Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1645/04-1
Relator: ROSA TCHING
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO FISCAL
IRS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1º- De harmonia com o disposto no art. 111º do CIRS, o que releva para efeitos de identificação de quais os créditos de IRS que gozam do referido privilégio é o ano a que respeita o imposto e não a data em que se procede à sua liquidação e consequente inscrição para cobrança.

2º- O privilégio imobiliário de que goza a Fazenda Nacional para cobrança do IRS respeita tão somente aos três anos imediatamente anteriores àquele em que foi efectuada a penhora ou outro acto equivalente .
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


Nos autos de execução ordinária que "A" (Caixa...) move contra "B", "C" e "D" foram penhorados, em 24.09.2002, o imóvel descrito a fls. 55, pertencente a "C" e em 11.02.03 os bens móveis descritos no auto de penhora de fls. 92 e 93, pertencentes à "B".

Por apenso a esta mesma execução:

I- Veio, o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, reclamar os seguintes créditos:
A- Da responsabilidade da executada "B":
a) a importância de € 1.696,33 referente a IRC do ano de 2000, acrescida de juros de mora sobre a quantia de 1.542,12 e devidos desde 25.04.02;
b) a importância de € 9.319,54, referente a IVA do 2° trimestre de 2001, acrescida de juros de mora sobre aquela quantia e devidos desde 17.08.01;
c) a importância de € 13.873,10, referente a IVA do 3° trimestre de 2001, acrescida de juros de mora devidos desde 16.11.01;
d) a importância de € 6.298,30, referente a IVA do 4° trimestre de 2002, acrescida de juros de mora devidos desde 16.02.02;
e) a importância global de € 14.195,47, referente a IVA do 1° trimestre de 2002, acrescida de juros de mora devidos desde 16.05.02).

B- Da responsabilidade do executado "C":
f) a importância de € 575, 63 por taxa devida ao IROMA;
g) a importância de € 1.496,39, referente a IVA do ano de 1996, acrescida de juros de mora devidos desde 08.05.98.

C- Da responsabilidade dos executados "C" e "E":
h) a importância de € 5.519, 11, referente IRS do ano de 1998, acrescida de juros de mora sobre essa quantia e devidos desde Novembro de 1999;
i) a importância de 3. 642,42, relativa a IRS do ano de 1999, acrescida de juros de mora devidos desde Outubro de 2000.

II- Veio o Instituto de ..., reclamar os seguintes créditos:

A- Da responsabilidade do executado "C":
j) a importância de € 6.344,20, relativa a contribuições devidas ao reclamante, sendo € 4.149,95, a título de capital , e € 2.194,24, a título de juros.

B- Da responsabilidade da sociedade executada. "B":
l) a importância de € 77.482,50, relativa a contribuições devidas ao reclamante, sendo € 67.327,35, a título de capital, e € 10.155,13, a título de juros.
m) a importância de € 87.724,90, relativa a contribuições devidas ao reclamante, sendo € 75.188,37, a título de capital, e € 12.536,52, a título de juros.

Liminarmente admitidas as reclamações e cumprido o disposto no n.° 2, do art. 866°, do C. P. Civil, vieram a "A" e ""B"" impugnar os créditos reclamados pelo I.... por ter ocorrido duplicação do pedido com a apresentação da reclamação de 23.06.03.

O I. ... pediu que fosse dada sem efeito a dita reclamação, porquanto a mesma ficou a dever-se a mero lapso.

Foi proferida decisão que não reconheceu nem graduou os créditos reclamados pelo MºPº, em representação da Fazenda Nacional, e supra descritos sob as alíneas h) e i), graduando os créditos reconhecidos da seguinte forma:
“Pelo produto dos bens móveis penhorados:
1°- Os créditos reclamados pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional nas alíneas a), b), c), d) e e);
2°- Os créditos reclamados pelo Instituto ... nas alíneas j) e l);
3°- O crédito exequendo (na medida em que goza da garantia emergente da penhora)”.
B- “Pelo produto dos bens imóveis penhorados:
1° - O crédito exequendo (em virtude da hipoteca);
2° - Os créditos reclamados pelo Instituto ... nas alíneas j) e l).
As custas da execução saem precípuas do produto dos bens penhorados (art. 455º do CPC)”.

Não se conformando com esta decisão, na parte em que não reconheceu nem graduou os créditos supra descritos sob as alíneas h) e i), dela, atempadamente, apelou o Ministério Público, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1- Em 31/03/2003, o Ministério Público, em representação da Fazenda Nacional, procedeu à reclamação de créditos, referente ao processo de execução nº 317/2000, no qual é executado "C", entre outros.
2- Entre esses créditos encontravam-se os créditos identificados na douta sentença , a fls. 68, sob a alínea h), na quantia de € 5519,11, acrescida de juros de mora, inscrito para cobrança desde Novembro de 1999, e sob a alínea i), na quantia de €:3642,42, relativo a IRS do ano de 1999, acrescida de juros de mora, inscrito para cobrança desde Outubro de 2000.
3- Em 24/09/2002 foi penhorado, nos autos de execução apensos, n.°317/2002, um bem imóvel da propriedade de "C"- cfr. fls. 24 a 26 e 55,66 e 68.
4- O IRS é um imposto directo, que goza de privilégio imobiliário para garantia dos créditos inscritos para cobrança no ano corrente na data da penhora e nos 3 anos anteriores - art.° 111.° do CIRS.
5- Sendo a penhora de Setembro de 2002 e estando os créditos inscritos para cobrança em Novembro de 1999 e Outubro de 2000, os mesmos encontram-se dentro do referido limite temporal, ou seja, nos três anos anteriores à data da penhora do imóvel pelo que deveriam ter sido graduados.
6- A referida sentença violou o disposto nos art.°s 733.°, 734.°; 735.°., n,°3 736.°, n.°l, do Código Civil e 111.° do CIRS, e 868.°, n.°2 e 4, do Código de Processo Civil.

A final, pede seja revogada a decisão recorrida e a sua substituição por outra que gradue os referidos créditos reclamados no lugar que lhe competir.


Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:


FUNDAMENTAÇÃO:

Como é sabido, o âmbito do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente – art. 660º, n.º2, 684º, n.º3 e 690º, n.º1, todos do C. P. Civil - , só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas. Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respectivamente.

Assim, a única questão a decidir traduz-se em saber se os créditos de IRS, reclamados pelo MºPº, em representação da Fazenda Nacional, e supra identificados sob as alíneas h) e i), beneficiam, ou não, de privilégio imobiliário.

Considerou-se, na sentença recorrida, que os créditos provenientes de IRS gozam apenas de privilégio mobiliário geral, nos termos do disposto no art.736º, n.º1 do C. Civil.
Mas, se é verdade que o art. 744º do C. Civil, não contempla os créditos relativos ao imposto sobre o rendimento de pessoas singulares de entre aqueles que gozam de privilégio imobiliário, também não é menos verdade que os direitos de crédito garantidos por privilégio imobiliário não se resumem aos previstos no Código Civil.
É que, posteriormente à publicação do Código Civil, algumas leis avulsas vieram criar privilégios imobiliários gerais.
Foi precisamente o caso do CIRS.
Estipula o art. 111º Correspondente ao art. 104º, na redacção anterior à reforma da tributação do rendimento- lei n.º 30-G/2000, de 29/12. do CIRS DL n.º 198/2001, de 3 de Julho. que, “Para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente”.
Por conseguinte, como emerge claramente da lei, o privilégio imobiliário geral de que goza a Fazenda Nacional por créditos de IRS respeita tão só aos três anos imediatamente anteriores àquele em que foi efectuada a penhora ou outro acto equivalente.
A lei fiscal, para garantia do pagamento do IRS, referenciou a existência de privilégio imobiliário ao imposto relativo aos três últimos anos, excluindo da redacção do citado art. 111º, a fase de liquidação do imposto para além daquele período de três anos.
Assim, verificando-se que a penhora do imóvel imóvel descrito a fls. 55 dos autos principais e pertença do executado, "C" teve lugar em 24 de Setembro de 2002 e que o IRS devido pelos executados respeita aos anos de 1998 e de 1999, fácil é concluir que o crédito de IRS nascido em 1998 e reclamado pelo MºPº sob a alínea h) não beneficia do privilégio imobiliário previsto no citado art. 111º, não podendo, por isso, ser reconhecido e graduado, de harmonia com o disposto no art. 868º, n.º2 do C. P. Civil.
E nem se diga, como o faz o apelante, que estando tal crédito inscrito para cobrança no ano de 1999, encontra-se o mesmo dentro do limite temporal estabelecido pelo dito artigo (ou seja, nos três anos anteriores à data da penhora), pelo que deveria ter sido reconhecido e graduado.
É que, conforme se escreve no Acórdão do STJ, de 7.11.2000 In, CJ/STJ, ano VIII, tomo III, pág. 101., “O legislador na determinação do período de tempo que é abrangido por privilégio creditótio que garanta o pagamento de dívidas fiscais, usa, por vezes, como factor determinante, a data da inscrição para cobrança da respectiva obrigação fiscal. É o que acontece com o privilégio mobiliário geral e o privilégio imobiliário previstos, respectivamente, nos arts. 736º, n.º1 e 744º, n.º1, ambos do Cód. Civil. Ora, se o legislador quisesse que a determinação dos 3 últimos anos referidos naquele art.104º A que corresponde o actual art. 111º. do CIRS fosse balizada pela inscrição em cobrança do IRS, após a liquidação, tê-lo-ia dito expressamente. Ou então, teria feito uma remissão para os citados preceitos do Cód. Civil, ou outros no género. Mas tal não aconteceu”.
Assim, o que releva para efeitos de identificação de quais os créditos de IRS que gozam do referido privilégio é o ano a que respeita o imposto e não a data em que se procede à sua liquidação e consequente inscrição para cobrança.
Daí que, dos créditos em causa, só o reclamado sob a alínea i) e respeitante a IRS do ano de 1999, beneficia do privilégio creditório imobiliário previsto no citado art. 111º, devendo, por isso, ser reconhecido e graduado, nos termos do disposto no art. 868º, n.º2 do C. P. Civil..


E no que respeita à sua graduação, há que ter presente, por um lado, que o crédito da exequente mostra-se garantido por hipoteca.
E, por outro lado, que os créditos reclamados pelo Instituto ..., gozam também de privilégio imobiliário geral, nos termos do disposto no art. 11 de DL n.º 103/80, de 9 de Maio.
Segundo o disposto no art. 686°, n.° l, do C. Civil, a hipoteca dá ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas do devedor ou de terceiro, com preferência sobre os credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.
E, nos termos do art. 733º do C. Civil, o privilégio creditório é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência a outros.
Trata-se de uma garantia que visa assegurar o pagamento de dividas que, pela sua natureza, se encontram especialmente correlacionadas com determinados bens do devedor, justificando-se, por isso, que sejam pagas de preferência a quaisquer outras, até ao valor dos mesmos bens.
Resulta do art. 735°, n°s l e 2 do Código Civil Quer na redacção anterior à introduzida pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março, quer na redacção actual. que os privilégios creditórios podem ser de duas espécies: mobiliários ou imobiliários.
Os mobiliários são gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente.
São especiais, quando incluem só o valor de determinados bens móveis.
Já de harmonia com o disposto no n.º3 do mesmo os privilégios imobiliários previstos no Código Civil seriam sempre especiais O que, aliás, ficou expressamente consagrado na redacção dada a este artigo pelo DL n.º 38/2003..
E esta distinção assume particular relevância, quanto à eficácia dos privilégios creditórios em relação a terceiros.
A este respeito, ensina Almeida Costa In, “Direito das Obrigações”, 8ª ed. , pág. 897.que, sobre os privilégios mobiliários, os arts. 749° e 750° do C. Civil têm soluções diferentes consoante sejam gerais ou especiais.
Assim, tratando-se de privilégio geral, este não vale contra terceiros que sejam titulares de direitos oponíveis ao credor exequente, ou seja, que não possam abranger-se na penhora.
Mas, tratando-se de privilégio especial, como a garantia incide sobre determinados bens, o legislador adoptou o critério da prioridade da constituição.
Deste modo, os privilégios mobiliários gerais não conferem ao respectivo titular o direito de sequela sobre os bens em que recaiam (art. 749°), devendo, por isso, ser excluídos da categoria das verdadeiras garantias reais das obrigações.
Neles apenas existe algo de parecido com a eficácia própria dos direitos reais na medida em que o titular do privilégio goza de preferência, na execução, relativamente aos credores comuns do devedor.
Já no que toca aos privilégios imobiliários, determinava o art.751°, na redacção anterior ao Dl n.° 38/2003, de 8.3, que eles “são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção mesmo que estas garantias sejam anteriores”.
Todavia, mesmo na vigência deste regime, defendia o citado Professor, que a referida disciplina só abrangia os privilégios imobiliários especiais, pois que foram estes que o legislador do Código Civil teve em conta.
E que, aos casos de privilégios imobiliários gerais, seria sempre de aplicar o regime correspondente aos privilégios mobiliários estabelecido no art. 749°.
Por isso, também eles não seriam de qualificar como garantias reais das obrigações, constituindo, antes, meros direitos de prioridade que prevalecem, contra os credores comuns, na execução do património debitório Nesse sentido ver: Menezes Cordeiro, in. “ Direito das Obrigações”, 2° Vol., págs. 500 a 501 e A. Luís Gonçalves, in, “Privilégios Creditórios, Evolução Histórica, Regime e sua Inserção no Tráfico Creditício, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXVII, pág. 7.

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Aliás, foi esta a solução adoptada pelo citado Dl n.° 38/2003 , de 8.3, ao dar ao artº. 751 C. Civil a seguinte redacção. “Os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à (...) à hipoteca ou o direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores” .
Por tudo isto, impõe-se concluir que, estando o crédito do exequente garantido por hipoteca registada, goza o mesmo de prioridade, na graduação, sobre o crédito reclamado pelo MºPº sob a alínea i), que beneficia apenas de privilégio imobiliário geral conferido pelo art. 111º do CIRS, o qual, por sua vez, prefere aos créditos reclamados pelo Instituto ....

Daí procederem todas as conclusões do apelante.

CONCLUSÃO:
Do exposto pode extrair-se que:

1º- De harmonia com o disposto no art. 111º do CIRS, o que releva para efeitos de identificação de quais os créditos de IRS que gozam do referido privilégio é o ano a que respeita o imposto e não a data em que se procede à sua liquidação e consequente inscrição para cobrança.

2º- O privilégio imobiliário de que goza a Fazenda Nacional para cobrança do IRS respeita tão somente aos três anos imediatamente anteriores àquele em que foi efectuada a penhora ou outro acto equivalente .



DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente em revogar a sentença recorrida, na parte que não reconheceu o crédito reclamado pelo MºPº, em representação da Fazenda Nacional, e supra descrito sob a alínea i) e em alterar a mesma, no que respeita à graduação de créditos relativamente ao produto do bem imóvel penhorado, de modo a que o dito crédito, passe a anteceder os créditos reclamados pelo Instituto ....
Em tudo o mais, nomeadamente quanto ao não reconhecimento do crédito reclamado pelo MºPº sob a alínea h) e sua exclusão da graduação de créditos, mantêm-se a sentença recorrida ainda que com base em fundamento diverso do invocado pela Mmª Juíza a quo

Sem custas.



Guimarães,