Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3197/17.7T8BRG.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
POSSUIDOR PRECÁRIO
PRESUNÇÃO DE POSSE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A falta de especificação nas conclusões do recurso dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados acarreta a rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2 – A justificação notarial é o ato pelo qual uma pessoa expõe o modo de aquisição do seu direito, especificando os factos que o comprovam.
3 – A ação de impugnação da escritura de justificação notarial prevista no artigo 101º, nº 1, do Código do Notariado, visa impugnar em juízo o facto justificado.
4 – Revestindo a ação de impugnação de escritura de justificação notarial a natureza de simples apreciação negativa, cabe ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.
5 – O ato notarial de justificação não constitui um repositório de todos os factos suscetíveis de invocação pelo justificante, pois, no caso de o direito ser justificado por usucapião, o que é necessário levar à escritura é a exposição resumida dos factos que revelam o início concreto da invocada posse e aqueles que integram os seus caracteres.
6 – A descrição sumária dos factos essenciais declarados pelo justificante carece de posterior desenvolvimento e concretização na ação de simples apreciação negativa.
7 – Nenhuma disposição legal ou princípio geral impede o réu de aduzir na ação de impugnação outros factos em reforço da sua posição. Além dos factos declarados na escritura de justificação notarial, pode alegar outros factos que sejam constitutivos do direito invocado. Desde que respeitantes ao facto justificado, pode alegar factos concretizadores da posse invocada e dos seus caracteres, factos complementares desses elementos, etc.
8 – Carece de qualquer apoio legal a tese de que o tribunal apenas pode considerar factos que tenham sido declarados na escritura de justificação notarial. Além de o réu poder alegar outros factos demonstrativos da aquisição do direito de propriedade sobre um prédio com base em usucapião que na escritura se arrogou, com o consequente dever de o juiz se pronunciar sobre os mesmos, devem ser considerados os factos instrumentais que resultem da instrução da causa e os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
9 – Desde que se mova dentro do objeto delimitado pelas partes, o tribunal pode conceder menos do que aquilo que é pedido, ainda que tal implique uma redução qualitativa.
10 – Do nº 2 do artigo 1252º do Código Civil resulta que quem exerce o poder de facto sobre certa coisa fica isento do ónus da prova do respetivo animus possidendi, isto é, o exercício do poder de facto faz presumir a existência do animus.
11 – O sentido útil da ressalva contida na parte final do nº 2 do artigo 1252º do Código Civil, é o seguinte: a aludida presunção não poderá ser invocada quando se prove que a posse se iniciou como precária porque, então, por força do nº 2 do artigo 1257º do Código Civil tem de se presumir que continua como tal. Dito de outro modo, se o atual detentor, apesar de exercer o poder de facto, iniciou a detenção em nome de outrem, a posse continua em nome de quem a começou, pelo que se considera ser apenas um possuidor precário.
12 – Como se presume a posse naquele que exerce o poder de facto e, todavia, a posse continua em nome de quem começou, mesmo que não exerça o poder de facto, a presunção do nº 2 do artigo 1257º prevalece sobre a constante do nº 2 do artigo 1252º do Código Civil.
13 – Apesar de os réus não terem demonstrado a aquisição da posse por tradição da coisa, como logo na escritura de justificação notarial invocaram, também, a posse efetiva em nome próprio e no âmbito da ação provaram factos reveladores de uma posse efetiva, com corpus possessório e ânimo possidendi, desde 1984, sobre uma parcela do prédio de que se arrogavam donos, não tem aplicação a presunção do nº 2 do artigo 1257º do Código Civil, pelo que não se pode presumir que a posse da parcela continua em nome de quem a começou.
14 – Exercendo o corpus possessório em nome próprio, e não por mera tolerância da titular do direito de propriedade ou por terem a autorização desta, os réus beneficiam da presunção estabelecida no artigo 1252º, nº 2, do Código Civil: presume-se a posse por exercerem o poder de facto sobre a aludida parcela de terreno.
15 - A aludida presunção não é afastada pelo facto de não terem demonstrado a doação verbal do terreno: não estando demonstrada qualquer traditio, não é lícito afirmar a existência de aquisição derivada de posse precária. Não estão reunidos os pressupostos para o afastamento da presunção com base na ressalva do nº 2 do artigo 1252º do Código Civil e inerente aplicação da presunção prevista no nº 2 do artigo 1257º do Código Civil.
16 – Inexistindo limitação legal relativamente ao prédio em concreto e não estando sequer alegada a infração de qualquer disposição legal, administrativa ou urbanística, é admissível o fracionamento de um prédio rústico, operada mediante aquisição por usucapião de uma parcela daquele.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. AA, BB e mulher, CC, e DD e mulher, EE, propuseram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra FF e mulher, GG, formulando os seguintes pedidos:

«I – ser declarada a inexistência do direito de propriedade e posse arrogado na escritura de justificação celebrada em 22/05/2017 no Cartório Notarial da Notária HH, em que são justificantes os Réus, constante do livro de notas para escrituras diversas número ...64..., de fls. 15 a 16 verso;
II – e, consequentemente, ser a mesma escritura declarada, por ordem subsidiária, ineficaz, nula, anulável ou sem qualquer efeito;
III – e, também em consequência, ser ordenado o cancelamento de quaisquer inscrições registrais que, porventura, venham a ser efetuadas com base na mesma escritura».

Para fundamentar a sua pretensão, os Autores alegaram que na escritura de justificação notarial realizada em 22.05.2017 os Réus declararam ser donos e possuidores, desde 1984, do prédio que identificam no artigo 14º da p.i., por lhes ter sido doado, sem formalização por escritura pública, pelos pais do Réu marido, mas que tais declarações não correspondem à verdade, uma vez que o referido imóvel era propriedade de II, de quem os Autores são herdeiros.
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Os Réus contestaram, alegando a ilegitimidade dos Autores e que ocupam o terreno há mais de 50 anos, primeiro pelos seus pais, e depois por si, na sequência de doação do referido prédio que lhes foi feita por aqueles, tendo sobre o mesmo atuado à vista de todos, sem oposição de ninguém, de forma pacífica, sendo reconhecidos pela comunidade como proprietários do terreno.
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Os Autores replicaram, pugnando pela improcedência da exceção de ilegitimidade suscitada, e impugnando os atos de posse alegados pelos Réus.
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1.2. Dispensada a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, definiu-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, lavrou-se sentença, onde se decidiu «julg[ar] parcialmente procedente a acção e, em consequência:
a) declar[ar] que inexiste em parte o direito de propriedade e posse arrogados pelos réus na escritura referida em C. da factualidade assente e, consequentemente, declaro a referida escritura ineficaz apenas na parte em que justificou o direito de propriedade dos réus para além da área do barracão e respetivo logradouro (adro) fontal referidos em F. a I. da factualidade assente, ficando os efeitos de tal escritura restringidos a tal parcela de terreno;
b) orden[ar] o cancelamento da inscrição registral que tenha sido efetuada em nome dos réus com base na escritura de justificação e para além do direito de propriedade atinente à parcela de terreno correspondente à área do barracão e respetivo logradouro (adro) f[r]ontal referidos em F. a I. da factualidade assente.»
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1.3. Inconformados com a sentença, os Réus interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

«1. O terreno foi utilizado, pela comunidade cigana, pelo menos desde o ano de 1976.
2. A utilização do terreno por esta comunidade foi autorizada pelo Proprietário JJ
3. A utilização do terreno continuou a ser autorizada pela entretanto falecida, II, legitima herdeira;
4. Até 2016, ano do seu falecimento, era conhecida a utilização deste terreno pela comunidade cigana e nunca houve uma interpelação para o abandono do terreno;
5. Esta comunidade, mais especificamente os réus, habitaram neste terreno, até ao ano de 2002, fazendo uso ininterrupto desde, pelo menos, 1976
6. A utilização de maior parte do terreno, foi feita pelos Réus, tendo tido frutos agrícolas, resultantes do trabalho agrícola realizado no terreno;
7. Está sediado no terreno, um barracão onde é prestado o culto da Igreja Evangélica, desde, pelo menos 2002
8. A barraca foi construída há 38 anos
9. Ainda é praticado o culto evangélico, nos dias de hoje, na dita barraca, sito no terreno em questão
10. O terreno encontrou-se sempre cuidado pelos Réus
11. Ocuparam o terreno sem violência ou oposição dos proprietários
12. Ocuparam o terreno no decorrer da doação verbal transmitida aos pais do Réu
13. Os Réus tinham fornecimento de energia pela Electricidade... e água
14. Os familiares, inclusive o tutor da Proprietária, sabiam da utilização do terreno e nunca impediram a utilização do mesmo
15. Mais de 100 crentes frequentam a barraca para prestar oração e culto
16. Fazem-no há mais de 30 anos
17. Sempre se deslocaram livremente pelo terreno, não tendo nenhuma limitação imposta por elementos públicos ou privados.

NESTES TERMOS, e nos mais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá ser alterada a decisão de que agora se recorre, fazendo-se a costumada JUSTIÇA!»
A Autora AA apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação dos Réus.
*
1.4. Igualmente inconformado com a sentença, o Autor BB interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

«Dos factos que devem ser considerados como não provados
I. O Tribunal de 1ª instância na douta sentença de que se recorre, na matéria de facto que considerou provada, entendeu dar como provados factos não narrados na escritura de justificação. Basta uma breve leitura da escritura de justificação para se constatar que os factos vertidos de E. a P. (dos factos dados como provados) não constam da mesma.

Na verdade,
II. Não poderia o Autor estar mais de acordo com a douta sentença proferida na parte em que refere:
“Dispõe o nº 1 do art. 89º do Código do Notariado que a justificação de direitos, para efeitos de estabelecimento do trato sucessivo de acordo com o art. 116º nº 1 do Código do Registo Predial, consiste na «(…) declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.»
E, de acordo com o seu n.º 2, «quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.»
Por sua vez, o nº 1 do art. 90º do Código do Notariado dispõe que a justificação de direitos, para efeitos de reatamento do trato sucessivo, de acordo com o art. 116º nº 2 do Código do Registo Predial, tem por objeto a dedução do trato sucessivo a partir do titular da última inscrição, por meio de declarações prestadas pelo justificante, sendo que, na escritura de justificação devem reconstituir-se as sucessivas transmissões, com especificação das suas causas e identificação dos respetivos sujeitos (n.º 2) e, em relação às transmissões a respeito das quais o interessado afirme ser-lhe impossível obter o título, devem indicar-se as razões de que resulte essa impossibilidade (n.º 3).
A justificação notarial traduz-se, pois, no ato pelo qual uma pessoa expõe o modo de aquisição do seu direito sobre determinada coisa, especificando os factos que o comprovam.
(...)
De facto, as declarações que o justificante produz em tal documento são sindicáveis e podem afinal não se mostrar conformes com a realidade declarada, quanto ao título ou modo de aquisição do prédio que é objeto da justificação notarial, destinando-se a tal intento a ação de impugnação de justificação notarial, visando tal ação inutilizar/impedir que a justificação notarial produza os efeitos a que se destina, que são os de levar ao registo predial a descrição do prédio e a inscrição dos direitos sobre ele e identificação dos seus titulares.
Temos, assim, que a impugnação da escritura de justificação consiste na impugnação dos factos aí declarados como fundadores do direito invocado, sendo uma ação de simples apreciação negativa, porque proposta para obtenção da declaração de inexistência dum direito (art. 10.º, n.º 2 e 3, alínea a), do CPC).
Efetivamente, o que se pretende em tal acção é a declaração de que o justificante não é o titular do direito justificado na escritura que vai servir de base ao registo de aquisição, nos termos do art. 116.º do CRPredial.
Daí que, através da instauração desta ação, o autor não pretenda ver reconhecida a sua propriedade sobre o terreno em discussão, mas tão só atingir o direito real que os justificantes se arrogam na escritura de justificação, ou seja, o que quer é impugnar o teor das declarações constantes dessa escritura, no sentido de esta ficar sem efeito.
A especificidade deste tipo de ações reflete-se, essencialmente, no campo da alegação e demonstração dos factos, cabendo ao autor apenas alegar a situação objetiva e grave de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto (cfr. Antunes Varela e Outros, in Manual de Processo Civil, 2ª Edição, págs. 186 e 187), enquanto que ao réu justificante incumbe a tarefa de alegar e demonstrar os factos que sustentam a invocação do seu direito sobre o terreno em causa e que constituem o teor da escritura notarial celebrada, conforme preceituado no art. 343.º, n.º1, do Código Civil. Por outras palavras, é o réu justificante quem tem o ónus de alegação e prova dos factos conducentes à aquisição do direito que declarou possuir perante o notário. Daí que o réu tenha o ónus de alegação dos factos demonstrativos da aquisição do direito de propriedade que na escritura se arroga, bem como o ónus da respectiva prova (art. 343.º, n.º 1, do Código Civil).” - Negrito e sublinhado nosso.
III. Porém, não concorda, de todo, em como a sentença veio a concluir pois que a decisão não se encontra, de todo, conforme o raciocínio explanado.
Vejamos:
IV. Parecem não existirem duvidas de que a jurisprudência entende unanimemente que a ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista no artigo 10º nº3 al. a) do CPC consubstancia uma ação de simples apreciação negativa em que incumbe aos réus a prova dos factos constitutivos do direito que se arrogam na escritura de justificação impugnada. O réu justificante tem, assim, o ónus de alegação e prova dos factos conducentes à aquisição do direito que declarou possuir perante o notário. Daí que o réu tenha o ónus de alegação dos factos demonstrativos da aquisição do direito de propriedade que na escritura se arroga, bem como o ónus da respetiva prova (art. 343.º, n.º 1, do Código Civil)”. Ora,
V. Na escritura de justificação de 22 de maio de 2017 os réus justificantes declararam o vertido em C. dos factos dados como provados. Por assim ser, são estes os factos, e não outros, que os Réus tinham que provar. Porém,
VI. Da leitura dos fatos dados como assentes, facilmente se constata que não se fez prova alguma nos autos do alegado na escritura de justificação impugnada, designadamente não se fez prova de que:
- O pai do justificante marido tenha adquirido o prédio por doação por volta do ano de 1940 e que, por volta do ano de 1984, os pais do justificante marido, KK e LL, já falecidos, fizeram doação, não titulada por escritura pública, daquele prédio aos agora justificantes. - 1. E 3. dos factos dados como não provados.
- Também não se fez prova de que desde aquele ano de 1984, eles, justificantes, sempre têm usado e fruído o prédio, limpando-o, roçando o mato, demarcando-o, gozando todas as utilidades por ele proporcionadas - 1., 2., 5., 6. e 7 e 8 dos factos dados como não provados.
VII. Os factos das alíneas E. a P. não são factos que constam na escritura de justificação e, por assim ser, não deviam ter sido dados como provados. Não deveriam sequer ter sido levada ao elenco factual pois que de nenhuma relevância têm para o desfecho da causa.
Mesmo que assim não se entendesse:
VIII. A douta sentença proferida faz uma manifesta confusão sobre alegados atos de posse de uma comunidade cigana e de um conjunto de crentes que realizam um culto, com os atos de posse dos Réus FF e GG.
IX. Na alínea E) dá-se como provado que de 1976 a 1998, parte não concretamente determinada do prédio foi ocupada por elementos da comunidade cigana. Ora, “elementos da comunidade cigana” não são os Réus, pelo que tal alínea não deveria ter sido levada ao elenco factual pois que nenhuma relevância jurídica tem para o desfecho da causa.
X. Mesmo que assim não se entendesse, veja-se o depoimento de MM, testemunha arrolada pelos Autores, o seu depoimento foi prestado na sessão do dia 28/06/2023 e gravado através do sistema integrado de gravação digital "Habilus Media Studio", disponível na aplicação informática em uso no Tribunal de 1.ª Instância, encontrando-se registado entre as 11:41 e 12: 21, com a duração de 00:40:24 que confirmou de forma pormenorizada e claramente desinteressada, que as barracas da comunidade cigana ocupavam apenas uma parte de baixo do terreno, coincidente, grosso modo, com o largo que agora é o recinto da feira, quando do seu depoimento resultou claramente o contrário.
XI. Que as barracas da comunidade cigana estavam no largo que agora é o recinto da feira, zona publica que que extremava com o terreno em causa nos autos. Isto é, estavam precisamente no largo que confinava com o terreno em discussão nos presentes autos, não ocupando este, onde se mantiveram até ser realojados nos bairros sociais de ... e do ....
XII. Face a tal depoimento não restam duvidas que o facto E. nunca poderia ter sido dado como provado.
XIII. Já na alínea G) a P) dá-se como provado que desde 1984 até 2002 os Réus habitaram no barracão, e a partir dessa data, usado para pratica de culto ou de catequese, fazendo limpeza do edifício desde 2004 a 2006, dotando o barracão de mesas, cadeiras, luz, água potável e ar condicionado, requisitando um contador de luz na Electricidade....
XIV. Ora, a pratica pelos fieis de um culto de catequese não se traduz em atos de posse dos Réus. Os Réus não são todo o conjunto de fieis, estes sim que praticam o culto, e frequentam a catequese. Os Réus não praticaram no prédio em causa, nem podiam praticar ética, legal ou constitucionalmente quaisquer atos de conteúdo religioso, que só pode ser praticado por uma entidade legalmente constituída para o efeito.
XV. Os documentos juntos pelos Réus na contestação são bem demonstrativos que o Réu não atuava em nome próprio, mas sim como um representante do culto evangélico. Mais provam que o mesmo tinha consciência que estas instalações eram a titulo provisório e em instalação precária.
XVI. Do depoimento da testemunha NN, testemunha arrolada pelos Réus, o seu depoimento foi prestado na sessão do dia 10/07/2023 e gravado através do sistema integrado de gravação digital "Habilus Media Studio", disponível na aplicação informática em uso no Tribunal de 1.ª Instância, encontrando-se registado entre as 10:04 e 10: 17, com a duração de 00:13:34 do qual se extrai que o mesmo não sabe qual a relação que o Réu tem com o terreno em discussão dos presentes autos. O mesmo apenas sabe que ia levar os seus sobrinhos aquele local para praticarem o culto.
XVII. Ora, o património religioso, nomeadamente de uma Igreja de culto, tem que ser registado em nome de uma entidade religiosa reconhecida com personalidade jurídica, para inscrever, registar e possuir. Os fieis não são o Réu, nem os atos por os primeiros praticados podem traduzir atos de posse do segundo.
XVIII. A testemunha OO, testemunha arrolada pelos Réus, o seu depoimento foi prestado na sessão do dia 10/07/2023 e gravado através do sistema integrado de gravação digital "Habilus Media Studio", disponível na aplicação informática em uso no Tribunal de 1.ª Instância, encontrando-se registado entre as 10:18 e as 10:47, com a duração de 00:28:30, referiu que a comunidade cigana foi toda realojado em bairros, mediante o pagamento de uma renda. Posteriormente, com a saída de o Réu para uma casa camarária arrendada, um grupo de pessoas começou a usar o local para a pratica de culto evangélico. Que as obras de melhoramento foram realizadas com a ajuda dos crentes.
XIX. Pelo que se entende que os factos constantes na alínea G) a P) deveriam:
Facto F deveria ter sido dado como não provado - A testemunha NN (00:12:59) não sabe quem construiu e não viu obras, (00:10:12) não sabe o que é que o Réu tem a haver com o terreno. A Testemunha OO (00:11:21) não sabe se no local onde foi feita a capela se foi comprado, doado ou emprestado, (00:12:18) não sabe se foi ele sozinho que custeou a construção.
Facto G deveria ter sido dado como provado com o seguinte teor:
“Os Réus habitaram no local até 2002, data em que foram realojados no Bairro Social em ... mediante o pagamento de renda. Posteriormente o local foi ocupado por um grupo de pessoas para a pratica de um culto” - A testemunha OO (00:26:21) explicou que o Réu mora em ..., foi uma pessoa que foi mobilizada dali. Os apartamentos em ... são arrendados. Eles deram alternativa mas têm de pagar por isso.
Facto H deveria ter sido dado como provado com o seguinte teor:
“Esse grupo de pessoas que ali se deslocavam para orar, entre o ano de 2004 e 2006, fizeram a limpeza do edifício e do logradouro (adro) na parte situada em frente à porta do barracão e numa estreita faixa das laterais”
Como referido na sentença “a testemunha NN nada soube esclarecer a propósito da limpeza do terreno” e pela analise dos fotogramas extraídos do Google Maps (Street View) resulta que, “nos anos de 2004 a 2015, só o espaço situado na parte da frente do barraco/local de culto e uma estreita faixa nas laterais se mantinham limpos”.
Facto I. deveria ter sido dado como provado com o seguinte teor:
“Esse grupo de pessoas em data que não se pode precisar dotaram o barracão com mesas e cadeiras.”
A testemunha NN (00:1:26) nada sabe a este propósito e a testemunha OO esclareceu que cortaram água e luz (00:16:29)
Facto J. a N. deveriam ter sido dado como não provado.
Como supra se referiu e resultou claro da prova documental e testemunhal, eram um grupo de pessoas que se deslocavam ao local para a pratica do culto, não podendo tais atos se traduzir em atos dos Réus. Ademais, sempre se dirá que em todo o julgamento não houve uma única testemunha que se tivesse referido à Ré.
Facto O. deveria ter sido dado como provado com o seguinte teor:
“O Réu marido participou as Finanças em dezembro de 2016, encontrando-se atualmente averbado em nome de II - Cabeça de casal de, numero fiscal ...82”
Conjugação dos documentos n.º ... a ...2 juntos com a replica, em especial o documento ... (caderneta predial urbana), documento ... (demonstração da liquidação da herança) e 8 a 12 (comprovativos de pagamento de IMI de 2018 a 2021).
Facto P. deveria ter sido dado como provado com o seguinte teor:
“O Réu marido em 2010, na qualidade de “Cooperador de Oficio Ministerial da Congregação Cristal em ...” requisitou um contador de luz na Electricidade..., documento que enviou com o seguinte conteúdo:
“No largo da floresta está instalado, em instalações precárias, um culto evangélico, que aí ficou após a demolição das barracas de etnia cigana.
Em breve será localizado noutro local...”
Para se chegar a tal conclusão basta uma breve leitura dos documentos ... e ... juntos pelo Réu na contestação.

DO RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO

XX. Não há uma única prova produzida nos autos sobre doações não tituladas constantes da escritura de justificação dos autos e consequentemente não há prova alguma sobre o prédio em causa nos autos ter vindo à titularidade dos réus justificantes no ano de 1984 por doação não titulada.
XXI. Ora, a falta de prova nos autos da posse conducente à aquisição por título originário, por usucapião, e constante na escritura de justificação (e concretamente da falta de prova da posse fundada doação), conduz à falta da prova da posse alegada na escritura de justificação impugnada pelos autores.
XXII. Veja-se que na escritura de justificação não se fala em atos de posse sobre um barracão, tanto só no uso e fruição de prédio rústico (limpando-o, roçando o mato, demarcando-o).
Ademais,
XXIII. Tendo os réus afirmado a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, incumbe-lhe, para além do mais, a prova dos factos que integram uma atuação sobre a coisa por forma correspondente ao exercício do direito – o denominado “corpus” –, com a intenção de exercer sobre ela, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto – o que se designa por “animus”, em que a posse se traduz;
XXIV. O art. 1252º, nº 2, do CC salvaguarda do âmbito do aí estatuído os casos do n.º 2 do art. 1257.º, do mesmo código, isto é, os casos em que se deve presumir que “a posse continua em nome de quem a começou”, pelo que excluídos estão do âmbito da presunção da posse em nome próprio naquele estabelecida os casos em que o detentor (ou aparente possuidor) não foi o iniciador da posse;
XXV. No caso de ação de impugnação de justificação notarial em que o justificante não se apresentou como possuidor desligado dos antecedentes, antes produziu uma afirmação do animus possessório referenciado ao ato de aquisição derivada da posse, como é o caso de uma doação verbal, com tal alegação se excluiu o justificante do leque de beneficiários da presunção prevista no art. 1252º, nº 2, do CC. – Neste sentido veja-se acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães Processo 6145/17.0T8GMR.G1.
XXVI. Significará isto que, nos casos de aquisição derivada da posse, como sucede com a tradição material ou simbólica, efetuada pelo anterior possuidor, prevista na alínea b) do mesmo artigo, prevalecerá a presunção ilidível estabelecida no n.º 2 do art.º 1257.º, segundo a qual se presume que a posse continua no anterior possuidor, competindo assim ao adquirente provar não só a mera materialidade da traditio mas também a intencionalidade subjacente, mormente o negócio em se fundou aquela traditio.”
XXVII. Ora, na presente ação, a verdade é que os justificantes alicerçaram o direito arrogado na aquisição derivada da posse, ainda que por doação inválida do anterior possuidor, na sequência do que teria ocorrido uma prática reiterada, com publicidade, de uso e fruição do referido prédio, limpando-o, roçando o mato, demarcando-o, gozando todas as utilidades por ele proporcionadas, sem oposição de ninguém e na convicção de que não lesava direitos de outrem”, pelo que, “in casu” se pode afirmar que, do próprio conteúdo da alegação dos Réus, resulta que os justificante se tenha apresentado como possuidor ligada aos antecedentes. Nessa medida, não tendo a Ré logrado provar a invocada doação, o apurado “corpus” não pode constituir base da aludida presunção, pelo que, para fazer valer a sua pretensão, lhe restaria provar, por força da regra geral que faz impender o encargo da prova sobre aquele que se arroga o direito (art. 342º, nº 1, do CC), que os atos por si praticados tinham subjacentes a intencionalidade de exercer sobre o dito prédio, como seu titular, o direito de propriedade – o que aquele não logrou fazer –, não havendo, pois, que exigir à Autora o afastamento da aludida presunção de posse mediante prova de que, pelo contrário, tais atos foram praticados pelo Ré por mera tolerância dos sucessivos titulares do aludido direito.
Acresce que:
XXVIII. Veja-se toda a prova documental carreada para os autos pelo próprio Réu de onde se retira “instalações precárias”, “em breve será localizado noutro local”, ao contrário do proferido na douta sentença do Tribunal a quo, a forma como os Réus se têm materialmente comportando e ao animus com que atuaram, não devem os mesmos ser considerados como seus possuidores.
XXIX. Na verdade, habitando no local não se coibiram de aceitar mudar a sua residência para o Bairro ..., onde, pasme-se, não se importaram de pagar renda. Bem sabendo que o objetivo camarário era a mobilização de toda a comunidade cigana para outro local. Mas, aproveitando-se do facto de o barracão não ter sido demolido, como foi o restante acampamento - certamente porque em propriedade privada, ao contrário das restantes barracas - nele é instalado um culto. Veja-se que a limpeza do barracão levada a cabo pelos crentes foi apenas entre 2004 e 2006. Não se sabe quando foram colocadas as cadeiras e as mesas. Como não se sabe em que data foram construídas as escadas. O contador de luz foi solicitado pelo Réu enquanto “Cooperador de Oficio Ministerial da Congregação Crista em Portugal” apenas em 2010. Não tendo qualquer hesitação em afirmar que o fornecimento de energia era a titulo precário pois que as instalações eram precárias e que em breve seriam localizadas em outro local. Nesta senda, a posse assim exercida não tem as características e a duração necessária à usucapião.
XXX. À luz deste instituto jurídico deve ficar impedido o exercício do direito do Réus – aquisição por usucapião – por se constatar que os mesmos foram realojados em bairros camarários precisamente para desocupar o acampamento cigano -, e agora pretendem invocar tal ocupação para invocar a usucapião.
Normas Jurídicas Violadas:
- 89 e 90 do CN
- 116 do CRP
- 334, 342, 343, 1252 n.º 2 e 1257 n.º 2 do CC
- 10 do CPC

Termos em que deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado, devendo, por conseguinte, ser revogada a Sentença de que ora se recorre.
Nesse sentido deverá ser proferido um Acórdão que a substitua e que, por sua vez, determine a total procedência da ação movida pelo Autor/Recorrente.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
1.5. Também a Autora AA interpôs recurso de apelação da sentença, concluindo da seguinte forma:

«A – QUANTO À MATÉRIA DE FACTO:
I - A discordância da Recorrente relativamente ao julgamento de facto circunscreve-se aos factos provados M e N, que se entendem – salvo o devido respeito e melhor opinião – incorretamente julgados.
Quanto ao facto provado M:
II - Segundo tal facto, os Réus desconheciam lesar direitos de outrem no seu desiderato possessório. Discorda-se, porém, dessa premissa visto que prova alguma foi produzida nesse sentido, decorrendo da prova produzida exatamente o contrário: quer os Réus quer os antecessores, tinham a perfeita consciência de que o espaço em causa não lhes pertencia.
III - Nesse sentido milita o depoimento da testemunha PP, mencionado na ata de 28/06/2023, cujas declarações foram gravadas na aplicação informática de suporte aos Tribunais (CITIUS), com início de registo a 00:00 e termo a 01:15:50, a partir das 10:58 horas e com a duração de 01:15:50, segundo o qual a construção do barracão/capela mereceram autorização meramente temporária de II, [cfr. tempos de gravação 2:50 a 3:14, 3:45 a 04:05 e 5:00 a 06:05 minutos].
IV – Essa testemunha possuía uma grande proximidade de vivência relativamente à sua tia (II), tendo passado grande parte da infância com a mesma, com a qual viveu desde o 7º ano de escolaridade até ao seu 1º ano de faculdade [cfr. tempo de gravação 8:10 a 8:30 do identificado depoimento), entendendo-se que a douta sentença recorrida considerou diminuída a sua credibilidade sem razões atendíveis, sendo o conjunto do depoimento escorreito, claro e objetivo.
V – Também das declarações Recorrido marido, FF, mencionado na ata de 10/07/2023 [cujas declarações foram gravadas na aplicação informática de suporte aos Tribunais (CITIUS), com início de registo a 00:00 e termo a 00:42:20, a partir das 10:52 horas e a duração de 00:42:20] resulta claro o verdadeiro contexto da causa de permanência do barraco / capela no local, o que resultou da resistência da família do Recorrido marido à ordem administrativa de mudança para um novo bairro que veio a ser criado para realojar a comunidade cigana, o qual acabou por mudar a sua residência para esse novo bairro, “reconvertendo” o espaço onde antes habitava em local exclusivamente de culto [cfr. tempo de gravação 27:20 a 31:00], “construindo uma barraquinha só para orarmos a Deus” [cfr. tempo de gravação 05:00 a 05:30].
VI – A ocupação do espaço em causa a título meramente precário e provisório é objetivamente confirmado pela prova documental trazida pela mão dos próprios Recorridos, na sua contestação: o seu documento n.º ... consiste numa declaração manuscrita em papel timbrado do Vereador QQ, do Município ..., e ao mesmo imputada, mas donde se pode extrair que visa uma ocupação precária e de natureza transitória (“em breve será localizada noutro local”). Já o documento n.º ... consiste numa declaração imputada ao Município ..., tendo como única finalidade viabilizar o fornecimento de energia elétrica, enfatizando uma ocupação provisória e precária. Dado o seu desiderato, iniciativa da junção e proximidade aos factos, tais meios de prova deveriam ter sido – e não foram – especialmente valorados pelo Tribunal a quo.
VII - Pelo que o facto provado “M” deveria, antes, passar à condição de facto não provado.
Quanto ao facto provado N:
VIII - Calcorreado o conjunto de prova testemunhal e por declarações, em momento algum é feita uma referência a factos relacionados com a dimensão do animus possidendi centrada nos Recorridos, cingindo-se exclusivamente ao corpus.
IX - Uma vez que este ponto de facto se apresenta intimamente ligado ao anterior, dão-se por integralmente reproduzidos os fundamentos e meios de prova invocados a propósito do mesmo, que se reiteram, devendo o facto provado N ser, antes, julgado não provado.

QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO:

X - A pretendida alteração da matéria de facto implica, na perspetiva da Recorrente, a falta dos correspondentes requisitos da usucapião, ainda que na medida reconhecida, o que, de per se, deverá merecer a procedência total dos pedidos formulados pelos Autores. No entanto, subsidiariamente, mas sem prescindir:
Questão de Direito 1:
XI – Na ação de impugnação de escritura de justificação notarial de posse o Tribunal não pode afastar-se do objeto justificando em termos tais que conduzam a um quid diverso.
XII – O reconhecimento de ineficácia parcial decidida no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 17/02/2022 analisou a questão de forma muito superficial, sem qualquer análise específica da questão, sendo que embora exista alguma analogia com os factos sub judice deles difere num aspeto essencial: é que a parcela abrangida pela ineficácia excluída da justificação se encontra perfeitamente quantificada, com indicação de área, ao invés do que sucede na douta sentença recorrida.
XIII - A escritura de justificação de posse tem necessariamente um objeto, que corresponde a prédios individualizados pelo justificante. A individualização do prédio implica que o mesmo seja cabalmente identificado com elementos que permitam compor a sua descrição predial de acordo com o art. 82º do Código do Registo Predial, sendo elemento obrigatório, designadamente, a indicação da área do prédio e a situação matricial do prédio expressa pelo artigo de matriz, definitivo ou provisório.
XIV – Ademais, a escritura tem de ser instruída, designadamente, com certidão de teor da correspondente inscrição matricial (cfr. art. 98º n.º 1 al. a) do Código do Notariado), o que implica uma total convergência desta com a descrição predial que será, posteriormente, levada ao registo predial, em obediência ao princípio da harmonização positivado nos arts. 28º a 32º do Código do Registo Predial.
XV - Se é certo que, no plano físico, a parte reconhecida aos Recorridos se localiza no interior do espaço que identificaram na sua justificação notarial, essa parte é um quid totalmente diverso daquele que elegeram na sua justificação notarial: (i) não fizeram qualquer referência à implantação do barracão/capela e respetivo logradouro/adro, nem na descrição do prédio, nem na enumeração dos atos materiais de posse (v.g. a sua construção e/ou manutenção), (ii) o espaço reconhecido pela douta sentença está amplamente aquém da indicada área de 13.970 m2, sendo que esta não teve o cuidado de a quantificar, (iii) as confrontações indicadas não têm qualquer correspondência com a prova produzida.
XVI - Assim, o Tribunal a quo reconheceu aos Recorridos um quid diverso, num polígono com uma área que nem sequer logrou quantificar. Para além dos problemas práticos registrais que daí emergem – que se creem inultrapassáveis – entende-se que a divergência quantitativa é suficiente para descaracterizar o objeto da justificação impugnado, i.e., o prédio justificando.
XVII - Ainda que se pudesse equacionar uma perspetiva de redução da justificação no que tange ao objeto justificando – o que não se concede – mesmo assim impunha-se um mínimo de concretização na individualização do objeto reduzido, sendo de notar que o douto Acórdão de que se louva a douta sentença nesta questão individualiza com precisão a área excluída, localizando-a e quantificando-a, num método inverso ao seguido nesta (que apenas refere a área incluída sem a quantificar, criando um prédio indefinido por – seguramente – ter sentido dificuldades em reconstruir a descrição do prédio justificando).
XVIII - Não se afigura admissível, face aos pertinentes preceitos legais, operar-se uma reformatação judicial do prédio abrangido pelo ato notarial em causa, em total divergência com a inscrição matricial utilizada pelo Notário, tornando inútil uma exigência que o Legislador quis acautelar: a existência fiscal do prédio nos exatos termos do objeto justificando, conduzindo a um resultado contrário ao imposto pelos art. 98º n.º 1 al. a) do Código do Notariado, em flagrante violação do mesmo.
XIX - Sendo a escritura de justificação o título registral para o registo de aquisição dos Recorridos, o mesmo ficou completamente descaracterizado pela douta sentença recorrida, em termos tais que não permitem titular um registo de descrição predial com contornos diversos do objeto da justificação.
XX – O objeto da ação de impugnação da escritura de justificação notarial de posse, instaurada ao abrigo do art. 101º do Código do Notariado é o facto justificado, que apenas pode ser entendido como o conjunto dos fundamentos e pressupostos de facto que conduzem à aquisição por usucapião visada pelos justificantes.
XXI - A presente ação de simples apreciação negativa implica, por isso, uma verdadeira vinculação temática dos justificantes, ainda que se conceda que tal é compatível com a prova meramente parcial do acervo dos factos da justificação, podendo a mesma ser declarada válida e eficaz pelo Tribunal mas apenas nos casos em que subsista a factualidade mínima necessária à fundamentação da usucapião, o que não se verifica em concreto.
XXII – Pois, expurgada a matéria não provada que sustentava a justificação, a remanescente não é suficiente para reconhecer a aquisição a favor dos Justificantes porque, além da diferença quantitativa no que diz respeito ao objeto, localiza os atos de posse entre 2004 e 2006, o que – na melhor das hipóteses – apenas assegurou o decurso de 13 anos de atos de posse, visto a ação ter sido instaurada em junho de 2017, não tendo decorrido o prazo mínimo de usucapião que, nos termos do art. 1296º, seria no mínimo de 15 anos.
XXIII - Além disso, competia aos Recorridos o ónus da prova do espaço individualizado sobre o qual recaiam os alegados atos de posse, o que também não lograram alcançar (“numa extensão não concretamente apurada” – facto provado H) in fine).
XXIV - Concluindo esta vertente, (i) ao reconstruir o objeto da justificação, (ii) ao derrogar a conformidade com os elementos matriciais e (iii) ao permitir a ampliação dos fundamentos factuais a factos não invocados na escritura (iv) ao desconsiderar a causa da alegada aquisição e o suprimento dos seus pressupostos, (v) tornando a aquisição por usucapião insuscetível de registo predial, a douta sentença violou os arts. 89º n.º 1, 90º n.º 1, 98º n.º 1 al. a) e 101º n.º 2 do Código do Notariado e, ainda, arts. 28º a 32º e 116º n.º 1 e 2 do Código do Registo Predial.

Questão de Direito 2:
XXV - Embora a boa metodologia recomende que as nulidades da sentença sejam tratadas em sede de questão prévia sobre as demais, o conhecimento desta nulidade está intimamente ligado à questão antecedente da licitude dessa posição, razão pela qual se opta por tratar nesta sequência, dando-se aqui por reproduzidos os argumentos supra exarados.
XXVI - A estrutura do pedido formulado não pode comportar a sua fragmentação/redução, nos moldes operados pela douta sentença, já que o recorte factual e jurídico da escritura foi impugnado em bloco.
XXVII – Ao afastar-se do objeto, pressupostos e fundamentos da justificação, reconhecendo áreas parciais indeterminadas e diversas dos pedidos formulados pelos Autores, a douta sentença incorreu na nulidade estabelecida no art. 615º n.º 1 al. e) do CPC, que expressamente se invoca.
Questão de direito 3:
XXVIII – Nos termos do texto da escritura de justificação de posse, os ora Recorridos não foram os primeiros possuidores, tendo como antecessores os pais do justificante marido, KK e LL que fizeram doação, não titulada por escritura pública, daquele prédio aos ora justificantes [cfr. teor da escritura constante do facto provado C)].
XXIX – Pelo que são inaplicáveis as presunções estabelecidas nos arts. 1252º n.º 2 do CC, já que a alegada posse não se iniciou com os ora justificantes/recorridos.
XXX - Além disso, a ressalva de efeitos do disposto no art. 1257º n.º 2 também não proporciona presunção alguma. Se é certo que se presume que “a posse continua em nome de quem a começou” também não foram os Recorridos, segundo o teor da justificação, que a começaram.
XXXI - Pelo que o recurso à presunção de animus possidendi, sustentada pela douta sentença recorrida, viola o disposto nos arts. 1252º e 1257º n.º 2 do CC.
TERMOS EM QUE deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a douta sentença e julgando-se a ação totalmente procedente.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
*

1.6. Igualmente os Autores DD e EE interpuseram recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

«1 – A matéria de facto concernente aos factos dados como provados em L, M e N, foi incorrectamente julgada havendo elementos de prova documental e gravada que impõe distinta decisão;
2 – Assim, em face da prova documental existente nos autos, em concreto a certidão judicial de fls. 141 e ss. e a escritura de habilitação de fls 225 e ss., que pelos factos de que fazem prova e respectivas datas demonstram que este facto deveria ter sido considerado não provado;
3 – E em face de prova gravada, concretamente o depoimento da testemunha PP e as declarações do próprio recorrido FF, também o facto M deveria ter sido considerado não provado;
4 – Igualmente os mesmos de prova que se referem para o facto N, bem como os documentos nºs ... e ... juntos pelos recorridos, deveriam ter determinado quanto ao facto N um não provado;
5 – Pelo que consequentemente a acção deveria ter sido considerada totalmente procedente por falta de prova por parte dos Apelados;
6 – Independentemente da alteração da matéria de facto dada como provada a presente acção também deveria ter sido sempre totalmente improcedente por razões de direito;
7 – Os factos dados como provados na douta sentença recorrida são manifestamente diferentes dos alegados na escritura de justificação pelos recorridos;
8 – A acção de impugnação de justificação prevista no artº 101º do Cód. de Notariado, é uma acção de simples apreciação negativa, que se destina a obter a declaração de inexistência dum direito;
9 – Nessa medida incumbe aos justificantes demonstrar o que a lei os obriga a declarar na escritura de justificação nos termos do disposto nos arts. 89º, nºc 1 e 2, instruída com a documentação exigida pelo artº 98º, ambos do cód. do Notariado, com vista à convergência de identificação do prédio declarado e identificado sobre o qual se pretende justificar o direito e o que consta da matriz e do registo predial, a fim de obter o desiderato previsto no artº 116º do Cód. de Registo Predial;
10 – Pelo que é ónus de prova dos justificantes demonstrar os factos declarados na escritura de justificação, nos termos do artº 343º nº 1 do Cód. Civil;
11 - Assim, o objeto da ação de impugnação da escritura de justificação notarial de posse, instaurada ao abrigo do art. 101º do Código do Notariado é o facto justificado, que apenas pode ser entendido como o conjunto dos fundamentos e pressupostos de facto que conduzem à aquisição por usucapião visada pelos justificantes;
12 - A presente ação de simples apreciação negativa implica, por isso, uma verdadeira vinculação temática dos justificantes, ainda que se conceda que tal é compatível com a prova meramente parcial do acervo dos factos da justificação, podendo a mesma ser declarada válida e eficaz pelo Tribunal mas apenas nos casos em que subsista a factualidade mínima necessária à fundamentação da usucapião, o que não se verifica em concreto;
13 – Pois o que foi dado como provado na sentença ora em crise não corresponde ao declarado na escritura de justificação, tendo o tribunal violado o disposto nos arts. os arts. 89º n.º 1, 90º n.º 1, 98º n.º 1 al. a) e 101º n.º 2 do Código do Notariado e, ainda, arts. 28º a 32º e 116º n.º 1 e 2 do Código do Registo Predial;
14 – Acresce que ao declarar a procedência parcial do pedido com base em factos dados como provados em que o que se dá como provado é substancialmente diferente do declarado na escritura de justificação, o Tribunal a quo condenou em objecto diferente do pedido, o que é causa de nulidade processual, prevista na al. e) do nº 1, do artº 615º do CPC, e como tal deve ser declarada;
15 – Além de que, para efeitos de motivação de prova do facto N da matéria dada como provada, e na ausência de prova o Tribunal a quo socorreu-se de uma presunção de animus possidendi prevista no artº 1257~nº 2 do C.C. ;
16 – Presunção legal que é inaplicável no presente caso porquanto nos termos do declarado na escritura de justificação de posse, os ora Apelados não foram os primeiros possuidores, tendo como antecessores os pais do justificante marido, KK e LL que fizeram doação, não titulada por escritura pública, daquele prédio aos ora justificantes, conforme teor da escritura constante do facto provado C;
17 – E nem a ressalva de efeitos do disposto no art. 1257º n.º 2 proporciona presunção alguma, porque se se presume que “a posse continua em nome de quem a começou” também não foram os Apelados, segundo o teor da justificação, que a começaram;
18 – Dessa forma, o recurso à presunção de animus possidendi, sustentada pela douta sentença recorrida, viola o disposto nos arts. 1252º e 1257º n.º 2 do CC.
NESTES TERMOS, deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado, devendo, por conseguinte, ser revogada a Sentença recorrida de que ora se recorre, e substituída por Acórdão que determine a total procedência da ação movida pelo Autor/Recorrente.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Os quatro recursos de apelação foram admitidos.
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1.7. Questões a decidir

Atentas as conclusões dos recursos, as quais delimitam o respetivo objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, suscitam-se as seguintes questões:

i) Nulidade da sentença;
ii) Rejeição do recurso em matéria de facto interposto pelos Réus;
iii) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto - erro no julgamento da matéria de facto;
iv) Consequências em sede de direito da eventual modificação da matéria de facto;
v) Inobservância da vinculação temática inerente a uma ação de impugnação de escritura pública de justificação notarial;
vi) Inexistência de posse boa para usucapião;
vii) Inaplicabilidade ou indevida formulação da presunção prevista no artigo 1252º, nº 2, do Código Civil;
viii) Indefinição e falta de caracterização do objeto.
***
II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
2.1.1. Na decisão recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
«A. Em ../../2016, faleceu II, no estado de viúva, sem ascendentes nem descendentes, tendo-lhe sobrevivido três irmãos: BB, DD e AA.
B. Em 07/12/2011, foi outorgado testamento pela referida II, no qual instituiu sua única e universal herdeira RR, testamento este que foi anulado por sentença transitada em julgado.
C. Em 22 de maio de 2017, os réus outorgaram escritura de justificação notarial onde, ademais declararam: “(…) Que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do seguinte imóvel: prédio rústico denominado “...”, composto por terra de eucaliptal, sobreiros e mato, sito no ..., em ..., freguesia ... (... e ...), do concelho ..., com a área de 13.970 m2, a confrontar de norte com herdeiros de SS, do sul com o ..., do nascente com TT e outro e do poente com Clube ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...31 – ... (...), inscrito na respetiva matriz em nome do justificante marido, sob o art. ...48º da União das Freguesias ... (... e ...), que teve origem no artigo ...6º da extinta freguesia ... (...) com o valor patrimonial tributário, e atribuído, de 131,65 €.
Que a aquisição do imóvel está registada na Conservatória a favor de JJ, viúvo, residente na Rua ..., da cidade ..., pela inscrição da apresentação dois, de 17/01/1911;
Que, por volta do ano de 1984, os pais do justificante marido, KK e LL, já falecidos, residentes que foram no Bairro ..., freguesia ..., do concelho ..., fizeram doação, não titulada por escritura pública, daquele prédio aos agora justificantes.
Que desconhecem como os mencionados doadores adquiriram o prédio ao titular inscrito, mas creem que foi por doação, não titulada por escritura pública, feita por volta do ano de 1940.
Que, desde aquele ano de 1984, eles, justificantes, sempre têm usado e fruído o prédio, limpando-o, roçando o mato, demarcando-o, gozando todas as utilidades por ele proporcionadas, com ânimo de quem exercita direito próprio, sendo reconhecidos como seus donos por toda a gente, fazendo-o de boa fé por ignorarem lesar direito alheio, pacificamente, porque sem violência, contínua e publicamente, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém – e tudo isto por um lapso de tempo superior a 20 anos.
Que, dadas as enunciadas características de tal posse, adquiriram o identificado prédio por usucapião, título este que, pela sua natureza, não é suscetível de ser comprovado pelos meios normais. (…)”.
D. O prédio referido em C. está registado a favor de JJ.
E. Parte não concretamente determinada do prédio referido em C., desde data não concretamente determinada, mas pelo menos desde 1976, e até cerca de 1998, foi ocupada por elementos da comunidade cigana, sem qualquer reclamação ou oposição por parte de qualquer elemento privado ou público.
F. Os réus, às suas custas, edificaram um barracão no terreno referido em C..
G. Desde 1984, de forma ininterrupta, os réus mantiveram-se na construção referida em F., tendo ali habitado até ao ano de cerca de 2002 e, posteriormente, naquele local, praticado o culto pelo menos duas vezes por semana, sendo o barracão, nos restantes dias, usado para ensinar a catequese aos jovens.
H. … Fazendo a limpeza do edifício e do logradouro (adro) na parte situada em frente à porta do barracão, desde a parede do barracão e até ao estremo do prédio na sua confrontação norte, e prosseguindo tal limpeza, desde data situada entre o ano de 2004 e 2006, na lateral nascente e poente do barracão e nas suas traseiras (parte virada a sul), numa extensão não concretamente determinada.
I. E, às suas custas, os réus dotaram o barracão com mesas, cadeiras, luz, água potável e ar condicionado.
J. … Assim atuando às claras e à vista de toda a cidade,
K. … Com conhecimento não só da comunidade cigana, mas também da comunidade em geral.
L. … Sem qualquer violência ou oposição dos autores,
M. … Desconhecendo que lesavam o direito de outrem,
N. … Fazendo seu o barracão e seu logradouro.
O. O réu marido participou o prédio referido em C. às Finanças em dezembro de 2016.
P. E requisitou um contador da luz na Electricidade....»
*
2.1.2. Factos não provados

O Tribunal a quo considerou que não se provaram os seguintes factos:
«1. A totalidade do prédio referido em C., desde os primórdios da cidade ..., tem sido ocupada por elementos da comunidade cigana, sem qualquer reclamação, oposição parte de qualquer elemento privado ou público.
2. Os réus ocupam a totalidade do terreno referido em C. há mais de 50 anos, primeiro pelos seus pais e família e pela restante comunidade cigana, fazendo-o seu.
3. Os pais dos réus fizeram-lhes uma doação não escrita do prédio referido em C..
4. A Câmara Municipal ... reconheceu ter interesse social o culto referido em G., reconhecendo os réus como proprietários do terreno referido em C..
5. Os réus retiram frutos de um quintal do prédio referido em C..
6. E habitam atualmente no barracão.
7. Os réus, desde 1984, fazem a limpeza de todo o terreno referido em C., assim atuando às claras e à vista de toda a cidade, com conhecimento não só da comunidade cigana, mas também da comunidade em geral, sem qualquer violência ou oposição, designadamente dos autores, desconhecendo que lesavam o direito de outrem.
8. A ocupação referida em G. foi autorizada por II a favor da congregação evangélica.»
**
2.2. Do objeto do recurso
2.2.1. Nulidade da sentença
Em dois dos recursos interpostos é suscitada a questão da nulidade da sentença com fundamento na verificação da causa prevista na alínea e) do nº 1 do artigo do Código de Processo Civil (CPC).
Dispõe essa norma que é nula a sentença quando «o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido».
É uma causa de nulidade que emerge da violação do disposto no artigo 609º, nº 1, do CPC, segundo o qual a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
Embora nas duas mencionadas disposições legais se fale apenas de “condenação”, devem considerar-se aplicáveis a todo o tipo de ações, pois respeita aos limites da sentença, em que o objeto do processo é definido pelas partes e é este que constitui o objeto da decisão, não podendo o juiz ficar aquém nem ir além do que lhe foi pedido.
Verifica-se esta nulidade quando o juiz se pronuncia sobre mais do que o que é pedido ou sobre coisa diversa daquela que foi pedida, o que traduz uma pronúncia ultra petitum, ou seja, que exorbita, extravasa, os limites resultantes das pretensões deduzidas pelas partes.
É uma nulidade que emerge, em primeira linha, da violação do princípio dispositivo que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual. Encontra ainda fundamento no princípio do contraditório, segundo o qual o tribunal não pode resolver o conflito de interesses sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
Pese embora a evolução doutrinal entretanto registada, mantêm-se atuais as palavras de Alberto dos Reis[1]: «O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes. (...) Também não pode condenar em objecto diverso do que se pediu, isto é, não pode modificar a qualidade do pedido. Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a prestar um facto; se o pedido respeita à entrega de uma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo)».

No caso dos autos, a Recorrente AA alega que «[a] estrutura do pedido formulado não pode comportar a sua fragmentação/redução, nos moldes operados pela douta sentença, já que o recorte factual e jurídico da escritura foi impugnado em bloco», pelo que «[a]o afastar-se do objeto, pressupostos e fundamentos da justificação, reconhecendo áreas parciais indeterminadas e diversas dos pedidos formulados pelos Autores, a douta sentença incorreu na nulidade estabelecida no art. 615º n.º 1 al. e) do CPC».
Por sua vez, os Recorrentes DD e EE sustentam «que ao declarar a procedência parcial do pedido com base em factos dados como provados em que o que se dá como provado é substancialmente diferente do declarado na escritura de justificação, o Tribunal a quo condenou em objecto diferente do pedido, o que é causa de nulidade processual, prevista na al. e) do nº 1, do artº 615º do CPC».

Analisados os pertinentes elementos dos autos, concluímos que não assiste razão aos Recorrentes.
A simples circunstância de os referidos Recorrentes necessitarem de previamente suscitar outras questões de direito para poderem alegar a nulidade da sentença, evidencia que não se está perante uma verdadeira nulidade, mas sim uma questão substancial de direito, podendo eventualmente constituir um erro de julgamento.
Depois, desde que se mova dentro do objeto delimitado pelas partes, o juiz pode conceder menos do que aquilo que é pedido, ainda que tal implique uma redução qualitativa[2].
Foi isso que sucedeu no caso dos autos.
Objetivamente, o pedido formulado pelos Autores na petição inicial respeitava a um prédio com a área de 13.970 m2, cuja «inexistência do direito de propriedade e posse arrogado na escritura de justificação» pretendiam ver declarada, com as consequências daí decorrentes objeto dos dois pedidos seguintes, e o Tribunal a quo declarou menos do que o pedido: declarou a inexistência em parte do direito de propriedade e posse de que os Réus se arrogavam e declarou ineficaz a escritura «apenas na parte em que justificou o direito de propriedade dos réus para além da área do barracão e respetivo logradouro (adro) fontal referidos em F. a I. da factualidade assente, ficando os efeitos de tal escritura restringidos a tal parcela de terreno». Não concedeu a totalidade da tutela jurisdicional pedida, mas sim parte substancial da mesma, com a exceção de uma pequena parte do prédio rústico, cuja área não conseguiu definir com exatidão. É ainda de notar que a referência ao “barracão” não altera os dados da questão, na medida que, segundo se vê nas fotografias juntas aos autos, não passa de uma estrutura abarracada, por natureza provisória, precária e amovível, e o que está em causa não é a propriedade dessa barraca, que os Autores em momento algum reclamam como sua (a propriedade dessa estrutura – barracão – afigura-se-nos ser pacificamente dos Réus, em face da prova produzida, como veremos), mas sim da área ocupada pela mesma, enquanto ato revelador de apreensão material do terreno.
Portanto, enquanto vício respeitante aos limites da sentença, ao conceder menos do que o pedido, não se verifica a nulidade a que se reporta o artigo 615º, nº 1, al. e), do CPC, improcedendo esta primeira questão, a qual tem uma componente de direito que aqui já deixamos apreciada.
*

2.2.2. Da impugnação da matéria de facto por parte dos Réus
Resulta da motivação das suas alegações que os Réus, ora Recorrentes, pretendem impugnar a decisão relativa à matéria de facto.

Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão sobre a matéria de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».
No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorretamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.
Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes[3], o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
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Analisadas as alegações, conclui-se que os Recorrentes não cumpriram pelo menos um dos descritos requisitos que condicionam a admissibilidade da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Isto porque os Recorrentes, desde logo, não especificaram, nas conclusões das alegações do seu recurso, os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, tal como exige o artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC. Na decisão sobre a matéria de facto julgaram-se provados 16 (dezasseis) factos e como não provados 8 (oito) factos. Em nenhuma das dezassete conclusões das alegações do recurso se indica que um desses vinte e quatro factos, provados ou não provados, foi incorretamente julgado. Sendo certo que a alínea a) do nº 1 do artigo 640º do CPC expressamente impõe uma indicação concreta e definida dos factos impugnados («os concretos pontos de facto»), também nas conclusões não consta qualquer outro elemento que permita identificar os pontos de facto que os Recorrentes visam no recurso sobre a matéria de facto, designadamente uma eventual referência a concretos artigos de uma peça processual onde se mostrem alegados os factos em causa.
Além disso, só indicando os pontos de facto objeto da impugnação se está em condições de cumprir o ónus, subsequente, de especificação da «decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas», conforme estabelecido na alínea c) do nº 1 do artigo 640º do CPC.
Os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como matéria de facto. Em ambos os casos vigora o ónus de alegar e formular conclusões.
Em conformidade com o disposto no artigo 639º, nº 1, do CPC, seja qual for a espécie e a natureza do recurso, impende sobre o recorrente o ónus de formular conclusões. Quer o recurso verse sobre matéria de direito ou verse sobre matéria de facto, «o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão».
Tratando-se de recurso em matéria de direito, o referido ónus cumpre-se procedendo à indicação dos elementos referidos no nº 2 do artigo 639º do CPC. Se o recurso for em matéria de facto, as conclusões devem especificar os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, tal como estabelecido no artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC.
Sem dúvida que há uma especificidade no recurso que envolve a matéria de facto, mas isso não dispensa o recorrente de formular conclusões. A especificidade reside em apenas se exigir ao recorrente que identifique nas conclusões os concretos pontos de facto que repute incorretamente julgados. Tudo o mais, ou seja, a fundamentação da imputação do erro de julgamento de facto[4] faz-se na motivação das alegações e já não nas conclusões.
Cingindo a nossa apreciação ao recurso em matéria de facto, poder-se-á perguntar qual a razão de ser da exigência de formulação de conclusões, traduzida na sintética indicação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados.
A razão é perfeitamente clara e compreensível: são as conclusões que delimitam o objeto do recurso, em consonância com a regra geral que se extrai do artigo 635º do CPC, pelo que a enunciação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente tem de ser feita nas conclusões.
Essa especificação é indispensável, na medida em que as conclusões circunscrevem a área de intervenção do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das exceções, na contestação[5]. Não sendo, manifestamente, uma questão de conhecimento oficioso, a circunstância de não se especificarem os concretos pontos de facto incorretamente julgados consubstancia, desde logo, uma falta de indicação do seu objeto.
Com efeito, as conclusões exercem a importante função de delimitação do objeto do recurso, através da identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende impugnar na decisão recorrida e sobre o qual se pretende que o tribunal superior faça uma reapreciação. O tribunal superior só aprecia o objeto definido pelas conclusões e, por isso, não tem de conhecer de uma questão, seja ela factual ou de direito, que não consta das conclusões, a não ser que se trate de matéria de conhecimento oficioso. O que não consta das conclusões não é objeto de conhecimento. E formular conclusões não é remeter para a motivação; a exigência de formulação de conclusões não é suprível por mera remissão.
Além de habilitar a um adequado exercício do contraditório pelo recorrido[6], a necessidade dessa especificação está também intimamente ligada às duas regras impostas no artigo 608º, nº 2, do CPC, onde se estabelece que «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Em conformidade com o disposto no artigo 635º do CPC, uma questão considera-se integrada no recurso se constar das conclusões; se assim suceder, o tribunal de recurso tem de resolver a questão que foi submetida à sua apreciação. Pelo contrário, se determinada questão não for indicada nas conclusões o tribunal não pode ocupar-se dela, ou seja, não pode dela conhecer, exceto se lhe for imposto o conhecimento oficioso.
Sendo assim, num recurso em matéria de facto, se o tribunal de recurso não aborda um ponto de facto que o recorrente identifica como incorretamente julgado, verifica-se uma nulidade por omissão de pronúncia (artigos 666º, nº 1, e 615º, nº 1-d, 1ª parte, do CPC); se decide relativamente a um ponto de facto que o recorrente não identificou como incorretamente julgado, em princípio, comete uma nulidade por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1-d, 2ª parte, do CPC).
Vejamos agora qual é a consequência da falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto incorretamente julgados.
Por um lado, exceto em matéria de que lhe cumpre apreciar oficiosamente, é inequívoco que o tribunal superior não pode conhecer de uma questão que não foi enunciada nas conclusões.
Por outro lado, a lei expressamente impõe a rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto quando o recorrente não especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC. Estabelecendo um paralelismo com a petição inicial, tal como esta padece de ineptidão quando falta a indicação do pedido, também as conclusões num recurso em matéria de facto em que não se indicam os concretos pontos de facto incorretamente julgados são “ineptas”.
E não se justifica sequer a prolação de qualquer despacho de convite à sua indicação. Foi propósito deliberado do legislador não instituir qualquer convite ao aperfeiçoamento das alegações a dirigir ao apelante. Por um lado, a lei é a este respeito imperativa, ao cominar a imediata rejeição do recurso, nessa parte, para a falta de cumprimento pelo recorrente do referido ónus processual. Por outro lado, não há lugar a convite ao aperfeiçoamento das conclusões, uma vez que o artigo 652º, nº 1, al. a), do CPC apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento das «conclusões das respetivas alegações, nos termos do nº 3 do artigo 639º», ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto.

Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 640º, nº 1, al. a), do CPC, rejeita-se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante do recurso de apelação interposto pelos Réus.
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2.2.3. Da impugnação da matéria de facto por parte dos Autores
Nos três recursos interpostos por alguns dos Autores é impugnada a decisão sobre a matéria de facto.
Assim, o Recorrente BB impugna a decisão relativa aos pontos de facto identificados pelas letras ... a ... dos factos provados, a Recorrente AA circunscreve a sua impugnação aos pontos M e N, enquanto os Recorrentes DD e EE impugnam a decisão quanto aos pontos L, M e N.
Revista a totalidade da prova produzida, passamos a pronunciarmo-nos sobre os fundamentos invocados pelos Recorrentes.
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2.2.3.1. Das conclusões IV a VII formuladas pelo Recorrente BB
Sustenta o Recorrente BB que «[o]s factos das alíneas E. a P. não são factos que constam na escritura de justificação e, por assim ser, não deviam ter sido dados como provados. Não deveriam sequer ter sido levada ao elenco factual pois que de nenhuma relevância têm para o desfecho da causa.»

Em conformidade com o disposto nos artigos 89º e 90º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei nº 207/95, de 14 de agosto, pode definir-se a justificação notarial como o ato pelo qual uma pessoa expõe o modo de aquisição do seu direito sobre determinada coisa, especificando os factos que o comprovam. Com relevo ainda para o caso dos autos, dispõe o artigo 89º, nº 2, do Código do Notariado que sendo «alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.» Da declaração assim emitida faz a lei decorrer determinados efeitos e é para obstar à sua produção que a presente ação foi instaurada.
A ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista no artigo 101º, nº 1, do Código do Notariado, é uma ação de simples apreciação negativa (destina-se à declaração da inexistência de um direito ou de um facto), em conformidade com o disposto no artigo 10º, nº 3, al. a), do CPC.
Essa ação visa, nos expressos termos do artigo 101º, nº 1, do Código do Notariado, impugnar em juízo o facto justificado.
O facto justificado é, no caso, a aquisição do direito de propriedade por usucapião, com determinados fundamentos, relativamente ao prédio identificado em C, isto é, o «prédio rústico denominado “...”, composto por terra de eucaliptal, sobreiros e mato, sito no ..., em ..., freguesia ... (... e ...), do concelho ..., com a área de 13.970 m2, a confrontar de norte com herdeiros de SS, do sul com o ..., do nascente com TT e outro e do poente com Clube ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...31 – ... (...), inscrito na respetiva matriz em nome do justificante marido, sob o art. ...48º da União das Freguesias ... (... e ...), que teve origem no artigo ...6º da extinta freguesia ... (...) com o valor patrimonial tributário, e atribuído, de 131,65 €.»
De harmonia com o disposto no artigo 343º, nº 1, do Código Civil (CCiv), «nas ações de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga». Aliás, sendo certo que na base da opção legislativa está a dificuldade de provar factos negativos, a referida disposição legal acaba por seguir a regra geral de que a prova dos factos constitutivos compete à parte que os invoca (artigo 342º, nº 1, do CCiv).
Por conseguinte, arrogando-se os Réus proprietários da totalidade daquele prédio rústico, a eles lhe competia provar os factos constitutivos do direito invocado na escritura de justificação notarial.
Posto isto, em face da questão suscitada pelo Recorrente, pergunta-se: os Réus apenas podem alegar, expressis verbis, os factos tal como os expuseram na escritura de justificação notarial? Se o não fizerem, alegando, por exemplo, novos factos complementares, concretizadores ou instrumentais, estão a violar um princípio de vinculação temática ao estrito objeto definido na escritura de justificação notarial?
Da conjugação das apontadas normas não resulta a interpretação preconizada pelo Recorrente, sendo certo que os demais Autores recorrentes também a invocam como questão de direito e aqui a apreciamos como tal. Nenhuma norma o estabelece, sendo que a norma substantiva se limita, através da inversão do ónus da prova, a estabelecer que ao réu compete a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.
Depois, enfatiza-se que o ato notarial não constitui um repositório de todos os factos suscetíveis de invocação pelo justificante, mas uma súmula dos mesmos, circunscrevendo-se ao essencial. No caso de o direito ser justificado por usucapião, é claro que não basta fazer-se constar que se é possuidor há mais de 20 anos do imóvel em causa, com exclusão de outrem e que essa posse é pública, pacífica, contínua, de boa fé, etc. O que é necessário levar à escritura é a exposição condensada dos factos que revelam o início concreto da invocada posse e aqueles que integram os seus caracteres (na expressa previsão do art. 89º, nº 2, do CNot, «as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião»).
Como é óbvio, uma descrição sintetizada dos factos essenciais declarados pelo justificante carece de posterior desenvolvimento e concretização na ação de simples apreciação negativa. Além disso, nenhuma disposição legal ou princípio geral impede o réu de aduzir outros factos em reforço da sua posição. Pode alegar e provar tanto os factos declarados na escritura como outros factos que sejam constitutivos do direito invocado. Desde que respeitantes ao facto justificado, pode alegar factos concretizadores da posse invocada e dos seus caracteres, factos complementares desses elementos, etc. Por exemplo, se o justificante declarar na escritura de justificação que cultiva há mais de 20 anos determinado prédio rústico, é lícito alegar na ação de simples apreciação o que em concreto cultivou nesse período de tempo, que árvores plantou, que frutos colheu, etc. O mesmo se diga dos demais factos caracterizadores da posse, que podem ser desenvolvidos e pormenorizados na ação, sendo até expectável e curial que o faça.
Consequentemente, também carece de qualquer apoio a tese de que o tribunal apenas pode considerar factos que tenham sido declarados na escritura de justificação notarial. Além de o réu poder alegar outros factos demonstrativos da aquisição do direito de propriedade sobre um prédio com base em usucapião que na escritura se arrogou, com o consequente dever de o juiz se pronunciar sobre os mesmos (v. art. 5º, nº 1, 1ª parte do seu corpo, 607º, nº 4, 608º, nº 2, e 615º, nº 1, al. d), do CPC), devem ser considerados os factos instrumentais que resultem da instrução da causa e os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar (art. 5º, nº 2, als. a) e b), do CPC).
Finalmente, a pronúncia sobre determinado facto articulado pelas partes pode carecer de explicitação ou concretização, de modo a refletir a realidade tal como ela emerge dos meios de prova produzida, sem se circunscrever ao modo tantas vezes sincopado como resulta do articulado pelas partes.
Analisados os factos constantes dos pontos E a P, conclui-se que a generalidade deles foi alegada pelos Réus e que a Exma. Juiz introduziu factos complementares ou concretizadores, em consonância com o que entendeu resultar da prova produzida. Por isso, não exorbitou dos seus poderes de cognição. Se a prova produzida conduz ou não àquele resultado probatório, já é questão diferente, a tratar em sede de apreciação do recurso em matéria de facto.
Termos em que improcede esta questão.
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2.2.3.2. Ponto E
Neste ponto o Tribunal julgou provado que:
«Parte não concretamente determinada do prédio referido em C., desde data não concretamente determinada, mas pelo menos desde 1976, e até cerca de 1998, foi ocupada por elementos da comunidade cigana, sem qualquer reclamação ou oposição por parte de qualquer elemento privado ou público.»
O Recorrente BB pretende que este facto seja considerado não provado. Alega que «“elementos da comunidade cigana” não são os Réus» e que a testemunha MM afirmou, na parte do seu depoimento «registado entre as 11:41 e 12:21», que «as barracas da comunidade cigana estavam no largo que agora é o recinto da feira, zona pública que extremava com o terreno em causa nos autos. Isto é, estavam precisamente no largo que confinava com o terreno em discussão nos presentes autos, não ocupando este, onde se mantiveram até ser realojados nos bairros sociais de ... e do ...

Revistos os meios de prova produzidos sobre esta questão, concluímos inexistir fundamento para alterar a decisão recorrida e considerar tal facto como não provado.
Em primeiro lugar, sendo certo que este facto se limita a enquadrar as demais questões factuais, podendo ser qualificado como introdutório e não tendo o relevo que o Recorrente parece atribuir-lhe, na motivação da decisão o Tribunal recorrido não considerou que a testemunha MM disse coisa diferente daquilo que esta Relação teve a oportunidade de verificar na gravação do depoimento.
Basta reparar que a Exma. Juiz a quo teve o cuidado de esclarecer que a «testemunha MM, que, até há cerca de 20 anos, e durante cerca de 40 anos, exerceu funções de direção no Club de Caçadores de ..., cujas instalações estremavam com o terreno em causa nos autos, e que confirmou, de forma pormenorizada e claramente desinteressada, que as barracas da comunidade cigana ocupavam apenas “a parte de baixo do terreno”, coincidente, grosso modo, com o largo que agora é o recinto da feira, tendo asseverado que tais barracas findavam antes da estrema do terreno com o Club de Caçadores (não havia barracas encostadas ao terreno do Club)».
Julgamos que persistem alguns equívocos e eles desde logo emergem da circunstância de inexistir qualquer elemento físico (ou outro de natureza objetiva) que permita demarcar o terreno de que os Réus se arrogam donos relativamente ao denominado “largo da feira”, sendo certo que também ninguém delimitou tal largo da feira, designadamente até onde o mesmo vai no confronto com o prédio dos autos. Em vários momentos se aludiu às feiras aí realizadas, designadamente à de São João, mas na prática não se sabe o que é ocupado pelos feirantes durante o São João ou nas demais feiras, supondo que nestas será ocupado menos espaço do que durante aquela. Daí que se corra o risco de as pessoas ouvidas estarem a referir-se a realidades não inteiramente coincidentes quando falam em “largo da feira” ou “local da feira”.
Tendo ouvido com atenção o depoimento da testemunha MM, não nos parece que esta tenha a certeza de qual seja a exata estrema do prédio relativamente ao terreno municipal que se lhe seguirá. Parece entender que só a “parte de cima” é que integra o prédio dos autos (sem que isso nos permita saber onde termina a “parte de cima”) e que a “parte de baixo” seria municipal e constituiria toda o “largo da feira”. Ora, basta atentar na perícia levada a cabo nos autos com vista a apurar o valor do prédio, para verificar que, tanto quanto resulta do relatório pericial, o terreno objeto destes autos se prolonga por aquilo que testemunhas consideraram ser “largo da feira” ou “local da feira”. Mais, o Sr. Perito considerou expressamente no seu relatório que a única fonte de rendimento que o terreno pode gerar é a que resulta, em face da sua localização, «da utilização ao longo do ano, nomeadamente pela ocupação da feira semanal da cidade ..., da ocupação da restauração ao longos das festas anuais dos Santos Populares». Quer isto dizer que as sucessivas feiras ocupam pelo menos parte do terreno.
Daí que quando a testemunha afirma, por exemplo, aos 14m55s da gravação do seu depoimento, que a comunidade cigana ou as barracas onde viviam «estavam precisamente no largo onde agora é a feira», explicitando depois que era para baixo da “Igreja” (instalações precárias destinadas ao culto religioso por parte da comunidade religiosa que o Réu integra como “ancião” – v. depoimento de OO), não seja possível excluir que se localizavam no terreno dos autos.
É verdade que a testemunha disse (15m30s) que achava que «eles [elementos da comunidade cigana] estavam fora do terreno» aqui em discussão e que havia uma parte que era da Câmara. Mas a própria testemunha demonstrou não ter certezas, pois, aos 16m45s afirmou: «Não sei. Não faço a mínima ideia.» e «não posso precisar ao certo se estava ou não» (16:47).
Posteriormente, durante o seu depoimento, teve sempre o cuidado de excluir a ocupação pela comunidade cigana de parte do terreno dos autos («encostado ao terreno da Sra.», «ao pé do terreno da Sra.», «no sopé do terreno da Sra.», etc.), como se existisse uma delimitação física percetível ou uma barreira invisível que impedia que a comunidade ocupasse tal terreno, mas acabou a localizar o acampamento «lá em cima quase encostado ao terreno da Sra.», «perto do sítio da feira, mas da parte de trás, mesmo ao pé do terreno da Sra.», «à esquerda das [atuais] casas de banho».
O único elemento que inequivocamente se situa no terreno dos autos é o barracão que constitui a igreja/capela (39.40 - «A igreja está no terreno da Sra.») e esse sabemos inequivocamente onde ele esteve durante todos estes anos desde que foi implantado, pois temos nos autos fotogramas desde 2004 até à atualidade e todas as pessoas ouvidas na audiência localizam a igreja no mesmo sítio.
Posto isto, a realidade é que este não foi o único depoimento prestado sobre a ocupação pela comunidade cigana de parte do prédio referido em C. A nosso ver é elucidativo o depoimento da testemunha OO por se deslocar às barracas onde viviam os diversos membros da comunidade cigana, como vendedora e ainda para participar no culto (orar, no dizer da testemunha) que passou a ter lugar na casa (que era na verdade uma barraca) dos Réus. Esta testemunha esclareceu que existiam várias barracas na zona onde era a casa dos Réus, todas juntas umas às outras, e que posteriormente o Réu “erigiu” a igreja no local onde anteriormente era a sua casa, fazendo obras nesta (deduzimos nós que para a adaptar ao culto religioso). Também a testemunha NN afirmou que ali existiam cerca de 20 barracas.
Termos em que improcede a impugnação sobre este ponto.
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2.2.3.3. Ponto F
Deu-se como provado que «os réus, às suas custas, edificaram um barracão no terreno referido em C.»
Argumenta o Recorrente BB que o «Facto F deveria ter sido dado como não provado - A testemunha NN (00:12:59) não sabe quem construiu e não viu obras, (00:10:12) não sabe o que é que o Réu tem a haver com o terreno. A Testemunha OO (00:11:21) não sabe se no local onde foi feita a capela se foi comprado, doado ou emprestado, (00:12:18) não sabe se foi ele sozinho que custeou a construção.»

Não consta deste ponto qualquer referência ao local onde foi implantado o barracão, a não ser que foi «no terreno referido em C.». Daí que seja irrelevante se as testemunhas sabiam ou não se o terreno «foi comprado, doado ou emprestado». São duas coisas diferentes: a aquisição do terreno e a edificação do barracão.
Em face da prova produzida não temos a mínima dúvida em secundar o juízo probatório que levou a dar como provado este facto.
Por um lado, resulta do depoimento da testemunha OO, pessoa que frequentava a barraca que os Réus transformaram mais tarde em barracão para funcionar como igreja, para aí participar no rito religioso em comunidade, que o dito barracão foi edificado pelos Réus. O que a testemunha desconhece, por nunca ter perguntado aos Réus, é se foram apenas estes a suportar os custos dessa edificação.
Por outro lado, as declarações de parte do Réu são esclarecedoras sobre quanto custou o barracão, quem o pagou e a finalidade que presidiu à sua edificação, em inteira consonância com o que se deu como provado.
Por isso, improcede a impugnação relativamente a este ponto.
*
2.2.3.4. Ponto G
Na sentença julgou-se provado:
«G. Desde 1984, de forma ininterrupta, os réus mantiveram-se na construção referida em F., tendo ali habitado até ao ano de cerca de 2002 e, posteriormente, naquele local, praticado o culto pelo menos duas vezes por semana, sendo o barracão, nos restantes dias, usado para ensinar a catequese aos jovens.»
Alega o Recorrente BB:
«Facto G deveria ter sido dado como provado com o seguinte teor:
“Os Réus habitaram no local até 2002, data em que foram realojados no Bairro Social em ... mediante o pagamento de renda. Posteriormente o local foi ocupado por um grupo de pessoas para a pratica de um culto” - A testemunha OO (00:26:21) explicou que o Réu mora em ..., foi uma pessoa que foi mobilizada dali. Os apartamentos em ... são arrendados. Eles deram alternativa mas têm de pagar por isso.»

Não descortinamos qualquer erro de julgamento.
O que se fez constar no ponto G é algo que emerge como pacífico do confronto dos depoimentos das testemunhas OO e NN com as declarações de parte do Réu. É especialmente relevante o depoimento da testemunha OO, na medida em que integra a comunidade religiosa em questão e, por isso, tem conhecimento das respetivas atividades.
É verdade que os Réus em 2002 foram realojados no Bairro ... (foram os últimos a sair do terreno, pois os demais começaram a ser realojados em 1998), mas o que se discute nestes autos não é a relação dos Réus com outro local, mas sim com o prédio objeto da escritura de justificação notarial.
Assim, mantém-se intocado este ponto de facto.
*
2.2.3.5. Ponto H
Neste ponto julgou-se provado:
«H. … Fazendo a limpeza do edifício e do logradouro (adro) na parte situada em frente à porta do barracão, desde a parede do barracão e até ao estremo do prédio na sua confrontação norte, e prosseguindo tal limpeza, desde data situada entre o ano de 2004 e 2006, na lateral nascente e poente do barracão e nas suas traseiras (parte virada a sul), numa extensão não concretamente determinada
Sustenta o Recorrente BB:
«Facto H deveria ter sido dado como provado com o seguinte teor:
“Esse grupo de pessoas que ali se deslocavam para orar, entre o ano de 2004 e 2006, fizeram a limpeza do edifício e do logradouro (adro) na parte situada em frente à porta do barracão e numa estreita faixa das laterais”
Como referido na sentença “a testemunha NN nada soube esclarecer a propósito da limpeza do terreno” e pela analise dos fotogramas extraídos do Google Maps (Street View) resulta que,

Desde logo, quanto à delimitação temporal e espacial das operações de limpeza, o próprio extrato da sentença que o Recorrente transcreve é elucidativo da realidade de alguns dos segmentos factuais que constam desta alínea dos factos provados. Está inteiramente de harmonia com os fotogramas extraídos do Google Maps (Street View) que constam dos autos que «nos anos de 2004 a 2015, só o espaço situado na parte da frente do barraco/local de culto e uma estreita faixa nas laterais se mantinham limpos».
 Depois, sendo verdade que resulta do depoimento da testemunha OO que o Réu beneficiou da ajuda de terceiros para efetuar a limpeza, o certo é que também emerge desse depoimento que o responsável por essa limpeza tem sido o Réu, assim como é devido a ele que as atividades religiosas têm prosseguido no barracão, o qual é um local não oficial. No fundo, mantém-se devido à iniciativa, proatividade e direção do Réu, como bem resulta elucidado das suas declarações.
Daí a improcedência da impugnação sobre este ponto.
*
2.2.3.6. Ponto I
Neste ponto julgou-se provado:
«I. E, às suas custas, os réus dotaram o barracão com mesas, cadeiras, luz, água potável e ar condicionado.»
Alega o Recorrente:
«Facto I. deveria ter sido dado como provado com o seguinte teor:
“Esse grupo de pessoas em data que não se pode precisar dotaram o barracão com mesas e cadeiras.”
A testemunha NN (00:1:26) nada sabe a este propósito e a testemunha OO esclareceu que cortaram água e luz (00:16:29)».

Assiste alguma razão ao Recorrente.
Os meios de prova produzidos sobre este ponto são insuficientes para permitir julgar provado o facto integralmente. Trata-se de um facto que foi de alguma forma descurado na prova produzida, que não se deteve nestes elementos.
Apenas o Réu afirmou ter suportado gastos com o recheio do barracão, não chegando sequer a pormenorizar o que consta do mesmo.
Sabe-se apenas que o barracão possui mesas, cadeiras e que a luz é fornecida por um gerador. Relativamente a tudo o mais não conseguimos adquirir um mínimo de convicção sobre a respetiva realidade.
Assim, na parcial procedência da impugnação, decide-se:
i) Alterar a redação do ponto I dos factos provados, que passará a ser a seguinte:
«I. O barracão referido em F. está dotado de mesas e cadeiras e dispõe de luz fornecida por um gerador.»
ii) Aditar um ponto 9 aos factos não provados, com o seguinte teor:
«9. Os Réus dotaram o barracão com água potável e ar condicionado e suportaram o custo com a aquisição de mesas e cadeiras.»
*
2.2.3.7. Pontos J e K
Estão agora em causa os seguintes factos:
- «Assim atuando [os Réus] às claras e à vista de toda a cidade,
- «Com conhecimento não só da comunidade cigana, mas também da comunidade em geral.»
O Recorrente BB não aduz uma especifica motivação para impugnar estes dois pontos, fazendo-o de uma forma genérica relativamente aos pontos J a N, a saber:
«Facto J. a N. deveriam ter sido dado como não provado.
Como supra se referiu e resultou claro da prova documental e testemunhal, eram um grupo de pessoas que se deslocavam ao local para a pratica do culto, não podendo tais atos se traduzir em atos dos Réus.
Ademais, sempre se dirá que em todo o julgamento não houve uma única testemunha que se tivesse referido à Ré.»

Nenhum dos atos que se deram como provados foi feito às ocultas, nem isso foi afirmado por qualquer pessoa ouvida na audiência.
Portanto, de harmonia com a prova pacificamente produzida sobre esta matéria, os factos levados aos pontos J e K correspondem à realidade, emergindo isso das declarações de parte do Réu e dos depoimentos das testemunhas OO e NN. A utilização do barracão para a prática religiosa até foi constatada pelas três testemunhas arroladas pelos Autores, tudo às claras, à vista de quem quisesse ver, sejam pessoas da comunidade cigana ou de qualquer outra etnia ou comunidade.
Termos em que improcede a impugnação sobre este ponto.
*
2.2.3.8. Ponto L
Neste ponto julgou-se provado: «Sem qualquer violência ou oposição dos autores».
Os Recorrentes DD e EE alegam que «em face da prova documental existente nos autos, em concreto a certidão judicial de fls. 141 e ss. e a escritura de habilitação de fls 225 e ss., que pelos factos de que fazem prova e respectivas datas demonstram que este facto deveria ter sido considerado não provado».

Não se alcança como é que os aludidos documentos infirmam o que se deu como provado.
Primeiro, nenhum dos documentos demonstra que os Réus, em algum momento, tenham agido com violência, seja física ou psicológica (coação). Também nenhuma das pessoas ouvidas na audiência afirmou ter conhecimento de qualquer ato violento por parte dos Réus.
Segundo, também os dois documentos invocados não demonstram qualquer ato dos Autores, seja a que título for, no sentido de se oporem à utilização que os Réus faziam de uma parte delimitada do terreno ou do barracão aí existente. A realidade é que só com a publicitação da escritura de justificação social despertaram para o assunto em discussão nos autos, como bem se aponta na decisão recorrida («anotando-se que os autores nunca antes reagiram à referida ocupação permanente do solo, tendo apenas atuado na sequência da justificação da globalidade do prédio a favor dos réus, como admitido pelas testemunhas por si arroladas».
Como inexiste erro de julgamento, o ponto L mantém-se nos seus precisos termos.
*
2.2.3.9. Ponto M
Neste ponto julgou-se provado: «Desconhecendo [os Réus] que lesavam o direito de outrem».
Todos os Autores recorrentes se insurgem quanto à decisão sobre este ponto.
Os Recorrentes DD e EE alegam que «em face de prova gravada, concretamente o depoimento da testemunha PP e as declarações do próprio recorrido FF, também o facto M deveria ter sido considerado não provado».
A Recorrente AA sustenta «que prova alguma foi produzida nesse sentido, decorrendo da prova produzida exatamente o contrário: quer os Réus quer os antecessores, tinham a perfeita consciência de que o espaço em causa não lhes pertencia.» Invoca o depoimento de PP (filho do Recorrente BB), «segundo o qual a construção do barracão/capela mereceram autorização meramente temporária de II» e as declarações do Réu, das quais «resulta claro o verdadeiro contexto da causa de permanência do barraco / capela no local, o que resultou da resistência da família do Recorrido marido à ordem administrativa de mudança para um novo bairro que veio a ser criado para realojar a comunidade cigana, o qual acabou por mudar a sua residência para esse novo bairro, “reconvertendo” o espaço onde antes habitava em local exclusivamente de culto».

Analisada a decisão recorrida, verifica-se que na mesma não foi especificada qualquer motivação autónoma sobre este facto.
Depois, revista a prova produzida, verifica-se que nenhuma testemunha confirmou o que consta do ponto M. Para que fique inteiramente claro, as testemunhas OO e NN não foram inquiridas sobre esta matéria, enquanto a testemunha PP se pronunciou nos termos suprarreferidos pela Recorrente AA. Do facto de o Réu se afirmar dono do prédio na sua totalidade não resulta, nem é lícito presumir, que ambos os Réus desconheciam que lesavam o direito de outrem. Pura e simplesmente, face aos meios de prova juntos aos autos, ignora-se se os Réus desconheciam ou não que lesavam o direito de outrem.
Pelo exposto, decide-se eliminar o facto constante do ponto M dos factos provados e aditar um novo ponto aos factos não provados, com o seguinte teor:
«10. Os Réus desconheciam que lesavam o direito de outrem.»
*
2.2.3.10. Ponto N
Neste ponto deu-se como provado: «Fazendo seu o barracão e seu logradouro.»
Todos os Autores recorrentes impugnam este facto.
Como já se referiu atrás, o Recorrente BB não aduz um especifico fundamento para se considerar este ponto como não provado, tendo recorrido a um argumento genérico relativamente aos pontos J a N, alegando que «eram um grupo de pessoas que se deslocavam ao local para a pratica do culto, não podendo tais atos se traduzir em atos dos Réus».
Ora, se é certo que há um grupo de pessoas que duas vezes por semana vai ao barracão para desenvolver atividade religiosa e que noutros dias aí decorre a catequese (v. depoimento de OO, sendo certo que NN também lá levou algumas vezes os sobrinhos para o mesmo efeito), essa simples circunstância não infirma o que consta do ponto N.

Por sua vez, a Recorrente AA, alega: «Calcorreado o conjunto de prova testemunhal e por declarações, em momento algum é feita uma referência a factos relacionados com a dimensão do animus possidendi centrada nos Recorridos, cingindo-se exclusivamente ao corpus». Deu «por integralmente reproduzidos os fundamentos e meios de prova invocados a propósito do mesmo, que se reiteram, devendo o facto provado N ser, antes, julgado não provado».
Quanto aos Recorrentes DD e EE, invocam o depoimento da testemunha PP e as declarações do próprio recorrido FF, «bem como os documentos nºs ... e ... juntos pelos recorridos, deveriam ter determinado quanto ao facto N um não provado»

Tendo presente os argumentos e meios de prova invocados pelos referidos Recorrentes, consideramos, em primeiro lugar, que é inequívoco que os Réus, pela sua atuação, fazem seu o barracão e o logradouro deste, tal como julgado provado na sentença.
Para o efeito é absolutamente irrelevante o teor dos documentos nºs ... e ... juntos pelos Réus com a sua contestação. Ao contrário do sustentado pelos Recorrentes, esses documentos não demonstram que «o Réu não atuava em nome próprio, mas sim como um representante do culto evangélico» (alegação do Recorrente BB, que os demais também sustentam com uma formulação que reproduz a mesma ideia).
Esses documentos não foram subscritos pelo Réu, mas sim por terceiros, em concreto uma declaração produzida por um vereador da Câmara Municipal ... endereçada à Electricidade... com vista a convencer esta entidade a fornecer energia elétrica às instalações de «um culto evangélico» (doc. ...) e uma comunicação dirigida ao Réus por um chefe de gabinete do Município ... (dos. 2), os quais têm o seguinte teor (ressalvando-se algum lapso na transposição):
«À Electricidade....,
No largo da floresta está instalado, em instalações precárias, um culto evangélico, que aí ficou após a demolição das barracas de etnia cigana.
Em breve será localizado noutro local. Cumpre uma função social importante.
O fornecimento de energia, ainda que a título precário, é indispensável p/ o prosseguimento das actividades. Solicito a V/ melhor atenção para o problema.
QQ» - doc. nº ....
«Exmo. Senhor
FF
Cooperador de Oficio Ministerial da Congregação Cristal em ...
Para os devidos efeitos (ligação de energia), se declara que este culto se encontra instalado a titulo provisório em instalação precária, carecendo por isso do fornecimento de energia, para o funcionamento do culto que presta uma função social importante.
Com os melhores cumprimentos.
..., 14 de Março de 2010
O Chefe de Gabinete
UU» - doc. nº ....
Daí que estes documentos, não sendo reveladores de qualquer intenção, propósito ou atuação material dos Réus relativamente ao prédio ou parte dele, nada demonstrem em contrário do que se deu como provado.
Em segundo lugar, que os Réus fazem seu o barracão e o respetivo logradouro resulta evidente do simples facto de se terem disposto a recorrer a uma escritura de justificação notarial. Quiserem fazer sua a área do barracão e do logradouro e ainda a restante parte do prédio, sendo certo que relativamente ao remanescente os autos não evidenciam, em face da prova produzida (documentos e depoimentos das testemunhas, sendo que as próprias declarações do Réu a esse respeito não passam de uma afirmação sem suporte probatório, como se bastasse afirmar em tribunal, sem mais, que se é dono de determinada coisa) praticaram atos de detenção ou apreensão material.
Em terceiro lugar, o problema nem sequer é o de saber se os Réus fazem seu o barracão e o logradouro deste, mas desde quando é que isso sucede, questão factual que não é respondida neste ponto de facto.
Em quarto lugar, não é pelo facto de no barracão decorrerem atividades religiosas que os Réus deixam de o fazer seu, bem como ao logradouro. Foi o Réu que congregou esforços para a referida utilização e a mesma é dirigida por si, exercendo o poder de facto sobre o barracão e o logradouro, pondo e dispondo relativamente aos mesmos, apesar da ajuda de que beneficia por parte dos membros da congregação.
Isso mesmo é explicado na motivação da decisão sobre a matéria de facto, nos extratos que se passam a transcrever:
- «(…) do depoimento circunstanciado prestado pela testemunha OO convenceu-se o tribunal que a construção que hoje é usada como local de culto (afetação que invariavelmente foi admitida por todas as testemunhas inquiridas) foi em tempos (e desde pelo menos 1984) a “barraca” de habitação dos réus, por a referida testemunha, em total consonância com o declarado pelo próprio réu, ter confirmado que era mais ou menos no sítio da atual “barraquinha” que se localizava, no tempo do acampamento (há mais de 35 anos), a casa do “irmão FF”, que a mesma bem conhecia (como às demais) por se ter deslocado amiúde ao acampamento para receber o pagamento dos eletrodomésticos que ali vendeu ao membros da comunidade cigana e se ter deslocado à referida casa para orar, tendo declarado que a barraquinha, sobre a égide do réu, se manteve sempre como sítio de oração após a saída da comunidade cigana do local, incluindo após a mudança da própria residência dos réus para ..., tendo-se entretanto tornado “evangelização não oficial”, que o réu sempre conservou e zelou, tendo feito ali obras de melhoramento (“antigamente o chão era em terra batida”) e construído as escadas de acesso ao local, a sua expensas e com dádivas de trabalho “dos crentes”, tendo procedido à limpeza do terreno em redor da barraca, com a ajuda “dos crentes”, tudo acontecendo a seu mando e sob sua determinação»;
- «(…) aquela barraca veio a permanecer no local, tendo sido melhorada pelo réu a suas expensas, ali tendo o réu investido poupanças próprias, incluindo no melhoramento dos respetivos acessos, tendo construído umas escadas perfeitamente visíveis a partir da via pública (vide fotogramas juntos oficiosamente aos autos), tendo-se também publicamente tornado num lugar de culto orientado pelo réu, ao qual acorriam dezenas de pessoas, tudo como declarado, de forma credível, pela testemunha OO, percebendo-se, pela análise concatenada dos fotogramas juntos aos autos pelos réus, que, só entre 2004 e 2006, é que o adro começou a ser alargado para a lateral poente e sul do barraco em medida que não foi possível apurar».
Pelo exposto, improcedem as conclusões formuladas relativamente a esta questão factual.
*
2.2.3.11. Ponto O
Tendo a Exma. Juiz julgado provado que «o réu marido participou o prédio referido em C. às Finanças em dezembro de 2016», o Recorrente BB sustenta que o «[f]acto O. deveria ter sido dado como provado com o seguinte teor:
“O Réu marido participou as Finanças em dezembro de 2016, encontrando-se atualmente averbado em nome de II - Cabeça de casal de, numero fiscal ...82”
Conjugação dos documentos n.º ... a ...2 juntos com a replica, em especial o documento ... (caderneta predial urbana), documento ... (demonstração da liquidação da herança) e 8 a 12 (comprovativos de pagamento de IMI de 2018 a 2021).»

O facto que consta da alínea O dos factos provados está em consonância com a realidade, tanto que o próprio Recorrente pretende que conste da nova redação que propõe.
O facto provado corresponde ao alegado pelos Réus, a quem competia o ónus da prova. Por outro lado, o aditamento que o Recorrente pretende que se introduza não integra qualquer facto impeditivo ou extintivo do direito invocado pelos Réus ou qualquer outra exceção, pelo que é verdadeiramente irrelevante. Além disso, engloba-se na atuação dos Autores de reação à escritura de justificação notarial, de que esta ação é paradigma.
Termos em que improcede a impugnação sobre este ponto de facto.
*
2.2.3.12. Ponto P
Finalmente, tendo a Exma. Juiz julgado provado que o Réu marido «requisitou um contador da luz na Electricidade...», o Recorrente BB alega que o «[f]acto P. deveria ter sido dado como provado com o seguinte teor:
“O Réu marido em 2010, na qualidade de “Cooperador de Oficio Ministerial da Congregação Cristal em ...” requisitou um contador de luz na Electricidade..., documento que enviou com o seguinte conteúdo:
“No largo da floresta está instalado, em instalações precárias, um culto evangélico, que aí ficou após a demolição das barracas de etnia cigana.
Em breve será localizado noutro local...”
Para se chegar a tal conclusão basta uma breve leitura dos documentos ... e ... juntos pelo Réu na contestação.»

Mais uma vez, nenhuma dúvida existe de que o facto levado à alínea P dos factos provados corresponde à realidade, sendo que o próprio Recorrente o admite.
O que pretende que se integre no ponto P é algo que não resulta dos autos.
Em primeiro lugar, como já se teve oportunidade de enfatizar, os documentos nºs ... e ... da contestação não foram subscritos pelo Réu e não está demonstrado que tenham acompanhado/integrado a requisição do contador de eletricidade e muito menos que nessa requisição tenha sido exarado o extrato transcrito. Pura e simplesmente, isso não resulta dos referidos documentos nºs ... e ....
Em segundo lugar, em lado algum consta que o Réu requisitou o fornecimento de energia elétrica «na qualidade de “Cooperador de Oficio Ministerial da Congregação Cristal em ...”». Nenhuma prova documental ou testemunhal (ou outra) foi produzida sobre tal matéria.
Improcede, por isso, a impugnação sobre este ponto.
**
2.2.4. Reapreciação de Direito
2.2.4.1. Do recurso dos Réus
Os Réus interpuseram recurso de apelação, pretendendo que seja «alterada a decisão de que agora se recorre», isto é, a sentença.
Tendo sido rejeitada a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o quadro factual relevante com vista à subsunção jurídica é o mesmo que serviu de base à prolação da sentença recorrida.
Os Réus não formularam uma única conclusão em matéria de direito e fizeram depender a alteração da solução jurídica alcançada na decisão impugnada apenas da modificação da matéria de facto.
 Por conseguinte, como a reapreciação da matéria de direito dependia da procedência da impugnação da decisão da matéria de facto fixada, sendo esta última rejeitada, fica necessariamente prejudicado o conhecimento daquela primeira, em conformidade com o disposto no artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, in fine, ambos do CPC.
*
2.2.4.2. Vinculação temática
Sob diferentes formulações, os diversos Recorrentes insurgem-se contra a sentença por esta ter dado como provados factos que alegam ser substancialmente divergentes dos declarados na escritura pública de justificação notarial.
Já apreciamos diretamente esta questão em 2.2.3.1., complementada pelo que havíamos concluído em 2.2.1. (sobre a coincidência entre o objeto da decisão e o objeto do processo delimitado pelas partes, tendo o Tribunal concedido menos do que aquilo que lhe foi pedido), onde concluímos pela sua improcedência. É admissível, na ação de impugnação de escritura de justificação notarial, operar a redução da justificação no que tange ao objeto justificando, pelas razões que aí se referiram.
Por isso, consideramos desnecessária a repetição da argumentação expendida, para a qual se remete.
*
2.2.4.3. Abuso do direito
O Recorrente BB invoca, na conclusão XXX, que à «luz deste instituto jurídico [abuso do direito] deve ficar impedido o exercício do direito do Réus – aquisição por usucapião – por se constatar que os mesmos foram realojados em bairros camarários precisamente para desocupar o acampamento cigano -, e agora pretendem invocar tal ocupação para invocar a usucapião

Nos termos do artigo 334º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O Recorrente conclui pelo abuso do direito, mas não concretiza quais os concretos limites que os Recorridos excederam. Terão sido os impostos: a) pela boa fé; b) pelos bons costumes; c) pelo fim social do direito; ou, d) pelo fim económico desse direito?

Estando a situação dos autos manifestamente fora do âmbito dos bons costumes, enquanto cláusula geral de direito privado que remete para princípios morais sociais que devem regular o comportamento das pessoas, resta apreciar se a invocação da aquisição por usucapião configura uma ultrapassagem dos limites impostos pela boa fé ou pelo fim social ou económico do direito (de propriedade).
Para Manuel de Andrade[7] o abuso do direito verifica-se quando os direitos são «exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça» e nas «hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito de lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico, embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição».
Numa formulação mais atual, como aquela que consta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.12.2008 (proc. 08B2688 – Santos Bernardino)[8], «a figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo».
No que respeita ao fim social ou económico do direito, a sua aferição é feita com base nos juízos de valor positivamente consagrados na lei. Se a lei consagra o direito para realizar um concreto interesse, o direito não pode ser exercido para satisfazer um interesse diferente pelo seu titular.
Já para determinar os limites impostos pela boa fé há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade.
No caso vertente, os Réus, ao invocarem a aquisição do direito de propriedade sobre um terreno onde tinham erigida a barraca que constituiu a sua habitação desde 1984 a 2002 e que posteriormente passaram a utilizar o barracão para aí serem cumpridos ritos religiosos de uma congregação de que fazem parte, estão a exercer um direito que a lei lhes concede e de harmonia com a respetiva finalidade.
Invocarem a aquisição depois de terem sido realojados num bairro social não constitui qualquer extravasar dos limites do fim social ou económico do direito de propriedade. O facto de serem arrendatários de um outro imóvel, onde têm agora a sua habitação, não é motivo para obstar à aquisição de uma parcela de terreno onde erigiram uma estrutura amovível agora destinada, quando foi exercido o direito, a atividade religiosa; são duas realidades inteiramente distintas e que realizam também interesses distintos. O que releva é que a aquisição do direito de propriedade está a ser utilizada para um interesse que é legítimo e que é conforme com a sua finalidade. Estão a agir em conformidade com o fim social ou económico do direito que emerge do disposto nos artigos 1287º do CCiv. Estão a realizar o interesse que a lei visa tutelar.
Sobra apurar se a invocação da aquisição do direito de propriedade por usucapião, no concreto circunstancialismo apurado nos autos, viola os limites impostos pela boa fé.
Pautar a conduta pela boa fé é agir com lisura, correção e lealdade, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros, atento o sentido ético-objetivo que lhe é conferido pelo Código Civil.
Ora, sendo permitida a aquisição por usucapião mesmo estando o possuidor de má-fé (v. artigo 1296º e 1260º, nº 1, a contrario, do CCiv), forçoso é concluir pela irrelevância do alegado pelo Recorrente. Com efeito, o regime vigente da usucapião prescinde totalmente da boa fé, tendo a má fé relevância no alongar dos prazos para usucapir (à posse de boa fé está associado um tratamento jurídico mais favorável do possuidor). Mesmo que o possuidor esteja de má-fé, tem direito a usucapir.
Termos em que se desatende esta questão.
*
2.2.4.3. Posse
Os Recorrentes suscitam várias questões atinentes à posse, que no fundo se reconduzem à inexistência dos requisitos da posse apta para aquisição de parcela do prédio por usucapião (posse boa para usucapião[9]).
O Recorrente BB sustenta que «a falta de prova nos autos da posse conducente à aquisição por título originário, por usucapião, e constante na escritura de justificação (e concretamente da falta de prova da posse fundada doação), conduz à falta da prova da posse alegada na escritura de justificação impugnada pelos autores» (XXI). Acrescenta que «não tendo a Ré logrado provar a invocada doação, o apurado “corpus” não pode constituir base da aludida presunção [1252º, nº 2, do CCiv], pelo que, para fazer valer a sua pretensão, lhe restaria provar, por força da regra geral que faz impender o encargo da prova sobre aquele que se arroga o direito (art. 342º, nº 1, do CC), que os atos por si praticados tinham subjacentes a intencionalidade de exercer sobre o dito prédio, como seu titular, o direito de propriedade – o que aquele não logrou fazer –, não havendo, pois, que exigir à Autora o afastamento da aludida presunção de posse mediante prova de que, pelo contrário, tais atos foram praticados pelo Ré por mera tolerância dos sucessivos titulares do aludido direito» (XXVII).
Também a Recorrente AA alega que, tendo os ora Recorridos feito constar do texto da escritura de justificação notarial que não foram os primeiros possuidores, por o prédio lhes ter sido verbalmente doado, «são inaplicáveis as presunções estabelecidas nos arts. 1252º n.º 2 do CC, já que a alegada posse não se iniciou com os ora justificantes/recorridos» (XXIX)
Finalmente, os Recorrentes DD e EE alegam que, na ausência de prova, «o Tribunal a quo socorreu-se de uma presunção de animus possidendi prevista no artº 1257, nº 2 do C.C.» (conclusão 15), «presunção legal que é inaplicável no presente caso porquanto nos termos do declarado na escritura de justificação de posse, os ora Apelados não foram os primeiros possuidores, tendo como antecessores os pais do justificante marido, KK e LL que fizeram doação, não titulada por escritura pública, daquele prédio aos ora justificantes, conforme teor da escritura constante do facto provado C» (16).

Ocupemo-nos agora desta questão, começando por delinear abreviadamente o quadro jurídico relevante.
A palavra posse inculca vulgarmente a ideia de poder de facto exercido sobre certa coisa, no sentido de controlo material dela. Em sentido técnico-jurídico, a posse integra a presença cumulativa de dois elementos distintos: o corpus e o animus. Para que seja juridicamente relevante, além do poder de facto sobre a coisa, isto é, na atuação correspondente ao exercício do direito por parte do possuidor – o corpus –, é necessário que exista uma específica disposição anímica por parte de quem exercer o corpus, consistente na intenção de o possuidor agir como beneficiário do direito, de exercer tal direito como titular do mesmo. Este elemento volitivo ou subjetivo da posse designa-se por animus possidendi.
Se mantida a posse por certo lapso de tempo, faculta-se ao possuidor a aquisição do direito correspondente à sua atuação. Essa forma de adquirir o correspondente direito real de gozo chama-se usucapião (art. 1287º do CCiv). No caso de imóveis, são aplicáveis os prazos previstos nos artigos 1294º a 1296º do CCiv, sendo para o efeito relevantes os caracteres da posse enunciados nos artigos 1258º a 1262º do CCiv.
No caso de posse de má-fé e não havendo registo do título ou da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de 20 anos.
Relevam para o caso dos autos os dois modos de aquisição da posse previstos no artigo 1263º, als. a) e b), do CCiv: i) a aquisição da posse pela prática reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito; ii) a aquisição pela tradição material ou simbólica da coisa, efetuada pelo anterior possuidor. A primeira é uma forma de aquisição originária e a segunda uma aquisição derivada.
Atentas as questões suscitadas nos autos, é relevante definir o momento em que ocorre o efeito aquisitivo da posse (não confundir com o momento da eficácia da usucapião, que são conceitos diferentes, embora este coincida com aquele, dada a retroatividade da usucapião – art. 1288º), o qual difere consoante os dois identificados modos de aquisição possessória. No caso da alínea a) do artigo 1263º, o início da posse situar-se-á na data em que se prove ter começado a prática, com publicidade, dos atos materiais, nela referidos. No caso da alínea b) do artigo 1263º, a posse deve ter-se por iniciada na data em que teve lugar a tradição, material ou simbólica, da coisa.
No nº 2 do artigo 1252º do CCiv estabelece-se uma importante presunção: «em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo 1257º». Significa que quem exerce o poder de facto sobre certa coisa fica isento do ónus da prova do respetivo animus possidendi. Dito de outro modo, o exercício do poder de facto faz presumir a existência do animus.
Segundo Penha Gonçalves[10], referindo-se à parte final do nº 2 do artigo 1252º do CCiv, «o sentido útil desta ressalva legal parece ser o seguinte: a aludida presunção não poderá ser invocada quando se prove que a posse se iniciou como precária porque, então, por força daquele preceito [o nº 2 do artigo 1257º do CCiv], tem de se presumir que continua como tal». Dito de outro modo, se o atual detentor, apesar de exercer o poder de facto, iniciou a detenção em nome de outrem, a posse continua em nome de quem a começou, pelo que se considera ser apenas um possuidor precário.
Dispõe o nº 2 do artigo 1257º do CCiv: «presume-se que a posse continua em nome de quem a começou». Consagra uma presunção quanto à titularidade da posse.
Desta disposição emergem dois corolários: por um lado, o possuidor apenas necessita de provar ter ele começado a posse; por outro, a sua posse ulterior presume-se nos mesmos termos que a caracterizavam aquando do seu início. Em princípio, não sendo feita prova em contrário, o possuidor apenas precisa de invocar o ato de constituição da posse, pois a posse futura presume-se.
Fazendo a articulação entre as duas presunções: como se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, e todavia a posse continua em nome de quem começou, mesmo que não exerça o poder de facto, a presunção do nº 2 do artigo 1257º do CCiv prevalece sobre a constante do nº 2 do artigo 1252º do CCiv[11].
O nº 1 do artigo 1257º do CCiv demonstra a essencialidade do corpus para a demonstração da posse, mas também a flexibilidade com que deve ser apreciada a sua manutenção. Se é certo que a posse se conserva pelo seu exercício, o fundamental é a atividade inicial de apreensão material da coisa – o apossamento ou adprehensio[12] –, pois a lei não exige que os atos materiais sejam praticados de modo contínuo, bastando-se com a possibilidade concreta de continuar a atuação correspondente ao direito.

Revertendo à questão em apreciação, verifica-se que os Réus invocaram a transmissão da posse por ato entre vivos, traduzida numa doação que lhes teria sido feita pelos pais do Réu marido sem revestir a forma legal.
Se nada mais tivessem alegado, a não demonstração da transmissão da posse, levaria à conclusão de que não se mostravam investidos na posse da coisa, o que só por si acarretaria a procedência da ação. O mesmo resultado – procedência total da ação – se obteria se os Autores demonstrassem que a eventual detenção da coisa pelos pais do Réu marido era a título precário e que os Réus sucederam por ato de transmissão entre vivos nessa mesma posse: por força da articulação do nº 2 do artigo 1257º do CCiv com o nº 2 do artigo 1252º do CCiv, como a posse se tinha iniciado como precária, então teria de se presumir que a posse dos Réus, enquanto transmissários, continuaria como tal.
Sucede que nem uma coisa nem outra está demonstrada: os Réus não provaram ter adquirido a posse por tradição da coisa (não provaram ter ficado investidos numa posse já existente) e não resulta dos autos que o prédio ou uma parcela dele estivesse na posse precária (simples detenção – art. 1253º do CCiv –, designadamente pelo aproveitamento da tolerância do titular do direito) dos pais do Réu marido e que estes a tivessem cedido aos Réus.
Sucede que logo na escritura de justificação notarial os invocaram, também, a sua própria posse; não só a transmissão da posse pela tradição material da coisa por contrato de doação verbal, mas que passaram a exercer a posse efetiva em nome próprio, com corpus possessório e ânimo possidendi. É isso que resulta do seguinte segmento das suas declarações, exaradas naquela escritura: «Que, desde aquele ano de 1984, eles, justificantes, sempre têm usado e fruído o prédio, limpando-o, roçando o mato, demarcando-o, gozando todas as utilidades por ele proporcionadas, com ânimo de quem exercita direito próprio, sendo reconhecidos como seus donos por toda a gente, fazendo-o de boa fé por ignorarem lesar direito alheio, pacificamente, porque sem violência, contínua e publicamente, à vista e com o conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém – e tudo isto por um lapso de tempo superior a 20 anos.»
No âmbito dos presentes autos, sendo certo que não provaram a transmissão da posse no ano de 1984, os Réus demonstraram menos do que aquilo que tinham declarado na escritura de justificação notarial, mas provaram factos reveladores de uma posse efetiva, desde 1984, sobre uma parcela do prédio de que se arrogavam donos (o prédio identificado em C). Por isso, não estando demonstrado o pressuposto da aplicação da presunção do nº 2 do artigo 1257º - a existência de uma posse anterior a 1984 em nome de outrem – não se presume que a posse, seja qual for a sua natureza, continua em nome de quem a começou, fenecendo a argumentação dos Recorrentes sobre tal matéria.
A realidade, independentemente dos efeitos jurídicos que se venham a retirar no âmbito desta ação de impugnação judicial de escritura de justificação notarial, é que os Réus provaram ter edificado, às suas custas, um barracão no terreno referido em C e que desde 1984, de forma ininterrupta, mantiveram-se nessa construção, habitando nela até ao ano de 2002 e, posteriormente, naquele local, praticado o culto pelo menos duas vezes por semana, sendo o barracão, nos restantes dias, usado para catequizar os jovens, fazendo a limpeza do edifício e do logradouro (adro) na parte situada em frente à porta do barracão, desde a parede do barracão e até ao estremo do prédio na sua confrontação norte, e prosseguindo tal limpeza, desde data situada entre o ano de 2004 e 2006, na lateral nascente e poente do barracão e nas suas traseiras (parte virada a sul), numa extensão não concretamente determinada. Essa atuação é «às claras e à vista de toda a cidade, com conhecimento não só da comunidade cigana, mas também da comunidade em geral», sem qualquer violência por parte dos Réus ou oposição dos Autores e fazendo seu o barracão e seu logradouro.
Exercendo o corpus possessório em nome próprio, e não por mera tolerância da titular do direito de propriedade ou por terem a autorização desta (v. ponto 8 dos factos não provados), os Réus beneficiam da presunção estabelecida no artigo 1252º, nº 2, do CCiv: presume-se a posse por exercerem o poder de facto sobre a aludida parcela de terreno e construção precária nele erigida.
Deixa-se bem explícito que, ao contrário do defendido pelos Recorrentes, a aludida presunção não é afastada pelo facto de não terem demonstrado a doação do terreno. Não estando demonstrada qualquer traditio, não é lícito afirmar a existência de aquisição derivada de posse precária. Não estão reunidos os pressupostos para o afastamento da presunção com base na ressalva do nº 2 do artigo 1252º do CCiv e inerente aplicação da presunção prevista no nº 2 do artigo 1257º do CCiv, cuja forma de articulação já expusemos.

Por isso, tal como se concluiu na sentença, estão reunidos os requisitos da usucapião (art. 1296º do CCiv), decorrido que está um prazo de 20 anos de posse boa para o efeito, por referência ao barracão e respetivo logradouro (adro) frontal, cuja área o Tribunal a quo não logrou definir.
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2.2.4.4. Indefinição e falta de caracterização
A Recorrente AA suscita, com pertinência, a questão de a parcela abrangida pela ineficácia declarada na sentença não se encontrar delimitada com rigor e quantificada a sua área. Os demais Recorrentes, embora centrando-se na questão da inobservância da vinculação temática (que soçobra pelos motivos já apontados), também afloram esta matéria.
Alega a Recorrente AA que «a escritura de justificação de posse tem necessariamente um objeto, que corresponde a prédios individualizados pelo justificante. A individualização do prédio implica que o mesmo seja cabalmente identificado com elementos que permitam compor a sua descrição predial de acordo com o art. 82º do Código do Registo Predial, sendo elemento obrigatório, designadamente, a indicação da área do prédio e a situação matricial do prédio expressa pelo artigo de matriz, definitivo ou provisório.»
Argumenta ainda que «a escritura tem de ser instruída, designadamente, com certidão de teor da correspondente inscrição matricial (cfr. art. 98º n.º 1 al. a) do Código do Notariado), o que implica uma total convergência desta com a descrição predial que será, posteriormente, levada ao registo predial, em obediência ao princípio da harmonização positivado nos arts. 28º a 32º do Código do Registo Predial.»
No seu entender, não se afigura admissível «operar-se uma reformatação judicial do prédio abrangido pelo ato notarial em causa, em total divergência com a inscrição matricial utilizada pelo Notário, tornando inútil uma exigência que o Legislador quis acautelar: a existência fiscal do prédio nos exatos termos do objeto justificando, conduzindo a um resultado contrário ao imposto pelos art. 98º n.º 1 al. a) do Código do Notariado, em flagrante violação do mesmo.»
Vejamos.
No caso dos autos, os Autores impugnam uma escritura de justificação notarial. Como os declarantes fizeram referência à sequência de aquisições derivadas, poder-se-ia dizer que se destinava ao reatamento do trato sucessivo, em conformidade com o disposto nos artigos 90º do Código do Notariado e 116º, nº 2, do Código do Registo Predial. Porém, se melhor analisarmos a escritura, verifica-se que os justificantes emitiram declarações dubitativas sobre uma das transmissões anteriores e invocaram expressamente a usucapião, descrevendo os atos em que se funda. Daí que se deva considerar que o fim era o estabelecimento de trato sucessivo, nos termos dos artigos 89º do Código do Notariado e do artigo 116º, nº 1, do Código do Registo Predial.
A Recorrente alega que a «sentença violou os arts. 89º n.º 1, 90º n.º 1, 98º n.º 1 al. a) e 101º n.º 2 do Código do Notariado e, ainda, arts. 28º a 32º e 116º n.º 1 e 2 do Código do Registo Predial», pelo que se impõe que nos detenhamos nessas disposições legais.
Artigo 89º, nº 1, do CNot: «A justificação, para os efeitos do nº 1 do artigo 116º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.»
Artigo 90º, nº 1, do CNot: «A justificação, para os efeitos do nº 2 do artigo 116º do Código do Registo Predial, tem por objeto a dedução do trato sucessivo a partir do titular da última inscrição, por meio de declarações prestadas pelo justificante.»
Artigo 98º, nº 1, do CNot: «A escritura de justificação para fins do registo predial é instruída com os seguintes documentos: a) Certidão comprovativa da omissão dos prédios no registo predial ou, estando descritos, certidão de teor da respetiva descrição e de todas as inscrições em vigor; b) Certidão de teor da correspondente inscrição matricial.»
Artigo 101º, nº 2, do CNot: «Só podem ser passadas certidões de escritura de justificação decorridos 30 dias sobre a data em que o extrato for publicado, se dentro desse prazo não for recebida comunicação da pendência da impugnação.» Como resulta do que se acaba de transcrever, trata-se de preceito irrelevante para o que se discute nos autos.
Artigo 116º, nºs 1 e 2, do Código do Registo Predial: «1 - O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo. 2 - Caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, a falta de intervenção do respetivo titular, exigida pela regra do nº 2 do artigo 34º, pode ser suprida mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo.»
Quanto aos artigos 28º a 32º Código do Registo Predial, invocados pela Recorrente, importa referir que os artigos 30º e 32º se mostram revogados, respeitando os restantes à conjugação do registo, das matrizes prediais e dos títulos, sendo de destacar a harmonização entre a matriz predial e a descrição dos prédios. De nenhuma dessas disposições decorre a regra da imutabilidade da descrição e ainda menos das matrizes prediais, sendo que o próprio artigo ...1º ressalva as consequências da declaração para inscrição na matriz ou da sua alteração ou retificação.
Verifica-se que os Réus, para efeitos de celebração da escritura de justificação notarial, deram cumprimento ao disposto no artigo 98º, nº 1, do CNot, pelo que naturalmente a sentença não violou tal disposição.
Também as demais disposições do Código do Notariado e do Código do Registo Predial não se mostram violadas pela sentença, quando declarou ineficaz a escritura pública «na parte em que justificou o direito de propriedade dos réus para além da área do barracão e respetivo logradouro (adro) fontal referidos em F. a I. da factualidade assente, ficando os efeitos de tal escritura restringidos a tal parcela de terreno» e ordenou o cancelamento da inscrição registral «que tenha sido efetuada em nome dos réus com base na escritura de justificação e para além do direito de propriedade atinente à parcela de terreno correspondente à área do barracão e respetivo logradouro (adro) fontal referidos em F. a I. da factualidade assente.»
O que parece perturbar os Recorrentes é, em primeiro lugar, a circunstância de desse facto resultar a autonomização de uma parcela de terreno relativamente ao prédio total referido em C (que tinha uma área total de 13.970 m2). Esteja em causa um parcelamento ou uma desanexação, entendida como o destacamento da parcela de um prédio para constituir um outro (ou juntar a um outro, situação que não se verifica no caso dos autos). No caso, por efeito da decisão[13], dá origem a uma nova unidade que constitui objeto de um direito de propriedade unitário.
Em termos de registo predial, em decorrência do disposto no artigo 79º, nº 2, do CRPredial terá que ser feita uma descrição distinta para a nova unidade predial, sendo que o artigo 80º, nº 2, expressamente prevê que isso possa resultar de desanexação, e o artigo 85º, nº 1, prevê a abertura de nova descrição quando o registo incidir sobre prédio constituído por parcela de prédio já descrito. Também quanto à matriz, sendo uma decorrência da sentença, terá que ser autonomizado através de uma nova inscrição na matriz.
Aliás, quanto aos alegados obstáculos ou «problemas práticos registrais que daí emergem» e que os Recorrentes «creem inultrapassáveis», convém salientar que a regra em Portugal é a de que a ordem substantiva prevalece sobre a ordem registral, na medida em que é o regime jurídico decorrente do Direito não registral que fixa a titularidade, conteúdo e subsistência das situações jurídicas reais[14]. Por conseguinte, em caso de divergência entre a realidade substantiva e a realidade registral é a primeira que prevalece[15], atenta a função primacial do registo, que é a publicitação das situações jurídicas reais e não propriamente a atribuição de direitos reais.

Quanto à alegada inadmissibilidade da autonomização da parcela em consequência da sua aquisição por usucapião, convém recordar que inexiste qualquer norma legal que impeça tal parcelamento e que, sem prejuízo de certas categorias bens não serem usucapíveis (por exemplo, os baldios), os tribunais têm dado prioridade à usucapião como forma originária de aquisição, em detrimento de certas exigências de âmbito administrativo, formalidades ou requisitos não substanciais. Mesmo que a subsistência da eficácia da justificação notarial relativamente à parcela de terreno pudesse geral dificuldades de compatibilização com regras formais relativas à matriz ou ao registo predial, o que não nos parece ser o caso pelos motivos já apontados, sempre haveria de se dar supremacia à usucapião enquanto forma legítima de aquisição do direito de propriedade, que beneficia de tutela constitucional e não pode ser restringido de forma desproporcional.
Isso é particularmente evidente nas decisões dos tribunais que apreciaram os efeitos da alteração que a Lei nº 111/2015, de 27 de agosto, deu ao artigo 1379º do CCiv, que determinou a nulidade dos atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º, em que persistiu nos tribunais a posição de que continuavam a ser suscetíveis de gerar usucapião no caso de a operação de fracionamento ter ocorrido antes da entrada em vigor da aludida Lei (sendo certo que a situação se alterou entretanto, em consequência tanto daquele diploma como, em especial, da Lei nº 89/2019, de 3 de setembro), como se pode ver nos seguintes exemplos:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30.04.2020, proferido no processo 1334/10.1TBVVD.G1 (Alcides Rodrigues): «A data ou momento relevante para aferir se o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, infringe ou não as invocadas regras legais limitativas do fraccionamento de prédios rústicos é a do início da posse. Tendo a usucapião efeitos retroativos à data do início da posse (cfr. art.º 1288º do CC do CC), será a lei vigente nessa data que indicará se pode haver fraccionamento do prédio e se o mesmo for fracionado em violação da lei quais as consequências que daí decorrem. À luz da lei vigente em meados da década de 80 o fracionamento de prédios rústicos em área inferir à unidade de cultura não seria nulo, quando muito anulável, a arguir no prazo de 3 (três) anos, sob pena de caducidade da ação de anulação (primitiva redação dos n.ºs 1 e 3 do art.º 1379º do CC). Estando em causa uma divisão material de prédios rústicos e não se verificando qualquer questão de natureza urbanística, a anulabilidade do ato de fracionamento de prédios rústicos, em violação do disposto no art.º 1376º do CC, não impede a aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião»;
- Acórdão da Relação de Guimarães de 21.05.2020 - 1050/18.6T8PTL.G1 (Maria João Matos): «A usucapião é uma forma de aquisição originária de direitos, que surgem ex novo na titularidade do sujeito unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo por isso absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios (de natureza formal ou substancial) que afectem o acto ou negócio gerador da posse. Tendo a usucapião efeitos retroactivos à data do início da posse, adquirindo-se o direito no momento em que aquela se iniciou, será pela lei então em vigor que se apreciará as condições de validade aplicáveis ao objecto do direito que se pretende usucapir (nomeadamente, as relativas ao fraccionamento de prédio rústico apto para cultivo) (…). Até à alteração da redacção do art.º 1379.º, n.º 1 do CC, operada pela Lei nº 111/2015, de 27 de Agosto (que passou a cominar como nulos, e já não meramente como anuláveis, os actos de fraccionamento de prédios rústicos contrários ao disposto no art.º 1376.º do CC), a interpretação mais correcta daquele preceito coincide com a que admite a aquisição originária, por usucapião, de parcela de prédio rústico apto para cultura, ainda que com área inferior à unidade de cultura legal, desde que se verifiquem os seus pressupostos próprios»;
- Acórdão da Relação de Guimarães de 14.01.2021 - 4240/19.0T8VCT.G1 (Raquel Batista Tavares): «Tendo a usucapião efeitos retroativos à data do início da posse (cfr. artigo 1288º do Código Civil) a data ou momento relevante para aferir se o reconhecimento do direito de propriedade, adquirido por usucapião, infringe ou não as regras legais limitativas do fraccionamento de prédios rústicos é a do início da posse. É à lei em vigor na data do início da posse que deve atender-se para determinar se o prédio é fracionado em violação da lei e quais as consequências que decorrem dessa violação. Atenta a primitiva redação do artigo 1379º n.º 1 do Código Civil, em vigor em 1998, data da divisão e início da posse, a anulabilidade do ato de fracionamento de prédios rústicos, contra o disposto no artigo 1376º, não impedia a aquisição originária do direito de propriedade por via da usucapião. Operada a divisão material do prédio rústico em duas parcelas de terreno, perfeitamente delimitadas com muros e vedações, com confrontações e áreas definidas, há mais de 20 anos, ambas com área inferir à unidade de cultura fixada pela Portaria n.º 202/70, de 21/04 e verificados os requisitos da usucapião, a aquisição por essa via do direito de propriedade sobre cada uma das parcelas deve prevalecer sobre as regras de fraccionamento dos prédios rústicos»;
- Acórdão da Relação de Évora de 28.09.2023 - 3147/21.6T8STB.E1 (Albertina Pedroso): «Desde que se verifiquem os pressupostos legais exigidos para a aquisição do direito de propriedade, a usucapião pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime jurídico decorrente da redação dada ao artigo 1379.º, pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, que comina com a nulidade o fracionamento de prédios rústicos por ofensa à área de cultura mínima que não constituam partes integrantes de prédios urbanos (artigo 1377.º do CC)».
Como bem se demonstra pelas apontadas decisões, é admissível o fracionamento de um prédio rústico, operada mediante aquisição por usucapião de uma parcela daquele.
No caso dos autos, por maioria de razão isso é viável, uma vez que nem sequer está invocado que o fracionamento infrinja o disposto no artigo 1376º ou qualquer disposição administrativa ou urbanística atinente ao prédio em causa.
Aliás, como bem se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 03.03.2015 – processo 5730/06.0TBLRA.C1 (Barateiro Martins), não se pode «dizer que pela sua invocação [da usucapião] se realiza um destaque, um loteamento ou uma divisão de prédios com área inferior à unidade de cultura, uma vez que a coisa é possuída como autónoma e é essa posse dessa coisa possuída, como autónoma, que é causa de usucapião».
Porque a usucapião se funda direta e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, são irrelevantes os pretensos aspetos registrais, fiscais e outros mencionados pelos Recorrentes.
Tais elementos carecem de potencialidade ou idoneidade para interferir na eficácia daquela forma de aquisição da parcela identificada no ponto F da matéria de facto. A eficácia da usucapião sobre uma parcela de terreno, inexistindo limitação legal relativamente ao prédio em concreto, apenas depende da sua invocação com fundamento bastante. Tendo sido invocada e reunindo a posse dos Réus os requisitos necessários para adquirir por usucapião, produz-se a sua eficácia aquisitiva, ou seja, a constituição do direito de propriedade sobre a parcela possuída, em consonância com o disposto nos artigos 1287º e 1288º do CCiv.

Em segundo lugar, é inteiramente verdade que na sentença não se conseguiu definir a área do logradouro (adro) frontal do barracão, cuja existência é objetiva, nem consequentemente a área global da parcela.
Porém, a Exma. Juiz fê-lo obedecendo a um dever de declarar o direito com base na verdade material, pelo que, desconhecendo-se a exata dimensão quantitativa de tal área, essa matéria terá de ser objeto de posterior discussão entre as partes. Há ações próprias para o efeito e isso também pode perfeitamente ser resolvido extrajudicialmente. Não é nenhum drama, pois a realidade é o que é e não aquilo que gostávamos que fosse para facilitar a aplicação do direito.

Em suma: não se mostra violada qualquer das normas invocadas pelos Recorrentes.
O Tribunal recorrido subsumiu corretamente os factos ao direito aplicável, assinalando que, em razão da situação possessória dos Réus, que se verifica desde o ano de 1984 e de forma ininterrupta, a declaração da usucapião que produziram na escritura de justificação notarial desencadeou a sua eficácia aquisitiva relativamente ao objeto efetivamente possuído: adquiriram, originariamente, o direito de propriedade da mencionada parcela e não sobre a totalidade do terreno.
Daí a parcial procedência da ação.
Termos em improcedem as conclusões recursórias, devendo a sentença ser confirmada.
***
III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedentes as apelações, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a suportar pelos Recorrentes.
*
*
Guimarães, 07.03.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Alcides Rodrigues
Ana Cristina Duarte



[1] Código de Processo Civil Anotado, vol. V, págs. 67/68.
[2] Neste sentido, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 715.
[3] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, págs. 168 e 169.
[4] Os fundamentos ou requisitos da impugnação relativa à matéria de facto que se mostram enunciados no artigo 640º, nº 1, alíneas b) e c), e nº 2, do CPC.
[5] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 115.
[6] Com a especificação das questões que se colocam ao tribunal ad quem para resolução, o recorrido fica a saber exatamente o que se discute no recurso e, por isso, está em condições de responder à alegação do recorrente – art. 638º, nº 5, do CPC.
[7] Teoria Geral das Obrigações, pág. 63, e RLJ, nº 85, pág. 253.
[8] Disponível, tal como todos os demais que se citam, em www.dgsi.pt.
[9] Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 297.
[10] Direitos Reais, 1ª edição, SPB Editores, pág. 284.
[11] Rui Pinto e Cláudia Valente, Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.), vol. II, 2ª edição, Almedina, pág. 33.
[12] Apreensão física; ato material de empossamento de uma coisa.
[13] É absolutamente pacífico que é possível a posse sobre parte de prédio, sobretudo de prédio rústico, e de a sua manutenção pelo período de tempo ser legalmente relevante permitir usucapir – José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2ª edição, Almedina, pág. 493.
[14] José Alberto Vieira, Direitos Reais, 2ª edição, Almedina, págs. 258 e 259. 
[15] V. o artigo 7º, nº 1, do Código do Registo Predial.