Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
19/21.8PFGMR.G1
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: CRIME DE CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE OU DE JUSTIFICAÇÃO
DIREITO DE NECESSIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – No direito de necessidade, enquanto causa de justificação excludente da ilicitude, prevista no nosso ordenamento jurídico nas disposições conjugadas dos arts. 31º, nº1 e nº2, al. b), e 34º, ambos do Código Penal, o perigo que ameaça o bem jurídico a salvaguardar será «atual» quando for iminente ou, não obstante não o seja ainda, o protelamento do facto salvador represente uma potenciação do perigo, e, outrossim, nos denominados “perigos duradouros”.
II – A exigência legal da “sensível superioridade” do interesse salvaguardado, contida na al. b) do art. 34º, pressupõe que a justificação apenas opere quando é indubitável a superioridade à luz dos fatores relevantes de ponderação.
III - Outro requisito legal é o da adequação ou idoneidade do meio utilizado para afastar o perigo (cf. corpo do art. 34º), pelo qual se afasta para este efeito a utilização pelo agente de um meio que, segundo a experiência comum e uma consideração objetiva, seja inidóneo, ineficaz para salvaguardar o interesse ameaçado. Sendo possível o recurso à força pública em tempo útil, não é admissível o direito de necessidade. Havendo vários meios disponíveis, é adequado o recurso ao meio menos lesivo para o terceiro, afastando-se o direito de necessidade se o agente recorrer a um meio excessivo (que não é o menos prejudicial) para realização do objetivo da salvaguarda do interesse ameaçado.
IV – No caso, ressuma da factualidade apurada que o arguido procedeu à condução do seu veículo na via pública, não obstante se encontrar embriagado, por se ter visto confrontado com uma situação que representava perigo iminente (atual) para a sua integridade física.
V – O interesse na salvaguarda do direito à integridade física do arguido apresenta-se no caso concreto como notoriamente superior ao interesse subjacente à proibição legal da condução em estado de embriaguez. Um primeiro argumento que sustenta tal conclusão é o da diferente gradação das molduras penais penalmente previstas para as condutas violadoras dos bens jurídicos em cotejo. Ademais, cumpre ter presente que apesar de os crimes contra a integridade física e contra a segurança rodoviária visarem comumente acautelar a lesão daquele bem jurídico, constitucionalmente consagrado enquanto direito da pessoa humana (cf. art. 25º/1 da CRP), naqueloutros pune-se o naturalístico e efetivo dano a esse bem, que, in casu, estava em vias de ocorrer, ao passo que na punição da condução em estado de embriaguez o legislador antecipa a tutela penal para uma fase prévia à da concreta causação do perigo, a da mera atividade, rotulando-a de perigosa e, como tal, potenciadora de causação de perigo, sendo certo que no caso vertente nada permite afirmar que a conduta do agente criou concreto perigo para os bens jurídicos protegidos (a vida, a integridade física e o património de outrem, designadamente os demais utentes da via pública). Releva ainda a circunstância de que, no caso, o arguido não apresentava uma taxa de álcool no sangue desmesurada (era mediana), e que a sua condução se limitou ao essencial, ao imprescindível para se colocar em segurança, como é corroborado pelo facto de, logo que se apercebeu da chegada de agentes policiais às imediações, ter dirigido o veículo para junto deles visando obter proteção dos mesmos.
VI – Mostra-se, pois, razoável, perfeitamente tolerável, a preterição dos interesses individuais/comunitários protegidos pela incriminação da condução de veículo em estado de embriaguez perante a necessidade de salvaguarda do interesse do arguido em manter incólume a sua integridade física, que se encontrava ameaçada.
VII - Por outro lado, o meio utilizado pelo arguido para afastar o perigo real e atual de lesão da integridade física que sobre si impendia revela-se, no circunstancialismo do caso, adequado, porquanto não lhe era exigível aguardar no interior da habitação da testemunha pela chegada ao local da polícia (entretanto chamada por outra testemunha), pois que essa circunstância, face à verificada hipótese de arrombamento da porta de entrada do imóvel por banda dos indivíduos que lhe queriam bater e a concomitante e compreensível ausência de perceção do arguido do tempo que os agentes policiais demorariam a chegar ao local, não garantiria de forma satisfatória e eficaz a sua segurança. Assim como não é viável concluir que a fuga a pé do arguido lhe permitiria escapar, em tempo útil, da ira agressora dos indivíduos em causa, nem esse facto decorre, sem mais, das regras da experiência, tanto mais que estes ainda o alcançaram e tentaram agredir, quando ele se encontrava já no interior do seu veículo automóvel.
VIII – Conclui-se, destarte, que o recorrente atuou ao abrigo do direito de necessidade, e, em conformidade, de uma causa legal de exclusão da ilicitude do facto (cf. arts. 31.º, n.º 2, al. b), e 34.º do Código Penal), pelo que se considera justificada a conduta atinente à condução de veículo em estado de embriaguez, impondo-se a sua absolvição.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo Abreviado nº 19/21.8T9MNC, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 3, por sentença proferida e depositada no dia 08.10.2021, foi decidido (referências 175395523 e 175407558, respetivamente):

Pelo exposto, julga-se a acusação procedente e consequentemente decide-se:
a) Condenar o arguido A. P., pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros cinquenta cêntimos).
b) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
c) Condenar o arguido no pagamento das custas processuais a que deu causa, fixando-se a taxa de justiça em 02 (duas) UC – artigos 513º e 514º do CPP e artigo 8º, nº 5, e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.”



▪ Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido A. P. interpor o presente recurso, que, após dedução da motivação, culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência 12187476):

“I. O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos.
II. Satisfazendo a exigência normativa do artº 412º nº 3 al. a) do CPP, impugna-se a decisão sobre a matéria de facto concretamente nos pontos 6 e 8, por incorretamente fixados e ainda o ponto 4 que deveria dar-se como não provado.
III. Porquanto, resulta necessariamente decisão diversa sobre os pontos de facto aqui postos em crise, atenta a prova produzida designadamente os depoimentos das testemunhas M. L. e M. C..
IV. Quanto ao facto 6º: Considera o recorrente que o tribunal à quo não atendeu na íntegra, neste ponto de facto, ao testemunho da M. L. gravado no sistema sob o ficheiro 20210909-154359-5938369-2870588, designadamente ao minuto “00:02:00 a 00:05:40, quando refere.
V. Entende-se ainda que, o tribunal à quo, igualmente desconsiderou, ainda que parcialmente, o depoimento da testemunha M. C. gravado no sistema sob o ficheiro 20210929-153105-5938369-2876588 ao minuto 00:03:50 a 00:06:56: “ele começou a correr e a fugir para dentro de casa (…) então eles começaram a bater á porta e queriam invadir a porta”
VI. Dos depoimentos destas duas testemunhas, que aliás corroboraram na íntegra as declarações do recorrente, resultou provado que os indivíduos de etnia cigana, não ficaram só a bater à porta do apartamento para onde fugiu o recorrente, mas também ameaçaram que arrombavam a porta e que partiam tudo.
VII. Pela descrição que resulta dos dois depoimentos, M. L. e M. C., tanto estes como o recorrente ficaram convencidos que os indivíduos de etnia cigana eram mesmo capazes de arrombar a porta para chegar ao recorrente, tal era a ansia de vingança, por este ser da etnia deles e desrespeitar uma das “leis” mais básicas dessa comunidade – O facto de ser proibido ouvir música cigana quando a comunidade está de luto. Neste ponto relevam ainda o depoimento da testemunha M. C. do minuto 00:03:00 a 00:04:15.
VIII. Ademais, como referem as duas testemunhas e o próprio recorrente nas suas declarações, e como resulta aliás do senso comum, um indivíduo dessa etnia nunca age sozinho, eles facilmente e rapidamente se organizam e, sendo caso de “fazer justiça”, com muita mais rapidez e motivação. Como referiu a testemunha M. C. minuto 00:04:25 a 00:04:50, quando há confusão rapidamente aparecem todos, convocam-se por uma espécie de código e rapidamente acorrem todos ao local.

IX. A decisão sobre este ponto de facto deveria ser a seguinte: Facto 6º - A dado momento o recorrente abandonou o referido apartamento para ir buscar um objecto ao veículo, que se encontrava estacionado junto ao prédio, altura em que foi abordado por diversas pessoas de etnia cigana, as quais manifestavam o seu descontentamento por o recorrente estar a ouvir música quando, estavam a passar por um período de luto, descontentamento que desembocou em agressão física sobre o recorrente, o qual logrou refugiar-se no apartamento do referido amigo, sendo que as referidas pessoas foram no seu encalço, tendo ficado a bater à porta do apartamento com violência, ameaçando e fazendo crer que iriam arrombar a porta
X. Não concorda ainda o recorrente com o fixado no ponto 8 da matéria de facto, pois também neste ponto, o tribunal desconsiderou o que ficou dito pela testemunha M. C., que esteve sempre com o recorrente e cujo depoimento não foi posto em causa. Refere esta testemunha ao minuto 00:05:00 a 00:05:13: “E ele fugiu pelo quintal, e ao fugir pelo quintal, viu que estavam a tentar partir o carro dele, eu chamo a polícia foi eu que chamei a PSP…” E ao minuto 00:05:40 a 00:06:15: “Metemo-nos no carro e então vimos a PSP nesse preciso momento, passado dois ou três minutos, que eu não conseguia sair dali do carro.. arrancamos …mas foi só ali muito curto, foi só ali na zona o largo, saímos dali com o carro porque eles estavam a tentar partir o carro, destruir o carro e então entramos e a PSP, nesse preciso a carrinha da PSP passou e eu foi quando lhe disse ele, foi eu que chamei a polícia vamos ali ter com a polícia.”
XI. Do depoimento desta testemunha, resulta: por um lado, que o recorrente apercebendo-se que lhe poderiam partir o carro, dirigiu-se para o mesmo e colocou-se no seu interior, assim como a testemunha M. C. e que o recorrente só pôs o carro em funcionamento e arrancou, porque os indivíduos estavam a bater no carro, fazendo-o temer pela sua integridade física, pois estavam armados com paus e ferros e facilmente partiam um vidro e o atingiam.
XII. O recorrente avistou a carrinha da PSP, tendo esse facto sido também decisivo para arrancar com o carro, de modo a ir ao seu encontro para se proteger.
XIII. De acordo com a prova enunciada o facto 8 deveria ter a seguinte redação: 8) O recorrente, receoso do que pudesse acontecer-lhe, designadamente na sua integridade física, decidiu abandonar o apartamento, o que fez, saltando da varanda, situada nas traseiras e, porque apercebeu-se que os indivíduos poderiam partir-lhe o carro, correu para o carro e fechou-se lá dentro juntamente com o M. C.. Quando os indivíduos o rodearam e começaram a bater no carro, munidos de paus e ferros, o recorrente avistou a carrinha da PSP, pôs a viatura em funcionamento e foi ao encontro da PSP para se proteger.
XIV. Aproveitando e reiterando todo o suporte impugnatório supra referido, designadamente as referências aos segmentos dos depoimentos a que se aludiu, com relação aos factos 6º e 8º, pelas mesmas razões, não se conforma o recorrente ter-se dado como provado o facto 4º da acusação quando deveria ter-se dado como não provado.
XV. Neste ponto e face ao supra exposto, só poderá retirar-se que o recorrente não agiu com liberdade e deliberadamente, antes agiu em defesa da sua integridade física, pois não tinha outra opção face à ameaça que sobre ele impendia. São relevantes neste ponto sobretudo o depoimento, da testemunha M. C. ao minuto 00:05:40 a 00:06:15, e ainda não menos importante as declarações do próprio agente da PSP, S. T., documentado sob o ficheiro 20210929152116-5938369-2870588, ao minuto 00:02:44 a 00:02:60 onde refere que os indivíduos ficaram muito agitados quando o Sr. A. P. apareceu e que a PSP teve que retirar o Sr. A. P. do local para serenar os ânimos dos indivíduos de etnia cigana e para proteger o recorrente.
XVI. Assim deveria o tribunal à quo dar o facto 4º como não provado.
XVII. Face à alteração da matéria de facto deveria o tribunal reconhecer a existência da causa da exclusão de ilicitude invocada em julgamento, por atuação do direito de necessidade, o estarem reunidos todos os requisitos da aplicação dessa norma do artº 35º nº 1 do C.P. pois o perigo era atual, eminente não restava outra alternativa ao recorrente, que não fosse fugir, no seu próprio carro, para proteger a sua integridade física ou quiçá a própria vida.
XVIII. O tribunal à quo não valorizou corretamente as circunstâncias em que o recorrente atuou. Pois que, contrariamente ao que foi entendido, deveria a conduta do recorrente ser considerada causa de exclusão da ilicitude da sua conduta
XIX. Pois na verdade, sabendo o tribunal, por ser até ser senso comum:- da forma de atuar dos indivíduos de etnia cigana, que agem em grupo e que por isso adquirem uma força difícil de combater, quantas vezes até pelas autoridades policiais; - sabendo que o recorrente estava acompanhado somente da testemunha M. C., logo numa relação de inferioridade;- sabendo que o perigo que o recorrente corria era, portanto, real, eminente e atual;- tendo-se apurado que o recorrente não tinha outro meio de se defender face às circunstâncias que não fosse fugir, como fugiu, e que uma vez dentro do carro e ao ser amaçado, não tinha outra forma de escapar ao perigo que não fosse encontrar proteção policial. - ponderando: O recorrente podia ter fugido apeado pelas imediações do prédio? Podia, mas mais facilmente era capturado pelos agressores, já que estava num bairro que não conhece, ocupado maioritariamente por esses indivíduos; Deveria o tribunal ter concluído: que embora o recorrente estivesse sob a influência de álcool agiu, como qualquer pessoa agiria na mesma situação, não sendo exigível outra conduta.
XX. Resulta assim, que estes critérios foram obliterados pelo tribunal ao não lhes dar a devida relevância, tendo assim o tribunal errado na interpretação e por conseguinte errado na subsunção dos factos ao direito sendo que no entender do recorrente estas circunstâncias devidamente ponderadas só poderiam ter um resultado – exclusão da ilicitude.
XXI. Face às circunstâncias apuradas a causa de exclusão da ilicitude e como tal deveria o recorrente ter sido absolvido do crime de condução em estado de embriaguez p. e p. pelo artº 292º nº 1 e 69º n 1 a) do Código Penal, por falta do elemento subjetivo do tipo de crime, que para que se verificasse, seria necessário que a conduta do recorrente fosse dolosa na vontade, fosse livre e consciente, que o recorrente tivesse agido deliberadamente. O que não foi de todo o caso.
XXII. Entende o Recorrente que, de acordo com os factos dados como provados, resultará, necessariamente, que o recorrente agiu a coberto de uma causa de justificação pelo que a sua conduta não podia ter sido considerada ilícita ao não ter entendido assim, violou o Tribunal a quo o disposto nos arts.31º, 32º, 35º nº 1, do C. Penal. Violou o tribunal à quo o disposto no artº 292º nº 1 e 69º nº 1 al. a) do Código Penal.
XXIII. Nestes termos e nos melhores de Direito, que os Venerandos Juízes Desembargadores doutamente suprirão, deve a sentença ora recorrida ser revogada, e, consequentemente, substituída por Acórdão que absolva o ora Recorrente, do crime de condução em estado de embriaguez, como da correspondente sanção acessória, em que foi condenado.
Por conseguinte, verifica-se que a douta sentença recorrida violou os preceitos legais enunciados nas antecedentes conclusões, pelo que a substituição da sentença recorrida por outra que faça bom uso daquelas normas e das demais, procedendo pela absolvição do recorrente, representará acto de BOA E SÃ JUSTIÇA”

▪ Na primeira instância, a Digna Magistrada do Ministério Público, notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou douta resposta em que, citando pertinente jurisprudência, pugna pela manutenção da sentença recorrida (referência 12368299).

▪ Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, aduzindo pertinente doutrina e jurisprudência, emitiu douto parecer, em que invocando pertinente doutrina, sustenta a procedência do recurso quer quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto quer relativamente à efetiva existência de causa de exclusão da ilicitude (direito de necessidade, nos termos conjugados dos arts. 31º, nº2, al. d), e 34, ambos do CP) (referência 7921775).
Cumprido o disposto no Artº 417º, nº 2, do C. P. Penal, o arguido não apresentou resposta.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*

II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (thema decidendum):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.) (1).

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa dilucidar no âmbito do presente recurso são:
A – Erro na apreciação da prova. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
B – Da invocada ocorrência de causa de exclusão da ilicitude (direito de necessidade/estado de necessidade desculpante).
*

III – APRECIAÇÃO:

III.1 – Atenta a sua pertinência para a decisão das questões a decidir no presente recurso, cumpre ter presente a decisão sobre a matéria de facto tomada pelo Tribunal a quo, bem como a respetiva motivação aduzida:
Factos que o Tribunal a quo deu como provados na sentença recorrida (transcrição):

Da acusação:
1) No dia - de Maio de 2021, pelas 18h20m, na Rua da …, em Guimarães, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula XH, sob a influência do álcool, em quantidades e percentagens ponderadas superiores às permitidas por lei.
2) Na sequência de uma operação de fiscalização da PSP, o arguido foi submetido a exame de pesquisa de álcool no sangue pelo método do ar expirado, através de aparelho “ACS”, tendo acusado uma TAS de 1,634 gr/l, correspondente à TAS 1,72 gr/l registada, deduzido o valor de erro máximo admissível.
3) O arguido quis conduzir aquele veículo, não obstante saber que não se encontrava em condições de o fazer, por estar sob efeito das bebidas alcoólicas que tinha ingerido em momento anterior ao da condução.
4) O arguido agiu livre e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se apurou:
5) Momentos antes das circunstâncias referidas em 1), o arguido tinha estado em convívio no apartamento de um amigo, onde comeram e ingeriram bebidas alcoólicas, para além de estarem a ouvir música.
6) A dado momento o arguido abandonou o referido apartamento para ir buscar um objecto ao veículo, que se encontrava estacionado junto ao prédio, altura em que foi abordado por diversas pessoas de etnia cigana, as quais manifestavam o seu descontentamento por o arguido estar a ouvir música quando, estavam a passar por um período de luto, descontentamento que desembocou em agressão física sobre o arguido, o qual logrou refugiar-se no apartamento do referido amigo, sendo que as referidas pessoas foram no seu encalço, tendo ficado a bater à porta do apartamento.
7) Nessa altura o amigo do arguido ligou à PSP a solicitar a sua presença.
8) O arguido, receoso do que pudesse acontecer-lhe, designadamente na sua integridade física, decidiu abandonar o apartamento, o que fez, saltando da varanda, situada nas traseiras e, com vista a abandonar o local, dirigiu-se para o seu veículo, colocando-o em funcionamento, passando a conduzi-lo na via pública, numa distância não concretamente apurada, sendo que, quando se apercebeu que a PSP já tinha acorrido ao local, dirigiu-se na direcção dos agentes policiais.
*
Da situação pessoal e económica do arguido:

9) O arguido vive sozinho em casa arrendada, sendo a renda mensal de € 25,00.
10) Aufere uma pensão, por incapacidade, no montante mensal de € 255,00.
11) Concluiu o 4º ano de escolaridade.”

▪ O Tribunal recorrido fundamentou a sobredita decisão nos seguintes termos (transcrição):

“O arguido confirmou as circunstâncias de tempo e lugar em que conduziu o veículo, admitindo saber que estava sob a influência de álcool aquando do acto de conduzir. Explicou as razões que o levaram a adoptar o comportamento descrito, nos precisos termos dados como provados, alegando não ter tido outra alternativa para evitar ser agredido ou mesmo morto.
S. T., agente da PSP, confirmou as circunstâncias de tempo e lugar em que o arguido foi surpreendido a conduzir, sendo que o mesmo apresentava exalava um cheiro a álcool, pelo que decidiram conduzir o arguido á Esquadra para submetê-lo ao teste de pesquisa de álcool no sangue, tendo vindo a dar resultado positivo. Confirmou que foram chamados ao local por causa de desacatos, tendo-se deparado com cerca de 10 pessoas, de etnia cigana, visivelmente revoltados com o arguido, que, entretanto, chegara ao local a conduzir o veículo. Confirmou que face à confusão instalada foi também essa uma das razões que determinaram a condução do arguido à esquadra, para, assim, serenar os ânimos.
M. C., amigo do arguido, corroborou, no essencial, as declarações do arguido, tendo descrito a confusão criadas pelos vizinhos, os quais se tornaram agressivos, ao ponto dele próprio ter que fugir do local.
Maria, mãe de M. C., detentora do apartamento em causa, corroborou, em parte as declarações do arguido, apesar de ter manifestado algumas reticências na descrição das razões que levaram ao descontentamento dos indivíduos em causa.
A TAS detectada resulta da análise do talão de fls. 13, a cujo resultado foi deduzido o erro máximo admissível (artigo 170º, nº 1, alínea b), do Código da Estrada, com a redacção introduzida pela Lei 72/2013, de 3/9 mas aplicável aos presentes autos – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, de 26-02-2014, publicado em www.dgsi.pt).
No que concerne ao aspecto subjectivo, ponderou-se o iter criminis do arguido, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que a ingestão de bebidas alcoólicas é acto pessoal e que o arguido não poderia deixar de saber que a condução na via pública sob o efeito de álcool é proibida. Acresce que, considerando a TAS detectada, parece-nos evidente que o arguido teve que ingerir uma quantidade significativa de bebidas alcoólicas, não podendo deixar de saber que tal ingestão iria determinar necessariamente uma TAS superior a 1,2 g/l.
O arguido esclareceu a sua situação pessoal e económica, nos precisos termos dados como provados.
A ausência de antecedentes criminais resulta do CRC junto aos autos.”



III.2 – Erro de julgamento da matéria de facto:

Neste segmento recursório, alega o arguido/recorrente, em súmula, que existiu erro de julgamento no que concerne aos pontos 6, 8 e 4 dos factos provados, sendo que os dois primeiros, face à prova produzida, reclamam distinta redação, e devendo o último ser dado como não provado.
Segundo o recorrente, impõem decisão diversa os depoimentos das testemunhas M. L., M. C. e o do agente da PSP, S. T., que corroboram as declarações do recorrente.
Assim, no ponto 6, deveria ter sido igualmente considerado provado que nas circunstâncias de tempo, modo e lugar ali referidos, os mencionados indivíduos de etnia cigana, para além de bater à porta do apartamento, fizeram-no com violência, ameaçando e fazendo crer que iriam arrombar a porta.

Relativamente ao ponto 8 dos factos provados o recorrente propõe a seguinte redação:
“O recorrente, receoso do que pudesse acontecer-lhe, designadamente na sua integridade física, decidiu abandonar o apartamento, o que fez, saltando da varanda, situada nas traseiras e, porque apercebeu-se que os indivíduos poderiam partir-lhe o carro, correu para o carro e fechou-se lá dentro juntamente com o M. C.. Quando os indivíduos o rodearam e começaram a bater no carro, munidos de paus e ferros, o recorrente avistou a carrinha da PSP, pôs a viatura em funcionamento e foi ao encontro da PSP para se proteger.”
Mais entende que o ponto 4, contrariamente ao que foi decidido, deve ser julgado não provado, pois que o arguido não agiu com liberdade e deliberadamente, antes agiu em defesa da sua integridade física, pois não tinha outra opção face à ameaça que sobre ele impendia. A sua conduta não foi dolosa, livre e consciente.

Apreciando.

Preceitua o art. 412º do CPP, na parte que ora releva:

“1 – A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
[…]
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
[…]
6 – No caso previsto no nº4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”

Como tem entendido sem disparidade o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP -, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer. (2)
Por outro lado, nessa tarefa de reapreciação da prova pelo tribunal de recurso intrometem-se necessariamente fatores como a ausência de imediação e da oralidade – sendo que, como é sobejamente sabido, a imediação e a oralidade constituem princípios estruturantes do direito processual penal português.

Em conformidade, a ausência de imediação e oralidade - dado que o “contacto” com as provas se circunscreve ao que consta das gravações - determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] (3).
Com efeito, quando está em causa a questão da apreciação da prova cumpre dar a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo. Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.
Ou seja, é comumente aceite que a (re)apreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso não implica a realização de um “segundo julgamento”, agora baseado na prova gravada, em que o tribunal ad quem aprecia toda a prova produzida e documentada em primeira instância, como se o julgamento ali realizado não existisse. Como se refere, de modo impressivo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/05/2015, processo 441/10.5TABJA.E2, acessível em www.dgsi.pt, «O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância. Os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.»
Concluindo: o artigo 412º, nº3, al. b) do CPP, ao exigir que o recorrente que impugne a decisão proferida sobre matéria de facto especifique as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, implica que o tribunal de recurso só pode (e deve) alterar aquela decisão se da análise que faz das provas documentadas indicadas pelo recorrente, em concatenação com as regras da experiência comum e da lógica, concluir que o juízo probatório levado a cabo pelo tribunal a quo é, à luz daqueles elementos, insustentável, indefensável (porque decidiu claramente sem prova ou em indiscutível contradição com as preditas regras), revelando-se por isso imperioso decidir de forma distinta.
Diferentemente, «se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a “tornam necessária” ou racionalmente “obrigatória”, então deve manter a decisão da primeira instância tal como está» - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1, acessível em www.dgsi.pt.

Volvendo ao caso concreto.
O arguido/recorrente indicou os concretos pontos da matéria de facto sobre os quais julga ter existido erro de julgamento, especificando os factos dados por provados nos pontos 6, 8 e 4.

Em conformidade com o disposto no art. 412º, nº6 do CPP, procedemos à audição integral das declarações do arguido A. P. e depoimentos prestados pelas testemunhas S. T., M. C. e M. L. em audiência de julgamento [gravações disponíveis no sistema informático citius – media studio].
Concatenando o teor das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas M. C. e M. L., cuja credibilidade em momento algum é colocada em causa pelo Tribunal a quo na motivação da decisão de facto aduzida na douta sentença recorrida, nem é definitivamente afastada pelas regras da experiência comum, da lógica ou científicas, cremos que assiste razão ao recorrente quando pugna pela inclusão na parte final do ponto 6 dos factos provados do segmento «[…] com violência, ameaçando e fazendo crer que iriam arrombar a porta».
Tal circunstancialismo fático ressuma adiantado em tais declarações e depoimentos – cfr. gravação das declarações do arguido, prestadas na sessão de 29/09/2021, a instâncias do Mmo. Juiz e da Exma. Magistrada do Ministério Público, 07:30 a 08:00 e 10:53 a 13:47, respetivamente; gravação do depoimento da testemunha M. C., prestado na sessão de 29/09/2021, a instâncias da Exma. Defensora Oficiosa, 03:50 a 06:56; gravação do depoimento da testemunha M. L., prestado na sessão de 29/09/2021, a instâncias da Exma. Defensora Oficiosa, 01:23 a 05:30.
Ademais, tal versão é plausível porquanto, como adiantado igualmente pelo arguido e pela testemunha M. C., quando eles se refugiaram no interior da habitação da mãe deste, após já terem sido agredidos no exterior do prédio pelos mencionados indivíduos, foram perseguidos por estes até à entrada do apartamento, sendo que se encontravam em grande número e alguns deles munidos com paus e ferros – cfr. gravação das declarações do arguido, prestadas na sessão de 29/09/2021, a instâncias do Mmo. Juiz, 02:50 a 04:20; gravação do depoimento da testemunha M. C., prestado na sessão de 29/09/2021, a instâncias da Exma. Defensora Oficiosa, 00:55 a 04:00.
Outrossim, é de acolher, ainda que restritivamente, o reparo que, em parte fundadamente, o recorrente deduz à matéria de facto constante do ponto 8 dos factos provados, que, assim, deve ser concretizada/ampliada.
Encontra-se provado no ponto 8 da decisão de facto: «O arguido, receoso do que pudesse acontecer-lhe, designadamente na sua integridade física, decidiu abandonar o apartamento, o que fez, saltando da varanda, situada nas traseiras e, com vista a abandonar o local, dirigiu-se para o seu veículo, colocando-o em funcionamento, passando a conduzi-lo na via pública, numa distância não concretamente apurada, sendo que, quando se apercebeu que a PSP já tinha acorrido ao local, dirigiu-se na direcção dos agentes policiais.»
Pretende o recorrente que se dê ainda como provado que só se dirigiu para o seu veículo automóvel, e se fechou no seu interior com o amigo/testemunha M. C., por se ter apercebido de que os indivíduos em causa lhe poderiam partir o carro; por outro lado, entende ter ficado provado que o arguido só colocou a viatura em funcionamento e iniciou a marcha por se encontrar entretanto rodeado de indivíduos que começaram a bater no veículo, munidos de paus e ferros, e por aquele ter avistado a carrinha da PSP, para a qual se dirigiu a fim de se proteger.
Todavia, tal versão só parcialmente encontra arrimo nas declarações prestadas pelo arguido, as quais, aliás, neste conspecto, foram quase na globalidade devidamente interpretadas e valoradas pelo Tribunal recorrido e acolhidas no ponto fático em apreço.
Com efeito, decorre das declarações prestadas pelo arguido que o seu objetivo quando abandonou a casa da testemunha M. L. era dirigir-se para o seu veículo automóvel, que se encontrava parqueado nas imediações, e, conduzindo-o, nele se afastar do local, para se eximir às por si tidas por iminentes agressões que sobre si seriam perpetradas pelos indivíduos que o agrediram e perseguiram até à entrada do apartamento. Também é certo ter sido afirmado pelo arguido que quando arrancou com o veículo já se tinham aproximado alguns daqueles indivíduos, que chegaram a bater no veículo, desferindo pontapés, e que mal se apercebeu da presença das autoridades policiais nas proximidades dirigiu o veículo para junto das mesmas - cfr. gravação das declarações do arguido, prestadas na sessão de 29/09/2021, a instâncias do Mmo. Juiz, 03:30 a 03:50, e a instâncias da Exma. Magistrada do Ministério Público, 11:25 a 11:35. Ou seja, distintamente do alegado pelo recorrente, não resulta das suas declarações que quando se dirigiu para o seu veículo só pretendia “esconder-se” no mesmo, tendo sido forçado a conduzi-lo devido à presença dos preditos indivíduos a rodear e bater na viatura e, bem assim, que só iniciou a marcha após ter visto a polícia.
Não se olvida que o depoimento da testemunha M. C. diverge quanto a este aspeto do declarado do arguido e aproxima-se do invocado pelo recorrente quanto à peticionada redação a conferir ao ponto 8 dos factos provados; com efeito, aquele referiu que quando fugiram pela varanda das traseiras da casa da mãe do depoente e atravessaram o quintal aí existente o arguido viu que que estavam a tentar partir o seu carro, pelo que foi meter-se no carro, sendo que passados 2/3 minutos viram a carrinha da PSP a passar e foram ao encontro da polícia; entretanto, vários indivíduos que tinham ido no seu encalço começaram a bater no carro, com pontapés, paus e ferros, pelo que tiveram mesmo que arrancar – cfr. gravação do depoimento da testemunha M. C., prestado na sessão de 29/09/2021, a instâncias da Exma. Defensora Oficiosa, 03:50 a 06:56 e 08:03 a 08:28.
Porém, julgamos que, nesta parte, acertada se mostra a desconsideração pelo Tribunal do depoimento de M. C., uma vez que o seu conteúdo, para além de contrariar o declarado pelo próprio arguido, se revela ilógico e nada conforme às regras de experiência comum. Na verdade, não é minimamente crível que o arguido, alegadamente em pânico, temendo pela sua integridade física ou mesmo pela sua vida, que só queria era fugir do local, vendo os potenciais agressores “a tentar partir o seu carro” fosse precisamente dirigir-se para junto daqueles, que se encontravam munidos com paus e ferros, tanto mais que não se vê como é que se limitando a entrar para o interior da viatura iria impedir aquelas pessoas de danificá-la e, igualmente, de agredi-lo corporalmente.
Relevante ainda o depoimento prestado pela testemunha S. T. (agente da PSP) que mencionou que quando a equipa de agentes policiais chegou ao local confrontou-se com a presença de um grupo de mais de 10 pessoas de etnia cigana, que se exaltaram quando o arguido regressou ao local a conduzir o seu veículo automóvel, sendo que o retiraram dali para assegurar a sua própria segurança física – cfr. gravação do depoimento da testemunha prestado na sessão de 29/09/2021, a instâncias da Exma. Magistrada do Ministério Público, 00:30 a 03:00, e a instâncias da Exma. Defensora Oficiosa, 04:48 a 08:28.
Destarte, tudo visto e ponderado, concluímos que o ponto 8 dos factos provados deve passar a conter a seguinte redação: «O arguido, receoso do que pudesse acontecer-lhe, designadamente na sua integridade física, decidiu abandonar o apartamento, o que fez, saltando da varanda, situada nas traseiras e, com vista a abandonar o local, dirigiu-se para o seu veículo, colocando-o em funcionamento, passando a conduzi-lo na via pública, sendo que quando iniciou a marcha vários indivíduos rodearam o veículo e nele desferiram pontapés. O arguido percorreu no veículo uma distância não concretamente apurada, sendo que, quando se apercebeu que a PSP já tinha acorrido ao local, dirigiu-se na direcção dos agentes policiais para obter proteção
Note-se que, salvo melhor opinião, a alteração da decisão sobre a matéria de facto a operar nos termos sobreditos não desrespeita o princípio da livre apreciação da prova, que é estruturante do direito processual penal português, encontrando-se vertido no art. 127º do Código Processo Penal, que preceitua: «Salvo quando a lei dispuser diferentemente a prova é apreciada segundo as regras da experiência e livre convicção da entidade competente.»
Tal princípio está intimamente conexionado com o princípio da descoberta da verdade material e contrapõe-se ao sistema probatório fundado nas provas tabelares ou tarifárias que estabelece um valor racionalizado a cada prova, porquanto por via da livre apreciação da prova concede-se ao julgador um âmbito de discricionariedade, ainda que limitada, na valoração de cada uma das provas atendíveis que estribam a decisão de facto.
Tal discricionariedade não é absoluta, antes balizada pelas regras da ciência, da lógica e da argumentação que devem nortear o decisor na apreciação da prova produzida. Por conseguinte, o juiz, na fundamentação da decisão de facto, deve justificar, fundamentando convenientemente, as suas próprias escolhas, ou seja, porque valorou cada prova de determinado modo (por exemplo, porque concedeu credibilidade ao depoimento de uma testemunha e negou credibilidade ao depoimento de outra testemunha). Compreende-se que assim seja, sob pena de a convicção do tribunal se tornar não sindicável, caindo no mero livre arbítrio, o que não se coaduna com um sistema de justiça próprio de um estado de direito democrático.
É por isso que José Mouraz Lopes, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, p. 78, entende que a «livre apreciação da prova» é, de alguma forma, um sofisma, na medida em que se deve falar é de uma livre apreciação racional e fundamentada da prova.
Nas palavras de José Tomé de Carvalho, in “Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão final penal no ordenamento jurídico português”, Revista Julgar, nº21, 2013, p. 84, «o livre convencimento não equivale assim a valoração livre, estando o processo deliberativo condicionado pelas regras de lógica, experiência, técnica e ciência, apesar de na reconstrução de determinado facto o juiz ser livre de crer (ou não) numa determinada fonte probatória, agora que o tempo das provas legais e tabelares se finou».
Assim também tem sido entendido, reiteradamente, pelo Tribunal Constitucional, num juízo de conformidade do disposto no art. 127º do CPP com a Constituição da República Portuguesa.
Como se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 1165/96, de 19.11.1996, in DR, Série II, de 06.02.1997 (reiterado pelo acórdão do mesmo Tribunal nº 464/97, de 01.07.1997, in DR, Série II, de 12.01.1998): «A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjetiva, emocional e, portanto, imotivável. Há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objetivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efetiva motivação da decisão».
Ainda o acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/02, proferido no âmbito do processo nº 528/02, onde se lê «…de acordo com o entendimento que tem vindo a ser professado por este tribunal, a valoração da prova segundo a livre convicção do julgador não significa uma apreciação contra a prova ou uma valoração que se desprendeu da legalidade dos meios de prova ou das regras gerais de produção da prova, ou seja, não é admissível uma valoração arbitrária da prova, sendo a convicção do julgador «objetivável e motivável», conjugando-se com dever de fundamentar os actos decisórios e de promover a sua aceitabilidade».

No caso sub judice, como vimos, o Tribunal recorrido não justificou na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto a razão de ter desconsiderado as declarações do arguido e das mencionadas testemunhas nas partes acimas descritas, sendo certo que pelo raciocínio ali expendido não as descredibilizou sem mais, antes acolhendo, no essencial, a origem e a dinâmica dos factos por aquelas pessoas relatadas; acresce, frisa-se, que as versões ora acolhidas não se mostram contrárias ou incompatíveis com o juízo probatório emitido pelo Tribunal a quo e revelam-se conformes às regras de experiência comum e da lógica.

Destarte, procedendo parcialmente, nos preditos termos, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto efetuada pelo recorrente, cumpre, nos termos conjugados dos arts. 412º, nº3 e 431º, al. b), modificar a decisão recorrida.

Em conformidade:
- Adiciona-se na parte final do ponto 6 dos factos provados o segmento «[…] com violência, ameaçando e fazendo crer que iriam arrombar a porta».
- O ponto 8 dos factos provados passa a conter a seguinte redação: «O arguido, receoso do que pudesse acontecer-lhe, designadamente na sua integridade física, decidiu abandonar o apartamento, o que fez, saltando da varanda, situada nas traseiras e, com vista a abandonar o local, dirigiu-se para o seu veículo, colocando-o em funcionamento, passando a conduzi-lo na via pública, sendo que quando iniciou a marcha vários indivíduos rodearam o veículo e nele desferiram pontapés. O arguido percorreu no veículo uma distância não concretamente apurada, sendo que, quando se apercebeu que a PSP já tinha acorrido ao local, dirigiu-se na direcção dos agentes policiais para obter proteção

No que tange ao petitório do recurso consubstanciado na exclusão dos factos provados da factualidade contida no ponto 4, que, no entendimento do recorrente, deve ser considerada não provada, remete-se a sua apreciação para o item subsequente do presente aresto, pois que a respetiva decisão está intrinsecamente conexionada com a que for proclamada quanto à alegada existência de direito de necessidade, enquanto causa de exclusão da ilicitude, ou de estado de necessidade desculpante, como causa de exculpação.


III.3 – Da alegada ocorrência de causa de exclusão da ilicitude (direito de necessidade) ou de exclusão da culpa (estado de necessidade desculpante):

Nesta vertente recursória, atinente à subsunção dos factos ao direito, o arguido/recorrente fundamenta a sua discordância face ao decidido em primeira instância do seguinte modo [conclusões XVII a XXII]:

- Face à alteração da matéria de facto deveria o tribunal reconhecer a existência da causa da exclusão de ilicitude invocada em julgamento, por atuação do direito de necessidade, o estarem reunidos todos os requisitos da aplicação dessa norma do artº 35º nº 1 do C.P. pois o perigo era atual, eminente não restava outra alternativa ao recorrente, que não fosse fugir, no seu próprio carro, para proteger a sua integridade física ou quiçá a própria vida;
- O tribunal a quo não valorizou corretamente as circunstâncias em que o recorrente atuou. Pois que, contrariamente ao que foi entendido, deveria a conduta do recorrente ser considerada causa de exclusão da ilicitude da sua conduta;
- Sabendo o tribunal, por ser até ser senso comum:- da forma de atuar dos indivíduos de etnia cigana, que agem em grupo e que por isso adquirem uma força difícil de combater, quantas vezes até pelas autoridades policiais; - sabendo que o recorrente estava acompanhado somente da testemunha M. C., logo numa relação de inferioridade;- sabendo que o perigo que o recorrente corria era, portanto, real, eminente e atual;- tendo-se apurado que o recorrente não tinha outro meio de se defender face às circunstâncias que não fosse fugir, como fugiu, e que uma vez dentro do carro e ao ser amaçado, não tinha outra forma de escapar ao perigo que não fosse encontrar proteção policial. Ponderando: O recorrente podia ter fugido apeado pelas imediações do prédio? Podia, mas mais facilmente era capturado pelos agressores, já que estava num bairro que não conhece, ocupado maioritariamente por esses indivíduos. Devia o tribunal ter concluído: que embora o recorrente estivesse sob a influência de álcool agiu, como qualquer pessoa agiria na mesma situação, não sendo exigível outra conduta;
- Estes critérios foram obliterados pelo tribunal ao não lhes dar a devida relevância, tendo assim o tribunal errado na interpretação e por conseguinte errado na subsunção dos factos ao direito sendo que no entender do recorrente estas circunstâncias devidamente ponderadas só poderiam ter um resultado – exclusão da ilicitude;
- Face às circunstâncias apuradas, verifica-se a causa de exclusão da ilicitude e como tal deveria o recorrente ter sido absolvido do crime de condução em estado de embriaguez p. e p. pelo artº 292º nº 1 e 69º n 1 a) do Código Penal, por falta do elemento subjetivo do tipo de crime, que para que se verificasse, seria necessário que a conduta do recorrente fosse dolosa na vontade, fosse livre e consciente, que o recorrente tivesse agido deliberadamente. O que não foi de todo o caso;
- Entende o Recorrente que, de acordo com os factos dados como provados, resultará, necessariamente, que o recorrente agiu a coberto de uma causa de justificação pelo que a sua conduta não podia ter sido considerada ilícita ao não ter entendido assim, violou o Tribunal a quo o disposto nos arts. 31º, 32º, 35º nº 1, do C. Penal. Violou o tribunal a quo o disposto no artº 292º nº 1 e 69º nº 1 al. a) do Código Penal.

Analisando.
Compulsadas as alegações recursórias, é patente que o recorrente denota uma certa confusão entre os conceitos de causa de exclusão da ilicitude ou de justificação, integrada pelo invocado “direito de necessidade”, que se encontra legalmente previsto no art. 34º do Código Penal, e o concomitante e reiteradamente alegado art. 35º, nº1, do mesmo diploma legal, que prevê antes uma causa de exclusão da culpa.
Ora, sabe-se que o Código Penal Português consagra, nos artigos 34º e 35º, a teoria diferenciada do estado de necessidade, consubstanciada na distinção entre o estado de necessidade objetivo (ou justificante) como meio adequado de defesa de um bem jurídico de maior valor do que o sacrificado, e o estado de necessidade subjetivo (ou desculpante) como meio adequado de salvaguarda de um bem jurídico de igual ou menor valor do que o postergado.
De todo o modo, atendendo a que o recorrente, não obstante a confusão conceptual, invoca ambas as vertentes do estado ou direito de necessidade, que o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no douto parecer lavrado nos autos, pugna pela verificação no caso do “direito de necessidade”, e, mormente, que este Tribunal ad quem não está vinculado ao enquadramento jurídico operado pelo recorrente, iremos estender a nossa apreciação à figura do estado de necessidade, regulado no art. 34º do CP.

Preceitua o art. 31º, nºs 1 e 2, al. b), do Código Penal:

“1 – O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.
2 – Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado:
[…]
b) No exercício de um direito.”

Por seu turno, prescreve o art. 34º do Código Penal:
“Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo atual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;
b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e
c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.”

O fundamento do direito de necessidade, enquanto causa de justificação excludente da ilicitude, é perfeitamente expresso por Jescheck/Weigend, in “Tratado de Direito Penal”, versão espanhola, 5ª Edição, p. 387: «o estado de necessidade repousa sobre o princípio da conservação do interesse ameaçado de maior valor, pelo que o pensamento da afirmação do Direito não desempenha nenhum papel (teoria da ponderação dos interesses). Daí que, a ser possível, o perigo deva ser evitado e a ponderação de interesses vem a constituir-se em fundamento decisivo da justificação.»
Perante o caráter amplo da previsão legal vigente no nosso ordenamento jurídico, conclui-se que os “interesses juridicamente protegidos” pelo estado de necessidade justificante são quaisquer bens jurídicos, penais ou não penais, individuais ou comunitários.
No que tange à caracterização do perigo que ameaça o bem jurídico, importa ter presentes as palavras do Prof. Jorge de Figueiredo Dias (in “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, p. 443) quando refere que «o bem jurídico a salvaguardar tem que se encontrar objetivamente em perigo, porque só então se pode justificar que um dever de suportar a ação típica recaia sobre o atingido pela intervenção, demais se ele não for implicado na situação inicial. No mesmo sentido corre, de resto, a exigência expressa no art. 34º de que se trate de um perigo atual».
E acrescenta: «o perigo deverá para este efeito considerar-se atual mesmo quando não é ainda iminente, mas o protelamento do facto salvador representaria uma potenciação do perigo, e também no caso dos chamados “perigos duradouros”». (4)

Quanto ao princípio do interesse preponderante, vertido na al. b) do preceito em análise, serão critérios indiciadores válidos - que não únicos e definitivos - para aferir do mesmo, os seguintes (cfr. A. cit., ob. cit., págs. 445 a 451):

- Medida legal da pena, quando os bens jurídicos em confronto se encontram jurídico-penalmente protegidos;
- Intensidade da lesão do bem jurídico, devendo aqui ponderar-se se está em causa o “aniquilamento” ou supressão completa do interesse ou somente a sua lesão parcial ou passageira. Este critério será tanto mais relevante quando os bens conflituantes se apresentem, em abstrato, da mesma ou semelhante hierarquia.
- O grau de perigo que é afastado ou criado com a ação de salvamento, nos casos em que a violação do bem jurídico não se mostra absolutamente segura.
Assim, se o agente atua visando evitar um dano que certamente se verificará se omitir tal ação, colocando só em pequena medida em perigo outro bem jurídico, prosseguirá, em regra, o interesse substancialmente preponderante.
- A autonomia pessoal do lesado, querendo significar, nas situações em que o bem jurídico ofendido seja de caráter iminentemente pessoal, que urge ponderar a razoabilidade de impor ao lesado a ação salvadora em cotejo com o seu direito de autodeterminação e de autorrealização.
- A “imponderabilidade” da vida de pessoa já nascida: cada vida vale o mesmo, não podendo ser ponderadas, como critérios justificantes, diferenciações qualitativas ou quantitativas.

A exigência legal da “sensível superioridade” do interesse salvaguardado, contida na al. b) do art. 34º, pressupõe não só ou não tanto que este último interesse se situe muito acima do interesse sacrificado, mas também ou essencialmente que a justificação apenas opere quando é clara e indubitável a superioridade à luz dos sobreditos fatores relevantes de ponderação.
Outro requisito legal é o da adequação ou idoneidade do meio utilizado para afastar o perigo (cf. corpo do art. 34º), pelo qual se afasta para este efeito a utilização pelo agente de um meio que, segundo a experiência comum e uma consideração objetiva, seja inidóneo para salvaguardar o interesse ameaçado.
Como assertivamente menciona Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit., anot. 16 ao art. 34º, p. 161), «O meio adequado para afastar o perigo é aquele que é objetivamente idóneo, numa perspetiva ex ante, de prognose póstuma, para salvaguardar o interesse jurídico ameaçado. Sendo possível o recurso à força pública, não é admissível o direito de necessidade. Havendo vários meios disponíveis, é adequado o recurso ao meio menos lesivo para o terceiro, pelo que não há direito de necessidade se o agente recorre a um meio excessivo (que não é o menos prejudicial) para realização do objetivo da salvaguarda do interesse ameaçado. De idêntico modo, não há direito de necessidade se o agente recorre a um meio inútil, isto é, ineficaz para a salvaguarda do interesse ameaçado.»
Por outro lado, qualquer pessoa, e não apenas o sujeito ameaçado, pode levar a cabo a conduta ofensiva do interesse de outrem tendente a afastar o perigo de lesão do interesse juridicamente protegido deste.
Os requisitos subjetivos do estado de necessidade justificante consubstanciam-se no conhecimento do agente da situação de conflito e na sua atuação consciente de salvaguarda do interesse preponderante (Figueiredo Dias, ob. cit., p. 459).
Neste mesmo sentido, expende a Prof. Teresa Pizarro Beleza, in “Direito Penal”, 2º Volume, aafdl, p. 301, que as causas de justificação, incluindo o estado de necessidade, têm como elemento subjetivo o conhecimento dos seus pressupostos de facto.

No caso vertente, temos para nós que, face à matéria de facto dada por provada em primeira instância, com as modificações supra realizadas por via da procedência parcial da impugnação da decisão sobre tal matéria, se mostra afastada a ilicitude do facto cometido pelo arguido/recorrente, com fundamento no direito de necessidade objetivo ou justificante, na medida em que se verificam os respetivos pressupostos.

Concordamos, pois, com o sustentado pelo Exmo. PGA no seu douto parecer, quando observa:
«No caso, com a alteração da matéria de facto apontada, resulta que, para além de a situação de perigo não ter sido voluntariamente criada pelo recorrente ─ tudo emergiu do facto de estar a ouvir música, no fundo a exercer um direito ─, o interesse na salvaguarda da sua integridade física ou mesmo da vida é manifestamente superior ao subjacente à proibição da condução em estado de embriaguez, face, desde logo, às respetivas molduras penais, sendo, ao mesmo tempo, razoável o sacrifício do interesse comunitário imanente à aludida proibição, em confronto com o interesse do recorrente na preservação da sua integridade física ou da vida; não se podendo desconsiderar que a condução teve um âmbito restrito e o grau de álcool que o recorrente apresentava não era desmesurado, isto para além das circunstâncias concretas, que refere o Mestre [Figueiredo Dias], denotarem que o recorrente, logo que se apercebeu de que poderia acolher-se na proteção policial, regressou ao local, circunscrevendo, pois, a parâmetros restritos, o exercício da condução em estado de embriaguez, tornando-o, pois, passageiro.
Realça ainda o Mestre [in «Direito Penal, Parte Geral», Tomo I, 3ª Edição, GESTLEGAL, pág. 523]: «De acordo com o disposto na al. b) do art. 34º só tem lugar a justificação por direito de necessidade se houver “sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado”. Aqui deparamos verdadeiramente com o cerne da figura em análise, com a lídima expressão do seu fundamento justificador: ela segue em primeira linha, o princípio do interesse preponderante. Por outras palavras, a lei exige que se pondere o valor dos interesses conflituantes, nomeadamente dos bens jurídicos em colisão e do grau do perigo que os ameaça, é dizer, dos decursos possíveis do acontecimento em função da violação (ou perigo de violação) dos bens jurídicos que lhe está ligada.»
No nosso caso, obviamente com a conformação fáctica preconizada, é sensato e justo concluir pela manifesta superioridade do interesse a salvaguardar.
Ora, a conduta do recorrente teve em vista afastar o perigo atual que ameaçava, com foros de expectativa do pior, a sua integridade física, sendo comunitariamente razoável tolerar o sacrifício emergente de uma contida e pouco extensa infração do tipo legal de perigo pelo qual foi punido o recorrente.
Para além disso, não parece ajustado onerar o recorrente com o pretenso dever de esperar pela chegada da força policial, de demora imprevisível, o que, em todo o caso, a ser aceitável, teria, inevitavelmente, tratamento em sede de erro não censurável ─ por inexigível cuidadosa comprovação ─ sobre os pressupostos da perfectibilização do direito de necessidade justificante, excludente da culpa dolosa. ─ art.º 16.º do Código Penal ─, mas, de todo o modo, insuscetível de acarretar a punição da conduta a título de negligência, como o art.º 292.º do Código Penal também prevê, dada a situação de patente conflito em que a ponderação e análise do dever de cuidado igualmente se esfumou.
Como salienta o Exmo. Prof. Doutor AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO: «é de recusar a exigência de um cuidado especial ou acrescido (relativamente ao “cuidado normal” exigido para as outras causas de justificação) do agente na averiguação ou comprovação dos pressupostos objetivos do direito de necessidade. O que interessa é que estes pressupostos se verifiquem na realidade e que o agente os conheça, represente.» [in «DIREITO PENAL PARTE GERAL QUESTÕES FUNDAMENTAIS TEORIA GERAL DO CRIME» 3.ª EDIÇÃO ─ UNIVERSIDADE CATÓLICA EDITORA PORTO, pág. 422, § 745.].»
Com efeito, ressuma da factualidade apurada (entretanto alterada) que o arguido procedeu à condução do seu veículo na via pública, não obstante se encontrar embriagado, por se ter visto confrontado com uma situação que representava perigo iminente (atual) para a sua integridade física, pois que já tinha sido agredido por um grupo de indivíduos (alguns deles munidos com paus e ferros), os quais, apesar da fuga do local empreendida pelo agredido, que se refugiou no interior da habitação da mãe do seu amigo M. C., perseguiram-no até à entrada desse apartamento e bateram furiosamente na porta, exigindo entrar sob pena de arrombarem a porta.
Foi no sobredito circunstancialismo que o arguido, fundadamente receoso pela sua integridade física, prestes a ser afetada, em grau mais ou menos grave, resolveu fugir do local, pretendendo afastar-se dali o mais breve possível, utilizando para o efeito o seu veículo automóvel que se encontrava parqueado nas imediações do prédio em questão; para tanto, saltou de uma varanda existente nas traseiras do imóvel e dirigiu-se para a dita viatura, a qual logrou colocar em funcionamento e iniciou a respetiva marcha, não que sem antes o carro fosse rodeado por indivíduos munidos de paus e ferros que haviam ido no seu encalço, e que desferiram pontapés no veículo.
Ora, ditam as regras de experiência comum que, no mencionado contexto, face ao comportamento exaltado e agressivo dos ditos indivíduos, que, frise-se, já tinham agredido o arguido e o perseguiam insistentemente, existia a séria e iminente possibilidade de aqueles lograrem arrombar a porta do apartamento onde o arguido se refugiou e cometerem sobre si novos atos de agressão corporal (de gravidade imprevisível), pelo que justificado foi o seu abandono da habitação. Ademais, a situação de perigo para a integridade física do arguido manteve-se até ao momento em que aquele iniciou a marcha do veículo e logrou abandonar o bairro onde tudo sucedeu, como é demonstrado pelo facto de os indivíduos em causa, em clara superioridade numérica e munidos com ferros e paus, terem ido no encalço do arguido até ao carro com o notório intuito de o agredir.
Por outro lado, a predita situação de perigo para integridade física do arguido não foi por este voluntariamente criada, já que a sequência de factos teve origem no desagrado manifestado por membros da comunidade de etnia cigana residente naquele prédio, em período de luto, pela circunstância de o arguido (também ele de etnia cigana) estar a ouvir música num dos apartamentos, ou seja, sem que nada de ilícito estivesse a fazer, o que tudo redundou, pronta e injustificadamente, em agressões físicas ao arguido e ao seu amigo M. C..
Acresce que o interesse na salvaguarda do direito à integridade física do arguido se apresenta no caso concreto como notoriamente superior ao interesse subjacente à proibição legal da condução em estado de embriaguez.
Um primeiro argumento que sustenta tal conclusão é o da diferente gradação das molduras penais penalmente previstas para as condutas violadoras dos bens jurídicos em cotejo: a ofensa à integridade física simples é punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa e a ofensa à integridade física grave é punível com pena de prisão de 2 a 10 anos [arts. 143º e 144º do CP, respetivamente], enquanto a condução de veículo em estado de embriaguez é punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias [art. 292º, nº1, do CP].
Ademais, cumpre ter presente que apesar de os crimes contra a integridade física e contra a segurança rodoviária visarem comumente acautelar a lesão daquele bem jurídico, constitucionalmente consagrado enquanto direito da pessoa humana (cf. art. 25º/1 da CRP), naqueloutros pune-se o naturalístico e efetivo dano a esse bem – tratam-se de crimes de dano e de resultado -, que, in casu, estava em vias de ocorrer, ao passo que na punição da condução em estado de embriaguez o legislador antecipa a tutela penal para uma fase prévia à da concreta causação do perigo, a da mera atividade, rotulando-a de perigosa e, como tal, potenciadora de causação de perigo – é um crime de perigo abstrato quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos protegidos e de mera atividade quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da acção, sendo certo que no caso vertente nada permite afirmar que a conduta do agente criou concreto perigo para os bens jurídicos protegidos (a vida, a integridade física e o património de outrem, designadamente os demais utentes da via pública).
E, como sagazmente observa o Exmo. PGA, não se pode descurar a circunstância de que, no caso, o arguido não apresentava uma taxa de álcool no sangue desmesurada (era mediana), e que a sua condução se limitou ao essencial, ao imprescindível para se colocar em segurança, como é corroborado pelo facto de, logo que se apercebeu da chegada de agentes policiais às imediações, ter dirigido o veículo para junto deles visando obter proteção dos mesmos.
Destarte, in casu, tomamos como razoável, perfeitamente tolerável, a preterição dos interesses individuais/comunitários protegidos pela incriminação da condução de veículo em estado de embriaguez perante a necessidade de salvaguarda do interesse do arguido em manter incólume a sua integridade física, que se encontrava ameaçada.
Por outro lado, entendemos que o meio utilizado pelo arguido para afastar o perigo real e atual de lesão da integridade física que sobre si impendia, isto é, a condução do veículo automóvel na via pública, apesar de se encontrar com uma T.A.S. de 1,634 g/l, revela-se, no circunstancialismo do caso, adequado.
Salvo o respeito que temos pelo entendimento vertido pelo Mmo. Juiz na sentença recorrida, julgamos que não era exigível ao arguido aguardar no interior da habitação da testemunha M. L. pela chegada ao local da polícia (entretanto chamada pela testemunha M. C.), pois que essa circunstância, face à verificada hipótese de arrombamento da porta de entrada do imóvel por banda dos indivíduos que lhe queriam bater e a concomitante e compreensível ausência de perceção do arguido do tempo que os agentes policiais demorariam a chegar ao local, não garantiria de forma satisfatória e eficaz a sua segurança.
E igualmente fica por demonstrar a veridicidade do outro argumento aduzido pelo Tribunal a quo para afastar juridicamente a verificação do “estado de necessidade” estribado este na alegada possibilidade de o arguido ter optado por fugir apeado da habitação da testemunha M. L. e do bairro em que se inseria em vez de ter conduzido o seu veículo automóvel. Com efeito, nada consta da factualidade dada por provada que permita concluir que a fuga a pé do arguido lhe permitiria escapar, em tempo útil, da ira agressora dos indivíduos em causa, nem esse facto decorre, sem mais, das regras da experiência, tanto mais que, como vimos, estes ainda o alcançaram e tentaram agredir, quando ele se encontrava já no interior do seu veículo automóvel.
Por último, face à factualidade provada, cumpre considerar que o arguido agiu ciente da verificada situação de conflito de interesses que se lhe apresentava no momento e que optou por conduzir o veículo em estado de embriaguez com consciência de que se tratava de um recurso para a afastar o perigo atual que impendia sobre a sua integridade física – cfr. factos provados sob os nºs 6 e 8.
Tudo visto e ponderado, urge concluir que o recorrente atuou ao abrigo do direito de necessidade, e, em conformidade, de uma causa legal de exclusão da ilicitude do facto (cf. arts. 31.º, n.º 2, al. b), e 34.º do Código Penal), pelo que se considera justificada a conduta atinente à condução em estado de embriaguez, impondo-se a sua absolvição.
Assim sendo, mostrando-se excluída a ilicitude, importa alterar em conformidade a decisão da matéria de facto operada em primeira instância, considerando agora como não provada a matéria de facto que constava como provada no ponto 4 («O arguido agiu livre e deliberada, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal») – cfr. art. 431º, al. b), do CPP.
Conclui-se, destarte, pela procedência do recurso interposto pelo arguido A. P., e, consequentemente, pela revogação da sentença condenatória, absolvendo-o agora da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º, nº1, e 69º, nº1, al. a), ambos do CP.
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IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido A. P., e consequentemente, revogando-se a sentença recorrida, absolvê-lo da prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292º, nº1, e 69º, nº1, al. a), ambos do CP.

Sem tributação (arts. 513º, nº1 e 514º, ambos do CPP, a contrario).
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Guimarães, 23 de maio de 2022,

Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura eletrónica]

Pedro Freitas Pinto (Adjunto)
[assinatura eletrónica]

Fernando Chaves
(Presidente da Secção Criminal)
[assinatura eletrónica]

(Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)



1. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
2. Cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 31/05/2007, proferido no Processo nº 07P1412 [relatado pelo Exmo. Conselheiro Simas Santos], e de 23/05/2007, proferido no Processo nº 07P1498 [relatado pelo Exmo. Conselheiro Henrique Gaspar], ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
3. Neste sentido, a título exemplificativo, vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2011, processo 288/09.1GBMTJ.L1-5, de 18/07/2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, de 21/05/2015, processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, e de 08/10/2015, processo 220/15.3PBAMD.L1-9; e do Tribunal da Relação de Évora de 19.05.2015, processo 441/10.5TABJA.E2, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
4. No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, UCE, 2008, anot. 5 ao art. 34º, p. 158, Cavaleiro de Ferreira, in “Lições de Direito Penal, Parte Geral, Volume I, A Lei Penal e a Teoria do Crime no Código Penal de 1982”, 4ª Edição, 1992, Editorial Verbo, p. 212, e Taipa de Carvalho, in “Direito Penal – Parte Geral”, Volume II, Teoria Geral do Crime, 2004, UCE, p. 232.