Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
335/12.OPBGMR.G1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: AMEAÇA
INTERESSE EM AGIR
ESTADO DE NECESSIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Quando se diz que o mal ameaçado tem de ser futuro, ou que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, tal significa simplesmente que não podem estar praticados quaisquer actos de execução do crime prometido, pois que, neste caso, estar-se-ia já diante de uma tentativa de execução do crime em causa (tentativa de homicídio, ofensa à integridade física grave ou dano, por exemplo).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

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I- Relatório

Fernando J. foi condenado pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153°, nº1 do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de € 6,00, num total de € 360,00.

Mais foi condenado em sede cível a pagar à demandante cível a quantia de € 850,00, acrescida de competentes juros, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

Inconformado recorre o mesmo, suscitando, em síntese, as seguintes questões:

- recurso da parte cível;

- nulidade da sentença;

- impugnação da matéria de facto (vícios previstos no art. 410º, nº2 CPP);

- enquadramento jurídico (ameaça de mal futuro e estado de necessidade);

- medida da pena.

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O Ministério Público junto do tribunal recorrido e a ofendida responderam ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência.

Nesta Relação, a Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no mesmo sentido.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

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II- Fundamentação

A) Factos provados

“1- No dia … de … de 2012, o arguido deslocou-se ao estabelecimento de ……, sito na Rua …, Guimarães, onde abordou Maria S. relativamente a uma situação que envolvia o filho menor de cinco anos da M…., colega de escolha de um filho menor do arguido;

2- Nesse circunstancialismo, o arguido exaltou-se e em voz alta e tom sério, ameaçador e intimidatório disse para a M…. “eu vou partir esta “merda” toda”, “faço justiça pelas próprias mãos” e “o seu filho está por sua minha conta, vou fazer uma espera”;

3- O arguido tinha conhecimento dos factos descritos, quis actuar da forma que o fez, bem sabendo que, agia com a intenção de amedrontar a ofendida, visando criar nesta a convicção e o medo de que poderia vir no futuro a estragar o recheio do seu estabelecimento comercial e a agredir o seu filho menor de idade, bem sabendo que, ao proferir aquelas palavras, no tom e foro de seriedade empregue, provocavam, como provocaram, medo e inquietação à ofendida, bem como prejudicavam, a sua liberdade de determinação;

4- Sabia ainda ser a apontada conduta proibida;

5- A conduta do arguido para com a demandante, acima referida, provocou nesta agitação emocional, nervosismo e stress, quer no momento dos factos quer posteriormente aos mesmos, tendo a mesma procurado um médico e tomado medicamentos para se acalmar;

6- Mercê da conduta do arguido a demandante sempre que leva o filho à escola sente receio de encontrar o arguido;

7- E está em sobressalto com os horários escolares do seu filho, quer quando o mesmo vai para a escola quer quando da mesma sai, a fim de evitar que o seu filho se cruze com o arguido;

8- No dia em que ocorreram os factos, e por causa dos mesmos, a demandante não conseguiu trabalhar dada a desorientação e desestabilização em que ficou;

9- Sofreu, ainda, a demandante mais humilhação uma vez que tais factos foram parcialmente presenciados pela sua funcionária e por uma cliente, à data no local;

10- Os factos em causa nos autos foram comentados por várias clientes da demandante o que lhe provocou humilhação e vergonha;

11- Por várias vezes antes dos factos, o filho do arguido queixou-se a este e à mulher deste, que vários meninos de escola que frequentava lhe batiam e ameaçavam-no;

12- Atendendo às insistentes queixas do seu filho menor, ao sofrimento que este lhe transmitia quando proferia tais queixas e ao estado de saúde da mulher do arguido, à data com uma gravidez de risco, o arguido deslocou-se à escola frequentada pelo seu filho a fim de expor, como expôs, a situação à professora do mesmo e resolvê-la, porém, o filho do arguido continuou com as aludidas queixas;

13- Na parte da manhã, do dia dos factos em causa nestes autos, o arguido voltou à referida escola para ali conversar, sobre tal situação, com o coordenador da escola o que não foi possível por este ali não se encontrar;

14- Porque um dos meninos de quem o filho do arguido se queixava era o filho da ofendida o arguido dirigiu-se, à data em causa em 1., ao referido … da mesma para ali conversar com esta sobre as queixas do seu filho;

15- Na parte da tarde do aludido dia e já após os factos em causa nos autos o arguido dirigiu-se, novamente, à aludida escola para ali tentar uma vez mais falar com o coordenador daquela, o que conseguiu fazer;

16- O arguido é …; a sua mulher está desempregada e aufere 900,00 euros/mês de subsídio de desemprego; têm três filhos, com 6, 3 e 1 anos de idade; residem em casa própria que adquiriram com um empréstimo bancário e por conta deste pagam uma prestação mensal de 350,00 euros; tem um carro, … que está a pagar em prestações mensais de cerca de 250,00 euros;

17- Após os factos em causa nos autos o arguido não mais falou com a ofendida mas cruzou-se com esta uma vez na escola frequentada pelos filhos de ambos;

18- O arguido esteve a trabalhar de ….;

19- O arguido não tem antecedentes criminais;

20- O arguido é considerado pelas pessoas que com o mesmo privam e que com o mesmo trabalha como sendo pessoa respeitada e respeitadora, trabalhadora, muito educado, altruísta e muito afectuoso para com as crianças com quem trabalha; um pai extremoso e empenhado na educação dos filhos;

21- No agrupamento escolar onde o arguido trabalhou, e antes dos factos em causa nestes autos, o mesmo fomentou a criação de um projecto ….”.

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B) Factos Não Provados

“a) que nas circunstâncias de tempo de local referidos no número 1 dos factos provados tivesse o arguido dito “as coisas não vão ficar assim”;

b) que mercê da conduta do arguido a demandante tivesse tido necessidade de se socorrer de várias consultas médicas;

c) que nas circunstâncias de tempo e local dos factos estivessem muitas clientes no estabelecimento de … da queixosa;

d) que mercê da conduta do arguido a ofendida teve grande incómodo ao deslocar-se por várias vezes ao órgão policial, ao escritório da sua mandatária e ao tribunal”.

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C) Motivação de Facto

“Determina o art. 374º, nº2, do Cód. Proc. Penal, além do mais, que a fundamentação da sentença contenha a enumeração dos factos provados e não provados que serão, como resulta do art. 368º, n.º 2, do mesmo Diploma, apenas os que sendo relevantes para a decisão estejam descritos na acusação, ou na pronúncia, tenham sido alegados na contestação, ou que resultem da discussão da causa.

Com efeito, atenta a uniformidade do entendimento que desde há muito o STJ tem vindo a adoptar sobre este ponto Cfr. por todos os acs. STJ de 3.4.91 e de 5.2.98, CJ, 1991, t 2, 19 e CJ t2, 245, respectivamente. aquela enumeração visa a exaustiva cognição do “thema probandum”, i. é, a demonstração de que o Tribunal analisou especificamente toda a matéria de prova que foi submetida à sua apreciação e que revista de interesse para a decisão da causa, pelo que a obrigação legal, de na sentença, se fazer a descrição dos factos provados e não provados, se refere tão somente “(...) aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação” Cfr. ac. STJ de 15.1.97, CJ, Ac. STJ, 1997, t 1, 181..

Posto isto, e tendo presente o que se deixou dito - o que releva nomeadamente face à aquisição de novos factos que não foram oportunamente alegados em qualquer peça processual mas resultaram da audiência de discussão e julgamento - sendo certo que não correspondem a qualquer alteração substancial ou não substancial dos factos - vejamos o percurso da motivação do Tribunal.

Aqui chegados, cumpre, ainda, referir que, como é consabido, em matéria de apreciação da prova, vigora o princípio de acordo com o qual o julgador formará livremente a sua convicção, objectivando-a racionalmente nos elementos produzidos ou analisados em audiência de julgamento e, com apoio, as mais das vezes, num raciocínio dedutivo ou indutivo, confrontando-a com as chamadas regras da experiência comum, entendidas como juízos hipotéticos assentes nas máximas da experimentação ordinária, independentes dos casos individuais em que se alicerçam e para lá dos quais mantêm validade - cfr. art. 127º do Cód. de Proc. Penal.

Orientados, assim, pelo que dito fica, analisemos criticamente as declarações e os depoimentos prestados em audiência de julgamento, tentando perceber a plausibilidade de cada uma das versões em confronto acerca daquele que terá sido o curso dos acontecimentos.

Principiemos por aquela que foi trazida pelo arguido.

De modo que se evidenciou sincero, espontâneo, isento e credível, o arguido relatou os factos como o tribunal os deu por assentes nos números 1, 11 a 18.

Mais disse, e de forma espontânea e credível, que quando se dirigiu ao cabeleireiro da queixosa teve por único objectivo falar com a mesma a propósito das queixas que o seu filho, constantemente e denotando aquando das mesmas tristeza naquele, lhe vinha fazendo de vários colegas da escola, entre eles o filho da queixosa.

Referiu que ali chegado no dito estabelecimento apenas estava a queixosa, mas que a dado momento da conversa que com a mesma encetou, e quando a queixosa elevou o tom de voz e, por isso, ele também elevou o tom de voz dele, apareceu uma funcionária, vinda de um espaço interior daquele estabelecimento e que esta última o mandou calar-se dizendo que estava com uma cliente naquele espaço.

Mais disse, o arguido, que se enervou, falou mais alto e disse que ele mesmo ia resolver o assunto (que ali o tinha levado) e saiu daquele estabelecimento.

Negou ter proferido as frases em causa no 2º parágrafo da acusação; mas admitiu ser possível ter dito, na ocasião alguns palavrões.

A queixosa referiu, de modo que se evidenciou, espontâneo, pormenorizado, sincero e credível, os factos que o tribunal deu por assentes nos números 1, 2, 5 a 10; sendo que o facto dado como assente no número 1 foi também relatado pelo arguido; e os factos dados como provados nos números 2, 5 a 10 foram corroborados pelos depoimentos das testemunhas …. e …, a primeira cliente do estabelecimento em causa e a segunda funcionária no dito estabelecimento.

Com efeito, as citadas testemunhas relataram, de modo isento e credível, que à data dos factos em apreço na acusação estavam, a primeira a ser atendida pela segunda, num gabinete existente naquele … e a dada altura ouviram uma voz masculina, num tom elevado, e por isso a C. saiu daquele gabinete, deixando a porta do mesmo aberta, e dirigiu-se ao local onde estavam a queixosa e o arguido.

Mais disse a testemunha C… que pediu à ofendida para esta pedir ao arguido para falar mais baixo e que, nesse momento, o arguido virou-se para a testemunha dizendo, aos berros, que ele falava como quisesse, para ela se meter lá dentro que não tinha nada que ver com a conversa que ele mantinha com a queixosa e, ainda, que nesse momento o arguido disse “eu parto esta merda toda” e que ia fazer justiça pelas próprias mãos e fazer uma espera ao filho da S..

Referiu, ainda, que face a tais frases pediu, a testemunha, à queixosa que ligasse para a polícia, mas como aquela estava desorientada, sem reacção e apática no momento devido aos factos, foi a própria testemunha que ligou para a polícia.

A testemunha A… também referiu ter ouvido o arguido a dizer que ia partir aquela merda.

Mais disse que entretanto a testemunha C… voltou a entrar no aludido gabinete, a chorar, muito nervosa e exaltada e que por isso e entretanto, a própria testemunha, foi embora e no espaço do … viu a ofendida nervosa, transtornada e a chorar e viu algumas pessoas, que ali trabalham perto a acederem ao local porque tinham ouvido o arguido a falar alto.

A testemunha C… relatou, de modo isento e credível, ser amiga da ofendida; mais disse ter tomado conhecimento dos factos em causa na acusação porque uma cliente dela lhos contou no seu trabalho, tendo, essa cliente sabido dos mesmos por outras clientes da demandante; e relatou, ainda, os danos morais sofridos pela demandante mercê da conduta do arguido e como vieram a ser dados como provados, tendo dos mesmos conhecimento em virtude da amizade que a una à ofendida.

A testemunha M., director da escola onde os filhos … andavam à data dos factos, relatou que a ofendida ali se dirigiu, muito nervosa e preocupada, relatando-lhe que o arguido tinha ido ao seu estabelecimento comercial ameaçá-la e insultá-la e que tinha receio que o mesmo pudesse falar com o seu filho na escola.

Mais disse que o arguido também falou com ele, relatando-lhe estar descontente por ter havido um episódio com o filho da ofendida e o filho dele onde aquele foi agressivo para com este.

Mais disse não saber se foi o arguido quem o procurou ou se foi a testemunha que procurou o arguido.

Referiu, ainda, ter contactado com a professora das crianças em questão e que esta lhe informou não se ter passado qualquer situação anormal, mais dizendo, a testemunha que é normal existir uma brincadeira entre as crianças que “roça” a violência!

A testemunha M…, num depoimento pautado por uma certa apatia e evasivo, referiu ter sido a …das aludidas crianças à data dos factos em questão nos autos; que nunca se apercebeu de qualquer conduta violenta e/ou agressiva por parte do filho da ofendida para com o filho do arguido.

Mais disse que o arguido era um pai que diariamente se deslocava à … para falar com ela e que se queixava que o filho da … e outras crianças tinham comportamentos agressivos para com o filho dele; que havia exagero na atitude de preocupação do arguido em relação ao filho; que “bastava alguma criança tocar no …” (filho do arguido); que “a criança não podia ser tocada”; que “o … era uma criança introvertida e o H… (filho da …) era uma criança mais extrovertida, brincalhão”.

Disse, ainda, que a demandante foi falar com ela sobre o sucedido no …, mas, disse, não sabe a razão pela qual a S… foi falar com ela e que a S… a ela não lhe disse ter medo do arguido.

Referiu que a testemunha anterior nunca lhe falou sobre os factos em apreço.

Relatou, ainda, que quando (a testemunha) saiu da escola em questão tentou esquecer tudo o que se passou – não especificando, porém, o quê em concreto!

As testemunhas M…, amigo do arguido, e A…, … e colega de trabalho do arguido, relataram, de modo isento e credível, os factos como o tribunal deu por assentes nos números 20 e 21.

Baseou-se, ainda, o tribunal no CRC do arguido junto aos autos.

No que respeita aos factos concernentes à situação pessoal, familiar e económica do arguido, teve-se em conta as declarações prestadas pelo mesmo a propósito e que se mostraram sinceras e credíveis.

A matéria de facto não provada resultou da ausência de produção de prova que corroborasse a mesma”.

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Apreciando

1- Recurso da parte cível

O presente recurso abrange a decisão proferida em sede cível.

Daí que importe apreciar, antes de mais, se é admissível recurso da condenação cível no presente caso.

Estabelece o art. 400º., nº.2 do CPP que “sem prejuízo do disposto nos artigos 427º e 432º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa alçada”, tratando-se, portanto, de dois requisitos cumulativos.

No caso dos autos, o pedido era de € 1.500,00, sendo o arguido condenado a pagar € 850,00 à demandante.

Ora, sendo a alçada dos tribunais de 1ª instância de € 5.000,00 (art. 5º. do DL 303/2007 de 24/8), resulta manifesto que nem o valor do pedido é superior à alçada do tribunal recorrido, nem a decisão impugnada é superior a metade da alçada do mesmo tribunal.

Por isso, nos termos do art. 400º., nº. 2 do CPP, é inadmissível o recurso dessa parcela da decisão final, relativa ao pedido cível.

E, tendo presente o disposto nos arts. 420º., nº.1, al. b) e 414º., nº.2 do CPP, a irrecorribilidade da decisão em matéria cível sempre constituirá motivo de rejeição do recurso nessa parte.

Termos em que se rejeita o presente recurso na vertente cível.

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2- Nulidade da sentença

Entende o recorrente que a sentença é nula por violação da alínea a) do artigo 379º do Código de Processo Penal.

Para o que ao caso interessa refere-se na al. a) em causa ser nula a sentença que não contiver as menções referidas no nº2 do art. 374º CPP.

Consta o seguinte, por seu turno, do art. 374º., nº.2 CPP: “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”

Como é sabido a norma do artigo 374º. do CPP corporiza exigência consagrada no artigo 205º., nº.1 da Constituição da República Portuguesa, ou seja, o dever de fundamentação das decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente.

As acrescidas exigências de fundamentação decorreram, entre o mais, da jurisprudência Tribunal Constitucional Vd. por ex., o Ac. TC nº. 55/85 publicado no BMJ 360 (Suplemento) pág. 195. no sentido de que a fundamentação das decisões jurisdicionais cumpre, em geral, duas funções:

a) Uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da decisão, permitindo às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente com o decidido;

b) Outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz "ad quem", que procura, acima de tudo, tomar possível o controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão - e que visa garantir, em última análise, a "transparência" do processo e da decisão.

Escreve Marques Ferreira Marques Ferreira in Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Livraria Almedina, 1988, págs. 228 a 230 quanto à fundamentação da decisão de facto, que este novo regime legal consagra “um sistema que obriga a uma correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objecto do processo, de modo a permitir um efectivo controle da sua motivação…”.

Mais acrescenta “a obrigatoriedade de tal motivação surge em absoluta oposição à prática judicial na vigência do CPP de 1929 e não poderá limitar-se a uma genérica remissão para os diversos meios de prova fundamentadores de convicção do tribunal, à semelhança do que tradicionalmente vem sucedendo com a interpretação e aplicação do estipulado sobre este assunto no art. 665°., nº.2, do CPC, embora em desacordo completo da doutrina e, a nosso ver, violando-se materialmente a ratio do art. 29º., nº.1 da CRP. De facto, o problema da motivação está intimamente conexionado com a concepção democrática ou antidemocrática que insufle o espírito de um determinado sistema processual, e no que concerne ao nosso processo penal vigente este informa, neste particular, de nítidas características medievais e ditatoriais. No futuro processo penal português, em consequência com os princípios informadores do Estado de Direito democrático e no respeito pelo efectivo direito de defesa consagrado no art. 32°., nº.1, e no art. 210°., nº.1 da CRP, exige-se não só a indicação das provas ou meios de prova que serviram para formar convicção do tribunal, mas, fundamentalmente, a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentaram a decisão. Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. (...) A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via do recurso, conforme impõe inequivocamente o art. 410°., nº.2. E, extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar, pelo conteúdo, um respeito efectivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes, uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais, mas a própria sociedade. Temperando-se o sistema de livre apreciação das provas com a possibilidade de controlo imposta pela obrigatoriedade de uma motivação racional da convicção formada evitar-se-ão situações extremas - e cremos que raras - em que se impute ao julgador a avaliação "caprichosa" ou "arbitrária" da prova e, sobretudo, justificar-se-á a confiança no julgador ao ser-lhe conferida plena liberdade de apreciação da prova, garantindo-se, simultaneamente, a credibilidade da Justiça”.

Tal linha orientadora de pensamento encontra eco e está traduzida, ao longo de toda a vigência do actual Código de Processo Penal, na jurisprudência dos tribunais superiores.

Assim por exemplo - entre muitos, e espaçados no tempo - no Ac. do STJ de 21-6-1989 (pr. 40023, 3ª. sec.), onde se escreveu que “a obrigatoriedade de indicação (...) das provas que serviram para formar a convicção do tribunal destina-se a garantir que na sentença se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo, portanto, uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova”.

No Ac. STJ de 29-6-1995 (in CJ, Acds. do STJ, III, tomo 2, pág. 254) refere-se que "a razão de ser da exigência da exposição, ainda que concisa, dos meios de prova, é não só permitir aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico e racional que subjaz à formação da convicção do julgador, como assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova; é necessário revelar o processo lógico e racional que conduziu à expressão da convicção".

Sendo certo, contudo, que “…a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível, devendo também não ser esquecido que o convencimento é de cada um dos juízes e jurados que constituem o colectivo ou júri (art. 365.º, n.º 3, do CPP)”, como se esclareceu no Ac. do STJ de 30-6-1999, pr. 285/99, 3ª. secção, disponível em www.dgsi.pt.

A motivação da decisão fáctica não exige uma exposição "épica" dos motivos de facto que fundamentam a decisão, mas sim a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ou seja das razões por que um meio de prova merece maior credibilidade do que outro.

No ensinamento de Damião da Cunha (in "O Caso Julgado Parcial", 2002, pág. 232), “…a motivação (fundamentação) da decisão não é ­- seguramente que o não será à luz do CPP - um qualquer documento narrativo de todas as operações mentais do juiz (do tribunal), mas sim a fundamentação de uma determinada opção decisória, com a indicação das razões probatórias que conduziram, no essencial, a formar a convicção do tribunal”.

Revertendo à sentença objecto do recurso resulta patente que na mesma o tribunal a quo fez o que lhe competia, indicando cabalmente a factologia apurada e a não apurada, expressando de forma clara quais os motivos porque certas provas lhe mereceram credibilidade e as conclusões retiradas das mesmas que permitiram que a convicção do tribunal se formasse em certo sentido, explicando-se com clareza, suficiência e congruência os motivos por que o Tribunal, com base na prova produzida decidiu condenar o recorrente nos precisos termos em que o fez, ainda que de maneira resumida e sintética, mas perfeitamente suficiente, indo ao encontro da concisão reclamada no próprio dispositivo.

E sendo o raciocínio do Tribunal perfeitamente perceptível, encontrando-se suficientemente explicitado, nada mais se lhe impunha acrescentar, sendo certo que o respeito pelo dever de fundamentação “não tem que preencher uma extensão épica, sem embargo de dever permitir ao seu destinatário directo e à mais vasta comunidade de cidadãos, que sobre o julgado exerce um controle indirecto, apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal decisão”. Cfr. Ac. STJ de 13-2-2008, pr. 07P4729, disponível em www.dgsi.pt/jstj

Mostrando-se cumprido o dever legal de fundamentação aqui em causa, improcede assim esta vertente do recurso.

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3- Impugnação da matéria de facto (erro notório)

Invoca o recorrente que terá sido mal julgada a matéria de facto, pretendendo que o tribunal de recurso sindique a forma como o tribunal de primeira instância apreciou a prova produzida em audiência mas, para tanto, haveria de ter dado adequado cumprimento ao disposto no art. 412º., nºs. 3 e 4 CPP, o que não se mostra correctamente efectuado.

É que ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.

Como várias vezes salientou o Prof. Germano Marques da Silva, presidente da Comissão para a Reforma do Código de Processo Penal:

- “… o recurso é um remédio para os erros, não um novo julgamento” (conferência parlamentar sobre a revisão do Código de Processo Penal, in Assembleia da República, Código de Processo Penal, vol. II, tomo II, Lisboa 1999, pág. 65);

- “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” (Forum Justitiae, Maio/99);

- “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001).

Da mesma forma, na jurisprudência pode ler-se, por exemplo, no Ac. do STJ de 24/10/2002, proferido no pr. 2124/02: “… o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412º, nº 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (nº 4 do art.º 412º do C.P.P.)”.

Ou no acórdão do STJ de 15-12-2005 (pr. 2.951/05, relatado pelo conselheiro Simas Santos), “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª Instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª Instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”.

Ou, finalmente, no recente Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012:

“… Pede -se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo…

O Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros…

Como se refere no acórdão de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08 -3.ª «O julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar» …”.

Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º., nº.1 do CPP).

Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria, dispondo o art. 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal:

«Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.»

Acrescentando o n.º 4 do mesmo artigo que:

“Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Impunha-se ao recorrente, em vista disso, para que do recurso pudesse retirar alguma utilidade que impugnasse devidamente a matéria de facto, cumprindo adequadamente o constante dos nºs 3 e 4 do art. 412º. CPP.

E é sabido que ao cumprimento de tal desiderato não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação mais ou menos genérica do que possam ter dito, repousando em considerações da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas (tal qual ocorre no presente caso), atacar a motivação do tribunal a quo ou a respectiva convicção (tal qual ocorre igualmente no presente caso), devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise (dizendo o recorrente, por exemplo, que pretende impugnar os pontos 7 e 8 dos factos provados ou as als. a) e c) dos não provados), indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4. Assim, por exemplo, o recorrente poderá indicar que o afirmado se reporta à passagem do depoimento da testemunha A que vai do minuto 3º. ao 6º. da gravação efectuada em CD pelo Tribunal.

Revertendo ao recurso em apreciação resulta manifesto que o recorrente assim não procedeu, já que ao indicar a totalidade dos factos 2 a 10 como mal julgados, em suma a totalidade dos que lhe são desfavoráveis, se limita, ao fim e ao cabo a propor a este Tribunal de recurso que efectue praticamente um novo julgamento integral.

Ou seja, o recorrente, por um lado, não entendeu que o recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico para deficiências factuais circunscritas, violando o entendimento uniforme que doutrina e jurisprudência retiram dos dispositivos legais aplicáveis, tal qual explanámos acima. E, por outro, não cumpriu o ónus de impugnação especificada que sobre si recaía nesta sede já que tão pouco indicou, de forma objectiva e detalhada, em relação a cada um de tais pontos, a prova ou provas que impõem decisão diversa da recorrida, seleccionando as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação em relação a cada um dos ditos pontos questionados, nem tão pouco tornando explícito por que razão tais provas "impõem" essa mesma decisão diversa (e não simplesmente a possibilitam), violando por tal forma a adequada interpretação que deve ser retirada dos preceitos conjugados das als. a) e b) do nº.3 e do nº.4 do art. 412º. CPP, sendo patente tal omissão não só nas conclusões do recurso mas igualmente na respectiva motivação.

Ao fim e ao cabo, o recorrente limita-se a fazer a sua própria análise crítica da prova para concluir que o essencial dos factos deveria ter sido considerado não provado. Sucede que - como já múltiplas vezes se repetiu em diversos acórdãos desta Relação - o momento processualmente previsto para o efeito são as alegações finais orais a que alude o artigo 360º. CPP. A impugnação da decisão da matéria de facto não se destina à repetição, agora por escrito, do que então terá sido dito. Fica-se a saber qual teria sido a decisão se o arguido/recorrente tivesse sido o juiz do seu próprio caso, mas isso nenhumas consequências pode ter, pois é ao juiz e não a outros sujeitos processuais, naturalmente condicionados pelas específicas posições que ocupam, que compete o ofício de julgar.

Ademais, tendo o recurso sido rejeitado no tocante à parte cível, tão pouco haverá que cuidar dos pontos 6 a 10.

E reapreciados todos os elementos probatórios indicados, com recurso às gravações do julgamento, conclui-se que a versão dos factos dada como provada pelo tribunal recorrido no tocante aos pontos 2 a 5 está de acordo com os depoimentos por si indicados, apreciados na sua globalidade, não se evidenciando que o tribunal tenha cometido qualquer erro de julgamento.

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Cumpre, no entanto, adiantar mais alguns tópicos sobre o tema em face da forma como o recurso surge estruturado nesta sede.

Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção - obtida com o benefício da imediação e da oralidade - apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.

Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.

Tudo isto para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado e não provado, o que como tal se consignou na sentença (cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.).

O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão (cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.).

As declarações dos arguidos e a prova testemunhal são apreciadas segundo a regra da livre convicção do julgador.

E o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.

A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não pode servir para subverter o princípio da livre apreciação da prova que está deferido ao tribunal da primeira instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.

Daí que o recurso da decisão da primeira instância em matéria de facto não sirva para suprir ou substituir o juízo que aquele tribunal formulou, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade de declarantes e testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento - como parece entender o recorrente - mas a remediar erros que não têm que ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade dos intervenientes no julgamento. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.

Ora, o recorrente não alega qualquer destes erros (nem estes se detectam da análise dos autos).

Limita-se a contestar basicamente o juízo do tribunal da primeira instância sobre a credibilidade e fiabilidade atribuída ou deixada de atribuir aos depoimentos de alguns intervenientes no julgamento e a apresentar-nos a sua particular, unilateral e interessada interpretação do que possa, ou não, ter sido dito pelos mesmos.

Fundamentalmente, está em causa a credibilidade de depoimentos que o tribunal da primeira instância aceitou como credíveis mas que o recorrente entende que não deveriam ser aceites como tal.

Como está bom de ver, na decorrência do supra-exposto, esta é uma questão que, de forma exemplar, escapa ao juízo do tribunal da segunda instância, por estar estreitamente dependente da imediação.

Não está aqui em causa qualquer erro de julgamento (no sentido acima indicado), mas tão só a contestação da decisão do tribunal da primeira instância sobre a credibilidade e fiabilidade dos depoimentos em causa, tão pouco sendo indicadas quaisquer provas que imponham manifestamente distinta decisão.

Ademais no presente caso o Tribunal a quo objectivou adequadamente a sua convicção, ao esclarecer com detalhe de forma racional, lógica e correctamente articulada a respectiva ponderação efectuada, sendo certo que nada do que vem invocado no recurso permite colocar em crise tal julgamento.

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Alude, além disso, o recorrente, ao longo do respectivo recurso, à verificação dos vícios previstos no art. 410, n.º 2, do CPP, maxime ao erro notório na apreciação de prova, porquanto em seu entender não se teria produzido prova suficiente para a respectiva condenação ou o tribunal a quo teria errado no julgamento, confundindo tais vícios pretensamente detectados, com a valoração da prova produzida, o que manifestamente nada tem que ver com qualquer dos vícios referidos.

Ora, como é sabido e resulta expressamente da letra da lei, em sede de apreciação destes vícios, a matéria de facto só é sindicável quando o vício de que a mesma possa enfermar “resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (corpo do nº. 2 do art. 410º. do CPP), sem recurso a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente às declarações ou aos depoimentos exarados no processo durante o inquérito, a instrução ou o julgamento.

E, analisando a peça recorrida facilmente se constata a inexistência de qualquer vício deste jaez, limitando-se de facto o recorrente a confundir tais vícios com a pretendida impugnação dos factos, quando é certo que os mesmos nada têm que ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende que seria a correcta face à prova produzida.

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4- Enquadramento jurídico (ameaça de mal futuro e estado de necessidade)

Começa o recorrente por confundir a apreciação de direito com a impugnação dos factos tal qual evidenciam as conclusões 37 e 39 do respectivo recurso quando é certo que uma coisa nada tem que ver com a outra. Como é sabido o direito aplica-se aos factos provados nos autos e não ao que dos mesmos não consta; ou seja, abreviando razões, a mera retórica de nada serve, resultando simplesmente irrelevante e inconsequente, se não for rigorosamente enquadrada nas regras do processo e do silogismo judiciário.

Ainda assim descortina-se que entende o mesmo que a expressão “eu vou partir esta “merda” toda” não configura um mal futuro, pelo que não se evidenciaria um crime de ameaça.

Contudo, não tem razão.

Constituem elementos do tipo objectivo do crime de ameaça:

- o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal que constitua crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor;

- e que esse anúncio seja adequado a provocar, na pessoa a quem se dirige, medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação.

Já entre as características do conceito de ameaça subjacente à previsão do referido tipo legal evidenciam-se: a ameaça com um mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.

Saliente-se, também, que uma vez que o actual crime de ameaça não exige, por um lado, a intenção do agente de concretizar a ameaça, nem a ocorrência do resultado/dano, e, por outro lado, exige que o mal ameaçado seja constituído pela prática de determinados crimes, a conclusão a tirar é a de que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado. Vd. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, págs. 348 e 349.

Ora, aplicando tais ensinamentos ao presente caso, facilmente se constata da falta de razão da recorrente.

Na verdade, in casu perante a factologia apurada resulta manifestamente ilógico e contraditório pretender que não se mostra preenchido o tipo de crime de ameaça, por pretensamente a expressão dirigida pelo arguido à ofendida não concretizar qualquer vontade de, no futuro, ser levada a cabo uma concreta conduta que colocasse em causa qualquer um dos bens jurídicos protegidos com este crime.

O cerne da questão aqui colocada cifra-se, ao fim e ao cabo, na apreensão e correcta aplicação prática da natureza futura do mal característico da ameaça.

De facto, quando se diz que o mal ameaçado tem de ser futuro, ou que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, tal significa simplesmente que não podem estar praticados quaisquer actos de execução do crime prometido, pois que, neste caso, estar-se-ia já diante de uma tentativa de execução do crime em causa (tentativa de homicídio, ofensa à integridade física grave ou dano, por exemplo); não suportando seguramente o conceito interpretações como a pretendida pelo recorrente.

Como se escreve de forma cristalina no Ac. Rel. Guimarães de 18-5-2009 Ac. Rel. Guimarães de 18-5-2009, pr. 349/07.1PBVCT (rel. Cruz Bucho), disponível em www.dgsi.pt

, “…O mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer.

Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer.

É claro que sendo o mal iminente poderemos estar perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é do respectivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, actos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.

Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça.

Quando alguém afirma que “vou-te matar”, poderemos estar perante uma tentativa de homicídio, de tentativa de coacção, que consomem naturalmente a ameaça, ou perante um crime de ameaças.

Tudo depende da intenção do agente.

É que, para haver tentativa não basta a prática de actos de execução é necessário que esses actos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22º, n.º1).

O que se exige é tão somente que a ameaça, o anúncio do mal futuro, seja susceptível de afectar a paz individual ou a liberdade de determinação. Se essa susceptibilidade se prolonga mais ou menos no tempo é irrelevante para efeitos de incriminação.

Se o visado não ficou condicionado nas suas decisões e movimentos dali por diante é, igualmente, irrelevante.

O que é decisivo é que, ainda que por momentos breves, o anúncio daquele mal, depois não concretizado, fosse susceptível de afectar aqueles bens jurídicos, fosse capaz de gerar medo, inquietação ou de prejudicar a liberdade de determinação…”.

Daí que não mereça acolhimento a tese da não verificação do mal futuro.

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Invoca, além disso, o recorrente que a sua conduta seria subsumível a uma situação de estado de necessidade desculpante previsto no art. 35º, nº1 CP.

O estado de necessidade desculpante vem previsto no art. 35º, nº 1, do CP, sendo a culpa excluída porque o agente pratica um facto ilícito, mas que é considerado indispensável (adequado) para afastar um perigo actual e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro e não for razoável exigir-lhe, no caso concreto, outro comportamento.

Assim, para que a culpa seja excluída têm de se verificar os seguintes e cumulativos requisitos:

- actualidade do perigo, isto é, que o mesmo seja presente e efectivo; sendo certo que a actualidade do perigo se afere em termos idênticos à da “actualidade” da agressão na legítima defesa, embora se admitam correcções no sentido do seu alargamento, podendo o perigo não ser, sequer, iminente, embora, neste caso, se exija que o protelamento da acção salvadora agravaria (potenciaria) seriamente esse perigo.

- indispensabilidade e adequação do acto a removê-lo;

- desrazoabilidade da exigência ao agente de um comportamento diferente, naquelas concretas circunstâncias.

Ora, no caso, é manifesto que o “perigo anunciado” (relativamente à integridade física do filho do recorrente) não é presente e efectivo nos termos acima referidos, não configurando um perigo actual no momento em que o arguido praticou o ilícito e, por outro lado, ainda que tal ocorresse, não se verificaria a indispensabilidade da sua remoção por aquele modo (através das ameaças - muito menos relativas à prática de crime contra o património - que não se perfilam manifestamente como acto indispensável e adequado à remoção do dito perigo), sendo razoável naquelas circunstâncias exigir ao arguido bem distinto comportamento, até em face da respectiva formação.

Em vista do exposto, sendo certo que a situação apreendida nos autos não é subsumível ao disposto no art. 35º CP, mostra-se correcta e adequada a subsunção jurídica dos factos levada a cabo no Tribunal a quo.

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5- Medida da pena

O recorrente censura ainda o facto da pena de multa ser exagerada, se bem que intente, sobretudo, colocar em crise a indemnização arbitrada em sede cível, confundindo mais uma vez os dois planos em causa e esquecendo que o recurso é inadmissível nesta sede.

Vejamos

Culpa e prevenção são as referências norteadoras da determinação da medida da pena - art. 71º., nº.1, do Código Penal - a qual visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade - artigo 40º., nº.1 do mesmo diploma.

A este propósito, e como bem escreve Figueiredo Dias (in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2º a 4º, Abril-Dezembro de 1993, págs. 186 e 187), o modelo de determinação da medida da pena consagrado no Código Penal vigente “comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente”.

A medida da pena há-de, primordialmente, ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, que fornece uma “moldura de prevenção”, isto é, que fornece um “quantum” de pena que varia entre um ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.

A culpa - juízo de apreciação, de valoração, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da validade lógica e da moral ou do direito, conforme se expendeu no Ac. do STJ de 10-4-1996 (in CJ, Acds. do STJ, Ano IV, tomo II, pág. 168) - constitui o limite inultrapassável da medida da pena, funcionando assim como limite também das considerações preventivas (limite máximo), ligada ao princípio de respeito pela dignidade da pessoa do agente.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável - podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.

No dizer de Fernanda Palma (in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, ed. 1998, AAFDL, pág. 25) “a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial”.

Em jeito de síntese, e como bem refere Figueiredo Dias (in ”Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, ed. 1993, pág. 214) “culpa e prevenção são assim os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito ou de determinação concreta da pena)”.

No caso dos autos, como já vimos, o arguido, ora recorrente, foi condenado pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153°, nº1 do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de € 6,00, num total de € 360,00, quando a pena abstractamente cominada para o tipo de crime em causa é de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.

Não nos merece qualquer censura tal medida em concreto encontrada para a pena de multa, já que nenhuma circunstância aconselha ou impõe a aplicação de pena de multa inferior, uma vez que, por um lado, são perfeitamente válidos e relevantes os pressupostos em que se estribou a medida encontrada (maxime os elementos que depõem contra o arguido devidamente enunciados e equacionados na fundamentação da sentença) e, por outro, perante os factos provados sob os pontos 16 e 18, se mostra a respectiva diária, a fixar em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos, perfeitamente suportada na respectiva base factual.

Ademais na economia da causa, face ao mínimo de € 5,00 previsto na lei para a diária da multa (e não € 3,00 como seguramente por lapso equaciona o recorrente) e aos € 6,00 aplicados in casu perante a situação económica e financeira revelada pelo quadro familiar do arguido, sempre resultaria irrelevante qualquer precisão relativa aos rendimentos específicos em exclusivo do arguido recorrente que se por acaso deixou de auferir vencimento, terá por outro lado passado a auferir de eventual subsídio de desemprego.

Mais se dirá que uma pena de multa que for fixada em termos de representar, a final, um valor insignificante, ou quase, não tem quaisquer potencialidades para lograr as finalidades da punição, tal como elas estão legalmente fixadas: nem a comunidade sentirá que a ordem jurídica tutela adequadamente os seus interesses, nem o arguido sentirá que o crime, de facto, “não compensa”, podendo mesmo sentir-se reconfortado a repetir a sua conduta, confiado na permanente suavidade da Justiça Criminal.

Improcede, consequentemente, o recurso.

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III- Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em rejeitar o recurso no tocante à parte cível e negar provimento ao restante.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.

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Guimarães, 9/7/2015