Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1081/17.3T8VRL.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
NEXO DE CAUSALIDADE
TRABALHADOR GERENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/21/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Sumário (elaborado pela Relatora):

1. A descaracterização do acidente de trabalho por acto ou omissão do sinistrado que importe violação, sem causa justificativa, das condições previstas na lei ou estabelecidas pelo empregador, exige que o responsável demonstre a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- a existência de condições de segurança previstas na lei ou estabelecidas pelo empregador;
- a violação, por acção ou por omissão, dessas condições por parte da vítima;
- que a actuação da vítima seja voluntária, embora não intencional, e sem causa justificativa;
- que o acidente seja consequência dessa actuação, ou seja, que exista nexo de causalidade entre a referida violação e o evento.
2. Não basta que se verifique a inobservância de regras de segurança por parte do sinistrado para que ocorra descaracterização do acidente como de trabalho, tornando-se ainda necessária a prova do nexo de causalidade entre a regra concretamente violada e a produção do acidente tal como concretamente verificado.
3. Na parte final da al. a) do n.º 1 do art. 14.º do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais está pressuposta, pelo menos, a negligência grosseira, a que alude expressamente a sua al. b), e, assim, ainda que o acidente de trabalho resulte de acto ou omissão do sinistrado que importe violação das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei, a exclusão do direito a reparação só ocorre em caso de negligência particularmente grave, qualificada, atendendo, designadamente, ao elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, que tem de ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima, e não em função de um padrão geral e abstracto de conduta.
4. Ocorrendo violação de regras de segurança no trabalho, ou a mesma é imputável ao empregador – e, nesse caso, aplica-se o disposto nos arts. 18.º e 79.º do RRATDP, nomeadamente o empregador responde por prestações agravadas, satisfazendo a seguradora do responsável o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso –, ou a mesma é imputável ao sinistrado, o que pressupõe o cumprimento pelo empregador da obrigação de lhe assegurar as condições de segurança no trabalho em matéria de informação, formação e implementação das medidas de prevenção de riscos adequadas no caso concreto, só nesse caso se aplicando o disposto no art. 14.º daquele diploma.
5. Nada se tendo provado sobre as características e condições concretas do local de onde o sinistrado caiu, nem sobre a dinâmica dos actos executados pelo mesmo que conduziram a que se despoletasse a sua queda em altura, nem se a sociedade empregadora do sinistrado lhe havia disponibilizado informação, formação e equipamentos de protecção individual ou colectiva adequados a prevenir o risco de queda em altura, mas apenas que o sinistrado sofreu uma queda de uma altura de cerca de 5 metros para dentro do edifício, não estando a usar arnês de segurança ligado a uma linha de vida ou ponto fixo, não está demonstrado o nexo de causalidade entre a regra de segurança violada e a verificação do sinistro, nem a negligência grosseira do sinistrado, nem a inexistência de causa justificativa.

Alda Martins
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. Relatório

Nos presentes autos de acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, em que são beneficiárias legais C. S. e J. M., respectivamente viúva e filha do sinistrado J. F., falecido em 16/06/2017, e responsáveis Y – SUCURSAL EM PORTUGAL e SERRALHARIA X, LDA., frustrada a tentativa de conciliação das partes no termo da fase conciliatória, as beneficiárias legais vieram requerer a abertura da fase contenciosa do processo contra as responsáveis, pedindo a condenação destas a pagarem-lhes, acrescidas de juros moratórios legais:

- A ré seguradora:

1. À beneficiária viúva:
a) uma pensão anual e vitalícia (obrigatoriamente remível), no valor de € 2.649,60 a partir de 17/06/2017 e no valor de € 3.532,80 a partir da idade da reforma por velhice ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afecte a sua capacidade para o trabalho;
b) a quantia de € 2.780,71, correspondente a ½ do subsídio por morte;
c) a quantia de € 1.853,81, correspondente ao subsídio por despesas de funeral;
d) a quantia de € 50,00, referente a despesas com deslocações.

2. À beneficiária filha:
a) uma pensão anual e temporária no valor de € 1.766,40, a partir de 17/06/2017;
b) a quantia de € 2.780,71, correspondente a ½ do subsídio por morte.
- A ré empregadora:

1. À beneficiária viúva:
a) uma pensão anual e vitalícia (obrigatoriamente remível), no valor de € 17,95 a partir de 17/06/2017 e no valor € 23,94 a partir da idade da reforma por velhice ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afecte a sua capacidade para o trabalho.

2. À beneficiária/filha:
a) uma pensão anual e temporária no valor de € 11,97, a partir de 17/06/2017.

Alegam, em síntese, que são, respectivamente, viúva e filha de J. F., vítima de um acidente ocorrido no dia 16/06/2017, quando aquele se encontrava no exercício das suas funções de serralheiro sob as ordens, direcção e fiscalização da sua empregadora SERRALHARIA X, Lda., de que era também sócio-gerente. Que o acidente ocorreu numa obra que a empregadora levava a cabo, tendo consistido na queda em altura do sinistrado, do telhado para o interior do edifício, de que resultou a sua morte no próprio dia. Que a empregadora havia celebrado com a co-ré seguradora um seguro de acidentes de trabalho pela retribuição anual de € 8.832,00, verificando-se uma diferença para menos de € 59,84 relativamente ao montante anual auferido pelo sinistrado. Que a 1.ª autora despendeu a quantia de € 2.005,00 com a realização do funeral do sinistrado e a quantia de € 50,00 com deslocações a diligência no âmbito do acidente.
A ré seguradora apresentou contestação em que, em resumo, impugna a factualidade alegada pelas autoras como fundamento da verificação dum acidente de trabalho e sustenta que, ainda que assim fosse, o mesmo se deveria ter como descaracterizado, por violação das regras de segurança no trabalho previstas na lei, sem causa justificativa, por parte do sinistrado, com influência directa na produção do sinistro, nos termos do art. 14.º, n.º 1, al. a) do regime aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09. Na execução da tarefa que alegadamente desempenhava, o sinistrado encontrava-se obrigado a utilizar cinto ou arnês de segurança, ligado a uma linha de vida, com ponto de fixação independente, e, tratando-se do sócio-gerente da empregadora, tinha obrigações acrescidas neste domínio, podendo tanto o arnês de segurança como a linha de vida serem disponibilizados pela sua entidade empregadora, ou seja, por si próprio.
A ré empregadora também apresentou contestação, em que, além do mais, aceitou que a sua responsabilidade por acidentes de trabalho que o marido e pai das autoras sofresse não estava transferida para a seguradora na parte da respectiva retribuição anual correspondente a € 59,84.
Foi proferido despacho saneador, com selecção dos factos assentes e dos constantes dos temas de prova.

Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:
«Tudo visto e ponderado, decide-se, julgar totalmente procedente, por provada, a presente acção especial emergente de acidente de trabalho que as autoras C. S. e J. M. movem às rés “Y –SUCURSAL EM PORTUGAL” e “SERRALHARIA X, Lda.” e, em consequência, condena-se:
1 - A ré/seguradora “Y – Sucursal em Portugal” a pagar
a) à autora/ beneficiária C. S.:
i) a pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, no valor de €2.649,60 (dois mil seiscentos e quarenta e nove euros e sessenta cêntimos, a partir de 17/06/2017 e até perfazer a idade da reforma por velhice; e
no valor de €3.532,80 (três mil quinhentos e trinta e dois euros e oitenta cêntimos), a partir da idade da reforma ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho;
ii) a quantia de €2.780,71 (dois mil setecentos e oitenta euros e setenta e um cêntimos), correspondente a ½, do subsídio por morte – art. 65º, nº. 2, alínea a) da LAT;
iii) a quantia de €1.853,81 (mil oitocentos e cinquenta e três euros e oitenta e um cêntimo), a titulo de subsídio por despesas de funeral;
iv) a quantia de €50,00 (cinquenta euros), a título de despesas com deslocações obrigatórias.
b) – À beneficiária/filha, J. M.:
i) - A pensão anual temporária no valor de €1.766,40 [mil setecentos e sessenta e seis euros e quarenta cêntimos), a partir de 17/06/2017, durante a menoridade e depois desta até aos 25 anos de idade, enquanto frequentar o ensino - art. 60º, nº. 1 e 2 da LAT;
ii) - a quantia de €2.780,71 (dois mil setecentos e oitenta euros e setenta e um cêntimos), a título de ½ do subsídio de morte - art.º 65º, nº 1, al. a), da Lei nº. 98/2009, de 04/09 – LAT;
2 – A entidade empregadora “SERRALHARIA X, Lda.” a pagar.
a) À beneficiária/viúva, C. S.:
i) A pensão anual e vitalícia, obrigatoriamente remível, no valor de €17,59 (dezassete euros e cinquenta e nove cêntimos), a partir de 17/06/2017 e até perfazer a idade da reforma por velhice; e
- No valor de €23,94 (vinte e três euros e noventa e quaro cêntimos), a partir da idade da reforma ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho.
b) À beneficiária / filha J. M..
- a pensão anual temporária, no valor de €11,97 (onze euros e noventa e sete cêntimos), a partir de 17/06/2017, durante a menoridade, e depois desta até aos 25 anos de idade, enquanto frequentar o ensino.
Às referidas quantias e pensões, acrescem os juros de mora calculados nos termos supra referidos.
Oportunamente, cumpra-se o disposto no art. 148º, nºs. 3 e 4 do Cod. Proc. Trabalho, ex vi, rt. 149º do mesmo diploma legal, relativamente às pensões obrigatoriamente remíveis.
Custas a cargo das rés, na proporção das respectivas responsabilidades – cfr. art. 527º, nºs. 1 e 2 do Cod. Proc. Civil e 17º nº. 8 do RCP.
Fixa-se à causa o valor de € 88.617,23 - cfr. art. 120º, nº. 1 do Cod. Proc. Trabalho.»

A ré seguradora veio interpor recurso da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«1ª – O evento sub judice mostra-se descaracterizado, face aos factos provados, devidamente conjugados com o disposto na alínea a) do art.º 14.º n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro de 2009.
2ª - Provou-se, nomeadamente, o seguinte :
6. No dia 16 de Junho de 2017, pelas 14H30, na Zona Industrial..., o sinistrado, J. F., encontrava-se, no pleno desempenho da sua actividade, ao serviço e por conta da ré/empregadora.
20. Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidos no ponto 6º da factualidade, o sinistrado, sofreu uma queda de uma altura de cerca de 5 metros para dentro do edifício.
22. No momento da queda, o sinistrado J. F. não fazia uso de arnês de segurança ligado a uma linha de vida ou ponto fixo.
3ª - Dos factos provados resulta a verificação de um comportamento do sinistrado, violador das regras de segurança estabelecidas na Lei, sem causa justificativa.
4ª - Sendo sócio gerente da Entidade Empregadora, o sinistrado estava obrigado a usar e a fornecer os equipamentos de protecção individual aptos a evitar quedas em altura, mormente arnês de segurança.
5ª - Considerando as condições em que decorriam os trabalhos, e a altura de cinco metros do solo, o sinistrado estava obrigado a adotar equipamentos de protecção aptos a evitar a quedas em altura – cfr. art.º 44.º do Decreto n.º 41821/58, de 11 de Agosto, art.º 36º, 39º, do Decreto-Lei n.º 50/2005, art.º 4.º Decreto-Lei n.º 348/93, de 1 de Outubro, Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho.
6ª - O sinistrado encontrava-se em cima do telhado no pleno desempenho da sua atividade profissional, no tempo e local de trabalho, e por isso estava obrigado a cumprir as normas de segurança aplicáveis, o que não se verificou.
7ª – O equipamento de proteção mais adequado para as circunstâncias em que decorriam os trabalhos era o arnês de segurança ligado a uma linha de vida.
8ª - Provou-se que no momento da queda, o sinistrado não fazia uso de arnês de segurança ligado a uma linha de vida ou ponto fixo, nem de qualquer outro equipamento de protecção apto a evitar quedas em altura.
9ª - O sinistro ocorreu por causa do sinistrado ter violado as regras de segurança, ao trabalhar nas condições descritas nos factos provados.
10ª – Como decidido na douta sentença recorrida, “decorre da experiência da vida e do senso comum que o trabalho em cima de telhados tem natureza perigosa em abstracto, dada a altura e inclinação que ostentam em geral, podendo colocar em risco a segurança de quem neles presta a sua actividade”.
11ª – Dispõe o art.º 11.º n.º 1 da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, que “sempre que haja risco de quedas em altura, devem ser tomadas as medidas de protecção colectiva adequadas e eficazes ou, na impossibilidade destas, de protecção individual, de acordo com a legislação aplicável, nomeadamente o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil.”
12ª - Aos pressupostos geradores de perigo constantes do art.º 44º do Decreto nº 41821, de 11 de Agosto de 1958, há que acrescentar o pressuposto constante do art.º 11.º n.º 1 da Portaria n.º 101/96, ou seja, a existência de um risco de queda em altura – cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 20 de Dezembro de 2005 (Proc. n.º 2323/05-2).
13ª – Provou-se, assim, que existia um risco de queda em altura, de modo que o sinistrado encontrava-se obrigado a fazer uso de arnês de segurança – cfr. art.º 11.º n.º 1 da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril.
14ª - O sinistro, e as suas nefastas consequências, são consequência directa desse comportamento omissivo do sinistrado, violador das normas de segurança aplicáveis.
15ª - Se o sinistrado fizesse uso de arnês de segurança ligado a uma linha de vida, o sinistro não teria ocorrido, uma vez que o sinistrado ficaria suspenso e não caía ao solo.
16ª - Ao sinistrado era exigível um cuidado acrescido, face ao grau de conhecimento que lhe advinha da sua longa experiência profissional e também do facto de ser sócio gerente da Entidade Empregadora.
17ª - O sinistrado sabia que não podia subir ao telhado sem fazer uso de arnês, dados os riscos de queda e, designadamente, o risco de morte que este tipo de trabalho encerra – cfr. depoimento das testemunhas C. B. e F. S., que referiram que, na manhã do sinistro, os trabalhadores fizeram uso de arnês de segurança.
18ª - O mencionado comportamento violador verificou-se sem causa justificativa, pois o sinistrado sabia que ao trabalhar no telhado tinha obrigatoriamente de usar aquela medida de protecção individual, e não a usou.
19ª - Ocorreu assim um acto do sinistrado violador, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas por lei, o que leva à descaracterização do sinistro (cfr. art.º 14º nº 1 alínea a) da Lei n.º 98/2009) – vide, neste sentido, Acórdãos do S.T.J. de 22.11.2007 e de 1.03. 2010 (Proc. 323/04.0TTVCT.S1).
20ª - Deve, assim, ser revogada a douta sentença recorrida, por violação do disposto no art.º 14.º al. a) da Lei n.º 98/2009 e 607.º do Código de Processo Civil que deveria ter sido aplicado em conformidade com o alegado nas conclusões supra.»

As autoras apresentaram resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo, atenta a prestação de caução.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, e observados os vistos pelas Exmas. Adjuntas, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão que se coloca a este tribunal é a da descaracterização do acidente de trabalho por violação de regras de segurança por parte do sinistrado.

3. Fundamentação de facto

Os factos provados são os seguintes:

1. A autora C. S. contraiu casamento com J. F. em - de Fevereiro de 2015.
2. O referido casamento foi dissolvido por óbito de J. F., ocorrido em - de Junho de 2017.
3. A autora J. M., solteira, estudante, nascida em -/03/2001, é filha do falecido J. F. e de M. C..
4. A co-ré empregadora SERRALHARIA X, Lda. é uma sociedade por quotas, com o NIPC ………, constituída em 09/01/2007, e dedica-se à fabricação de portas, janelas, grades, portões e outros elementos de construção similares em metal, sua montagem e colocações.
5. J. F. foi sócio-gerente remunerado desde a data da sua constituição e até à data da sua morte, ocorrida a -/06/2017, em resultado do acidente participado nos autos.
6. No dia - de Junho de 2017, pelas 14H30, na Zona Industrial..., o sinistrado J. F. encontrava-se no pleno desempenho da sua actividade, ao serviço e por conta da ré empregadora.
7. O sinistrado foi conduzido pelo VMER, no próprio dia, ao Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, E.P., onde deu entrada pelas 15H30.
8. Dessa queda resultaram para o sinistrado as lesões melhor descritas e examinadas no relatório de autópsia constante de fls. 97 a 110 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
9. O sinistro foi participado à ré seguradora em 19 de Junho de 2017.
10. A ACT/Douro realizou o pertinente inquérito sobre as circunstâncias do ocorrido sinistro.
11. À data do participado acidente, o sinistrado falecido auferia a retribuição anual de € 8.891,84 (€ 557,00, acrescida de € 99,44(1) de subsídio de alimentação).
12. A responsabilidade por acidentes de trabalho encontrava-se transferida pela co-ré empregadora para a co-ré seguradora, com referência à retribuição anual de € 8.832,00 [(€ 557,00 x 14 meses) + (€ 94,00 x 11 meses de subsídio de alimentação)], através de contrato de seguro (prémio fixo) titulado pela apólice n.º …….
13. A co-ré empregadora não havia transferido para a co-ré seguradora parte do valor do subsídio de alimentação auferido pelo sinistrado, no valor anual de € 59,84 (€ 5,44 x 11 meses).
14. Em sede de tentativa de conciliação, as autoras/beneficiárias e a co-ré empregadora concordaram com a proposta de acordo do Ministério Público.
15. A co-ré seguradora, nessa diligência, aceitou:
i) a existência de um contrato de seguro de acidentes de trabalho, transferindo uma massa salarial de € 557,00 x 14 meses + € 94,00 x 11 meses de subsídio de alimentação, no total anual de € 8.832,00;
ii) o sinistro ocorrido em -/06/2017, que vitimou mortalmente o sinistrado, mas não a sua tipificação nos termos da LAT;
16. A co-ré empregadora, nessa diligência, aceitou:
i) os elementos fácticos com base nos quais foi formulada a proposta de acordo;
ii) a existência e caracterização do acidente como de trabalho (tal como descrito no auto);
ii) o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões/morte; e
iii) os valores da sua responsabilidade indicados na proposta de acordo.
17. Foram as lesões sofridas pelo sinistrado no participado acidente que lhe causaram, directa e necessariamente, a morte, ocorrida no referido Hospital pelas 15H35.
18. A autora C. S. despendeu com a realização do funeral do sinistrado a quantia de € 2.005,00.
19. As autoras/beneficiárias despenderam a quantia de € 50,00 em despesas de deslocações obrigatórias decorrentes do participado acidente.
20. Nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas no ponto 6.º da factualidade, o sinistrado sofreu uma queda de uma altura de cerca de 5 metros para dentro do edifício.
21. Foram as lesões sofridas pelo sinistrado no participado acidente que lhe causaram, directa e necessariamente, a morte, ocorrida no referido Hospital pelas 15H35;
22. No momento da queda, o sinistrado J. F. não fazia uso de arnês de segurança ligado a uma linha de vida ou ponto fixo.

4. Apreciação do recurso

Como acima se anunciou, a única questão que se coloca a este Tribunal é a de saber se o acidente de trabalho que vitimou o sinistrado se deve considerar descaracterizado por violação das regras de segurança por parte do mesmo, com as legais consequências, designadamente a exclusão da obrigação de a seguradora o indemnizar.

Vejamos.

Com interesse para a questão dos autos, estabelece o Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais (RRATDP), aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09, no que respeita ao conceito de acidente de trabalho e situações de descaracterização do acidente:

Artigo 8.º
Conceito
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em virtude do seu trabalho e em que esteja, directa ou indirectamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.

Artigo 14.º
Descaracterização do acidente
1 - O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2 - Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Em matéria de repartição do ónus de alegação e prova, atenta a opção técnica do legislador na definição de acidente de trabalho, a tarefa do sinistrado ou beneficiário reduz-se à alegação e prova dos elementos constantes do art. 8.º, impendendo sobre o responsável a alegação e prova dos requisitos determinantes da exclusão ou redução da sua responsabilidade, designadamente os do art. 14.º, com todas as vantagens em matéria de tutela e protecção daquele.

Ora, no caso do sinistro dos presentes autos, resulta da factualidade descrita nos pontos 6., 8., 20. e 21. que o mesmo se verificou no local e no tempo de trabalho, bem como na execução deste, provocando lesões no sinistrado que lhe determinaram a morte, pelo que se mostram preenchidos os pressupostos do citado art. 8.º, devendo o mesmo ser qualificado como acidente de trabalho, tal como, aliás, se decidiu na sentença recorrida, nessa parte não impugnada.
Não obstante, coloca-se a questão da exclusão da responsabilidade da Apelante, por «descaracterização do acidente» nos termos do aludido art. 14.º, n.º 1, al. a), que o tribunal a quo entendeu não ocorrer, sendo contra tal entendimento que a Recorrente se insurge.

Nos termos sobreditos, a descaracterização do acidente por acto ou omissão do sinistrado que importe violação, sem causa justificativa, das condições previstas na lei ou estabelecidas pelo empregador, exige que o responsável demonstre a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

- a existência de condições de segurança previstas na lei ou estabelecidas pelo empregador;
- a violação, por acção ou por omissão, dessas condições por parte da vítima;
- que a actuação da vítima seja voluntária, embora não intencional, e sem causa justificativa;
- que o acidente seja consequência dessa actuação, ou seja, que exista nexo de causalidade entre a referida violação e o evento. (2)

Na situação em apreço, provou-se sob o ponto 6. que, no dia 16 de Junho de 2017, pelas 14H30, na Zona Industrial..., o sinistrado J. F. encontrava-se no pleno desempenho da sua actividade, ao serviço e por conta da ré empregadora.
Por outro lado, tendo sido quesitado sob a al. e) dos temas de prova – em virtude de impugnação pela ora Recorrente do alegado na petição inicial (cfr. a sua contestação, bem como o seu requerimento, e respectiva decisão, constantes da acta de julgamento de 24/06/2020) – se, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 6. da factualidade assente, o sinistrado encontrava-se a verificar/realizar actividade de serralharia, consistente na colocação de chapa térmica na cobertura/telhado no armazém ali existente, tendo nessas circunstâncias sofrido uma queda em altura e caindo para dentro do edifício, constata-se que apenas se logrou provar, como consta do ponto 20., que, nas circunstâncias de tempo e de lugar referidas no ponto 6. da factualidade, o sinistrado sofreu uma queda de uma altura de cerca de 5 metros para dentro do edifício.
Mais se provou sob o ponto 22. que, no momento da queda, o sinistrado J. F. não fazia uso de arnês de segurança ligado a uma linha de vida ou ponto fixo.
Isto é, nada se provou sobre o local de onde o sinistrado caiu, designadamente se foi da cobertura/telhado – como estava alegado pelas autoras e contestado pela ré seguradora –, ou se foi de alguma escada, patamar ou plataforma de acesso à mesma, ou ainda se foi de qualquer outro lugar elevado do edifício, assim como nada se provou sobre as condições de segurança que a cobertura/telhado ou os respectivos meios de acesso apresentavam, nada se tendo provado igualmente sobre a dinâmica do acidente, para além da própria queda de uma altura de cerca de 5 metros para dentro do edifício.
Ora, não basta que se verifique a inobservância de regras de segurança por parte do sinistrado para que ocorra descaracterização do acidente como de trabalho, tornando-se ainda necessária a prova do nexo de causalidade entre a regra concretamente violada e a produção do acidente tal como concretamente verificado, por força do citado art. 14.º, n.º 1, al. a) do RRATDP.
O art. 563.º do Código Civil, sob a epígrafe «Nexo de causalidade», ao estatuir que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, fundamentando a responsabilidade na probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão, tem sido visto como expressão do acolhimento no sistema jurídico português da teoria da causalidade adequada, segundo a qual só deve considerar-se como causa jurídica do prejuízo a condição que, pela sua natureza e em face das circunstâncias do caso, se mostre apropriada para o gerar, pelo que, no juízo de prognose a realizar, se deve ponderar se, em condições regulares, o resultado lesivo é uma consequência normal, típica, provável da conduta ou omissão concretamente verificada. Isto é, como sintetiza Pessoa Jorge (3), a “orientação hoje dominante é a que considera causa de certo efeito a condição que se mostra, em abstracto, adequada a produzi-lo”, traduzindo-se essa adequação “em termos de probabilidade, fundada nos conhecimentos médios: se, segundo a experiência comum, é lícito dizer que, posto o antecedente x se dá provavelmente o consequente y, haverá relação causal entre eles”.
Acolhendo tal entendimento na aplicação da norma do RRATDP em referência, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Junho de 2019, proferido no processo n.º 763/16.1T8AVR.P1.S1 (4), em cujo sumário se afirma que “[a] descaracterização do acidente prevista na segunda parte da alínea a), do n.º 1, do art,º 14.º, da citada lei, exige que: a) as condições e regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou pela Lei se mostrem conexionadas com o risco decorrente da atividade profissional exercida, ligadas à própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua atividade laboral; b) o sinistrado tenha conhecimento de tais condições e regras de segurança; c) e que se verifique o nexo de causalidade entre o ato ou omissão cometida pelo trabalhador e o acidente de que este foi vítima, ocasionado por violação das referidas regras.”
À luz do exposto, embora se tenha provado que o sinistrado J. F. não fazia uso de arnês de segurança ligado a uma linha de vida ou ponto fixo, o certo é que se desconhece se a observância desta medida se impunha ou era sequer viável nas (desconhecidas) condições concretas do local e dos actos realizados pelo sinistrado aquando da queda, como modo adequado de evitar esta.
E, assim sendo, não pode concluir-se que o acidente de trabalho em apreço proveio da não utilização de arnês de segurança ligado a uma linha de vida ou ponto fixo, isto é, não está demonstrado o nexo de causalidade entre o sinistro e a violação pelo sinistrado, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.
Acresce que, acolhendo a posição de Júlio Gomes (5), entendemos que também na parte final da al. a) do n.º 1 do citado art. 14.º está pressuposta, pelo menos, a negligência grosseira, isto é, a culpa extremamente grave do trabalhador, a que alude expressamente a al. b), e que “(…) a diferente redação das alíneas se compreende apenas tendo em atenção a história do preceito e a técnica legislativa empregue (…)”, sendo de sublinhar, “(…) desde logo, que “a prática de atos e omissões que importem a violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei” não representa uma alínea autónoma, mas a parte final da alínea a) onde estão igualmente previstos os acidentes dolosamente provocados pelo sinistrado. Este elemento sistemático é importante, porque ilustra bem que estas situações de violação das condições de segurança contempladas pela lei são aquelas suficientemente graves para terem sido quase “equiparadas” ao dolo”, dado que, “(…) historicamente, a violação das regras de segurança foi tratada, entre nós, como um caso de desobediência, de rebelião contra a autoridade – que só depois se estendeu á violação de regras legais – próximo do dolo e por isso tratada na mesma alínea que os comportamentos dolosos.”

Continuando, diz o mesmo autor que, “[e]ntender que o trabalhador que viola condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou resultantes da lei, mesmo que aja sem negligência grosseira, perde o direito à reparação do dano sofrido na sua capacidade de trabalho (porque nisso consiste a descaraterização), a não ser que se trate de “incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la” (parte final do n.º 2 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009) é solução de que não conhecemos qualquer paralelo moderno no direito comparado”, concluindo que “(…) não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaraterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, ao que acresce que outras “justificações” poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito de tutela dos acidentes de trabalho. Essa culpa deve ser aferida em concreto e não em abstrato, e não poderá deixar de atender a fatores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a passividade do empregador perante condutas similares no passado – até porque muitos especialistas sublinham que o desrespeito por regras de segurança resulta, muitas vezes, de o trabalhador tentar encontrar “atalhos” para produzir mais rapidamente, sobretudo quando lhe são impostos ritmos de produção muito elevados (…) – e, simplesmente, fatores fisiológicos e ambientais como o cansaço, o calor ou o ruído existente no local de trabalho.”

Deste modo, em conclusão, entendemos que, ainda que o acidente de trabalho resulte de acto ou omissão do sinistrado que importe violação das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei, a exclusão do direito a reparação só opera em caso de negligência grosseira, entendendo-se como tal, nos termos do n.º 3 do mencionado art. 14.º, o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Isto é, também nesta situação não basta a culpa leve, traduzida em imprudência, distracção ou imprevidência; exige-se a negligência grosseira, que é a particularmente grave, qualificada, atendendo, designadamente, ao elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, que tem de ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima, e não em função de um padrão geral e abstracto de conduta.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Dezembro de 2017, proferido no processo n.º 2763/15.0T8VFX.L1.S1 (6), em cujo sumário se refere que “[a] descaracterização do acidente de trabalho com fundamento na 2ª parte da alínea a), do nº 1, do art. 14º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro - violação das condições de segurança previstas na lei - exige que o trabalhador atue com culpa grave, que tenha consciência da violação, não relevando os casos de culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração ou ao esquecimento.”
No mesmo sentido, veja-se o Acórdão desta Relação de Guimarães de 19 de Março de 2020, proferido no processo n.º 334/16.2T8VCT.G1 (7), cujo sumário consigna que “[t]ambém na parte final da al. a) do n.º 1 do art. 14.º do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais (RRATDP), aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09, está pressuposta, pelo menos, a negligência grosseira, a que alude expressamente a sua al. b), e, assim, ainda que o acidente de trabalho resulte de acto ou omissão do sinistrado que importe violação das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei, a exclusão do direito a reparação só ocorre em caso de negligência particularmente grave, qualificada, atendendo, designadamente, ao elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, que tem de ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima, e não em função de um padrão geral e abstracto de conduta.”
Ora, nada se tendo provado sobre as características e condições concretas do local de onde o sinistrado caiu, nem sobre a dinâmica dos actos executados pelo mesmo que conduziram a que se despoletasse a sua queda, não pode obviamente concluir-se que esta resultou de negligência grosseira do sinistrado.
Acresce ainda que, por força, além do mais, do disposto nos arts. 127.º, n.º 1, als. h) e i) e 281.º do Código do Trabalho, era sobre a sociedade empregadora do sinistrado que recaía a obrigação de assegurar àquele as condições de segurança prescritas para os trabalhos em altura, designadamente em matéria de informação, formação e implementação de medidas específicas que tivessem em conta os riscos especiais dos concretos locais a que o trabalhador tinha de aceder e subir, de modo a evitar que deles caísse.
Aliás, em conformidade com tal obrigação que recai sobre o empregador, o n.º 1 do art. 18.º do RRATDP, sob a epígrafe «Actuação culposa do empregador», estabelece que, quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.
Por seu turno, dispondo o n.º 1 do art. 79.º do mesmo diploma que o empregador é obrigado a transferir a responsabilidade pela reparação prevista naquela lei para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro (cfr. ainda o art. 283.º, n.º 5 do Código do Trabalho), o n.º 3 esclarece que, verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18.º, a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso.
É certo que, nos termos dos arts. 128.º, n.º 1, als. e) e j) e 281.º, n.º 7 do Código do Trabalho, os trabalhadores devem cumprir as prescrições de segurança e saúde no trabalho estabelecidas na lei ou em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, ou determinadas pelo empregador, sendo nesse pressuposto que se compreende o estabelecido no art. 14.º do RRATDP, que vimos analisando.
Porém, resulta seguramente da economia do regime, nos termos que se deixaram delineados, que a exclusão da obrigação de o empregador indemnizar os danos decorrentes do acidente, por acto ou omissão imputável ao sinistrado, pressupõe o cumprimento por aquele da obrigação de lhe assegurar as condições de segurança no trabalho em matéria de informação, formação e implementação das medidas de prevenção de riscos adequadas no caso concreto.
Assim não sucedendo, não só a pretensão de exclusão da obrigação de indemnizar por parte do empregador constituiria manifesto abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, como, de qualquer modo, tal pretensão improcederia em face do disposto no n.º 3 da norma em análise, na medida em que, não tendo sido asseguradas pelo empregador a informação, formação e disponibilização de equipamentos de protecção individual ou colectiva adequadas a prevenir o acidente em causa, existiria causa justificativa relevante para a inobservância pelo sinistrado de regras de segurança estabelecidas na lei ou em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho ou determinadas pelo empregador.
Consequentemente, impendendo sobre o responsável o ónus de prova dos requisitos determinantes da exclusão da sua responsabilidade nos termos do citado art. 14.º, como já se referiu, isso significa que o sinistro dos presentes autos deve ser qualificado como acidente de trabalho indemnizável também porque a seguradora ora Apelante não logrou provar que o sinistrado, sem causa justificativa, violou quaisquer condições de segurança nos trabalhos em altura previstas na lei, posto que não resulta da factualidade provada que as mesmas lhe tivessem sido asseguradas pela ré empregadora, designadamente fornecendo informação e formação adequadas e equipamentos de protecção idóneos.
Acresce que não releva o facto de o sinistrado ser gerente da sociedade empregadora, posto que a seguradora é responsável pelos danos sofridos por aquele por força de contrato de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, celebrado com a sociedade empregadora e abrangendo o sinistrado como pessoa segura, apesar daquela qualidade, nos termos das cláusulas 1.ª, als. d) e j) e 6.ª, n.º 2, do Anexo à Portaria n.º 256/2011, de 5 de Julho, que regula a parte uniforme das condições gerais da correspondente apólice, bem como as respectivas condições especiais uniformes.
E, assim sendo, inexistindo fundamento legal para tratar diferentemente a situação, em razão da aludida circunstância, vale inteiramente o acima explicitado, ou seja, em suma, ocorrendo violação de regras de segurança no trabalho, ou a mesma é imputável ao empregador – e, nesse caso, aplica-se o disposto nos arts. 18.º e 79.º do RRATDP, nomeadamente, o empregador responde por prestações agravadas, satisfazendo a seguradora do responsável o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso –, ou a mesma é imputável ao sinistrado, o que pressupõe o cumprimento pelo empregador da obrigação de lhe assegurar as condições de segurança no trabalho em matéria de informação, formação e implementação das medidas de prevenção de riscos adequadas no caso concreto, só nesse caso se aplicando o disposto no art. 14.º daquele diploma.
Em face do exposto, em conclusão, não decorrendo da factualidade provada que a empregadora do sinistrado lhe havia disponibilizado informação, formação e equipamentos de protecção individual ou colectiva adequados a prevenir o risco de queda em altura nas (desconhecidas) condições de lugar e modo em que se verificou o acidente, não pode entender-se que o sinistrado violou sem causa justificativa as regras de segurança aplicáveis previstas na lei.

Neste sentido, em caso similar, veja-se o Acórdão desta Relação de Guimarães de 23 de Janeiro de 2020, proferido no processo n.º 68/16.8T8VCT.G1 (8), com o seguinte sumário:

“1. O contrato de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, em que o tomador do seguro é uma sociedade comercial, pode abranger como pessoa segura o respectivo gerente, nos termos das cláusulas 1.ª, als. d) e j) e 6.ª, n.º 2, do Anexo à Portaria n.º 256/2011, de 5 de Julho, que regula a parte uniforme das condições gerais da correspondente apólice, bem como as respectivas condições especiais uniformes.
2. Ocorrendo violação de regras de segurança no trabalho, ou a mesma é imputável ao empregador – e, nesse caso, aplica-se o disposto nos arts. 18.º e 79.º do RRATDP, aprovado pela Lei n.º 98/2009, de 4/09, nomeadamente, o empregador responde por prestações agravadas, satisfazendo a seguradora do responsável o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso –, ou a mesma é imputável ao sinistrado, o que pressupõe o cumprimento pelo empregador da obrigação de lhe assegurar as condições de segurança no trabalho em matéria de informação, formação e implementação das medidas de prevenção de riscos adequadas no caso concreto, só nesse caso se aplicando o disposto no art. 14.º daquele diploma.
3. Não decorrendo da factualidade provada que a sociedade empregadora do sinistrado lhe havia disponibilizado informação, formação e equipamentos de protecção individual ou colectiva adequados a prevenir o risco de queda em altura no âmbito de trabalhos da construção civil em telhados, não pode entender-se que o sinistrado violou sem causa justificativa as regras de segurança aplicáveis previstas na lei, nem que o acidente resultou exclusivamente de negligência sua, e muito menos grosseira.”

Em suma, nada se tendo provado sobre as características e condições concretas do local de onde o sinistrado caiu, nem sobre a dinâmica dos actos executados pelo mesmo que conduziram a que se despoletasse a sua queda em altura, nem se a sociedade empregadora do sinistrado lhe havia disponibilizado informação, formação e equipamentos de protecção individual ou colectiva adequados a prevenir o risco de queda em altura, mas apenas que o sinistrado sofreu uma queda de uma altura de cerca de 5 metros para dentro do edifício, não estando a usar arnês de segurança ligado a uma linha de vida ou ponto fixo, não está demonstrado o nexo de causalidade entre a regra de segurança violada e a verificação do sinistro, nem a negligência grosseira do sinistrado, nem a inexistência de causa justificativa.
Por todo o exposto, improcede necessariamente a pretensão da Recorrente de descaracterização do sinistro como acidente de trabalho.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Em 21 de Janeiro de 2021

Alda Martins
Vera Sottomayor
Maria Leonor Barroso



1. Rectificado o valor de € 94,00 constante da sentença, por ser manifesto lapso de escrita/cálculo.
2. Cfr. o Acórdão desta Relação de Guimarães de 10 de Setembro de 2020, proferido no processo n.º 3723/18.4T8VCT.G1, e os aí citados, disponíveis em www.dgsi.pt.
3. “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, p. 392.
4. Disponível em www.dgsi.pt.
5. O Acidente de trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, 2013, pp. 226 e ss.
6. Disponível em www.dgsi.pt.
7. Disponível em www.dgsi.pt.
8. Não publicado.