Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1131/15.PBGMR.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA
REBUS SIC STANTIBUS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) O perigo de continuação da actividade criminosa há-de aferir-se em função das circunstâncias referentes ao crime indiciado em concreto e dos elementos da personalidade do arguido.
II) Trata-se de ensaiar um juízo de prognose quanto ao comportamento futuro do arguido, conjugando elementos tão díspares como os sentimentos manifestados na prática dos factos indiciados, a preparação escolar, o relacionamento e estruturação familiar e afectiva, os meios económicos disponíveis, a existência e natureza de vínculos referentes à actividade profissional, os antecedentes por factos desta natureza.
III) No caso dos autos, mantém-se incólume o juízo de prognose em relação ao futuro comportamento da arguida, com base na gravidade dos factos indiciados, na moldura penal abstractamente aplicável, na forma concreta de actuação e nos sentimentos indiciariamente revelados na conduta.
IV) Neste quadro concreto, a obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica mantém-se como imprescindível para acautelar o concreto receio de prosseguimento da indiciada actividade criminosa e, por isso, que a decisão recorrida é de manter.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. No processo nº 1131/15.8PBGMR da 2ª Secção de Instrução Criminal da Instância Central de Guimarães da Comarca de Braga, a arguida Ana P. interpôs recurso do despacho judicial proferido em 5 de Fevereiro de 2016 que manteve a medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica.

O Ministério Público, representado pela Exmª procuradora-adjunta na Instância Central de Guimarães, apresentou resposta concluindo que deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.

Neste Tribunal, o Exm.º procurador-geral adjunto emitiu fundamentado parecer coincidente com a posição anteriormente expressa pelo Ministério Público, no sentido da improcedência do recurso.

A arguida formulou resposta ao parecer, renovando a posição enunciada nas motivações de recurso.

Recolhidos os vistos do juiz desembargador presidente da secção e do juiz desembargador adjunto e realizada a conferência na primeira data imediatamente disponível, cumpre apreciar e decidir.

2. O despacho judicial recorrido tem o seguinte teor (transcrição) :

“A arguida Ana P. encontra-se sujeita à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica desde o passado dia 7 de Novembro de 2015.
Em causa nos autos continua a estar a investigação da prática pela arguida de factos susceptíveis de configurarem um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 73.º, nº. 1, 22.º, 23.º e 131.º, todos do Código Penal, com pena de prisão de 1 ano e 6 meses a 10 anos e 7.
Importa agora, por força do disposto nos artigos 213.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, e 18.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 33/2010, de 02/09, proceder ao reexame dos pressupostos daquela medida de coacção.
Cumpre desde já sublinhar que as medidas de coacção são, na definição de Germano Marques da Silva, «(...) meios processuais de limitação da liberdade pessoal (...) dos arguidos (...) que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias». E em relação à sua alteração é comum referir-se que o artigo 212.º do Código de Processo Penal, traduz um afloramento do princípio de que as medidas de coacção estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, no sentido de que a primeira decisão é intocável e imodificável enquanto não sobrevierem motivos que legalmente justifiquem nova tomada de posição.
A decisão pela qual a medida de coacção em questão foi aplicada à arguida teve como fundamento a verificação em concreto do perigo de continuação da actividade criminosa.
Entendemos agora que, dos elementos constantes dos autos resulta que se mantêm inalterados os pressupostos de facto e de direito que presidiram à referida decisão, não havendo, portanto, qualquer fundamento para a sua substituição ou revogação.
Assim, não tendo existido, pelo menos para menos, qualquer alteração das circunstâncias que justificaram a definição da situação coactiva da arguida, não pode o tribunal alterar as medidas de coacção a que aquela se encontra sujeita.
Por outro lado, também não se mostra ultrapassado o limite temporal previsto no artigo 215.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código de Processo Penal.
Nestes termos, e com fundamento no supra exposto, decido manter a arguida Ana P. sujeita à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica.”

3. No seu recurso, a arguida extraiu das motivações as seguintes conclusões (transcrição):

I- A recorrente foi presente ao Tribunal da Comarca de Braga- Serviço de Turno, o qual em sede de primeiro interrogatório judicial, decretou a obrigação de permanência na habitação com recurso aos meios de controlo à distancia e proibição de contactos, enquanto suspeita pela pratica de um crime de homicídio na forma tentada,
II- A ora recorrente foi notificada a 03-02-2016 para se pronunciar sobre a posição do Digno Magistrado do Ministério Publico, que entende que os pressupostos de facto e de direito que determinam a aplicação da obrigação de permanência na habitação com recurso aos meios técnicos de controlo à distancia não se encontram de forma alguma alterados,
III- A ora arguida pronunciou-se requerendo a revogação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com recurso a meios técnicos de controlo à distancia sendo aplicada a media de coação de obrigação de apresentação periódica nos termos do artigo 198 do CPP,
IV- O Mmo. Juiz de Instrução criminal proferiu despacho a 05-02-2016, mantendo a obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica,
V- Não existe perigo de fuga uma vez que a arguida, prestou toda a colaboração necessária no processo,
VI- A arguida não tem antecedentes criminais,
VII- A arguida é pessoa pacifica, respeitada e humilde, encontrando-se inserida no meio onde vive,
VIII-A arguida atuou num determinado contexto, após ter sido agredida pelo ofendido na sua residência,
IX- A arguida manteve com o ofendido um relacionamento amoroso, existindo processos a correr nos quais a ora arguida foi agredida,
X- Atendendo ao crime em causa e perigos latentes é suficiente impor à arguida a obrigação de proibição de contactos pro qualquer meio, bem como a obrigação de apresentação periódicas no OPC
XI- O artigo 193 , nº 1 do CPP consagra que as medidas de coação devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
XII- A medida de coação aplicada viola o Principio da proporcionalidade,
XIII- Os perigos apontados pelo Mmo. JIC podem ser perfeitamente acautelados com as medidas propostas pela ora arguida,
XIV- A medida privativa da liberdade, sendo subsidiária não pode ser aplicada porquanto outras medidas de coação menos gravosas mostram-se suficientes e cumprem as necessidades cautelas sentidas no caso em apreço,
XV- O douto despacho recorrido fez incorreta apreciação dos factos e violou o artigo 32, nº 2, 27 e 28 da CRP e 204, 213 do CPP, pelo que deve ser revogado.

4. Impõe-se salientar que a arguida recorrente aguarda julgamento sob obrigação de permanência na habitação com recurso a meios técnicos de controlo à distância e sob proibição de contactos com a vítima desde o despacho proferido em 7 de Novembro de 2015, findo o primeiro interrogatório judicial e o recurso incide sobre despacho proferido posteriormente, na primeira apreciação trimestral da medida de coacção.

Como tem sido salientado, as medidas cautelares encontram-se sujeitas à condição rebus sic stantibus e podem ser modificadas desde que se verifique que foram decretadas fora das condições legais ou desde que ocorra uma posterior alteração das circunstâncias. Assim sendo, o despacho proferido em conformidade com o disposto no art.º 213º do C.P.P., como acontece com o despacho recorrido, destina-se unicamente a proceder à reapreciação dos pressupostos que justificaram a prisão preventiva anteriormente aplicada e a sua fundamentação se reporta exclusivamente a circunstâncias que possam levar à alteração dos pressupostos que fundamentaram a anterior decisão.

Deve por isso notar-se que embora, excepcionalmente, não vigore na sua plena dimensão o princípio do caso julgado formal, permanecem válidas as razões que desaconselham as decisões de sentido contrário perante situações de facto e de direito idênticas. Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03-02-2015 “Não existindo alterações relevantes ou significativas das circunstâncias que contribuíram para fixar a medida de prisão preventiva ao arguido, não pode o tribunal reformar tal decisão, sob pena de, fazendo-o, provocar a instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios, com inevitáveis reflexos negativos no prestígio dos tribunais e nos valores de certeza e segurança que constituem os verdadeiros fundamentos do caso julgado.” (Martins Simão, processo n.º 321/14.5GDLLE-A.E1 in www.dgsi.pt )

Assim, o despacho judicial que aplique a prisão preventiva não é definitivo, mas a decisão deve permanecer imutável enquanto “tudo se mantenha igual”, isto é, sempre que posteriormente não se verifiquem circunstâncias, quer de facto quer de direito, que justifiquem a revogação ou a alteração da medida de coacção.

5. A verificação de indícios ou de suspeitas fundadas da prática de um crime constitui desde logo requisito geral de aplicação de qualquer medida de coacção (maxime artigo 192º, nº 1 e nº 2, 193º nº 1, ambos do Código de Processo Penal). A lei adjectiva exige a formulação de um juízo indiciário qualificado ou mais exigente para a aplicação das medidas de coacção mais gravosas, ou seja as que com maior intensidade podem atingir o princípio constitucional da presunção de inocência (a proibição e imposição de condutas, a obrigação de permanência na habitação e a prisão preventiva).

No que interessa na presente fase processual, constituem fortes indícios do cometimento de um crime, os sinais, vestígios, ou provas disponíveis no processo que permitam formular um juízo segundo o qual será mais provável a futura condenação do arguido do que a absolvição ou o arquivamento do processo Como escreveu Germano Marques da Silva, com o que concordamos “A indiciação do crime necessária para aplicação de uma medida de coação ou de garantia patrimonial significa probatio levior isto é a convicção da existência dos pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais, mas em grau inferior à que é necessária para a condenação. Não se trata, porém, de mera presunção ou probabilidade insegura, que seria sempre directa função da maior ou menor exigência que pessoalmente o juiz pusesse nas suas presunções ou nos critérios de probabilidade, antes se impõe uma comprovação objectiva face aos elementos probatórios disponíveis. No momento da aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial (…) não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão só, face ao estado dos autos, a convicção de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime. Nos casos em que a lei exige fortes indícios a exigência é naturalmente maior; embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos de prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que absolvição” Curso de Processo Penal, II, Verbo, 1993, páginas 209 e 210..

No caso concreto e conforme se deixou expresso no despacho proferido findo o primeiro interrogatório judicial, os elementos recolhidos pela autoridade policial no local e descritos no auto de noticia constituem fortes indícios do cometimento pela arguida de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido nos artigos 22.º, 73.º n.º 1, 23.º e 131.º, todos do Código Penal. A recorrente alega vagamente que teria agido para suster a vítima, mas o número de golpes e a zona do corpo visada afastam, em principio, qualquer viabilidade de se considerar indiciada uma conduta meramente defendente da arguida.

O perigo de continuação da actividade criminosa há-de aferir-se em função das circunstâncias referentes ao crime indiciado em concreto e dos elementos da personalidade da arguida. Trata-se de ensaiar um juízo de prognose quanto ao comportamento futuro da arguida, conjugando elementos tão díspares como os sentimentos manifestados na prática dos factos indiciados, a preparação escolar, o relacionamento e estruturação familiar e afectiva, os meios económicos disponíveis, a existência e natureza de vínculos referentes à actividade profissional, os antecedentes por factos desta natureza.

Segundo se encontra indiciado, a arguida já anteriormente tinha adoptado um comportamento semelhante perante a vítima, utilizando uma faca de cozinha e a circunstância de lhe ter sido aplicada a obrigação de apresentações periódicas não foi suficiente para a desmotivar de cometer os factos aqui em investigação.

Assim, considerando que a arguida é portadora de personalidade psicopática, não beneficia de enquadramento familiar nem profissional, mantém-se um significativo receio de que a arguida venha uma vez mais a procurar atingir fisicamente a vítima.

Nestes termos, mantém-se incólume o juízo de prognose em relação ao futuro comportamento da arguida, com base na gravidade dos factos indiciados, na moldura penal abstractamente aplicável, na forma concreta de actuação e nos sentimentos indiciariamente revelados na conduta.

Neste quadro concreto, a obrigação de permanência na habitação com recurso a vigilância electrónica mantém-se como imprescindível para acautelar o concreto receio de prosseguimento da indiciada actividade criminosa, pelo que o recurso da arguida não merece provimento.

6. Em caso de decaimento ou improcedência total do recurso, há lugar ainda a condenação da arguida nas custas pela actividade processual a que deu causa (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro).

De acordo com o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, as custas incluem, além dos encargos, uma taxa de justiça, a fixar a final, entre três e seis UC.

Tendo em conta a menor complexidade do processo na presente fase, julga-se adequado fixar essa taxa em três UC.

7. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso da arguida e em manter a decisão recorrida.

Condena-se a arguida nas custas do recurso, com três UC de taxa de justiça, sem prejuízo da isenção de que beneficie.

Guimarães, 18 de Abril de 2016.

Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.