, in www.dgsi.pt)
Assim, quanto aos contratos celebrados no domínio de vigência daquele Código Deontológico vale o princípio da consensualidade, consagrado no art.º 219.º, do C.C..
Já não assim após a entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 310/2009, de 26/10, que procede à revisão do Estatuto da Câmara dos T.O.C.’s e aprova o Código Deontológico, “conferindo-lhe assim a credibilidade e a autoridade características da lei”, como se expressa o preâmbulo.
Ora, no Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, no capítulo referente aos direitos e deveres, ficou estabelecido que os contratos de prestação de serviços celebrados pelos T.O.C.’s devem ser reduzidos a escrito – cfr. n.º 5 do art.º 52.º -, regulando o art.º 9.º do Código Deontológico os requisitos de conteúdo a que deve obedecer o contrato (que são os mesmos do anterior Código, à excepção do último, que se referia à desresponsabilização do TOC pelo incumprimento contratual imputável à entidade a quem presta serviços).
Deste modo, os contratos celebrados na vigência deste último Diploma Legal são nulos se não forem reduzidos a escrito, conforme o estabelecido no art.º 220.º, do C.C., posto estarmos perante uma formalidade ad substantiam, já que não resulta daqueles Estatuto da Ordem e Código Deontológico que a exigência de forma se prende apenas com a prova da declaração negocial.
Com a aprovação dos Códigos de IRC e IRS, que conferiram natureza pública à função dos, então designados, técnicos de contas considerou-se indispensável regulamentar pela via legal as respectivas funções, o que foi feito pelo Dec.-Lei n.º 265/95, de 17/10, que integrou no seu âmbito “a responsabilidade pela regularidade fiscal das entidades sujeitas a imposto sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade organizada”, impondo-lhes o dever de “assinar, conjuntamente com aquelas entidades, as respectivas declarações fiscais” – cfr. art.º 2.º.
Posteriormente, o Dec.-Lei n.º 452/99, de 5/11, considerando que mais importante do que assegurar a regularidade fiscal era função dos T.O.C.’s garantir a exactidão da contabilidade, revogando aquele Diploma Legal, alterou a designação da entidade representativa, que antes era “Associação” e passou a ser “Câmara”, e consagrou um novo Estatuto.
Neste, as funções do T.O.C. vêm descritas no art.º 6.º, cabendo-lhes: a) planear, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade regularmente organizada, segundo os planos de contas oficialmente aplicáveis, respeitando as normas legais e os princípios contabilísticos vigentes, bem como das demais entidades obrigadas, mediante portaria do Ministro das Finanças, a dispor de técnicos oficiais de contas; b) assumir a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das entidades referidas na alínea anterior; c) assinar, conjuntamente com o representante legal das entidades referidas na alínea a), as respectivas declarações fiscais, as demonstrações financeiras e seus anexos, fazendo prova da sua qualidade, nos termos e condições definidos pela Câmara, sem prejuízo da competência e das responsabilidades cometidas pela lei comercial e fiscal aos respectivos órgãos”, podendo ainda exercer funções de consultadoria, nas áreas da respectiva formação e outras que lhe sejam adequadas, designadamente a de perito.
Saber quais são os actos que concretizam o âmbito das funções acima descrito só recorrendo à experiência diária, tudo dependendo do nível de confiança e colaboração que se estabeleça entre o T.O.C. e a entidade a quem presta o serviço.
Assim, e volvendo à situação sub judicio temos por seguro que o contrato entre a Apelante sociedade comercial e a Ré terá sido celebrado nos inícios de 2009 (considerado o facto transcrito sob o n.º 17, que refere um fax enviado em 5/Março/2009 pelo representante legal da Apelante sociedade comercial à Ré).
Posto que, então, ainda não estava em vigor o Estatuto da Câmara e o Código Deontológico consagrados no Dec.-Lei n.º 310/2009, que tem a data de 26 de Outubro de 2009, aquele contrato admitia a celebração pela forma consensual, não havendo outro motivo, que decorra dos autos, para o considerar afectado na sua validade e eficácia.
São aplicáveis ao referido contrato, subsidiariamente e com as necessárias adaptações, as regras próprias do contrato de mandato, de acordo com o estabelecido no art.º 1156.º, do C.C..
Assim, e desde logo, a Ré estava obrigada a praticar todos os actos compreendidos no contrato.
Não ficando provado nos autos quais os concretos actos e acções que foram acordados, teremos em consideração os que cabem no âmbito das normais funções de um T.O.C., tal como vem legalmente definido.
E assim, caber-lhe-ia a organização da contabilidade, registando as operações comerciais ou financeiras da Apelante sociedade comercial, assim como as despesas por esta efectuadas, devendo organizar os balanços anuais e os balancetes quando lhe sejam solicitados, visto a situação económica da empresa estar aqui espelhada. No que respeita à fiscalidade, compete-lhe elaborar as folhas de pagamento dos impostos e contribuições, cabendo-lhe ainda executar a parte burocrática relacionada com as folhas de pagamento das retribuições.
Indubitável é, pois, que devesse fazer entrega à Apelante sociedade comercial dos elementos que lhe estavam a ser exigidos pela Segurança Social, de acordo com a notificação de fls. 59, datada de 22/10/2009: entrega de um balancete analítico de 2009, acumulado até à referida data; extracto da conta 64 e respectivas subcontas, que tratam dos “custos com o pessoal”, ou seja, as remunerações aos titulares dos órgãos sociais e aos trabalhadores, as pensões, os encargos sobre remunerações (v.g. a parte da entidade patronal da contribuição para a Segurança Social), e as designadas “folhas de férias”.
Sem embargo, atendo-nos à facticidade que foi julgada provada (factos transcritos sob os nos. 17 e 18) só temos que a Ré, apesar de lhe ter sido solicitado em 05/Março/2009, através de um fax expedido pelo representante da Apelante sociedade comercial, não enviou a esta nem ao IEFP “rectificações e esclarecimentos” no âmbito do projecto apresentado nesta Entidade, designadamente “a listagem do investimento realizado no 2.º ano de actividade; a entrega da factura e recibos de aquisição de um veículo; justificação de desvios; e a requisição da entrega do valor remanescente do apoio”. Posto que se trata de elementos que existem e respeitam à contabilidade, é de concluir não ter cumprido com a sua obrigação contratual.
Ora, como alerta o n.º 1 do art.º 405.º, do C.C., os contratos devem ser pontualmente cumpridos, e o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor, nos termos do art.º 798º., do C.C., sendo que a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados, de acordo com o disposto no art.º 804.º, do C.C..
Em sede de responsabilidade contratual, a culpa do devedor presume-se, tendo ele o ónus de provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua, de acordo com o n.º 1 do art.º 799.º do C.C..
A Ré, mau grado, se queixar de atrasos e de falta de pagamentos dos seus honorários nos e-mails noticiados nos autos, assenta a sua defesa na inexistência do contrato invocado pelos Apelantes, defendendo que os serviços que prestou à Apelante sociedade comercial estavam integrados no contrato de prestação de serviços que tinha celebrado com a “Associação Nacional das Pequenas e Médias Empresas”, com o que não invocou a excepção de não cumprimento do contrato, com aquele fundamento, nos termos do art.º 428.º, do C.C.. Contudo, esta excepção dilatória de direito material ainda que se provasse o tribunal não podia conhecer dela oficiosamente.
Não afastou, pois, a Ré a presunção de culpa que sobre ela recai.
Ora, alegam os Apelantes que foi aquele incumprimento obrigacional da Ré que provocou o incumprimento da Apelante sociedade comercial dos deveres decorrentes do contrato de concessão de incentivos financeiros que celebrou com o Instituto de Emprego e Formação Profissional, o que, por sua vez, conduziu à resolução deste contrato e à exigência do I.E.F.P. que lhe fossem repetidas as importâncias já concedidas, num total de € 16.620,86, cancelando a entrega da última tranche, no valor de € 4.583,00.
Como resulta do que se deixou referido, a responsabilidade civil contratual tanto pode emergir da mora, como do incumprimento, ou mesmo do cumprimento defeituoso do contrato.
São pressupostos da responsabilidade civil, seja a contratual, seja a extracontratual ou aquiliana: a verificação do facto; a ilicitude do facto; o nexo de imputação do facto ao agente; o dano; e o nexo causal entre o facto e o dano - cfr. art.os 798.º e sgs. do C.C. para a primeira e 483.º e sgs., do mesmo Código para a segunda.
O facto é aqui traduzido pelo não cumprimento tempestivo, ou pelo incumprimento, da prestação contratual.
A ilicitude traduz-se na desconformidade entre a conduta devida (conduta considerada no sentido objectivo) ou seja, a prestação contratada, e o comportamento do devedor (sendo de considerar que há situações em que a mora no cumprimento ou o incumprimento da obrigação podem constituir um acto lícito - v.g. se ele constituir uma reacção à falta de cumprimento da outra parte ou proceder do exercício de um direito).
Na culpa aprecia-se a conduta no sentido subjectivo – reconduz-se a um juízo de censura ou de reprovação que é dirigido ao obrigado que, atentas as circunstâncias do caso, podia e devia ter agido de outro modo.
A culpa, como nexo de imputação subjectiva ao agente, desdobra-se em duas vertentes: o dolo, que é a adesão da vontade ao comportamento ilícito, e a negligência, ou mera culpa, caracterizada por uma actuação sem a diligência ou o discernimento exigíveis ao agente.
De acordo com os art.os 799.º, n.º 2 e 487.º, n.º 2, do C.C. a culpa é apreciada de acordo com um padrão objectivo dado pela diligência de um bom pai de família.
Os danos são toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica sendo indemnizáveis tanto os danos emergentes como os lucros cessantes, de acordo com o art.º 564.º, n.º 1, do C.C.
Finalmente, é ainda necessário que se verifique um nexo de causalidade entre o facto e o dano produzido, consagrando o art.º 563.º do C.C. a teoria da causalidade adequada.
Como fundamentou o S.T.J., no Ac. de 11/05/2000, “para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes do mais, que no plano naturalístico ele seja condição sem o qual o dano não se tem verificado”, sendo ainda necessário que em abstracto ou em geral “seja causa adequada do mesmo”. E, prossegue, “O facto deixa, pois, de ser causa adequada do dano sempre que, “segundo a natureza geral era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, sendo portanto inadequado para esse dano” (in B.M.J., nº. 497 – Junho de 2000 – pág. 354).
Ora, como resulta provado nos autos, foram três os motivos invocados pelo I.E.F.P. para resolver o contrato:
a) o projecto não ter sido executado no prazo de um ano a contar da data da assinatura do contrato (n.º 3 do art.º 13.º da Portaria n.º 196-A/2001, de 10/03, com a redacção que lhe deu a Portaria n.º 255/2002, de 12/03);
b) o incumprimento da obrigação de manter a situação regularizada perante a administração fiscal, a segurança social e o IEFP (alínea a) do n.º 2 da cláusula 9.ª); e, finalmente,
c) a não apresentação ao IEFP do relatório de execução referente ao primeiro semestre de cada ano, até ao fim da primeira quinzena de Setembro e o relatório de execução anual até ao fim da primeira quinzena de Março do ano seguinte (alínea r) do n.º 2 da cláusula 9.ª).
Os Apelantes alegam que só não cumpriram com a primeira e a terceira daquelas obrigações porque a Ré, apesar de muitas vezes instada, não lhes enviou, nem ao IEFP, os documentos exigidos por esta Entidade, e a Apelante sociedade comercial entrou em mora quanto à Segurança Social porque, não tendo sido recebida a última tranche do apoio financeiro, não foi possível adquirir maquinaria e produtos que faziam parte do projecto do investimento, o que provocou a ruptura da tesouraria, sendo que também este não recebimento imputam à Ré por não ter elaborado e enviado os documentos que lhe foram solicitados.
Ora, se é verdade que se provou o facto, que traduz a mora no cumprimento da prestação contratual, a ilicitude deste facto, visto não se não ter provado qualquer circunstância que a afaste, presumindo-se a culpa da Ré, nos termos do disposto no n.º 799.º, do C.C., já a facticidade julgada provada não permite concluir que a mora daquela, traduzida naquele facto concreto, possa ser havido como condição da resolução, posto que entre um e outra decorreu mais de um ano (provou-se que em 5/03/2009 o representante da Apelante sociedade comercial solicitou à Ré o envio de diversos documentos da contabilidade e esta não lhos satisfez, mas a decisão de resolução do contrato só veio a ser proferida no final de Maio de 2010).
E se isto é assim no que se refere aos fundamentos das alíneas em a) e c), com mais propriedade se deve recusar no que concerne à alínea b), posto que ficou documentalmente comprovado nos autos (ofício de fls. 330) que a Apelante sociedade comercial incumpriu com o pagamento das contribuições à Segurança Social em Dezembro de 2009 e o despacho a resolver o contrato é de 30/05/2010, estando então em dívida aquela prestação assim como as dos meses seguintes (sendo que, ainda nos termos do mesmo documento, a dívida relativa aos meses de Dezembro de 2009 a Abril de 2010 foi paga em prestações só vindo a ser integralmente liquidada 05/09/2013).
Ora, de acordo com o n.º 1 da cláusula 13.ª do contrato de concessão do incentivo financeiro, a resolução podia fundamentar-se no incumprimento injustificado de qualquer uma das obrigações enunciadas na cláusula 9.ª.
E a importância mensal em causa era tão curta – cerca de duas centenas e meia de euros – que, mesmo na perspectiva das regras da experiência comum, não se concebe que não tenha havido dinheiro para a liquidar.
Ora, não sendo líquido que o IEFP entregasse à Apelante sociedade comercial a última tranche do incentivo financeiro - € 4.583 – sem que esta demonstrasse primeiro ter regularizado a sua situação perante a Segurança Social, pela ordem natural das coisas, fica esvaziado o fundamento de imputação à Ré invocado pela Apelante.
Por outra via, de acordo com o disposto no art.º 570.º do C.C., quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou o agravamento dos danos caberá ao tribunal decidir, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
Mas se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar, de acordo com o estabelecido no n.º 2 daquele preceito legal.
Como se disse, a culpa da Ré baseia-se na presunção que resulta do incumprimento do ónus da prova consagrada no n.º 1 do art.º 799.º do C.C., e não há, no âmbito da responsabilidade em que nos movemos, qualquer disposição legal que imponha a obrigação de indemnizar independentemente da culpa do lesado.
Assim sendo, como é, fica excluído, pela via legal, o dever da Ré indemnizar os Apelantes quanto à parte peticionada correspondente ao contrato de concessão de incentivos financeiros que a Apelante sociedade comercial celebrou com o IEFP (alegadamente, € 22.485,11, sendo 17.902,11 da quantia que lhes foi exigida em sede de execução, 4.583 que da última tranche do valor atribuído).
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VIII.- Invocando terem vivido momentos de pânico, tristeza e séria preocupação decorrentes da resolução do referido contrato de concessão de incentivos financeiros, e pelo facto de estarem a ser executados, pedem os Apelantes E.. e M.. que a Ré os indemnize pelo pagamento da importância de € 7.000,00 para este e € 3.000,00 para aquele.
Sendo as sociedades comerciais pessoas jurídicas, e tendo o contrato de prestação de serviços sido celebrado entre a Apelante sociedade comercial e a Ré, a obrigação de indemnizar que ora se exige a esta tem a sua génese já não na responsabilidade contratual mas antes na extracontratual ou aquiliana.
Sendo, como se disse, coincidentes nos seus pressupostos, há diferenças em alguns aspectos essenciais.
Desde logo, e para o que ora interessa, cumpre ressaltar a diferença que existe no que tange à prova da culpa, já que em sede de responsabilidade extracontratual em princípio a culpa do lesante não se presume (salvo as presunções de culpa legalmente consagradas), e é o lesado que tem de provar a culpa do autor da lesão, como se dispõe no n.º 1 do art.º 487.º do C.C..
Os factos invocados integram o conceito de danos não patrimoniais, que, nos termos do art.º 496.º do C.C. devem ser atendidos na fixação da indemnização desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
A gravidade do dano deve ser medida à luz de um padrão objectivo e não à luz de factores subjectivos e, como ensina Antunes Varela, ela deve ser apreciada “em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado” (in “Das Obrigações Em Geral”, 10ª. edição, Almedina, pág. 606).
Estes danos, porque atingem bens imateriais não são susceptíveis de uma avaliação pecuniária, tendo vindo a entender-se que a indemnização há-de ser fixada numa quantia que permita ao lesado compensar psicologicamente as dores, os desgostos, etc. sofridos, seja pela aquisição de bens materiais, seja pela realização de algo que lhe traga satisfação e bem-estar.
O cálculo da indemnização obedece a um juízo de equidade que deve ter em atenção o grau de culpa do lesante e a situação económica dele e a do lesado, nos termos do disposto no artº. 494º., ex vi do nº. 3 do artº. 496º., do C.C..
Na situação sub judicio nada se provou quanto ao Apelante E.. pelo que o pedido que formulou ficou sem fundamento.
E no que se refere ao Apelante M.. ficou provado que desde que recebeu do IEFP a comunicação da decisão de resolução do contrato “tem vivido sob imensa tensão, stress e preocupação” e, porque “se candidatou ao contrato de incentivos financeiros pelo facto de não ter recursos para autonomamente enfrentar o desafio de ter o seu próprio negócio”, “tem vivido momentos de angústia, profunda tristeza e preocupação, decorrente da resolução do contrato do IEFP tendo recorrido a tratamento médico”, (cfr. supra n.os 27 a 29 da facticidade provada).
O stress, a preocupação e mesmo a angústia são fenómenos psicológicos normais de quem se vê na situação descrita, e o facto de se ter provado que o Apelante teve de recorrer ao tratamento médico, pela vaguidade deste facto, não é suficientemente esclarecedor no sentido de terem atingido níveis de gravidade tão elevados que os tornem merecedores da tutela do direito.
Sem embargo, e como acima já referimos, para que um facto ilícito gere a responsabilidade de indemnizar é exigido que o autor desse facto tenha agido com culpa, não sendo suficiente a prova de que ele agiu objectivamente mal.
Impõe-se provar que ele tenha agido com dolo, numa das suas variantes (directo, necessário ou eventual) ou com mera culpa (negligência consciente ou inconsciente).
E a prova da culpa cabe ao lesado.
É certo que se provou que a Ré não enviou à Apelante sociedade comercial, da qual este Apelante M.. é o representante legal, os elementos contabilísticos que lhe foram solicitados, mas este facto, em sede de prova, ocorreu em Março de 2009, e só em Maio do ano seguinte (2010) é que foi decidida a resolução do contrato. Assim, o longo tempo decorrido não deixa certeza suficiente para se concluir ter sido por causa dele que ocorreu a resolução.
Como resulta dos autos, o Apelante dispôs de tempo suficiente para tomar todas as providências para que se não viesse a verificar aquele resultado, da resolução do contrato com o IEFP.
Por outro lado, era o Apelante a única pessoa que dirigia os destinos da empresa cabendo-lhe só a si planear todas as acções relativas ao seu estabelecimento e ao desenvolvimento da actividade que se propôs, e gerir as despesas de molde a evitar percalços como aquele da falta de pagamento das contribuições à Segurança Social que, como se referiu já, constituiu fundamento bastante para a resolução do contrato.
Ora, e nos termos que vêm invocados, os danos resultaram directamente da resolução do contrato.
Nestes termos impõe-se concluir, como já acima se deixou referido, não se haverem provado factos suficientemente concludentes para se estabelecer um nexo de causalidade entre o facto (mora no cumprimento da solicitação feita em 05/03/2009) e o dano.
Não se verifica, assim, um dos pressupostos do dever de indemnizar, não havendo, assim, fundamento para impor à Ré o ressarcimento dos danos invocados.
De quanto vem de se expor resta concluir dever ser mantida a decisão de absolvição da Ré do(s) pedido(s) que contra si vinham formulados, destarte se recuando provimento ao recurso.
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C) DECISÃO
Considerando tudo quanto acima se deixa exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, mantendo, consequentemente, a decisão impugnada.
Custas pelos Apelantes.
Guimarães, 13/10/2014
Fernando Fernandes Freitas
Maria Purificação Carvalho
Espinheira Baltar