Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
469/20.7T8AVV-A.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: FALTA DE CITAÇÃO
ARGUIÇÃO DA NULIDADE
SANAÇÃO DA NULIDADE COM A JUNÇÃO DE PROCURAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Ainda que na generalidade das nulidades processuais a sua verificação deva ser objeto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre esta incidir, tal solução é inadequada quando estão em causa situações em que o próprio juiz, ao proferir a decisão, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório ou implicitamente dá cobertura a essa omissão.
II- Nesses casos, a nulidade processual traduzida na omissão de um ato que a lei prescreve comunica-se ao despacho ou decisão proferidos, pelo que a reação da parte vencida passa pela interposição de recurso dessa decisão em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, n.º 1, al. d), in fine, do CPC.
III- Verifica-se nulidade por falta de citação do réu quando se tenha empregado indevidamente a citação edital (art. 188/1-c do CPC), nomeadamente se tiverem sido omitidas as diligências de averiguações previstas no art. 236º do CPC, tudo com vista a apurar do paradeiro do réu, nomeadamente a informação junto da autoridade tributária e, no caso, entretanto, de informação de ser residente no estrangeiro, ainda deverá ser colhida informação da morada junto dos consulados e embaixadas.
IV- Nos termos do art. 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil, a nulidade (falta) da citação (nulidade principal) deve ser arguida com a primeira intervenção no processo, em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (artºs 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil).
V- Numa interpretação atualista da lei, atenta a tramitação eletrónica, não pode considerar-se que a mera junção de procuração forense a mandatário judicial é suficiente para sanar aquela nulidade e pôr termo à revelia absoluta, constituindo intervenção processual que faz pressupor o conhecimento do processo, nos termos e para os efeitos do art. 189 do C.P.C..
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I. Relatório:

AA e BB intentaram contra CC a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum.
Alegam, em síntese, que o 1.º A. é dono e legítimo possuidor do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial e que, por acordo escrito celebrado em 21 de Agosto de 1984, ele e a 2.ª A. se tornaram legítimos possuidores de uma faixa de terreno com a área de 32 m2 de superfície, situada na parte nascente-sul e destinada a aumentar para o lado norte uma pequena leira com vinha, sendo que desde então vêm cuidando dessa faixa de terreno dia após dia, , à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de exercerem um direito próprio, e que, no ano de 2015, o R., sem a sua autorização, colocou uma cancela de acesso no terreno de que são donos, sendo certo que este, interpelado por diversas vezes para a retirar, não o fez até à data presente.
Mais alegam que na sequência da queda de um muro se suporte de terrenos que o R. construiu, foram destruídas cinco árvores de fruto de que eram donos, com o que tiveram um prejuízo de 250,00 €, para além do que sofreram, com a conduta do R., danos morais que pretendem ver indemnizados.
Pedem, por conseguinte, que o Tribunal declare que a faixa terreno melhor identificada no artigo ....º da petição inicial é propriedade do 1.º A., por usucapião; que o R. seja condenado a demolir a cancela sobredita, reconstruindo o muro de suporte também acima identificado; que o R. seja condenado a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização, por parte dos AA. dessa propriedade; que se declare a inexistência de qualquer servidão de passagem no local onde existe, actualmente, a cancela supra referida; que o R. seja condenado a pagar-lhes a quantia global de 5.250,00 € a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.
Foi enviada carta registada com aviso de recepção para citação do réu, vindo o AR devolvido.
Tentada a citação através de agente de execução, ficou a mesma frustrada com informação de que ninguém se encontrava em casa e colhidas informações o Réu estaria a viver em ....
Por despacho foi ordenado o cumprimento do art. 236º do CPC e apenas foram colhidas as informações da base de dados da segurança social e IMTrasnportes e já não na autoridade tributária.
Após e porque era a mesma a morada naquelas duas entidades, foi ordenada a citação edital que teve lugar e após citação do MP, o qual apresentou contestação, alegando desconhecer os factos alegados pelos A.
Proferiu-se despacho saneador e designou-se data para realização da audiência final, à qual se veio a proceder com inteira observância das formalidades legais, como consta da respectiva acta.
Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
- Declarar que os AA. AA e BB são os legítimos proprietários da faixa de terreno identificada no ponto 2 do elenco de factos provados;
“- Condenar o R. CC a demolir a cancela identificada no ponto 4 do elenco de factos provados;
- Condenar o R. CC a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização, por parte dos AA., da faixa de terreno identificada no ponto 2 do elenco de factos provados;
- Declarar que não existe qualquer servidão de passagem no local onde a cancela identificada no ponto 4 do elenco de factos provados foi colocada;
- Absolver o R. CC dos restantes pedidos formulados pelos AA.
Custas a cargo de AA. e R., na proporção de metade (artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, e 607.º, n.º 6, ambos do CPC).
Registe e notifique.”
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É da sentença que o R recorre e apresenta as seguintes conclusões (que se transcreve):

“- 1. Foi o recorrente condenado por sentença judicial proferida a 24 de maio de 2022, a declarar que os AA. AA e BB são os legítimos proprietários da faixa de terreno identificada no ponto 2 do elenco de factos provados; condenado a demolir a cancela identificada no ponto 4 do elenco de factos provados;
condenado a abster-se da prática de qualquer acto que impeça ou diminua a utilização, por parte dos AA., da faixa de terreno identificada no ponto 2 do elenco de factos provados; declarar que não existe qualquer servidão de passagem no local onde a cancela identificada no ponto 4 do elenco de factos
provados foi colocada;
2. Na referida sentença é-nos dito que "uma vez que não foi possível apurar o paradeiro do R., procedeu-se à sua citação edital, não tendo o mesmo contestado a ação".
3. Não tendo havido contestação, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido dados como provados a maior parte dos factos alegados na Petição inicial deduzida pelo Autores perante as provas por estes apresentadas.
4. Sucede que, o Réu nunca foi citado para a presente ação, tendo todo o processo sido tramitado sem o seu conhecimento, e sem este ter a possibilidade de opor a sua versão e se defender dos factos contra si deduzidos.
5. Ora, o Réu, aquando a propositura da ação e as tentativas de citação estava a residir em ... na seguinte morada: 72 BD ..., ....
6. Facto que os Autores tinham conhecimento e que não podiam ignorar, já que são seus vizinhos.
7. Aliás, é esta a indicada à Autoridade Tributária, para efeitos fiscais.
8. Como é de conhecimento público na Freguesia onde residem as partes, o Réu viveu grande parte da sua vida em ..., deslocando-se a Portugal de forma esporádica.
9. Tendo os Autores dado conhecimento aos autos da morada onde reside o Réu, quando este se encontra em Portugal, bem sabendo que já há essencialmente um ano que este não se deslocava a Portugal, com o intuito de este não ser citado regularmente.
10. Tal se deveu essencialmente às dificuldades de circulação de pessoas e riscos inerentes à mesma, devido à pandemia Covid 19, e atendendo à saúde e idade avançada do Réu.
11. Tendo estado, inclusive, o mesmo internado nesse período.
12. Apenas se tendo deslocado a Portugal tempo depois, onde foi confrontado com a notificação da sentença judicial de condenação proferida pelo Tribunal.
13. Sem ter ocorrido qualquer intervenção do Réu!
14. Isto porque foi feita uma primeira tentativa de citação por correio registado, foi feita uma tentativa de citação pessoal, através de agente de execução, e ainda feita a citação edital, sem se apurar, no entanto, junto da Autoridade Tributária o domicílio fiscal do Réu, como sugerido pelo Agente de execução.
15. Não se tendo esgotado todas as diligencias a fim de apurar a morada do Réu e assim cita-lo validamente.
16. Caso que não acontecia se o Tribunal, tivesse tomado as diligências necessárias (como aliás decorrem de outros processo neste Tribunal) a fim de apurar o domicílio fiscal do Réu, nos termos do art. 236º e 239º do Código de Processo Civil.
17. Obviamente que se tal tivesse sido regularmente notificado, quer fosse por carta registada ou através do consulado, apresentado a sua defesa e apresentando provas conduzindo naturalmente a uma decisão compatível com a verdade material.
18. A não apresentação de contestação prejudicou gravemente o Réu na defesa dos seus direitos.
19. Assim e perante todo o exposto, estamos perante uma nulidade por falta de citação do art. 188º, alínea c) e ainda do art. 191º, nº 1 do CPC, o que implica a anulação de todo o processado posterior à petição inicial, conforme o postulado pela alínea a) do art. 187º do CPC.
20. Devendo, para tal, e em consonância com o supra exposto, deve considerar-se a falta de citação do Ré e consequentemente determinar-se a nulidade de todo o processado posteriormente, citando-se validamente o Réu para apresentação da sua contestação.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido por este Tribunal da Relação, após reclamação deferida nos termos do art. 643º do CPC, como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes - artigos 635.°, n.º 4 e 639.°, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho -, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso, verifica-se que são as seguintes as questões essenciais a decidir:

a) - saber se ocorreu nulidade por falta de citação por ter sido levado a cabo citação edital indevidamente, nomeadamente sem que tenham sido efetuadas todas as diligências do art. 236º do CPC;
b) Da repercussão da eventual nulidade da citação na sentença proferida nos autos e qual a sua consequência;
c) Saber se foi a mesma sanada com a simples junção da procuração aos autos no decurso do prazo para recorrer da sentença.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos que relevam são os que já constam do relatório deste acórdão.
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No caso de não ficar prejudicado o recurso da sentença recorrida, os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:

Factos provados.

1. Encontra-se descrito – a favor dos AA., por doação – na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...1, o prédio urbano situado em ..., na freguesia ..., concelho ..., sendo que, segundo a descrição, é composto por uma morada de casas de ... e ... andar, para habitação, com rossios, tem a área total de 506 m2 (sendo 66 m2 coberta e 440 m2 descoberta), confronta do norte com DD, do nascente e do sul com caminho público, e do poente com ..., estando o mesmo inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo ...82.
2. Consta dos autos a seguinte “DECLARAÇÃO”, subscrita no 21 de Agosto de 1984 pelo R. mas assinada por este e pelo 1.º A.
“Eu, abaixo assinado, CC,… na qualidade de dono e legítimo proprietário do prédio rústico denominado “Uma terra de mato em ..., sita no lugar de ..., da dita freguesia ...”, que por bem conhecido se não confronta, inscrito na matriz predial sob o art.º ...77, para os devidos efeitos declaro que considero os quatro eucaliptos que se encontram na parte sul daquela minha propriedade, pertença do Snr. EE… razão por que os poderão cortar dentro do prazo de um ano a contar desta data, de forma a não ficar impedida a construção de um muro de suporte que ali pretendo efectuar.
Declaro ainda que, em virtude do acordo a que se chegou relativamente a uma faixa de terreno sita no lado sul daquela propriedade que o referido Snr. EE declaravam pertencer-lhes, dela tendo largado mão em meu favor, gratuitamente, em troca lhes concedo uma porção de terreno já demarcada com 32 m2. de superfície (16x2), situada na parte nascente-sul e destinada a aumentar para o lado norte uma pequena leira com vinha que aquela família pertence e ali situada”, cfr documento junto a fls. 16 e 17, cujo teor se dá por reproduzido.
3. Os AA., desde o 21 de Agosto de 1984, vêm limpando e plantando frutos na faixa de terreno mencionada em 2, e fazem-no dia após dia, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e com a convicção de estar a exercer um direito próprio sem prejudicar ou lesar direitos alheios.
4. Sucede que, sem autorização dos AA., o R., durante o ano de 2015, colocou uma cancela na faixa de terreno referida em 2.
5. Em consequência disso, os AA. interpelaram diversas vezes o R. para que retirasse a dita cancela.
6. O muro de suporte referido em 2, que R. construiu depois de subscrever a declaração aí transcrita, desabou, destruindo cinco árvores de fruto plantadas no prédio referido em 1.
7. O valor de tais árvores ascende a 250,00 €.
8. Os AA., pelo facto de a cancela ter sido construída à sua revelia, ficaram ansiosos e com um maior grau de irritabilidade.
9. Os AA. despenderam tempo em idas ao advogado, e sofreram incómodos que se relacionam com a obtenção de documentos visando a propositura da presente acção.
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Factos não provados.

Com relevância para a boa decisão da causa não se provou que:

- O 1.ª A. é o único dono do prédio referido em 1.
- Para além do referido em 8, os RR. sofreram de insónias recorrentes, e o prazer que têm em viver, assim com em realizar actividades usuais, ficou diminuído.”
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IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA

Prima facie, importa salientar que na apreciação da reclamação efetuada ao abrigo do art. 643º do CPC já tomamos posição acerca da admissibilidade do recurso e tempestividade da arguição da nulidade em recurso.
Agora resta-nos analisar os fundamentos do recurso.
De qualquer modo, e para enquadrar cremos que deverá relembrar-se o que ali foi já dito e escrito.
Na situação em apreço, o réu insurge-se contra a omissão de formalidades respeitantes à citação edital, mas também contra o conteúdo da sentença que assimilou o despacho judicial que considerou o réu validamente citado e retirou todas as consequências da tramitação levada a cabo posteriormente.
A decisão recorrida entendeu que se está perante a arguição de uma nulidade processual que deveria ter sido suscitada no prazo de 10 dias (perante o tribunal a quo) e a contar do seu conhecimento, ou seja, desde a notificação da sentença, sendo certo que, no caso concreto, a contar pelo menos da junção da procuração, sempre se consideraria sanada a alegada falta de citação decorridos os 10 dias após tal junção da procuração, pelo que ter-se-ia por extemporânea a arguição da dita nulidade no prazo de interposição de recurso, que é de 30 dias.
Sem embargo, a questão não pode ser colocada sob esta perspetiva, pelo que não perfilhamos desse entendimento.
Na verdade, o que está em causa nos autos é saber se a sentença está de acordo com as consequências processuais a retirar da tramitação ocorrida até ao momento e em conformidade com as normas aplicáveis.
Na verdade, revelando-se a nulidade em causa na sentença, é no recurso desta decisão que deve ser invocada a nulidade, não fazendo sentido a arguição de tal nulidade autonomamente perante o tribunal recorrido, quando o interessado tem que recorrer da sentença, sob pena de esta transitar em julgado.
Daí se concluir que estando em causa uma decisão judicial que pressupõe o conhecimento do vício, sendo certo que a alegada falta/nulidade de citação é de conhecimento oficioso, a questão suscitada pelo réu/recorrente deixa de ser regulada pelo regime das nulidades processuais para seguir o regime do erro de julgamento, por a infração praticada passar a estar coberta pela decisão, ao menos de modo implícito – cf. neste sentido, J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pp. 384-385.
Como se faz referência no AC da RL de 11-07-2019 (relatora: Micaela Sousa) e que se passa a citar por perfilhar do nosso entendimento: “Nesta matéria, importa atentar na distinção que o Prof. Miguel Teixeira de Sousa efetua quanto às situações que se podem configurar no contexto das nulidades:
Efetivamente, são possíveis três situações bastante distintas:
-- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
-- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
-- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso […] o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso. […]
No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões.
[…] Se, apesar da omissão indevida de um acto, o juiz conhecer na decisão de algo de que não podia conhecer sem a realização do acto omitido (ou, pela positiva, conhecer de algo de que só podia conhecer na sequência da realização do acto), essa decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC) […].
O objecto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida -- hipótese em que o recurso é procedente -- ou não há vícios da decisão impugnada -- situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam actos obrigatórios ou que impõem a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do acto.
É, aliás, porque o objecto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objecto que se deve entender que uma decisão-surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula -- isto é, padece de um vício que se integra no objecto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer -- ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual -- situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objecto do recurso.” - cf. Blog do IPPC, 28/01/2019 Jurisprudência 2018 (163) disponível em https://blogippc.blogspot.com/2019/01/jurisprudencia-2018-163.html.”
Em suma: ainda que na generalidade das nulidades processuais a sua verificação deva ser objeto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre esta incidir, tal solução é inadequada quando estão em causa situações em que o próprio juiz, ao proferir a decisão, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório ou implicitamente dá cobertura a essa omissão.
Nesses casos, a nulidade processual traduzida na omissão de um ato que a lei prescreve comunica-se ao despacho ou decisão proferidos, pelo que a reação da parte vencida passa pela interposição de recurso dessa decisão em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, n.º 1, al. d), in fine, do CPC – cf. neste sentido, Prof. Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, 29-11-2016, Jurisprudência (496) Decisão-surpresa; nulidade; investigação da paternidade; caducidade, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2016/11/jurisprudencia-496_29.html; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23-06-2016, relator Abrantes Geraldes, processo n.º 1937/15.8T8BCL.S1; de 6-12-2016, Fonseca Ramos, processo n.º 1129/09.5TBVRL-H.G1.S2 e de 22-02-2017, relator Chambel Mourisco, processo n.º 5384/15.3T8GMR.G1.S1; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-11-1995, relator Luís Fonseca, CJ 1995, V, 129 – “se a nulidade está coberta por um despacho judicial que a tenha sancionado, ainda que de modo implícito, o meio próprio para a arguir não é a reclamação mas o recurso, não sendo mesmo necessário qualquer indicação mais ou menos concludente no sentido de o juiz ter considerado o ponto a que se refere a nulidade.”
Assim, ao contrário do sustentado na decisão reclamada era no recurso da decisão final que deveria o réu/recorrente suscitar a violação das regras processuais.
Alegado, assim, o vício intrínseco da decisão, está alegada a sua nulidade, pelo que se a nulidade está coberta por um despacho judicial que a tenha sancionado, ainda que de modo implícito, o meio próprio para a arguir não é a reclamação mas o recurso.
Por conseguinte, entendeu-se que é tempestiva a arguição da nulidade no prazo de recurso de apelação e juntamente com este.
Mais se consignou:
A decisão tomada pelo juiz do tribunal “a quo” quanto à nulidade invocada também como fundamento da apelação não é suscetível de recurso autónomo, como já vimos, sendo certo que será considerada abrangida no objeto recursivo da apelação enquanto decisão proferida ao abrigo do art. 617º, 1, in fine, CPC; em qualquer caso, sempre se dirá que não é imodificável, uma vez que não prejudica nem exclui a competência do tribunal “ad quem” para aferir e apreciar dessa nulidade como fundamento acessório e dependente da apelação interposta (arts. 615º, 4, 2ª parte, 641º, 5, CPC); logo, não se constituiu como caso julgado formal, que possa ser obstáculo à sua apreciação pelo tribunal de recurso em sede de apelação ( vide neste sentido AC do STJ de 05-07-2022, relator Ricardo Costa).
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Vejamos agora se se verifica a alegada falta de citação por se ter ocorrido a citação edital indevidamente e que, conforme conclui o apelante, tem como consequência a «nulidade de todo o processado, nos termos da alínea a) do artigo 187.º do Código de Processo Civil».
Quid iuris?
Em primeiro lugar, dir-se-á que se avançou para a citação edital por se ter considerado que a situação processual era a de «ausência do citando em parte incerta», no quadro do disposto no art.º 236.º do CPCiv..

Estabelece este preceito legal (no seu n.º 1) que:
«Quando seja impossível a realização da citação por o citando estar ausente em parte incerta, a secretaria diligencia obter informação sobre o último paradeiro ou residência conhecida junto de quaisquer entidades ou serviços, designadamente, mediante prévio despacho judicial, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Autoridade Tributária e Aduaneira e do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres e, quando o juiz o considere absolutamente indispensável para decidir da citação edital, junto das autoridades policiais.».
Assim, por considerada «ausência do citando em parte incerta», mostrava-se, nesta ótica, «impossível a realização da citação» por via pessoal, restando, então, aberta a perspetiva da citação edital, como última ratio.
Lê-se no sumário do AC do STJ de 15-02-2022 (relator Jorge Silva):
“ - A citação edital é remedeio para evitar a paralisação dos processos, pelo que, apenas, dela deve lançar-se mão quando seja impossível o contacto pessoal com o citando, ou contacto direto por outro meio, dada a multiplicidade de meios de contacto na atualidade.
II - A Constituição, consagrando o respeito pelo direito de defesa, no art. 20º, pretende alcançar a garantia de que o réu/demandado tenha efetivo conhecimento do processo contra ele instaurado.”.
Mas se a situação era essa – de frustração da citação pessoal, por via postal ou mediante contacto pessoal (cfr. art.º 231.º do NCPCiv.), então impunha-se a obtenção, por quem tinha a tarefa da realização da citação, de informações sobre o último paradeiro ou residência conhecida do citando ausente em parte incerta, como estabelece o citado art.º 236.º do NCPCiv., designadamente, se absolutamente indispensável, junto das autoridades policiais.
Ora, no caso sub judicio, ressuma dos autos que o AE deslocou-se à morada indicada na pi e informou os autos de que ninguém se encontrava em casa e colhidas informações consignou que o Réu estaria a viver em ....
E mais: aquele agente de execução ainda ventilou a hipótese de lhe ser dada autorização para consultar a autoridade tributária, mas nada foi dito.
Apenas foram consultadas algumas das entidades das previstas no artigo 236º do CPC, a segurança social e registo automóvel e IMT e sendo a mesma a morada onde havia sido frustrada a citação postal e pessoal, a secção, conforme despacho judicial, procedeu à citação edital, sem curar de averiguar junto das outras entidades como a autoridade tributária e como era dada informação de ser residente em ..., junto dos consulados ou embaixadas ( vide neste sentido AC RL de 09.09.2021 ( relator FF).
Isto é, não estava afastada a possibilidade de o mesmo residir noutra morada.
Conclusão esta que deixa instável – como logo tem de inferir-se – o dito entendimento de que se tratava de um caso de ausência do citando em parte incerta, posto essa ausência ainda não poder ter-se por seguramente demonstrada, o que vem a ser comprovado como ressuma do documento junto com as alegações do apelante donde consta na autoridade tributária uma morada em ... (!).
Por isso, foi prematuro avançar para a citação edital, último recurso dos instrumentos de citação, visto que não estaria claro que a situação fosse de ausência do citando em parte incerta.
Em suma, dos autos ressuma que outras diligências poderiam e deveriam ter sido levadas a cabo, com vista a apurar do paradeiro do réu, nomeadamente a informação junto da autoridade tributária.
E, julgando que o réu estaria em ..., conforme informação colhida pelo AE, podiam ter sido feitas averiguações junto das entidades competentes, nomeadamente embaixada ou consulado.
Sendo que perentoriamente ninguém afirmou (agente de execução ou secretaria), verbalmente ou por escrito, que o réu na ação se encontrava em parte incerta.
Atendendo à verificada incerteza sobre o paradeiro do citando ou se estava ausente em parte incerta, devendo prevalecer a perspetiva do cabal exercício do contraditório e possibilidade de utilização dos inerentes meios de defesa do réu, parece-nos que a situação dos autos justificava claramente que se explorassem outras diligências.
Só então, com mais detalhada informação, se poderia decidir, sem ameaça para o direito de defesa do citando, sobre a justeza/necessidade da citação edital.
Donde que seja inelutável a conclusão de que foi prematura a ocorrida adesão à citação edital e ordenada por despacho, verificando-se assim nos termos do art. 188º, nº1, al. c) do CPC nulidade por falta de citação por se ter empregue indevidamente a citação edital.
Nos termos do art. 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil, a nulidade (falta) da citação (nulidade principal) deve ser arguida com a primeira intervenção no processo, em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada (artºs 189º e 198º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Como referia o Prof. A. dos Reis (Comentário, vol. 2º, pág. 446/447 e CPC Anot., I, 3ª ed., pág. 313) “para a arguição da falta de citação não há prazo; enquanto o réu se mantiver em situação de revelia, ou melhor, enquanto se mantiver alheio ao processo, está sempre a tempo de arguir a falta da sua citação, só perdendo o direito de o fazer se intervier no processo e não reagir imediatamente contra ela”.
Relevante será, pois, e antes de mais, definir o que deve entender-se por intervenção da parte na causa, sendo que é na primeira intervenção processual que deve ser “logo” arguida a falta de citação.
Na jurisprudência existe uma orientação que defende que a junção da procuração a advogado constitui intervenção relevante que faz pressupor o conhecimento do processo que a mesma permite, de modo a presumir-se que o réu prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação (neste sentido, AC da RE de 20-12-2018, proc. 4901/16; Ac. Rl de 20-04-2015, proc. 564/14, Ac da RE de 16.04.20125, proc. 401/10), entendimento esse seguido pelo juiz a quo.
A esta orientação opõe-se outra corrente, segundo a qual a forma de compatibilizar o direito constitucional de acesso aos direito, no caso das ações tramitadas eletronicamente, é fazer uma interpretação atualista quanto aos efeitos relacionados com a apresentação da procuração forense, de modo a evitar que a simples junção de instrumento de mandato forense não implique, direta e necessariamente, a preclusão da possibilidade de invocação da nulidade por falta de citação (neste sentido, Ac RP de 9-1-20, proc. 2087/17, RC 24-04-2018, proc. 608/10, Acórdão da Relação de Évora de 3.11.2016; os Acs. da Relação de Lisboa de 6.7.2017, e de 05.11.2019, e o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 29.6.2017 e ainda o AC desta RG de 23-01-2020, proc. 17/19.1T8PVL.G1, no qual a agora relatora foi ali adjunta, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Assim, como vimos defendendo, entendemos que uma interpretação atualista da lei (em consonância com o disposto no artº 9º, nº1, in fine, do Código Civil) leva a considerar como estando desatualizada a corrente jurisprudencial que pugnava por reputar como intervenção relevante - para efeitos do actual artº189º, do Código de Processo Civil - a simples apresentação de uma procuração.
Isto é, como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 3-11-2016, acima referido: “Tendo presente a realidade social, económica e a própria evolução tecnológica, inclusivamente na dimensão do acesso ao direito através do recurso a ferramentas informáticas, de acordo com os cânones de uma boa interpretação, estando a hermenêutica actualista legitimada pelo Código Civil e pela Teoria do Direito, o julgador tem de tomar em consideração as circunstância de tempo e de modo em que a lei deve ser aplicada e, como corolário lógico, no domínio da Tramitação Electrónica dos Processos Judiciais preconizada pela Portaria nº 280/2013, de 26/08, não é legítima a conclusão que a simples apresentação de uma procuração, que é condição de acesso ao sistema electrónico e constitui pressuposto de qualquer actuação processual futura, implica a sanação de eventual falta de citação de uma das partes e preclude a hipótese de suscitar a competente nulidade”.
Desta forma, entendendo que a junção da referida procuração não é suficiente para pôr termo à revelia absoluta, nem meio idóneo de tomar conhecimento do processo, de modo a presumir-se que logo aí o réu prescindiu, conscientemente, de arguir a falta de citação, é de concluir que não ficou então sanada a eventual nulidade da citação.
Destarte, está demonstrada a ocorrência da nulidade por falta de citação e, por consequência, a nulidade da sentença que veio a ser proferida na sequência e no pressuposto da regularidade de validade da citação.
Impõe-se, como tal, anular todo o processado e consequentemente, a sentença proferida nos autos, determinando que os autos baixem à 1ª instância para que aí seja concedido ao réu/recorrente o prazo de que dispõe para contestar, prosseguindo depois o processo a tramitação processual subsequente que se imponha.
Procede, na íntegra, a apelação.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do RCP, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
Uma vez que a pretensão recursória da recorrente merece provimento, as custas (na vertente de custas de parte) ficam cargo dos autores/recorridos, parte vencida no recurso.
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IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 3.ª Secção do Tribunal de Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação e, consequentemente, anular todo o processado desde a junção da pi e a sentença posteriormente prolatada, devendo ser concedido ao réu/apelante o prazo para dedução de contestação, com o inerente prosseguimento dos autos de acordo com a tramitação que se impuser.
As custas ficam a cargo dos autores/recorridos.
Notifique.
Guimarães, 15 de dezembro de 2022

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira (relatora)
Jorge dos Santos e
Margarida Pinto Gomes