Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
271/22.1GCVNF.G1
Relator: BRÁULIO MARTINS
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
CRIME DE COACÇÃO
VIOLÊNCIA
CORTE DE FORNECIMENTO DE LUZ E ÁGUA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- É de afastar a rejeição da instrução assente na sua «inadmissibilidade legal», se esta se cifra na opinião do juiz segundo a qual não há crime ou este não é imputável ao arguido. “É que haver ou não crime, ser ele ou não imputável ao arguido, para além de dizer respeito ao mérito da pretensão, pode muito bem ser o diferendo que se quer ver resolvido pelo juiz, na sequência de um mínimo de contraditoriedade que só se assegurará pelo debate instrutório, quanto mais não seja” (Souto Moura).
Assim a inadmissibilidade legal a que alude o artigo do CPP não pode ser invocada para fundar apreciações e decisões de mérito da pretensão instrutória, as quais devem ser proferidas em sede de despacho de pronúncia ou não pronúncia, após as diligências de prova entendidas como necessárias, apreciações e decisões aquelas que têm de ser sempre precedidas de um debate instrutório, oral e contraditório, que é obrigatório.
II- No crime de coacção a violência a que alude o artigo 154.º, n.º1 do Código Penal não deve ser interpretada no sentido de que apenas se refere à intervenção da força física sobre o sujeito passivo.
O vocábulo violência significa força física ou moral, que se emprega contra alguém ou contra o direito natural de outrem. A violência está associada ao poder, e reveste muitas formas, como é consabido, sendo que a moral não está necessariamente associada à força física em atuação.
III- Indiciariamente, os aludidos cortes de energia elétrica e de água tinham como desiderato convencer, compelir a locatária a pagar a renda que, segundo a locadora, estaria em dívida, algo que aquela, voluntariamente, não quer fazer, por entender que nada deve, ou, pelo menos, que não deve o que lhe exigem, ou até, eventualmente, convencê-la a abandonar o locado, algo que também não estava nos seus planos.
Trata-se de um ato próprio dolosamente determinado e destinado a constranger uma pessoa a fazer algo que não quer e entende não dever fazer, trata-se, no fundo, de, usando o poder que se tem, colocar alguém num estado de aflição para obter o que carecia de intervenção do poder jurisdicional – condenação no reclamado pagamento ou decretar o despejo.
IV- Indiciariamente, as rendas já foram pagas, pelo que estamos no campo da consumação e não já da tentativa; os cortes persistem, indiciariamente – será com vista ao despejo?
Ora, por aqui se vê, que não é absolutamente unívoca a posição de fundo exarada na decisão recorrida, pelo que sendo respeitante ao mérito, carece de ulterior indagação e discussão para ser devidamente decidida. Por isso deverá ser declarada aberta a instrução, caso não deva haver rejeição por outro motivo.
Decisão Texto Integral:
I RELATÓRIO

1
No processo n.º 271/22.1GCVNF.G1, do Juízo de Instrução Criminal ... – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi proferido despacho de rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, por inadmissibilidade legal.

2
Não se tendo conformado com a decisão, a assistente interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

I. O presente recurso tem como objecto o douto Despacho de rejeição do Requerimento de Abertura de Instrução por inadmissibilidade legal.
II. O meritíssimo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal “a quo” considerou, no seu despacho de rejeição, que “(…) os factos em causa e que veio alegar são exatamente os mesmos que levaram o MP a proferir despacho de arquivamento e que se prendem com um contrato de arrendamento que une os intervenientes processuais, e um corte de água e luz por vanda da senhoria/arguida, entendendo a assistente que, com esta conduta esta incorreu na prática de um crime de coação”.
III. Considerou ainda o Tribunal “a quo” que “no caso em análise, é manifesto que não se trata este caso de violência (intervenção de força física), e de igual modo também não se trata de uma qualquer ameaça de um mal futuro já que a arguida procedeu ao corte da luz após ameaças de que o ia fazer, isto é, o mal concretizou-se, não sendo assim prenúncio, pelo que, também por aqui não existe qualquer verificação da pratica do crime de coação”.
IV. O modo “peculiar" e “engenhoso" eleito pela arguida para obter o cumprimento de obrigações contratuais ameaça os pilares do Estado Direito Democrático, que tem o primado na lei e no recurso aos tribunais como forma de dirimir os litígios, não podendo os particulares substituir-se ao poder coactivo que só os tribunais detêm.
V. Na verdade, diz-nos Taipa de Carvalho (pág. 363): “sendo o meio ilícito, a coacção será, em geral, ilícita, mesmo que o fim seja legítimo. Exemplo: A, senhorio de B, que já há muitos meses não paga a respectiva renda, quer que este desocupe o imóvel, e, como tal objectivo, destrói parte do telhado. Ora, sendo embora legítima a pretensão do A, tal não impede que a sua conduta constitua crime de coação, uma vez que a lei prevê meios próprios (acção de despejo) para realizar tais pretensões”.
VI. De acordo com o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. n.º 549/07.4TAENT.C1 de 19.01.2011, decidiu que “o facto descrito na queixa, numa perspectiva naturalístico-normativa, pode ser restringido ou ampliado durante a investigação, desde que neste último caso se mantenha no âmbito da situação denunciada e de protecção do mesmo bem jurídico” –  publicado in www.dgsi.pt.
VII. No caso, os factos objecto da denúncia, dirigidos a pessoas em concreto, são apresentados e imputados de maneira tal que não se pode dizer sem mais que estamos perante um ilícito civil que terá haver com a regulamentação do contrato de arrendamento e com a sua execução, sendo uma situação de índole contratual e que portanto trata-se de matéria do foro exclusivamente civil.
VIII. Por forma alguma estamos pois perante uma situação de impossibilidade de se poder estar em face do cometimento de ilícito, antes sendo os factos relatados, para além de geradores de responsabilidade civil, também em abstracto passíveis de poder conlevar o cometimento de crime, devendo ser objecto de investigação mediante a prática dos actos necessários a apurar se de facto foi cometido.
IX. Sempre que haja notícia de um crime inicia-se o inquérito com objectivo de apurar se foi efectivamente praticado um crime, e qual o seu enquadramento jurídico, sendo o Ministério Publico o titular do inquérito, é este a quem compete efectuar o enquadramento jurídico e não o denunciante.

POR OUTRO LADO
X. O requerimento de abertura de instrução tinha como objectivo comprovar que o Ministério Publico andou mal ao classificar como crime de Burla os factos denunciados pela assistente.
XI. Nos termos do disposto no art. 286.º do Código de Processo Penal dispõe, no seu n.º 1, que: «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
XII. Em termos gerais, na fase processual da instrução (autónoma e de carácter facultativo) visa-se a comprovação judicial ou controlo jurisdicional das seguintes decisões:
i) da acusação do Ministério Público, a requerimento do arguido;
ii) da acusação do assistente, em procedimento por crime particular, a requerimento do arguido; e/ ou
iii) do despacho de arquivamento do Ministério Público, nos procedimentos por crime público ou semipúblico, a requerimento do assistente.
XIII. Preceitua o artigo 287º, nº 3 do Código de Processo Penal que o requerimento de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
XIV. No fundamento de rejeição “inadmissibilidade legal da instrução” cabem apenas as seguintes situações:
• Previsão do artigo 286º, nº 3, formas de processo especiais em que não é admissível instrução;
• requerimento de instrução por quem carece de legitimidade, a contrario do disposto no artigo 287º, nº 1;
• falta de cumprimento do disposto no artigo 287º, nº 2 que estipula as formalidades do requerimento de instrução consoante seja requerida pelo arguido ou pelo assistente.
XV. Ou seja, apenas razões de natureza formal e adjectiva se encontram legalmente previstas como fundamento para rejeição da instrução, já não questões de mérito do próprio requerimento que apenas podem justificar o indeferimento de diligências que hajam sido requeridas por não serem necessários à realização das finalidades da instrução (cfr. artigo 291º, nº 1).
XVI. Nas palavras de Souto de Moura -  In “Jornadas de Direito Processual Penal”, pág. 119, «O n.º 2 do art. 287.º, parece revelar a intenção do legislador de restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta directamente da finalidade assinalada à instrução pelo n.º 1 do art. 286.º: obter o controlo judicial da opção do MP. Ora, se a instrução surge na economia do Código com o carácter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvaziar-se-ia se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher ou valesse só para casos contados».
XVII. A par dos requisitos do artigo 287º do CPP em que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais mas deve conter em súmula as razões de facto e de direito de discordância relativamente a não acusação, a indicação dos actos de instrução que pretenda levar a cabo, os meios de prova não considerados, bem como a remissão para o artigo 283º, n.º 3, alíneas b) e c), do CPP.
XVIII. Na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, a Assistente requereu a abertura de Instrução, na qual narrou os factos criminalmente censuráveis, o contexto em que tais factos ocorreram e a intervenção directa da Arguida nos mesmos e, para tal, apresentou e requereu a correspondente produção de prova, cumprindo, assim, o disposto no n.º 2 do artigo 287º, do CPP.
XIX. O douto despacho do juiz a quo viola o estipulado no art. 287º.n.3CPP.
XX. Igualmente não respeita o direito à tutela jurisdicional efectiva consagrado no art. 20º CRP de que o direito à instrução em processo penal emana, porquanto fere tal direito.
XXI. Também desrespeita o ínsito no art. 32º CRP porque não assegura todas as garantias de defesa do arguido, limitando “contra legem” o exercício do direito à instrução em processo penal.
XXII. O Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal a quo, ao rejeitar liminarmente o Requerimento da Assistente para Abertura da Instrução, com fundamento em inadmissibilidade legal, violou o disposto nos artigos 277º, 286º, nº 1 e 287º, nº 3, do CPP.

Nestes termos e nos mais de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido substituindo-se por outro que decida de harmonia com as antecedentes conclusões, admitindo-se o requerimento apresentado pela Assistente e declarando-se aberta a Instrução, sendo assim feita uma correcta aplicação da lei e a mais elementar JUSTIÇA!

3
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer propondo a improcedência do recurso.

5
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, veio o recorrente responder.

6
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

II FUNDAMENTAÇÃO

1 Objeto do recurso:


Pode rejeitar-se, nos termos do artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura da instrução com base na afirmação de que os factos nele descritos não integram a prática de um crime?

2 Decisão recorrida:

Requerimento de abertura de instrução ref.ª ...93 apresentado pela assistente AA:
Notificada do despacho de arquivamento do MP proferido a fls. 96 quanto à arguida BB relativo a uma eventual prática de um crime de burla, veio a assistente, no requerimento supra identificado, requerer a abertura de instrução relativo aos mesmos factos, alegando contudo, estar em causa a prática de um crime de coação agravada, p. e p. pelo art.º 154º e 155º, n.º 1 al. a) do Cód. Penal.
Os factos em causa e que veio alegar são exatamente os mesmos que levaram o MP a proferir despacho de arquivamento e que se prendem com um contrato de arrendamento que une as intervenientes processuais, e um corte de água e luz por vanda da senhoria/arguida, entendendo a assistente que, com esta conduta esta incorreu na prática de um crime de coação.
Vejamos pois.
O art. 154.°, n.º 1, do Cód. Penal, na redacção vigente à data da prática dos factos, preceitua que «quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».

O art. 155.° do mesmo código prevê um tipo agravado de coacção, punindo o agente com pena de prisão entre 1 e 5 anos «1- Quando a coacção for realizada: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos (…)».
A coacção constitui o tipo fundamental dos crimes contra a liberdade de decisão e de acção, protegendo todas as possíveis e legítimas manifestações da liberdade pessoal, sendo que, o tipo objectivo de ilícito da coacção consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção ou suportar uma acção.
Os meios de coacção são a violência ou a ameaça com mal importante, traduzindo-se, assim, num crime de execução vinculada ou de processo típico.
A violência compreende, sem sombra de dúvidas, a intervenção da força física sobre o sujeito passivo, enquanto que a ameaça com mal importante é o prenúncio, a promessa de um mal futuro, mal este que tem que ser acentuadamente relevante em termos objectivos.
Trata-se de um crime doloso (cfr. art. 13° e 14.º do Código Penal), pressupondo assim o conhecimento dos elementos objectivos do tipo (elemento intelectual do dolo), a vontade de realização do facto (elemento volitivo) e a consciência da ilicitude da conduta (elemento emocional do dolo).
Voltando o que se acaba de expor para o caso em análise, é manifesto que não se trata este caso de violência (intervenção de força física), e de igual modo também não se trata de qualquer ameaça de um mal futuro já que a arguida procedeu ao corte da luz após ameaças de que o ia fazer, isto é, o mal concretizou-se, não sendo assim um prenúncio, pelo que, também por aqui não existe qualquer verificação da prática do crime de coação.
Ora, dispõe o n.º 3 do art.º 287º do CPP, prevê que o requerimento de abertura de instrução pode ser rejeitado por extemporâneo, incompetência ou inadmissibilidade legal da instrução.
Por conseguinte, e não estando em causa a prática do crime de coação tal como configurado no RAI da assistente, temos a presente instrução como legalmente inadmissível, pelo que se rejeita a sua abertura.
Pelo exposto, nos termos dos artigos 286º, n.º 1, 287º, n.º 3, “in fine”, todos do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, por inadmissibilidade legal da mesma, nos termos em que é requerida.
Notifique.

3 O direito.

Comecemos por indagar as normas jurídicas que estão diretamente em causa nos autos.

TÍTULO III
Da instrução
CAPÍTULO I
Disposições gerais

Artigo 286.º
Finalidade e âmbito da instrução
1 - A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
2 - A instrução tem carácter facultativo.
3 - Não há lugar a instrução nas formas de processo especiais

Artigo 287.º
Requerimento para abertura da instrução

1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas.
3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.
4 - No despacho de abertura de instrução o juiz nomeia defensor ao arguido que não tenha advogado constituído nem defensor nomeado.
5 - O despacho de abertura de instrução é notificado ao Ministério Público, ao assistente, ao arguido e ao seu defensor.
6 - É aplicável o disposto no n.º 14 do artigo 113.º

O regime processual penal anteriormente em vigor era o constante do Código de Processo Penal de 1929, o qual, pondo termo à vigência da Novíssima Reforma Judiciária e suas decorrências, marca um “ (…) retorno ao sistema inquisitório, na medida em que comete ao juiz de julgamento a competência para efetuar também  a instrução criminal,  (…) esta estrutura inquisitória foi limitada por um sistema acusatório formal, pois que se manteve ao ministério público a prerrogativa de formular a acusação.”  - cfr. José António Barreiros, Processo Penal I, Almedina, 1981, pag. 77 e segs.

Com as reformas de 1945/1954, a que deu seguimento a revisão constitucional de 1971 e legislação subsequente, o legislador “preocupou-se em subtrair ao juiz a competência que este anteriormente detinha para efetuar as diligências da instrução preparatória que, segundo o novo figurino, passaram a ser dirigidas pelo ministério público, salvo os casos em que esta entidade não fosse afastada em favor das Polícias Judiciária e P.I.D.E. (…) de facto, com este diploma de 1945, a instrução contraditória foi estruturada como um direito de defesa, de realização obrigatória nos processos de querela e articulável em qualquer caso com a instrução preparatória, ao contrário do que se passava na versão inicial do Código de Processo Penal de 1929.” – cfr. ob. cit., pag. 82 e 90. Note-se que a instrução contraditória (o equivalente à instrução atual), era obrigatória nos processos de querela – processos em que, como se sabe, eram julgados os crimes mais graves.

Paralelamente a estas medidas, outras foram sendo ensaiadas no sentido da jurisdicionalização da instrução criminal. (…) O objetivo reclamado pelos críticos mais acérrimos da atribuição da competência-regra instrutória ao ministério público era a adoção de um sistema em que a instrução fosse única e exclusivamente da competência de um juiz, que fosse impedido de intervir no julgamento do facto de cuja instrução se tivesse encarregado.” – ob. cit. pag. 91.

Recorde-se que, ao tempo, grosso modo, a instrução preparatória correspondia ao atual inquérito e a instrução contraditória correspondia à atual instrução.

A Constituição da república de 1976 veio estabelecer o seguinte:

Artigo 32.º
(Garantias de processo criminal)

(…)
4. Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
5. O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
(…).

Sabemos, contudo, que com a entrada em vigor do atual Código de Processo Penal (que ocorreu em data posterior à aprovação da CRP, note-se), foi estabelecida a fase do inquérito, dirigida pelo ministério público,  e a fase da instrução, que é facultativa, dirigida pelo juiz (de instrução), o que foi considerado conforme com a lei fundamental, designadamente por causa da alteração estatutária do assim configurado titular da ação penal, que passou a dispor de uma verdadeira e plena autonomia e a reger-se por critérios de legalidade e objetividade, bem como através da separação rigorosa, pessoal e funcional, entre juízes de instrução juízes de julgamento. Do mesmo passo, a utilização no Código de Processo Penal do vocábulo instrução pretendeu, sem dúvida, dar satisfação, pelo menos formal, ao ordenado pela Constituição; veja-se, na sequência dos consabidos e intrincados debates a este respeito, a título de mero exemplo, o esforço argumentativo do Prof. Figueiredo Dias para, a final, compaginar a existência do inquérito naqueles moldes com o comando constitucional e, com o mesmo fito, afirmar a salvaguarda de uma instrução para garantir, pelo menos, a possibilidade da intervenção jurisdicional da fase preparatória do processo penal: “ o sentido jurídico-processual do termo instrução não está inscrito em qualquer lei natural ou natureza das coisas que permita decidir logo a partir dela o que é e o que não é instrução, podendo ter o sentido que lhe é dado no CPP de esclarecimento de um facto possível em vista de ser ou não submetido a julgamento; o caráter facultativo da instrução adequa-se perfeitamente à natureza, que segundo a Constituição lhe cabe, de direito das pessoas e de garantia do processo penal ,”, - Para uma reforma global do processo penal português”, citado por Maria João Antunes, in Direito Processual Penal, Almedina, 4.ª Edição, pag. 128. Curiosamente, o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências, da Verbo, não lhe dá razão, nem do ponto de vista etimológico, nem do ponto de vista semântico, nem sequer do ponto de vista processual penal – cfr. pag. 2123. Mas isso serão outras Doutrinas.

No preâmbulo do Código de Processo Penal em vigor dizia-se:

7. O que fica dito permitirá uma mais fácil identificação e explicação dos contornos mais salientes da arquitectura do processo penal previsto no presente Código. Três notas complementares ajudarão a evidenciar outros tantos aspectos que imprimem cunho ao sistema delineado.

a) A primeira nota tem a ver com a estrutura básica do processo. Por apego deliberado a uma das conquistas mais marcantes do progresso civilizacional democrático, e por obediência ao mandamento constitucional, o Código perspectivou um processo de estrutura basicamente acusatória. Contudo - e sem a mínima transigência no que às autênticas exigências do acusatório respeita -, procurou temperar o empenho na maximização da acusatoriedade com um princípio de investigação oficial, válido tanto para efeito de acusação como de julgamento; o que representa, além do mais, uma sintonia com a nossa tradição jurídico-processual penal.

b) Em segundo lugar, o Código optou decididamente por converter o inquérito, realizado sob a titularidade e a direcção do Ministério Público, na fase geral e normal de preparar a decisão de acusação ou de não acusação. Por seu turno, a instrução, de carácter contraditório e dotada de uma fase de debate oral - o que implicou o abandono da distinção entre instrução preparatória e contraditória -, apenas terá lugar quando for requerida pelo arguido que pretenda invalidar a decisão de acusação, ou pelo assistente que deseje contrariar a decisão de não acusação. Tal opção filia-se na convicção de que só assim será possível ultrapassar um dos maiores e mais graves estrangulamentos da nossa actual praxis processual penal. E esteia-se, por outro lado, no facto de que todos os actos processuais que contendam directamente com os direitos fundamentais do arguido só devem poder ter lugar se autorizados pelo juiz de instrução e, nalguns casos, só por este podem ser realizados. Refira-se ainda que, como decorrência directa da opção de fundo acabada de mencionar, os órgãos de polícia criminal são, na fase de inquérito, colocados na dependência funcional do Ministério Público.

De salientar este excerto:

Tal opção filia-se na convicção de que só assim será possível ultrapassar um dos maiores e mais graves estrangulamentos da nossa actual praxis processual penal.

Já naquela altura o caráter opcional da instrução era justificado com a necessidade de ultrapassar um dos maiores e mais graves estrangulamentos da nossa actual praxis processual penal. Não eram, portanto, razões de fundo, ou de ordem conceitual ou resultante da aplicação de princípios que determinavam esta feição facultativa da fase da instrução; eram razões de ordem pragmática, de eficiência ou de eficácia, apostando-se assim na sua menor ocorrência por ter de ser requerida para ter lugar, e, simultaneamente, dizemos nós, dar cumprimento, pelo menos parcial ao comando constitucional de que toda  a instrução é da competência de um juiz . E parece que essas razões de eficiência e eficácia se têm estendido ultimamente ao progressivo alargamento das causas de rejeição dos requerimentos de abertura desta fase processual, não obstante o teor das normas legais acima citadas.

Ora, diz a lei que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Comprovar provém do latim comprobare “confirmar”, e significa demonstrar alguma coisa, apresentando provas, certificados … para o efeito, verificar ou demonstrar a veracidade de um facto a partir de evidências – cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, Vol I, pag. 895.

Segundo o dicionário Ilustrado da Língua Portuguesa, da Porto Editora, comprovar significa confirmar, provar.

Todavia, não podemos esquecer que, como adiante veremos novamente, quem pede a abertura da instrução está, simultaneamente, a contrariar a decisão com que terminou o inquérito, pelo que a pretensão do requerente será sempre a neutralização de uma acusação ou de um despacho de arquivamento, consoante os casos.

Assim, desde logo, a letra da lei inculca que a instrução tem por finalidade a verificação judicial do acerto da decisão final do inquérito, atentos os elementos disponíveis nos autos e/ou mediante o concurso de outros, entretanto fornecidos por quem pediu a abertura desta fase processual. Portanto, o pedido que é dirigido ao juiz de instrução é o de apreciar o que existe nos autos e/ou a estes é aportado e pronunciar-se sobre o seu acerto.

Assim, o que resulta da lei é que a finalidade da instrução corresponde a um direito das pessoas afetadas pela decisão do detentor da ação penal de pedir a um juiz que verifique, que demonstre, que confirme, que (ou se) a dita decisão está certa, pois a lei, à semelhança do que se passa em muitos outros países em que vigora o Estado de Direito, reconhece a essas pessoas o direito de verem tal decisão comprovada judicialmente antes de serem submetidas a julgamento ou de verem a sua pretensão punitiva definitivamente arquivada.

Na verdade, por muito que visões mais idealistas ou vanguardistas o queiram contrariar, a submissão a julgamento criminal constitui sempre, pelo menos entre nós, situação de vida profundamente perturbadora e socialmente vexatória, não faltando, muitas vezes, se não também sempre, os juízos sibilinos de crítica difusa ou de indisfarçada condescendência em caso de absolvição, realidade social que é bem conhecida do legislador, que, por isso, traçou a finalidade e regime da instrução nos termos referidos. Igualmente, porque, em virtude do princípio da oficialidade, previsto no art.º 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e no art.º 48.º do CPP,  o detentor da ação penal (com exceção dos crimes particulares) é o Ministério Público (ao contrário dos regimes em que vigora o processo de tipo acusatório, em que a acusação tem também ou pode ter origem popular nos delitos públicos e particular nos delitos privados – v.g. Grã-Bretanha e EUA), igualmente, a lei prevê a possibilidade de, pelo menos, algumas pessoas (assistentes) poderem fazer idêntico pedido a um juiz quando são confrontadas com a decisão de arquivamento da sua pretensão punitiva pelo referido detentor da ação penal.

Trata-se, portanto, de uma atividade que pressupõe um controlo da decisão proferida pelo detentor da ação penal, mas tão só da decisão e não da atuação daquele ao longo da investigação – cfr. Maria João Antunes, ob. cit., loc. cit., pag. 126.

E é esta atividade que é considerada, tal como acima se referiu, um “(…) direito das pessoas (…)” e uma “(…) garantia do processo penal (…)”, constitucionalmente assegurados, e, portanto, insuscetível de qualquer estreitamento, seja por razões de celeridade processual, seja por razões de interpretação lata de conceitos processuais, seja por quaisquer outras visões do tema.

Aliás, consta, por exemplo, da exposição de motivos da Lei n.º 59/98, de 25/08 (que procedeu à revisão do CPP), que “na estrutura do Código, a instrução constitui o momento processual próprio para submeter a decisão final do Ministério Público no inquérito a controlo judicial, ou seja, para apreciação da prova indiciária por um juiz.” – cfr. Projeto de Revisão do Código de Processo Penal, Boletim do Ministério da justiça, 1998, pag. 25. Tão-só isto: apreciação da prova indiciária por um juiz, ou seja, direito à não conformação com a decisão unilateral do detentor da ação penal, direito (garantia) à intervenção jurisdicional para comprovar tal decisão.

E é precisamente por isso, por se tratar de uma garantia, que a lei apenas permite a rejeição do requerimento de abertura da instrução por ser extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Souto de Moura, insigne magistrado do Ministério Público durante décadas, e, igualmente, insigne juíz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça na fase final da sua mui ilustre carreira, defendeu o seguinte:

“O n.º 2 do art.º 287.º parece revelar a intenção do legislador restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta diretamente da finalidade assinalada à instrução: obter o controle judicial da opção do M.º P.º. Ora, se a instrução surge na economia do código com caráter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvair-se-ia, se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher, ou valesse só para casos contados” – cfr. Souto de Moura, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal, Almedina, pag. 118 e segs., também referido pelo recorrente na sua motivação.

Mas, com muito mais interesse para a questão que aqui se aprecia, diz o referido autor logo a seguir na referida obra:

“Por isso é que não interessará de grande coisa, procurar o sentido da expressão «inadmissibilidade legal da instrução» em preceitos do direito anterior e concretamente referentes ao requerimento para abertura da instrução contraditória.
O artigo 31.º do DL 35007 falava em «acusação provisória para abertura da instrução contraditória». Trata-se de um regime em que a instrução contraditória podia ser rejeitada pelo juiz com qualquer fundamento, e só no caso em que a acusação provisória fosse subscrita pelo M.º P.º é que havia as limitações à rejeição que o artigo 31.º previa. Sempre será óbvio, porém, que aí o gravame sofrido com a rejeição da pretensão de instrução contraditória, não tem nada que ver com o que advenha no NCPP, da rejeição da instrução, encarada como garantia constitucional. Quanto ao artigo 329.º do Código de Processo Penal de 1929, preceito este ainda em vigor, como que se procurou esclarecer aí a controvérsia que aquele artigo 31.º levantara. Explicitamente se diz que como causa da denegação da instrução poderá estar, para além da «incompetência» e da «inadmissibilidade», a inexistência de crime, a extinção da ação penal ou elementos de facto que comprovem a irresponsabilidade do arguido. Serve para dizer que, já em face do artigo 329.º do Código vigente, a inadmissibilidade legal da instrução era um motivo de rejeição do requerimento que se não confundia com uma apreciação de mérito, ínsita nos motivos: inexistência de crime, extinção da ação penal ou prova da irresponsabilidade do arguido. No NCPP, por maioria de razão, será de afastar a rejeição da instrução assente na sua «inadmissibilidade legal», se esta se cifrasse na opinião do juiz segundo a qual não há crime ou este não é imputável ao arguido. É que haver ou não crime, ser ele ou não imputável ao arguido, para além de dizer respeito ao mérito da pretensão, pode muito bem ser o diferendo que se quer ver resolvido pelo juiz, na sequência de um mínimo de contraditoriedade que só se assegurará pelo debate instrutório, quanto mais não seja.”

Assim sendo, a inadmissibilidade legal não pode ser invocada para fundar apreciações e decisões de mérito da pretensão instrutória, as quais devem ser proferidas em sede de despacho de pronúncia ou não pronúncia, após as diligências de prova entendidas como necessárias, apreciações e decisões aquelas que têm de ser sempre precedidas de um debate instrutório, oral e contraditório, que é obrigatório.

Além disso, e embora não seja essa a questão que diretamente está em causa no recurso, sempre se poderá dizer que não é absolutamente incontornável que a matéria de facto em discussão nos autos não possa, em caso algum, constituir um crime.

O detentor da ação penal e o juiz de instrução entenderam que está em causa apenas uma questão cível.

Ora, o que resulta dos autos, indiciariamente, é que a denunciante celebrou um contrato de arrendamento com a denunciada que tem por objeto um imóvel para habitação, onde aquela passou a residir com o filho, contrato esse de cujos termos escritos nada resulta sobre fornecimento de energia elétrica nem de água, muito menos sobre cumprimento de obrigações fiscais, sendo certo que, em face de comunicação escrita da arguida aos autos, depois de para tal notificada, e de outros elementos recolhidos, conclui-se que a energia elétrica do locado vem de uma fábrica da denunciada (?), e que a água provém de um poço particular (?), propriedade ainda desta criativa locadora, certamente desconhecedora de muitas normas que regulam estas atividades. O conflito terá surgido com desinteligências relativas aos montantes do pagamento da energia elétrica, com o consequente incumprimento de pagamento da renda, ao que se respondeu com o corte de fornecimento de luz e água, este último através do arrancamento dos passadores de água que alimentavam a dita habitação, para, deste modo, convencer a denunciante a pagar a renda ou abandonar o locado.

A assistente entende que isto pode ser um crime de coação – repare-se que o Ministério Público, no parecer emitido, reconhece que o requerimento de abertura da instrução é uma autêntica acusação alternativa, respeitando integralmente o disposto nos artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, entendendo, todavia, também que os factos não constituem crime.

O tipo de crime em causa consta do artigo 154.º n.º 1, do Código Penal:

Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar uma atividade (…).

Foi entendido na decisão recorrida que a violência aqui prevista compreende, sem sombra de dúvidas, a intervenção da força física sobre o sujeito passivo, enquanto que a ameaça com mal importante é o prenúncio, a promessa de um mal futuro, mal este que tem que ser acentuadamente relevante em termos objectivos.

Nada a obstar em relação à ameaça.

Todavia, discordamos que a violência apenas possa ser interpretada no sentido de intervenção da força física sobre o sujeito passivo.
O vocábulo violência provém do latim, de violentia, que significa força física ou moral, que se emprega contra alguém ou contra o direito natural de outrem – Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, 3757.
A violência está associada ao poder, e reveste muitas formas, como é consabido, sendo que a moral não está necessariamente associada à força física em atuação.
A violência é tratada na filosofia e na sociologia como algo que radica também no campo psíquico e bole com a dignidade humana, para além da componente física, pessoal ou patrimonial, que nela coexistem.
A poesia dá-nos conta de várias categorias de violentos, como seja, por exemplo, Dante Alighieri, na monumental Divina Comédia, em que nos Cantos XII a XVI do Inferno vai acomodando vários violentos e seus castigos no Círculo Sétimo, desde os violentos (físicos) contra as pessoas, como Alexandre, o Grande, até aos violentos contra Deus, como os que blasfemam, e os violentos contra as coisas, ou seja, os dissipadores – cfr. a tradução de Vasco Graça Moura, Quetzal, pag. 107 e segs.

O Código Penal também usa o termo dissociado da componente física: a título exemplificativo, compreensível emoção violenta, na previsão do homicídio privilegiado (artigo 133.º); violência doméstica, que inclui maus tratos psíquicos, no artigo 152.º.

Repare-se até que o nosso Código Penal parece não dissentir daquela categorização dantesca, ao enunciar, por exemplo, no artigo 214.º, a propósito do crime de dano com violência que se os factos descritos nos artigos 212.º e 213.º forem praticados com violência contra uma pessoa, ao passo que na coação refere apenas por meio de violência (…) constranger outra pessoa, o que não parece ser despiciendo neste debate.

Ora, a denunciada é pessoa de indubitável poder nesta relação jurídica, que, como se viu, é revel em relação à maior parte das normas que a regulam e equilibram – não parece haver participação tributária, nem instalação autónoma de fornecimento de energia elétrica, e muito menos de água, que é de um poço cuja salubridade também é, por ora, ignorada.

Indiciariamente, os aludidos cortes de energia elétrica e de água tinham como desiderato convencer, compelir a locatária a pagar a renda que, segundo a locadora, estaria em dívida, algo que aquela, voluntariamente, não quer fazer, por entender que nada deve, ou, pelo menos, que não deve o que lhe exigem, ou até, eventualmente, convencê-la a abandonar o locado, algo que também não estava nos seus planos.

Não há dúvida que é uma estratégia viável, embora ilícita; alguém que fique privado em sua casa de eletricidade e água, tudo fará, certamente, para reverter a situação, ponderando até sair do local. Não se trata de um acidental incumprimento (avaria, descuido), nem de facto imputável a terceiro (Eletricidade..., Companhia das Águas). Trata-se de um ato próprio dolosamente determinado e destinado a constranger uma pessoa a fazer algo que não quer e entende não dever fazer, trata-se, no fundo, de, usando o poder que se tem, colocar alguém num estado de aflição para obter o que carecia de intervenção do poder jurisdicional – condenação no reclamado pagamento ou decretar o despejo. Todavia, o caráter, por assim dizer, idiossincrático desse contrato (e de milhares deles iguais, e que por aí pululam, como é consabido) é desmotivador de uma demanda judicial, por óbvios motivos, sendo mais cómodo o recurso a estas tão expeditas quão indignas táticas, a que os tribunais devem por cobro, porque, vistas assim, não são questões meramente cíveis. Note-se até que em termos cíveis a exceção de não cumprimento demanda a existência de sinalagma, sendo certo que não há qualquer sinalagma entre o fornecimento de eletricidade e água e o pagamento da renda, a qual é devida pelo proporcionar do gozo temporário do locado (artigos 428.º e 1022.º do Código Civil), sendo certo que, depois da entrega, já não é possível recusar cumprimentos com base em incumprimentos contrários, devendo o litígio ser resolvido pela autoridade competente, com as consequências previstas na lei.

Tenham-se presentes ainda os exemplos referidos por Taipa de Carvalho no Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, Tomo I, citados pelo recorrente, concluindo, “necessário é que o mal causado nas coisas seja adequado a afetar sensivelmente a liberdade de ação do coagido, de forma a constranger este a adotar o comportamento visado pelo agente.”, pag. 355.

Indiciariamente, as rendas já foram pagas, pelo que estamos no campo da consumação e não já da tentativa; os cortes persistem, indiciariamente – será com vista ao despejo?

Ora, por aqui se vê, e foi apenas essa a intenção deste breve excurso, que não é absolutamente unívoca a posição de fundo exarada na decisão recorrida, pelo que sendo respeitante ao mérito, carece de ulterior indagação e discussão para ser devidamente decidida.

III DISPOSITIVO

Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto por AA, e, em consequência, revogam a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra a declarar aberta a fase da instrução, caso não deva haver rejeição por outro motivo.

Sem tributação.

Os Juízes Desembargadores

Bráulio Martins
António Teixeira
Armando Azevedo