Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2839/19.4T8BRG.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: MÚTUO
FALSA DECLARAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/20/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O beneficiário de associação mutualista com quem foi contratada Garantia de Pagamento de Encargos cobrindo o risco de morte e invalidez tem o dever de no questionário médico de fazer declarações verdadeiras sobre o seu estado de saúde.
II - A declaração falsa, inexata ou reticente traduz-se num facto impeditivo ou extintivo da validade da cobertura, cuja prova compete à Associação Mutualista.
III – Compete também à Associação Mutualista a prova de que tais declarações, designadamente quando contidas nas respostas constantes do questionário clínico, influíram na aceitação da Garantia por parte da Associação Mutualista.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra M... - Associação Mutualista, pedindo:

a) Seja a Ré condenada a acionar a garantia de pagamento de encargos do empréstimo subscrito pela Autora, n.º de associado ... – 2, pagando a totalidade do crédito em dívida ao Banco 1... à data de 02/08/2017, no montante de €54.334,10 (cinquenta e quatro mil, trezentos e trinta e quatro euros e dez cêntimos);
b) Caso assim não se entenda, seja a Ré condenada a restituir à Autora os montantes recebidos a título de quotas associativas e da modalidade referentes à garantia de pagamento de encargos do M... - Associação Mutualista, com o número de associado E 283.000-2, desde a data de confirmação da subscrição, acrescido dos juros vencidos e vincendos à taxa legal, a determinar em liquidação de sentença, nos termos dos artigos 358.º, n.º 2 e 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil;
c) Em qualquer dos pedidos seja a Ré ser condenada a pagar à Autora uma indemnização por danos morais no montante de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alega para tanto e em síntese que, juntamente com o seu marido, no dia 8 de janeiro de 2001 celebrou com o Banco 1... um contrato de mútuo com hipoteca e fiança, com cobertura do risco coberto por invalidez permanente e morte.
Que, para o efeito, assinou um questionário médico preenchido pelo funcionário do Banco e efetuou todos os exames que foram considerados necessários pela Ré.
Mais alega que em 2002, face às sintomatologias que começava a sentir, a Autora foi submetida a exames que detetaram uma série de patologias determinando que fosse sujeita a uma junta médica que lhe atribuiu a incapacidade permanente global de 82% e, nessa sequência, em 2 de Agosto de 2017, requereu junto da Ré o acionamento da referida Garantia de Pagamento de Encargos, tendo esta declinado a pretensão, alegando que a Autora omitira informação relevante para a cobertura do risco de invalidez, informando que passaria a garantir apenas a cobertura do risco morte, o que lhe causou nervosismo, desgosto, transtorno e arrelias.
Regularmente citada a Ré veio contestar alegando que a Autora omitiu informações relevantes relativas ao seu estado de saúde, que não podia deixar de conhecer, quando preencheu os questionários médicos e que tais omissões e respostas inexatas induziram-na a aceitar o risco que não teria aceite, caso soubesse do estado real de saúde da Autora.
Foi admitida a intervenção principal provocada de BB.
Foi dispensada a realização de audiência prévia, proferido despacho saneador e despacho a fixar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.

Veio a efetivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:

“Pelo exposto, o Tribunal julga a presente ação parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente:
- condena a R. M... - Associação Mutualista a acionar a garantia de pagamento de encargos do empréstimo n.º de associado ... – 2, subscrito pela A. AA, pagando a totalidade do crédito em dívida ao Banco 1..., à data de 02/08/2017, no montante de €54.334,10 (cinquenta e quatro mil, trezentos e trinta e quatro euros e dez cêntimos);
- absolve a R. do pedido de condenação no pagamento da indemnização de €2.5000,00 por danos morais.
Custas por A. e R., na proporção do respetivo decaimento – art. 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC –, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido à A.
Registe e notifique.”

Inconformada, apelou a Ré da sentença concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“CONCLUSÕES:

1- Vem a recorrente interpor o presente recurso da sentença que julgou parcialmente procedente a ação, condenando a aqui a recorrente M... - Associação Mutualista a acionar a garantia de pagamento de encargos do empréstimo nº de associado ...-2 subscrito pela A. AA, pagando a totalidade do crédito em dívida ao Banco 1... à data de 02/08/2017, no montante de € 54.334, por entender não ter existido uma correta interpretação da matéria de facto e a sua subsunção ao direito aplicado
2- Para o efeito entende dever existir uma reapreciação da matéria de facto, considerando os documentos juntos aos autos e os depoimentos das testemunhas, Drª CC, Drª DD e Dr EE que no seu conjunto com a prova documental já carreada para os autos impõem uma decisão diferente, e desta forma deveriam ser alterados nos termos do disposto no art. 662º do C.P.C os seguintes factos:
a) Alteração da resposta aos factos dados como provados al. l)
c) Alteração da resposta aos factos dados como não provadas nºs 8, 9 e 10
3- Dos depoimentos transcritos bem como dos documentos carreados para os autos resulta que o Tribunal de Primeira Instância não valorou um documento donde consta um facto irrefutável, e que não pode deixar de ser devidamente considerado em abono da verdade e da boa decisão da causa.
4- A subscrição de um produto mutualista – Garantia de Pagamento de Encargos está dependente de apreciação médica, que é efetuada tendo em conta o questionário clínico ou um exame médico direto, consoante o valor do capital subscrito, até € 50.000 o questionário médico e a partir desse montante além do questionário, análises clínicas, raios X e electrocardiograma.
5- Sempre que existe um exame médico direto o candidato tem de apresentar um conjunto de exames complementares de diagnóstico que tenha feito, ou alguma informação que entenda por relevante quanto ao seu estado de saúde passado ou presente.
6- Pois estes elementos são o ponto de partida para a avaliação do médico e essenciais para avaliar as condições da cobertura, uma vez que os produtos mutualistas não são um contrato-tipo.
7- Dos autos consta um relatório médico emitida pela Drª CC da ... -Unidade de ... – que refere que em 2000 foi diagnosticado à autora uma “nefropatia de IGA por biópsia renal”, e que em 2004 iniciou hemodiálise e em 2009 a autora foi sujeita a transplante renal. Cfr. al. bb) dos factos provados.
8- Sobre tal facto pouco ou nada discorre a douta sentença, antes considerando que a autora desconhecia que padecia de qualquer doença antes de 2002, assentando tal fundamentação maioritariamente nas suas declarações de parte e da testemunha FF, prima da autora, considerando a Mma Juíz a quo que tais depoimentos foram espontâneos e credíveis apesar da primeira ser parte na ação e a segunda familiar da parte, ambas com interesse no desfecho da ação.
9- A autora, em declarações de parte, afirmou não se recordar de ter qualquer sintoma de problema renal antes de 2002, não ter realizado qualquer biópsia, desconhecendo ser portadora de alguma doença.
10- Da referida declaração médica junta aos autos – Relatório da ... – Unidade de ..., assinada pela Drª GG - consta que em 2000, à autora foi diagnosticada nefropatia IGA por biópsia renal, tendo esclarecido a testemunha Drª CC que o descrito no relatório teve em consideração fichas clínicas anteriores e existentes naquela unidade.
11- É do conhecimento comum e reiterado pelas testemunhas Drª DD e Drª CC, que a biópsia renal, é exame complementar de diagnóstico solicitado com o objetivo de investigar a existência de doença, gravidade e meios de tratamento, e é realizado quando já existem sintomas associados a doença e precedida de outros exames e quando o estado clínico do paciente já o exige.
12- Não é crível que quem se submeta a este procedimento dele não tenha memória ou não lhe dê a devida importância, não é este o comportamento esperado pelo “bonnus pater famílias quando colocado na situação em concreto.
13- Não podendo, por isso, as declarações de parte, o depoimento da testemunha FF, e a inexistência de sangue na urina na data das análises para o GPE que, como foi explicado pelos médicos inquiridos, ser por si só suficiente para abalar a prova resultante de um relatório clínico, elaborado e assinado por um médico que teve o cuidado de o redigir recorrendo a todos os registos anteriores existentes quanto à saúde da autora, pois para o efeito de atribuição da invalidez.
14- Resulta claro que a autora proferiu declarações inexatas e omissões relevantes para a apreciação do risco que a recorrente assumiu, pelo que de acordo com a prova produzida deveria ser alterada a matéria de facto e em substituição:

• i. Dar como provado que em 2000 à autora foi diagnosticado uma nefropatia IGA por biópsia renal
• ii. Dar como provado que a autora era conhecedora desde 2000 que padecia de uma nefropatia IGA
• iii. Dar como provado que a autora sofreu de epilepsia na infância;
• iv. Dar como provado que as declarações prestadas pela autora influíram decisivamente no tipo de cobertura da garantia de pagamentos de encargos (GPE) que teria sido outra se a Ré estivesse na posse de todos os elementos essenciais aquando da decisão.
15- A Mma Juiz a quo além de não ter feito uma análise crítica das declarações de parte, ainda corroborou a sua versão com o depoimento de um familiar que é tudo menos isento.
16- Desconsiderou o teor de um relatório que foi condição essencial para o não acionamento da garantia, documento este que foi explicado pela médica que o realizou e assinou, e referiu que tais informações se basearam em relatórios clínicos anteriores.
17- Já quanto à assinatura do questionário médico veio a autora alegar que não o tinha assinado nem preenchido, tendo pedido um exame pericial, que afinal veio a dar como “muitíssimo provável” que a autora tenha assinado o documento e “provável” que o tivesse preenchido, mesmo quanto a este último a Mma Juiz entendeu não ser prova suficiente para considerar como provado o facto da autora ter preenchido o questionário, o que, salvo o devido respeito, não se entende.
18- A autora em todo este processo proferiu inverdades e omissões que desde logo abalam a credibilidade das suas declarações de parte, que à partida, apesar da principio da liberdade de apreciação da prova, não se pode olvidar que são proferidas por quem tem interesse direto no desfecho da ação, o mesmo se aplicando a uma testemunha que é familiar da parte.
19- A autora ao não responder com a verdade ou omitir factos importantes para a avaliação do risco contrariou o princípio basilar do funcionamento destes tipos de contratos que assenta no princípio da boa fé contratual.
20- Porque na verdade, mesmo que a autora não tenha sofrido a totalidade dos sintomas características de uma nefropatia IGA a verdade é que em 2000, imediatamente antes da subscrição da garantia mutualista, a autora teve sintomas que a levou a ser submetida a uma biópsia e posteriormente evoluiu para doença renal crónica.
21- Tal facto nunca poderia ter sido omitido à recorrente, sob pena de viciar todos os procedimentos posteriores na análise da proposta desde pedido novos exames até alterações ou acertos nas coberturas.
22- É sabido que a existência de seguros/garantias são condição para a obtenção do crédito e que a sua recusa ou limitação poderia pôr em causa a aceitação do mesmo nos termos propostos, pelo quem bem sabem os subscritores da importância que têm as suas respostas, razão pela qual existem cláusulas específicas nos contratos de exclusão de coberturas quando se provem falsas declarações, como forma de salvaguarda da seguradora, que tem como ponto de partida para analisar a proposta de subscrição o que é dito pelo subscritor.
23- A boa fé é, portanto, o princípio basilar da fase negocial destes contratos de cobertura de riscos.
24- A omissão de factos relevantes foi determinante para que a cobertura do capital subscrita cobrisse os casos de invalidez e morte ou não apenas um deles.
25- Resultou provado que a autora para além da nefropatia sofreu de epilepsia na infância, facto esse que a autora também omitiu, também negou que tivesse assinado e preenchido o questionário médico.
26- Ou seja, a autora em todo o processo não agiu de boa fé, omitindo factos que sabia serem relevantes na análise do crédito e garantia do capital subscrito, quer para a sucesso da presente ação.
27- Quem negoceia com outrem para conclusão do contrato deverá tanto na fase preliminar como na formação do contrato proceder segundo os princípios da boa fé. – art 227º do C.C.
28- Ao beneficiário de associação mutualista, à semelhança do que ocorre com o contrato de seguro tem o dever de, na proposta de contrato, fazer declarações verdadeiras sobre o seu estado de saúde. – Ac. Relação de Lisboa de 19/06/2019.
29- E conforme melhor se lê no acórdão da Relação do Porto de 8703/2019 in www. dgsi.pt, o seguro de vida celebrado entre segurador/tomador e a seguradora ré configura-se como contrato a favor de um banco terceiros, credor do segurado e beneficiário exclusivo do risco, tendo resultado que uma negociação iniciada com a receção da seguradora da proposta de seguro com questionário e concluída com a emissão da apólice, documentos escrito obrigatório para a perfeição negocial. II. A ré seguradora veio alegar a anulabilidade do contrato do seguro de vida por ter prestado falsas declarações e omitido outros relevantes sobre o seu estado de saúde anterior e na data da apresentação do questionário clínico que subcreveu com a proposta apresentada e logrou provar factos relevantes para tal. “
30- Por último, lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/06/2018, que o questionário traduz-se numa facilitação concedida pelo segurador ao segurador e não parece justo que, assim, possa redundar num prejuízo daquele. III. As respostas ao questionário são o repositório das declarações que a seguradora deve confiar e em funções das quais aceita ou não o contrato e fixa as respetivas condições, não se concebendo a formulação de perguntas inúteis ou irrelevantes. (…) Cabe à seguradora o ónus de provar o erro, a sua relevância e a existência de dolo ( 342º, º 2).
31- Tais factos resultaram da prova carreada para os autos, nomeadamente documental e testemunhal, pelo que deverá ser alterada a decisão proferida em primeira instância e substituída por outra que improceda o pedido de acionamento da garantia e consequentemente o pagamento ao banco montepio do montante em dívida no valor de € 54.344,10, mantendo-se apenas a cobertura por morte.
32- Violou desta forma, o Tribunal da Primeira instância o disposto nos art. 342º, art. 227º do C.C.”
Pugna a Recorrente pela alteração da decisão proferida em primeira instância por outra que absolva a Recorrente da totalidade dos pedidos formulados, seguindo-se demais termos até final.
A Autora contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e pela confirmação da sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, são as seguintes:
1 - Determinar se houve erro no julgamento quanto ao ponto L) dos factos provados e aos pontos 8), 9), e 10) dos factos não provados;
2 - Saber se houve erro na subsunção jurídica dos factos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Factos considerados provados em Primeira Instância:

A) A Autora, o seu ex-marido, BB, e o Banco 1..., Número de Identificação de Pessoa Coletiva ..., com sede social na Rua ..., freguesia ... , ... ..., outorgaram uma escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança, no dia 08 de janeiro de 2001.
B) Mediante a referida escritura pública e respetivo documento complementar o Banco 1... emprestou à Autora e seu ex-marido a quantia de doze milhões de escudos para a construção de um fogo no prédio urbano, composto por parcela de terreno destinada a construção, sita no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória ... sob o número ...66/..., que se destina unicamente a sua habitação própria e permanente, pelo prazo de trinta anos.
C) Para garantia de pagamento de encargos, cobrindo o risco de falecimento ou invalidez permanente, foi apresentado à Autora, por um funcionário do M... - Associação Mutualista, um formulário de inscrição garantia de pagamento de encargos do M... - Associação Mutualista, o que esta assinou, conforme lhe foi indicado pelo referido funcionário.
D) Para efeitos de subscrição da referida proposta a Autora assinou um questionário médico, no campo que lhe foi indicado por um funcionário do M... - Serviços Médicos.
E) Além disso, a Autora forneceu todos os elementos que lhe foram solicitados, tendo sido sujeita a uma avaliação médica, efetuado exames complementares de diagnóstico e análises clínicas conforme requerido com vista à avaliação da sua situação médica pelo M... - Associação Mutualista.
F) Sendo certo que, a proposta de subscrição da Autora foi aceite pela Ré, com o n.º de associado ... – 2, na modalidade de garantia de pagamento de encargos, com o capital subscrito de doze milhões de escudos, com quota anual de vinte e cinco mil, cento e sessenta e quatro escudos, com periodicidade de pagamento anual, pelo prazo de trinta anos, com as coberturas do risco de invalidez e morte.
G) A referida garantia de pagamento de encargos entrou em vigor em janeiro de 2001.
H) A garantia de pagamento de encargos cobre o risco de morte e invalidez, a qual corresponde a um estado de incapacidade tendencialmente irreversível a que corresponda uma percentagem de incapacidade igual ou superior a 70%, conforme a Tabela Nacional de Incapacidades.
I) Através da subscrição da referida garantia a Ré garantiu o pagamento da quantia em dívida emergente do crédito bancário contraído pela Autora para a construção da sua habitação própria e permanente junto do Banco 1... em caso de morte de pessoa segurada ou invalidez total e definitiva.
J) Em 2002 a Autora com sintomas de edema nos membros inferiores, tonturas e palpitações, após ter consultado vários médicos, foi encaminhada para consulta de nefrologia.
K) No âmbito da qual, posteriormente, tomou conhecimento de que padecia de uma doença renal crónica.
L) Até então a Autora não tinha noção de que padecia de qualquer doença renal.
M) Nessa sequência, no dia 13 de outubro de 2004, a Autora iniciou um programa regular de hemodiálise, em contexto de elevação de ureia no sangue por cateter venoso central provisório, tendo colocado cateter tunelizado no dia 21 de outubro de 2004.
N) No dia 27 de julho de 2017 a Autora foi submetida a uma perícia por junta médica, no âmbito da qual foi concluído que a Autora padecia das seguintes deficiências:
i) insuficiência renal crónica, que implica hemodiálise regular em fase avançada (…) sob hemodiálise, (cfr. capítulo VIII, número 1.1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro);
ii) epilepsia generalizada controlável com tratamento e compatível com vida normal, (cfr. capítulo III, número 2.3.1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro);
iii) E perturbações funcionais importantes ao nível da psiquiatria, com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional, (cfr. capítulo X, grau III, do Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro).
O) Tendo-lhe sido atribuída uma desvalorização de 0,7 (zero ponto sessenta) com referência à insuficiência renal crónica e 0,0765 (zero ponto zero sete seis cinto) com referência às perturbações funcionais ao nível da psiquiatria.
P) Os senhores peritos médicos elaboraram um atestado de incapacidade multiuso, no qual lhe resulta atribuída uma incapacidade permanente global de 82% (oitenta e dois por cento), suscetível de avaliação futura no ano de 2019.
Q) De acordo com o atestado de incapacidade multiusos e nos termos da garantia de pagamento de encargos da Banco 1... subscrita pela Autora, esta preenchia os pressupostos para que fosse considerada incapaz para efeitos de acionamento da cobertura de invalidez.
R) No dia 02 de agosto de 2017, a Autora requereu à Ré o acionamento da garantia de pagamento de encargos da Banco 1..., mediante missiva dirigia à mesma, a qual acompanhou com cópia do atestado médico de incapacidade multiuso.
S) A Autora foi informada pela Ré, mediante missiva, de que esta não iria assumir o pagamento do benefício requerido, passando a subscrição a garantir apenas a cobertura de risco de morte.
T) Alegando para o efeito a Ré que: “Na documentação médica agora recebida, há informação de patologia diagnosticada em data anterior à subscrição, o que a ter-nos sido comunicado pela associada, teríamos concluído pelo corte da cobertura de risco de incapacidade (mantendo a cobertura de risco de vida). Por este motivo, a inscrição acima referida fica abrangida pelo artº 9º Ponto 1, das Disposições Gerais do Regulamento de Benefícios do M... Geral (…): “O Risco Invalidez ou o Risco Morte não se consideram cobertos quando se provar que o Subscritor ou os Beneficiários produziram declarações falsas, apresentaram falsos documentos ou omitiram factos suscetíveis de induzir em erros os serviços do M... - Associação Mutualista na avaliação do risco correspondente”.
U) Foi feita referência no questionário às doenças dominantes e conhecidas na família da Autora: diabetes e hipertensão arterial.
V) A Autora remeteu uma segunda missiva à Ré a referir que, de facto, não prestou faldas informações e na data da subscrição efetuou todos os exames considerados necessários pela Ré, tendo sido considerado “apta” e que agora com uma incapacidade superior a 70% a Ré deveria acionar a garantia de pagamento de encargos.
W) A Ré manteve a sua posição, alegando que o parecer dos serviços médicos da Ré “referem que na documentação entregue pela Sr.ª D. AA no âmbito do referido pedido, foram apresentados diagnósticos de patologia neurológica com início na infância da associada, e de doença renal com início em 2000 (ambas as situações em data anterior à data da subscrição em assunto, em janeiro de 2001).
Estas informações, a terem sido comunicadas à data da subscrição, implicariam que não fosse aceite pelo M... - Associação Mutualista a cobertura de risco de invalidez, mas apenas a cobertura do risco de morte”.
X) Após a Autora se ter dirigido ao balcão do Banco 1... foi informada de que a informação alusiva na missiva correspondia não mais senão a um relatório da ... – Unidade de ..., entregue pela própria no balcão antes de acionar a garantia de pagamento de encargos.
Y) A Autora e o Interveniente BB ficaram sujeitos a uma avaliação médica presencial realizada por um médico da Ré, o que sucedeu.
Z) Face à informação constante da declaração médica emitida pela Drª CC da ... – Unidade de ..., os serviços médicos da Ré emitiram um parecer não favorável quanto ao acionamento da garantia por invalidez, com fundamento na existência de omissões de factos e informações que levaram a uma avaliação e a aprovação incorreta pelos serviços médicos, tendo disso dado conhecimento à Autora em 4 de outubro de 2017.
AA) A Autora nada referiu quanto à epilepsia de um familiar direto – mãe, quando da declaração médica da ... consta como antecedentes familiares relevantes “Mãe com antecedentes de epilepsia”.
BB) Da mesma declaração médica consta que em 2000 foi diagnosticado à Autora uma “nefropatia renal, por biópsia renal”, sendo que tal corresponde a uma doença dos rins, e que em 2004 iniciou hemodiálise e em 2009 foi sujeita a um transplante renal.
CC) A subscrição em causa foi alterada, passando a cobrir apenas o risco de morte em vez do risco de morte e invalidez total e permanente, ou seja, a subscrição mantém-se pelo restante prazo, pelo capital subscrito e para garantia do mesmo contrato hipotecário que foi indicado pelos subscritores, tendo isso sido comunicado à Autora por carta de 4/10/2017.
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3.2. Factos considerados não provados em Primeira Instância:

1- Foi o funcionário do Banco que preencheu o questionário médico.
2- O comportamento da Ré causa à Autora angústia, ansiedade e revolta, não compreendendo a sua recusa em acionar a garantia de pagamento de encargos, referente ao risco de incapacidade.
3- Além de ter sido obrigada a enveredar pela via judicial para a resolução deste problema, o que lhe provocou grande nervosismo por não ser pessoa habituada nestas lides.
4- O recurso a Tribunal para fazer valer o seu direito, o que para além da incerteza e despesas que esta via naturalmente acarreta, prolongou à A. desgosto, nervosismo, ansiedade, transtorno e arrelias.
5- Não foi explicado à Autora o efetivo alcance das perguntas e respostas aos vários itens do questionário médico nem tanto a mesma foi advertida sobre as consequências de uma resposta inexata.
6- Não obstante, o certo é que a Autora não teve consciência, no momento da assinatura, do teor e conteúdo efetivo e essencial dos documentos, os quais eram apenas mais um documento entre tantos outros em que foi requerida a assinatura da Autora.
7- A Autora e o Interveniente BB preencheram individualmente um questionário médico.
8- A Autora no questionário médico que assinou, e na consulta médica presencial a que foi sujeita, nada referiu quanto a determinadas patologias existentes em data anterior à subscrição do GPE e que a Autora não poderia desconhecer ou não considerar.
9- Não poderia a Autora desconhecer que padecia de uma doença dos rins em 2002 e qual a sua gravidade, quando em 2000, lhe foi diagnosticada uma nefropatia por biópsia renal.
10- As declarações – falsas- prestadas pela Autora influíram decisivamente no tipo de cobertura da Garantia de Pagamento de Encargos (GPE), que teria sido outra se a R. estivesse na posse de todos os elementos essenciais aquando da decisão.
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3.2. Da modificabilidade da decisão de facto

O n.º 5 do artigo 607º do CPC preceitua que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, o que resulta também do disposto nos artigos 389º, 391º e 396º do Código Civil, respetivamente para a prova pericial, para a prova por inspeção e para a prova testemunhal; desta livre apreciação do juiz o legislador exclui os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (2ª parte do referido n.º 5 do artigo 607º).
Cumpre realçar que a “livre apreciação da prova” não se traduz obviamente numa “arbitrária apreciação da prova”, pelo que impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a “menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (v. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655).
“É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)” (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).
O Tribunal, ao expressar a sua convicção, “deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respetiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância” (Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, p. 591).
De facto, dispõe o n.º 1 do artigo 662º do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Sustenta a Recorrente que houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos L) dos factos provados e 8), 9), e 10) dos factos não provados.
Vejamos.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do CPC, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
No caso concreto, a Recorrente cumpriu satisfatoriamente o ónus de impugnação da matéria de facto, fundamentando a sua discordância.

Analisemos os motivos da sua discordância, quanto aos diversos pontos impugnados, os quais têm a seguinte redação:
“L) Até então a Autora não tinha noção de que padecia de qualquer doença renal.
8- A Autora no questionário médico que assinou, e na consulta médica presencial a que foi sujeita, nada referiu quanto a determinadas patologias existentes em data anterior à subscrição do GPE e que a Autora não poderia desconhecer ou não considerar.
9- Não poderia a Autora desconhecer que padecia de uma doença dos rins em 2002 e qual a sua gravidade, quando em 2000, lhe foi diagnosticada uma nefropatia por biópsia renal.
10- As declarações – falsas- prestadas pela Autora influíram decisivamente no tipo de cobertura da Garantia de Pagamento de Encargos (GPE), que teria sido outra se a R. estivesse na posse de todos os elementos essenciais aquando da decisão”.
Está em causa, no essencial, a matéria de facto julgada provada e não provada pelo tribunal a quo quanto às declarações prestadas pela Autora sobre a existência de patologias e o seu conhecimento das mesmas.
Relembramos aqui, antes de mais, a motivação do tribunal a quo:
“A convicção do Tribunal baseou-se no teor do relatório pericial e dos documentos juntos aos autos, conjugados com os depoimentos das testemunhas.
Concretizando, atendeu-se, fundamentalmente, ao resultado da perícia, onde se concluiu ser muitíssimo provável a verificação da hipótese da assinatura aposta no questionário ser do punho da A. e provável a verificação da hipótese da escrita do preenchimento do questionário ser do punho da A.
Atendeu-se também à escritura do mútuo com hipoteca; à comunicação da confirmação de subscrição; à garantia de pagamento de encargos; à declaração da médica DD da Unidade de Saúde ...; ao atestado médico de incapacidade multiuso; à comunicação de 2 de Agosto de 2017 dirigida pela A. à Banco 1...; à comunicação de 31 de Outubro de 2017 dirigida pela A. ao M... - Associação Mutualista; carta enviada pela R. ao Mandatário da A. de 22 de Novembro de 2017; o regulamento de Benefícios do M... Geral; o questionário médico; a declaração médica da ..., Unidade de ...; a carta enviada pela R. à A. de 4 de Outubro de 2017;
Quanto à questão do preenchimento do questionário médico, nenhuma testemunha conseguiu afirmar que foi a A. a preencher o questionário.
A A., ouvida em declarações de parte, afirmou que o funcionário do Banco a ajudou a preencher o questionário, colocando “as cruzinhas”.
O relatório pericial concluiu que é provável que tenha sido a A. a preencher o questionário.
A versão da A. é no sentido de que não foi ela a preencher, tendo assinado.
Incumbia à R. demonstrar que foi efetivamente a A. a efetuar aquele preenchimento, mas as testemunhas que apresentou não o confirmaram.
Assim, e porque o resultado pericial não apresenta um grau de certeza suficiente, decide-se considerar como não provado que foi a A. a preencher o questionário, não se tendo provado, no entanto, o contrário, por ter sido apenas a A. a produzir prova, em declarações de parte, nesse sentido. Ora, como se sabe, as declarações de parte, só por si, não são suficientes para fazer a prova da versão apresentada.
Relativamente à questão do estado clínico da A. à data em que assinou o questionário médico, foram determinantes a declaração da médica DD da Unidade de Saúde ..., a declaração médica da ..., Unidade de ..., os depoimentos das testemunhas FF, DD, CC e EE, e as declarações de parte da A.
A testemunha FF, prima da A., disse que foi em 2002 que a A. começou a ficar com as pernas inchadas e procurou o médico, tendo feito exames; afirmou lembrar-se bem desse ano porque foi o ano do nascimento da sua filha mais velha; referiu que depois a A. passou a fazer hemodiálise, o que ainda faz; esclareceu que são da mesma idade, cresceram juntas, têm uma família unida, e a A. nunca lhe falou de uma biópsia renal em 2011; disse também que a A. não tem estudos, trabalhava com o pai numa imobiliária, recebendo as rendas das casas arrendadas pelo pai, e numa mercearia.
Apesar da proximidade emocional que admitiu com a A., prestou um depoimento objetivo e credível.
A testemunha DD, médica da USF ..., declarou que é a médica de família da A. desde setembro de 2013 e que nessa data esta já tinha diagnosticado o problema renal.
É a autora da declaração da médica emitida em 6 de setembro de 2018, de fls. 21 e 21 v.º. Aí de descrevem os antecedentes da A., salientando-se, por relevantes para a decisão a proferir, a “epilepsia desde a infância, atualmente controlada, medicada até 2010” e a “IRC secundária a nefropatia de IgA, em PRHD desde Out/2004”.
A testemunha CC, médica, nefrologista, foi médica da A. de 2016 a 2017, no âmbito do apoio à diálise.
Afirmou que escreveu a declaração da ..., Unidade de ..., de fls. 49 v.º a 52, esclarecendo que o fez com base nos registos clínicos existentes na clínica de hemodiálise; esclareceu ainda que pode acontecer que a nefropatia fique resolvida, que uma posterior análise à urina não detete a presença de sangue, mas isso é raro.
A testemunha EE, médico, a trabalhar nos serviços centrais da R., confirmou que emitiu o parecer não favorável quanto ao acionamento da garantia por invalidez; admitiu que não observou a A., que não a conhece; referiu que com base na informação do questionário médico e na informação do médico que observou a A. não havia qualquer problema de saúde conhecido; explicou que a A. se sujeitou a uma observação médica, análises à urina, rx pulmonar, concretizando que as análises foram realizadas em 13 de Dezembro de 2000 e que nada de anormal foi detetado, nomeadamente, sangue na urina; disse também que não foi observado edema nas pernas. Disse também que se soubessem da nefropatia e da epilepsia tinha sido excluído o risco de invalidez, mantendo-se o risco de morte.
A A., em declarações de parte, afirmou que teve os primeiros sintomas de doença renal em 2002, com edema nas pernas; quando assinou o questionário não tinha sintomas de nada, nem as análises nem o médico que a observou detetaram qualquer problema; não se recorda de qualquer problema em 2000 nem teve quaisquer sintomas antes de 2002; referiu ainda que disse ao médico que teve epilepsia na infância, aos 3/4 anos, e que já não tinha, nada tendo sido respondido.
Ora, tudo conjugado, retendo que as análises à urina foram realizadas em 13 de Dezembro de 2000, no mesmo ano da alegada nefropatia de IgA, e que não foi detetado sangue na urina (o que seria raro, caso a nefropatia de IgA tivesse ocorrido); que a A. foi observada por um médico também nessa altura e que não foi verificado edema dos membros inferiores ou outros sinais de doença, renal ou outra; a testemunha testemunha FF e a A. afirmaram a inexistência de qualquer problema renal anterior a 2002 e inexistência de biópsia; a declaração médica da testemunha CC foi escrita com base em registos clínicos que não foram juntos aos autos, sendo que a médica que a elaborou não tem conhecimento direto de factos anteriores a 2016, data em que passou a acompanhar a A.; a declaração médica da testemunha DD é no sentido de que os problemas renais foram diagnosticados em 2002, não foi possível concluir que, efetivamente, a A. teve uma nefropatia de IgA diagnosticada em 2000, e, por conseguinte, também não se pode concluir que a A. faltou à verdade ou omitiu factos relevantes quanto à sua situação renal quando assinou o questionário médico.
De referir que a testemunha EE, médico da R., prestou um depoimento muito comprometido com os interesses da R., o que resultou evidente da sua resposta descabida quando confrontado com a ausência de sangue na urina da A.
Assim, e porque foi a única testemunha a afirmar que se a R. soubesse da epilepsia teria excluído o risco da invalidez, e como não foi apresentado qualquer outro meio de prova sobre esta matéria, deu-se este facto como não provado.
No que respeita à epilepsia, há a reter o seguinte:
A alegada epilepsia da mãe da A., que segundo a R. foi ocultada pela A. no questionário, tendo apenas indicado como antecedentes familiares a diabetes e a hipertensão arterial, é somente mencionada na declaração médica elaborada pela testemunha CC; esta declaração foi escrita com base em elementos clínicos que não foram juntos aos autos, sendo que o documento se encontra impugnado pela A. Assim, tal declaração não é suficiente para provar que essa situação de epilepsia de mãe da A. existia e que a A. a omitiu. Considerou-se provado o teor do documento, mas não o facto aí referido.
No que respeita à epilepsia da A., efetivamente, resulta da declaração médica emitida pela sua médica de família, a testemunha DD, que a A. tinha epilepsia desde a infância, controlada à data de 6 de setembro de 2018, com medicação até 2010; a própria A. admitiu que teve epilepsia aos 3/4 anos.
Ora, a R. afirma que a A. omitiu essa menção no questionário médico.
Efetivamente, não está aí referida essa situação de epilepsia, pelo que se encontra provado que a A. não indicou no questionário médico a sua condição de epilética.
No entanto, e contrariamente ao que sucede no campo referente ao “conhecimento de doenças dominantes na família”, em que se refere expressamente a epilepsia, quando no questionário se passa a referir a situação de doenças ou sintomas que a A. teve ou tem não aparece a epilepsia, surgindo entre outras, a “doença neurológica”.
A A. tinha a sua epilepsia controlada (pensava até que já não tinha), é pessoa sem estudos e humilde. É razoável esperar que tenha conhecimento, com o seu grau cultural, que a epilepsia é uma doença do foro neurológico? Não foi alegado nem provado que tinha consultas de neurologia e que conhecia a existência dessa especialidade. Concluímos que a A. não omitiu conscientemente este facto do questionário médico.
Por outro lado, a epilepsia não contribui de forma relevante para a incapacidade da A. superior a 70% – em 21 de Julho de 2017, quando foi sujeita à junta médica foi-lhe atribuída pela epilepsia 0,0450, quando pela doença renal crónica e pelas perturbações funcionais importantes ao nível da psiquiatria lhe foram atribuídos 0,7000 e 0,0765, respetivamente, o que equivale a um grau de incapacidade de 78%, superior a 70%, suficiente para acionar a garantia de pagamento de encargos.
As testemunhas HH, II, JJ, KK e LL não revelaram conhecimento relevante sobre os factos em discussão.
Os alegados danos não patrimoniais da A. não resultaram provados, porquanto nenhuma testemunha foi inquirida sobre essa matéria nem resultaram de qualquer outro meio de prova.
A matéria que não consta do elenco dos factos provados e dos factos não provados é conclusiva, de direito ou não revela interesse para a decisão da causa.”
Manifesta a Recorrente, no essencial, ao longo das suas alegações a sua discordância relativamente à valoração da prova e à convicção formada pelo tribunal a quo, contrapondo a sua própria valoração.
Mas, e diga-se desde já, a prova há-de ser apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, com recurso às regras da experiência e critérios de lógica; “segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas” (Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 384).
A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza; a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Atualizada, p. 435 a 436).
Está por isso em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
No caso concreto, na motivação constante da decisão recorrida, o tribunal a quo esclareceu de forma crítica e fundamentada a formação da sua convicção, e indicou especificada e justificadamente os fundamentos decisivos para a mesma, analisando criticamente as provas e esclarecendo porque entendeu não resultar demonstrado que até 2002 a Autora não tinha noção de que padecia de qualquer doença renal e não considerou demonstrado que as declarações prestadas pela Autora influíram decisivamente no tipo de cobertura da Garantia de Pagamento de Encargos (GPE), e nem que teria sido outra se a Ré estivesse na posse de todos os elementos essenciais aquando da decisão.
Importa referir que, ao contrário do que sustenta a Recorrente, e decorre de forma linear da motivação da matéria de facto, o tribunal a quo não deixou de valorar a Declaração Médica subscrita pela Drª CC, da ...-unidade de ...; aliás, a Dr.ª CC foi ouvida como testemunha.
O que decorre da motivação é que o tribunal a quo valorou a Declaração Médica e as declarações da Drª CC de forma distinta da pretendida pela Recorrente, e fê-lo no contexto da demais prova produzida, considerando que a Autora fez análises à urina em 13 de dezembro de 2000, no mesmo ano da alegada nefropatia de IGA, e que não foi detetado sangue na urina (o que seria raro, caso a nefropatia de IGA tivesse ocorrido), que a Autora foi observada por um médico também nessa altura e que não foi verificado edema dos membros inferiores ou outros sinais de doença, renal ou outra; considerando ainda as declarações da testemunha FF e da Autora, bem como a declaração médica da testemunha Dr.ª DD e que a declaração médica da Dr.ª CC foi escrita com base em registos clínicos que não foram juntos aos autos, sendo que a médica que a elaborou não tinha conhecimento direto de factos anteriores a 2016.
Na verdade, analisada a prova produzida nos autos impõe-se concluir que a mesma aponta de forma inequívoca que a Autora apresenta antecedentes de epilepsia desde a infância, controlada em 2018, tendo sido medicada até 2010, e IRC secundária a nefropatia de IGA, em PRHD desde outubro de 2004, tendo sido submetida a transplante renal em 2009; é o que decorre da declaração médica subscrita pela testemunha Dr.ª DD (a fls. 21) e da declaração subscrita pela testemunha Drª CC (a fls. 48 vº).
Impõe-se ainda concluir que apenas da declaração subscrita pela testemunha Drª CC (que foi médica assistente da Autora no período de 2015/2016, não tendo conhecimento direito de factos anteriores a essa data) consta “nefropatia de IgA diagnosticada em 2000 por biopsia renal”, ainda que seja referida DRC (doença renal crónica) conhecida apenas desde 2002; conforme declarou esta testemunha foi buscar aos registos clínicos que se encontravam na “...-unidade de ...” a informação que fez constar da declaração. Contudo, tais registos clínicos não constam dos autos, não sendo possível confirmar, designadamente, se a Autora efetivamente fez a biopsia, na sequência da qual foi diagnosticada a nefropatia, no ano de 2000. O que sabemos, e consta também da declaração, é que a doença renal crónica apenas foi conhecida em 2002.
De qualquer modo, da declaração em causa também não consta a data concreta em que foi conhecido o resultado da biopsia e, acima de tudo, a data em que a Autora teve conhecimento do mesmo e de que lhe fora diagnosticada a nefropatia, de forma a que pudesse afirmar-se que a Autora na data em que preencheu o questionário e foi submetida a exame médico tinha conhecimento desse diagnostico.
E, se atentarmos no questionário que a Autora preencheu, dele também não consta qualquer referência à eventual realização de biopsia ou a nefropatia, mas apenas se o candidato sofre a doenças crónicas (sendo que a DRC apenas foi conhecida em 2002) ou se considera bom o estado de saúde ou se tem consequências de doenças passadas.
Ora, à data, a Autora tinha apenas 23 anos de idade; realizadas analises à urina em 13/12/2020 e examinada pelo médico de confiança da Recorrente (v. neste sentido as declarações da testemunha EE, médico) a mesma também não evidenciava nada de suspeito para doença renal: nas análises à urina não foi detetado sangue na urina e não foi verificado edema dos membros inferiores ou outros sinais de doença, renal ou outra.
Se atentarmos nas declarações prestadas pela testemunha Dr.ª DD os primeiros sinais que surgem no caso de nefropatia de IgA são normalmente sangue na urina; aquela dá um quadro agudo de alteração renal com hemorragia que se manifesta na urina e tem de se procurar a causa, chegando-se ao diagnostico de nefropatia muitas vezes com a realização de biopsia e depois de afastar outras possíveis causas para a deteção de sangue na urina.
Ainda segundo esclareceu a testemunha, a nefropatia pode nem evoluir logo, ou até nunca, para doença renal crónica, podendo até ser autolimitada; pode o episódio ter sido ultrapassado, e a pessoa estar convencida que não tem nenhum problema renal; também a Dr.ª CC, quando questionada, esclareceu que a Autora podia ter tido a nefropatia, a mesma ter sido resolvida, nada ter sido detetado na urina, e a Autora estar convencida que não tinha qualquer problema renal.
Na verdade, segundo a informação do médico que observou a Autora, e o resultado das análises que esta realizou em 13/12/2000, não havia então qualquer problema de saúde conhecido.
Assim, da análise da prova documental em conjugação com as declarações prestadas pelas testemunhas indicadas pela Recorrente, sem considerar sequer as declarações prestadas pela própria Autora e por sua prima, a testemunha FF, não é possível concluir que em 2000, antes do preenchimento do questionário, foi diagnosticado à Autora uma nefropatia IGA e que a mesma tinha conhecimento de que padecia de doença renal, e muito menos de doença renal crónica, pois esta apenas foi conhecida em 2002.
Não se pode, por isso, afirmar a existência de erro de julgamento quanto aos pontos L) dos factos provados e 9) dos factos não provados, e nem dar como provado que em 2000 foi diagnosticada à Autora uma nefropatia IGA por biópsia renal e que era conhecedora desde 2000 de que padecia de uma nefropatia IGA.
Quanto à questão da epilepsia, sustenta a Recorrente que deve ser dado como provado que a Autora sofreu de epilepsia na infância e alterada, também nessa parte o ponto 8) dos factos não provados onde consta que no questionário médico e na consulta presencial a Autora nada referiu quanto a patologias pré-existentes.
Como já referimos, da prova documental junta aos autos, impõe-se concluir que a mesma aponta de forma inequívoca que a Autora apresenta antecedentes de epilepsia desde a infância, controlada, tendo sido medicada até 2010; do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, datado de 21/07/2017) consta ainda a atribuição de grau de incapacidade de 0,0450 nos termos do capitulo III, ponto 2.3.1, alínea a) do Anexo I (Tabela Nacional de Incapacidades) aprovado pelo Decreto-lei n.º 352/2007 de 23/10, ou seja, por epilepsia controlável com tratamento e compatível com vida normal.
A própria Autora admitiu que teve epilepsia aos 3/4 anos.
Se atentarmos no questionário médico que a Autora assinou em 2000 é inequívoco que no mesmo não consta qualquer indicação quanto à situação da epilepsia da Autora; contudo, nele também não consta qualquer referência expressa à epilepsia, mas apenas a doenças neurológicas.
Tal como se salienta na sentença recorrida, “contrariamente ao que sucede no campo referente ao “conhecimento de doenças dominantes na família”, em que se refere expressamente a epilepsia, quando no questionário se passa a referir a situação de doenças ou sintomas que a A. teve ou tem não aparece a epilepsia, surgindo entre outras, a “doença neurológica”.
A A. tinha a sua epilepsia controlada (pensava até que já não tinha), é pessoa sem estudos e humilde. É razoável esperar que tenha conhecimento, com o seu grau cultural, que a epilepsia é uma doença do foro neurológico? Não foi alegado nem provado que tinha consultas de neurologia e que conhecia a existência dessa especialidade. Concluímos que a A. não omitiu conscientemente este facto do questionário médico.”
Ainda assim, do questionário (onde se refere se “tem ou teve alguma das seguintes doenças ou sintomas”) consta ainda um campo para preencher com a referência a “outras doenças”, no qual a Autora nada indicou.
Entendemos, por isso, que devem ser aditados novos pontos à matéria de facto provada, com a seguinte numeração e redação:
“DD) A Autora sofreu de epilepsia na infância, encontrando-se a mesma atualmente controlada.
EE) No questionário médico referido em D), no qual não existe referência expressa à epilepsia na parte destinada a assinalar doenças ou sintomas que o candidato tem ou teve, não se encontra nada assinalado no campo respeitante a “doenças neurológicas” e nem no campo referente a “outras doenças”.
FF) No questionário médico referido em D), também nada se encontra assinalado no campo respeitante a “sofre de doenças crónicas?”.
GG) No questionário médico referido em D) não consta qualquer menção expressa a “realização de biopsia” ou a “nefropatia”.
HH) No referido questionário médico, à pergunta “considera bom o seu estado de saúde?”, encontra-se assinalado “sim”; e à pergunta se “existem atualmente quaisquer consequências de doenças passadas?” encontra-se assinalado “não”.
E deve também ser alterada, em conformidade, a redação do ponto 8) dos factos provados
“8- A Autora no questionário médico referido em D), e na consulta médica presencial a que foi sujeita, nada referiu quanto à patologia de nefropatia de IgA e doença renal crónica existente em data anterior à subscrição do GPE e que a Autora não poderia desconhecer ou não considerar.”
Relativamente ao ponto 10) dos factos não provados importa assinalar que o que está em causa são as declarações falsas da Autora, se estas influenciaram o tipo de cobertura da Garantia de Pagamento de Encargos e se teria sido outra a decisão da Ré.
Ora, quanto à questão da nefropatia e doença renal crónica, como já vimos, não podemos afirmar que a Autora prestou falsas declarações, que padecia dessas patologias e nem que eram do seu conhecimento, pelo que também se não pode colocar a questão de ter sido outra a decisão da Ré.
Quanto à epilepsia, como já vimos, a Autora tinha padecido na infância; da prova que decorre dos autos resulta ainda que a Autora foi medicada e tem a epilepsia controlada e no Atestado Médico de Incapacidade Multiuso consta também a referência a epilepsia controlável com tratamento e compatível com vida normal.
Se atendermos às declarações da testemunha EE, médico da Ré, que também entendemos ter prestado um depoimento comprometido com os interesses da Ré, tal como assinalado pelo tribunal a quo, em face da forma como o prestou, ainda assim, não podemos concluir que se à data a Ré tivesse conhecimento que a Autora sofrera a decisão da Ré teria sido outra, e teria excluído o risco da invalidez.
O que podemos concluir é que teriam sido certamente solicitados outros exames complementares, mas já não que a decisão seria distinta; por um lado, apenas esta testemunha, médico, o deu a entender, não sendo apresentado qualquer outro meio de prova nesse sentido. Por outro lado, a Autora sofreu de epilepsia, com episódios, apenas durante a infância, tudo apontando, em face dos elementos clínicos, ser a mesma controlável com tratamento, estando, aliás, controlada, atualmente, e ser compatível com vida normal. Veja-se que a incapacidade atribuída em 2017 por força da epilepsia é mínima, e não permitiria por si só acionar a cobertura de invalidez: a incapacidade da Autora superior a 70%, quando foi sujeita à junta médica, é de 0,0450 pela epilepsia, quando pela doença renal crónica e pelas perturbações funcionais importantes ao nível da psiquiatria lhe foram atribuídos 0,7000 e 0,0765, respetivamente, o que equivale a um grau de incapacidade superior a 70%, suficiente para acionar a Garantia de Pagamento de Encargos.
Deve, por isso, manter-se o ponto 10) dos factos não provados.

Em face do aditamento e alteração introduzidos passará a matéria de facto a ter a seguinte formulação:
“I. Factos Provados
A) A Autora, o seu ex-marido, BB, e o Banco 1..., Número de Identificação de Pessoa Coletiva ..., com sede social na Rua ..., freguesia ... , ... ..., outorgaram uma escritura pública de mútuo com hipoteca e fiança, no dia 08 de janeiro de 2001.
B) Mediante a referida escritura pública e respetivo documento complementar o Banco 1... emprestou à Autora e seu ex-marido a quantia de doze milhões de escudos para a construção de um fogo no prédio urbano, composto por parcela de terreno destinada a construção, sita no Lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória ... sob o número ...66/..., que se destina unicamente a sua habitação própria e permanente, pelo prazo de trinta anos.
C) Para garantia de pagamento de encargos, cobrindo o risco de falecimento ou invalidez permanente, foi apresentado à Autora, por um funcionário do M... - Associação Mutualista, um formulário de inscrição garantia de pagamento de encargos do M... - Associação Mutualista, o que esta assinou, conforme lhe foi indicado pelo referido funcionário.
D) Para efeitos de subscrição da referida proposta a Autora assinou um questionário médico, no campo que lhe foi indicado por um funcionário do M... - Serviços Médicos.
E) Além disso, a Autora forneceu todos os elementos que lhe foram solicitados, tendo sido sujeita a uma avaliação médica, efetuado exames complementares de diagnóstico e análises clínicas conforme requerido com vista à avaliação da sua situação médica pelo M... - Associação Mutualista.
F) Sendo certo que, a proposta de subscrição da Autora foi aceite pela Ré, com o n.º de associado ... – 2, na modalidade de garantia de pagamento de encargos, com o capital subscrito de doze milhões de escudos, com quota anual de vinte e cinco mil, cento e sessenta e quatro escudos, com periodicidade de pagamento anual, pelo prazo de trinta anos, com as coberturas do risco de invalidez e morte.
G) A referida garantia de pagamento de encargos entrou em vigor em janeiro de 2001.
H) A garantia de pagamento de encargos cobre o risco de morte e invalidez, a qual corresponde a um estado de incapacidade tendencialmente irreversível a que corresponda uma percentagem de incapacidade igual ou superior a 70%, conforme a Tabela Nacional de Incapacidades.
I) Através da subscrição da referida garantia a Ré garantiu o pagamento da quantia em dívida emergente do crédito bancário contraído pela Autora para a construção da sua habitação própria e permanente junto do Banco 1... em caso de morte de pessoa segurada ou invalidez total e definitiva.
J) Em 2002 a Autora com sintomas de edema nos membros inferiores, tonturas e palpitações, após ter consultado vários médicos, foi encaminhada para consulta de nefrologia.
K) No âmbito da qual, posteriormente, tomou conhecimento de que padecia de uma doença renal crónica.
L) Até então a Autora não tinha noção de que padecia de qualquer doença renal.
M) Nessa sequência, no dia 13 de outubro de 2004, a Autora iniciou um programa regular de hemodiálise, em contexto de elevação de ureia no sangue por cateter venoso central provisório, tendo colocado cateter tunelizado no dia 21 de outubro de 2004.
N) No dia 27 de julho de 2017 a Autora foi submetida a uma perícia por junta médica, no âmbito da qual foi concluído que a Autora padecia das seguintes deficiências:
i) insuficiência renal crónica, que implica hemodiálise regular em fase avançada (…) sob hemodiálise, (cfr. capítulo VIII, número 1.1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro);
ii) epilepsia generalizada controlável com tratamento e compatível com vida normal, (cfr. capítulo III, número 2.3.1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro);
iii) E perturbações funcionais importantes ao nível da psiquiatria, com manifesta diminuição do nível de eficiência pessoal ou profissional, (cfr. capítulo X, grau III, do Decreto-Lei n.º 352/2007 de 23 de outubro).
O) Tendo-lhe sido atribuída uma desvalorização de 0,7 (zero ponto sessenta) com referência à insuficiência renal crónica e 0,0765 (zero ponto zero sete seis cinto) com referência às perturbações funcionais ao nível da psiquiatria.
P) Os senhores peritos médicos elaboraram um atestado de incapacidade multiuso, no qual lhe resulta atribuída uma incapacidade permanente global de 82% (oitenta e dois por cento), suscetível de avaliação futura no ano de 2019.
Q) De acordo com o atestado de incapacidade multiusos e nos termos da garantia de pagamento de encargos da Banco 1... subscrita pela Autora, esta preenchia os pressupostos para que fosse considerada incapaz para efeitos de acionamento da cobertura de invalidez.
R) No dia 02 de agosto de 2017, a Autora requereu à Ré o acionamento da garantia de pagamento de encargos da Banco 1..., mediante missiva dirigia à mesma, a qual acompanhou com cópia do atestado médico de incapacidade multiuso.
S) A Autora foi informada pela Ré, mediante missiva, de que esta não iria assumir o pagamento do benefício requerido, passando a subscrição a garantir apenas a cobertura de risco de morte.
T) Alegando para o efeito a Ré que: “Na documentação médica agora recebida, há informação de patologia diagnosticada em data anterior à subscrição, o que a ter-nos sido comunicado pela associada, teríamos concluído pelo corte da cobertura de risco de incapacidade (mantendo a cobertura de risco de vida). Por este motivo, a inscrição acima referida fica abrangida pelo artº 9º Ponto 1, das Disposições Gerais do Regulamento de Benefícios do M... Geral (…): “O Risco Invalidez ou o Risco Morte não se consideram cobertos quando se provar que o Subscritor ou os Beneficiários produziram declarações falsas, apresentaram falsos documentos ou omitiram factos suscetíveis de induzir em erros os serviços do M... - Associação Mutualista na avaliação do risco correspondente”.
U) Foi feita referência no questionário às doenças dominantes e conhecidas na família da Autora: diabetes e hipertensão arterial.
V) A Autora remeteu uma segunda missiva à Ré a referir que, de facto, não prestou faldas informações e na data da subscrição efetuou todos os exames considerados necessários pela Ré, tendo sido considerado “apta” e que agora com uma incapacidade superior a 70% a Ré deveria acionar a garantia de pagamento de encargos.
W) A Ré manteve a sua posição, alegando que o parecer dos serviços médicos da Ré “referem que na documentação entregue pela Sr.ª D. AA no âmbito do referido pedido, foram apresentados diagnósticos de patologia neurológica com início na infância da associada, e de doença renal com início em 2000 (ambas as situações em data anterior à data da subscrição em assunto, em janeiro de 2001). Estas informações, a terem sido comunicadas à data da subscrição, implicariam que não fosse aceite pelo M... - Associação Mutualista a cobertura de risco de invalidez, mas apenas a cobertura do risco de morte”.
X) Após a Autora se ter dirigido ao balcão do Banco 1... foi informada de que a informação alusiva na missiva correspondia não mais senão a um relatório da ... – Unidade de ..., entregue pela própria no balcão antes de acionar a garantia de pagamento de encargos.
Y) A Autora e o Interveniente BB ficaram sujeitos a uma avaliação médica presencial realizada por um médico da Ré, o que sucedeu.
Z) Face à informação constante da declaração médica emitida pela Drª CC da ... – Unidade de ..., os serviços médicos da Ré emitiram um parecer não favorável quanto ao acionamento da garantia por invalidez, com fundamento na existência de omissões de factos e informações que levaram a uma avaliação e a aprovação incorreta pelos serviços médicos, tendo disso dado conhecimento à Autora em 4 de outubro de 2017.
AA) A Autora nada referiu quanto à epilepsia de um familiar direto – mãe, quando da declaração médica da ... consta como antecedentes familiares relevantes “Mãe com antecedentes de epilepsia”.
BB) Da mesma declaração médica consta que em 2000 foi diagnosticado à Autora uma “nefropatia renal, por biópsia renal”, sendo que tal corresponde a uma doença dos rins, e que em 2004 iniciou hemodiálise e em 2009 foi sujeita a um transplante renal.
CC) A subscrição em causa foi alterada, passando a cobrir apenas o risco de morte em vez do risco de morte e invalidez total e permanente, ou seja, a subscrição mantém-se pelo restante prazo, pelo capital subscrito e para garantia do mesmo contrato hipotecário que foi indicado pelos subscritores, tendo isso sido comunicado à Autora por carta de 4/10/2017.
“DD) A Autora sofreu de epilepsia na infância, encontrando-se a mesma atualmente controlada.
EE) No questionário médico referido em D), no qual não existe referência expressa à epilepsia na parte destinada a assinalar doenças ou sintomas que o candidato tem ou teve, não se encontra nada assinalado no campo respeitante a “doenças neurológicas” e nem no campo referente a “outras doenças”.
FF) No questionário médico referido em D), também nada se encontra assinalado no campo respeitante a “sofre de doenças crónicas?”.
GG) No questionário médico referido em D) não consta qualquer menção expressa a “realização de biopsia” ou a “nefropatia”.
HH) No referido questionário médico, à pergunta “considera bom o seu estado de saúde?”, encontra-se assinalado “sim”; e à pergunta se “existem atualmente quaisquer consequências de doenças passadas?” encontra-se assinalado “não”.
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3.2. Factos considerados não provados:

1- Foi o funcionário do Banco que preencheu o questionário médico.
2- O comportamento da Ré causa à Autora angústia, ansiedade e revolta, não compreendendo a sua recusa em acionar a garantia de pagamento de encargos, referente ao risco de incapacidade.
3- Além de ter sido obrigada a enveredar pela via judicial para a resolução deste problema, o que lhe provocou grande nervosismo por não ser pessoa habituada nestas lides.
4- O recurso a Tribunal para fazer valer o seu direito, o que para além da incerteza e despesas que esta via naturalmente acarreta, prolongou à A. desgosto, nervosismo, ansiedade, transtorno e arrelias.
5- Não foi explicado à Autora o efetivo alcance das perguntas e respostas aos vários itens do questionário médico nem tanto a mesma foi advertida sobre as consequências de uma resposta inexata.
6- Não obstante, o certo é que a Autora não teve consciência, no momento da assinatura, do teor e conteúdo efetivo e essencial dos documentos, os quais eram apenas mais um documento entre tantos outros em que foi requerida a assinatura da Autora.
7- A Autora e o Interveniente BB preencheram individualmente um questionário médico.
“8- A Autora no questionário médico referido em D), e na consulta médica presencial a que foi sujeita, nada referiu quanto à patologia de nefropatia de IgA e doença renal crónica existente em data anterior à subscrição do GPE e que a Autora não poderia desconhecer ou não considerar.”
9- Não poderia a Autora desconhecer que padecia de uma doença dos rins em 2002 e qual a sua gravidade, quando em 2000, lhe foi diagnosticada uma nefropatia por biópsia renal.
10- As declarações – falsas- prestadas pela Autora influíram decisivamente no tipo de cobertura da Garantia de Pagamento de Encargos (GPE), que teria sido outra se a R. estivesse na posse de todos os elementos essenciais aquando da decisão.
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3.3. Reapreciação da decisão de mérito da ação

Importa agora apreciar se deve manter-se a decisão jurídica da causa que, julgando a ação parcialmente procedente, condenou a Ré M... - Associação Mutualista a acionar a garantia de pagamento de encargos do empréstimo n.º de associado ... – 2, subscrito pela Autora AA, pagando a totalidade do crédito em dívida ao Banco 1..., à data de 02/08/2017, no montante de €54.334,10, e absolveu a Ré do pedido de condenação no pagamento da indemnização de €2.5000,00 por danos morais.
Não vem questionado no presente recurso ter sido celebrado entre a Autora e seu ex-marido BB e a Banco 1... um contrato de mutuo com hipoteca e fiança, tendo aqueles subscrito a modalidade mutualista designada por Garantia de Pagamento de Encargos, com as coberturas do risco de invalidez e morte.
O que a Ré pretende, entendendo verificar-se uma situação de erro sobre as condições essenciais da concessão do risco de invalidez, é que a subscrição dessa Garantia de Pagamento de Encargos se considere alterada passando a cobrir apenas o risco de morte, e já não de invalidez, conforme até informou a Autora [v. ponto S) dos factos provados].
Invoca para o efeito que a Autora prestou falsas declarações, não agindo de boa fé em todo o processo, e que a omissão de factos relevantes foi determinante para que a cobertura do capital subscrita cobrisse os casos de invalidez e morte.
Sustenta que no caso concreto se aplica o artigo 23º do Regulamento de Benefícios e que à data vigorava o Código das Associações Mutualistas aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/90 de 3 de março que não cominava com a nulidade a prestação de falsas declarações, pelo que o regime a aplicar será o regime geral previsto no artigo 251º do Código Civil (de ora em diante designado apenas por CC) respeitante ao erro cobre o objeto do negócio.

Vejamos então se lhe assiste razão.

A primeira nota a considerar é que a Ré se inscreve no âmbito da atividade das associações mutualistas e, ainda que possam existir alguns pontos de contacto entre a transferência de risco no âmbito de uma relação de mutualismo e um contrato de seguro, não pode afirmar-se que estamos perante um contrato desta natureza e nem aplicar-se o seu regime jurídico.
O atual Código das Associações Mutualistas foi aprovado pelo Decreto-lei n.º 59/2018, de 02 de agosto, que revogou o Decreto-Lei n.º 72/90, de 3 de março (cfr. artigo 14º); contudo, à data dos factos, a atividade mutualista era efetivamente regulada pelo Código das Associações Mutualistas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/90, de 3 de março que no seu artigo 1º definia as associações mutualistas como “instituições particulares de solidariedade social com um número ilimitado de associados, capital indeterminado e duração indefinida que, essencialmente através da quotização dos seus associados, praticam, no interesse destes e de suas famílias, fins de auxílio recíproco, nos termos previstos no referido diploma”.
E no artigo 2º, n.º 1, estabelecia que “[C]onstituem fins fundamentais das associações mutualistas a concessão de benefícios de segurança social e de saúde destinados a reparar as consequências da verificação de factos contingentes relativos à vida e à saúde dos associados e seus familiares e a prevenir, na medida do possível, a verificação desses factos”; prevendo no artigo 3º que “[P]ara a concretização dos seus fins de segurança social, as associações mutualistas podem prosseguir, designadamente, as seguintes modalidades: a) Prestações de invalidez, de velhice e de sobrevivência; b) Outras prestações pecuniárias por doença, maternidade, desemprego, acidentes de trabalho ou doenças profissionais; c) Capitais pagáveis por morte ou no termo de prazos determinados”.
No caso dos autos a Ré vem questionar a cobertura do risco de invalidez que a Autora acionou em agosto de 2017 com cópia do Atestado Médico de Incapacidade Multiuso que lhe atribuiu uma incapacidade permanente global de 82% [cfr. ponto P) dos factos provados], de acordo com o qual, e nos termos da Garantia de Pagamento de Encargos subscrita pela Autora, esta preenchia os pressupostos para que fosse considerada incapaz para efeitos de acionamento da cobertura de invalidez [cfr. ponto Q) dos factos provados].
Segundo alega, a Autora no momento em que apresentou a proposta de subscrição Garantia de Pagamento de Encargos teria omitido informação relevante sobre o seu estado de saúde, designadamente por lhe ter sido diagnosticada nefropatia de IgA diagnosticada em 2000 por biópsia e por sofrer de epilepsia desde a infância.
Vejamos.
Nos termos do artigo 23º do Regulamento de Benefícios “[N]as modalidades que envolvam benefícios por invalidez ou morte do subscritor, não se consideram cobertas estas eventualidades quando se provar que o subscritor ou os beneficiários produziram declarações falsas, apresentaram falsos documentos ou omitiram factos suscetíveis de induzir em erro os serviços do M... - Associação Mutualista na avaliação do risco correspondente (…)”.
Trata-se de uma norma semelhante à do artigo 429º do Código Comercial, entretanto revogado pelo artigo 6º, n.º 2, alínea a) do Decreto Lei n.º 72/2008, de 16 de abril (que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro), que cominava com a anulabilidade o contrato de seguro quando o segurado ou o tomador do seguro produzissem declarações iniciais falsas ou inexatas, influindo negativamente na assunção do risco por parte da seguradora (ainda que no preceito constasse a menção à nulidade era pacifico na jurisprudência que estabelecia um regime de anulabilidade, que não de nulidade; v. entre muitos o Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 02/1272008, Processo n.º 08A3737, Relator Conselheiro Sebastião Póvoas, disponível em www.dgsi.pt).

Já o atual Regime Jurídico do Contrato de Seguro (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de abril) veio consagrar expressamente a anulabilidade do contrato de seguro no artigo 25º, n.º 1 no caso de omissões ou inexatidões dolosas; já quanto a omissões negligentes dispõe o artigo 26º, n.º 4 que se antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões negligentes:

a) O segurador cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente;
b) O segurador, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio.
Atualmente, estando em causa um contrato de seguro, o regime é distinto consoante as informações incorretas ou falsas defluam de uma conduta dolosa, caso em que o contrato é anulável, ou de uma conduta negligente, caso em que “[A]s soluções associadas ao incumprimento negligente apenas visam o reequilíbrio das prestações e (…) pretendem, assim, sem favorecer ou compensar o segurador, colocá-lo na posição em que estaria se o risco tivesse sido corretamente declarado (….)” (Luís Poças, O dever de declaração inicial do risco no contrato de seguro. Almedina. Teses, p. 533 e s.; v. Acórdão da Relação do Porto de 26/1072020, Processo n.º 1210/19.2T8MAI.P1, Relatora Desembargadora Fernanda Almeida, também disponível em www.dgsi.pt).
No que toca à subscrição de modalidades no âmbito da atividade mutualista, prevê o atual Código das Associações Mutualistas (Decreto-lei n.º 59/2018, de 02 de agosto) no n.º 1 do artigo 37º que é nula a subscrição nas modalidades que viole a lei, os estatutos ou o regulamento de benefícios da associação, bem como a que se fundamente em falsas declarações; determinando a nulidade da subscrição imputável a título de dolo aos associados a restituição dos benefícios indevidamente recebidos, sem direito a reembolso das quotas pagas (n.º 2).
O anterior Código das Associações Mutualistas (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/90), aplicável no caso sub judice, não continha, contudo, norma idêntica pelo que a solução (da possibilidade de anulação) deve ser encontrada nas regras gerais e nas cláusulas negociais.
Ainda assim, estabelecia aquele diploma, no n.º 1 do artigo 26º, que a inscrição nas modalidades que exijam avaliação da situação clínica do candidato era condicionada, nos termos dos estatutos ou dos regulamentos de benefícios, a parecer médico, por exame direto ou através do preenchimento de questionário clínico.
Também no artigo 2º n.º 1 do Regulamento de Benefícios se previa que a aprovação médica era efetuada através de um questionário clinico ou de exame médico direto e no n.º 4 do artigo 3º que não é “aceite o risco de invalidez quando o candidato apresente qualquer grau de invalidez”, ressalvando que poderá ser aceite o risco de invalidez, após parecer médico favorável, quando o candidato tiver um grau de invalidez inferior a 15%, pela Tabela Nacional de Incapacidades, desde que não progressiva (n.º 5 do artigo 3º).
Esta previsão do dever do aderente de fazer declarações verdadeiras sobre as circunstâncias que, no âmbito do negócio, sejam suscetíveis de agravar o risco assumido pela Associação Mutualista, é perfeitamente compreensível, à semelhança do que ocorre, conforme já referimos, com os contratos de seguros de saúde ou seguros de vida [v. o Acórdão da Relação de Lisboa de 18/10/2011, Processo n.º 6043/09.1TVLSB.L1-7, relatado por Abrantes Geraldes, onde são elencados a titulo exemplificativo, os seguintes acórdãos: da Relação do Porto, de 9/11/98, CJ, tomo V, p. 186 (omissão em boletim de adesão a contrato de seguro de grupo do ramo vida de que o aderente sofria de cirrose hepática); da Relação de Évora, de 13/02/03, CJ, tomo I, p. 246 (omissão de que o segurado tinha sido submetido a intervenção cirúrgica de extirpação parcial do estômago); do STJ, de 11/07/06, CJSTJ, tomo I, p. 151 (omissão de que o segurado sofria de angina de peito); da Relação de Lisboa, de 12/03/09, CJ, tomo II, p. 74 (omissão de que o segurado fora submetido a uma intervenção cirúrgica de substituição da válvula aórtica); do STJ, de 2/12/08, CJSTJ, tomo III, p. 158 (omissão de que o segurado sofria da diabetes)].
Ora, fazendo apelo às regras gerais, não podemos desde logo esquecer que quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte (artigo 227º n.º 1 do CC).
Por outro lado, o artigo 251º do CC (Erro sobre a pessoa ou sobre o objeto do negócio), que a Ré invoca, estabelece que o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247º.
E o artigo 247º dispõe que “[Q]uando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.
Ao contrário do que ocorre com o “erro na declaração”, no “erro-motivo” ou “erro-vício”, previsto no artigo 251º do CC, existe conformidade entre a vontade real e a vontade declarada, mas, no entanto, a vontade real foi formada em consequência de erro sofrido pelo declarante, erro esse essencial, na medida em que, se não tivesse ocorrido o declarante não teria querido realizar o negócio, pelo menos nos termos em que o efetuou.
A anulabilidade do negócio depende neste caso, conforme referido e resulta da remissão constante do artigo 251º para o artigo 247º, ambos do CC, da circunstância de o declaratário conhecer, ou não dever ignorar, a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual recaiu o erro.
A propósito do referido artigo 429º, do Código Comercial e do contrato de seguro, considerou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/11/2020 (Processo n.º 3471/17...., Relatora Conselheira Rosa Tching) que a sanção da anulabilidade do contrato de seguro ai contemplada “constitui um afloramento do erro vício que atinge os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objeto do negócio, previsto nos artigos 251º e 247º, ambos do Código Civil, sendo seus pressupostos de verificação: i) que o segurado tenha prestado declarações inexatas, não conformes com a realidade, ou reticentes, isto é, que omitem factos com interesse para a formação da vontade contratual da outra parte; ii) que essas declarações respeitem a factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro no momento da subscrição da proposta de seguro; iii) e sejam suscetíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar”.
Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 19/06/2019, ainda a propósito do contrato de seguro (de vida) se afirma que é anulável quando o segurado tenha prestado falsas declarações quanto às suas condições de saúde no questionário clínico facilitado pela seguradora: “o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador. O elemento decisivo para a celebração do contrato é o questionário apresentado ao segurado, na medida em que se presume não serem aí feitas perguntas inúteis e, através dele, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato. Com efeito, uma falsa declaração concernente ao risco pode influir na balança de ambas as prestações, levando à fixação de um prémio inferior ao que seria estabelecido conhecida a realidade, ou mesmo determinando a aceitação pelo segurador de um contrato que, de modo algum não aceitaria” (Processo 4702/15.9T8MTS.P1.S1, Relator Ilídio Sacarrão Martins, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Mais se considera aí que a declaração inexata se traduz num facto impeditivo ou extintivo da validade do contrato, cuja prova compete à seguradora, por força do disposto no artigo 342º n.º 2 do CC, incumbindo também à seguradora a prova de que as declarações contidas nas respostas ao questionário clínico influíram na celebração do contrato de seguro em causa.
Entendemos também que no caso da subscrição de modalidades de garantia no âmbito da atividade mutualista (não estando em causa a aplicação do atual Código das Associações Mutualistas), se deve efetivamente fazer apelo ao regime previsto para o erro vício que atinge os motivos determinantes da vontade, designadamente quando se refira ao objeto do negócio, previsto nos já referidos artigos 251º e 247º, ambos do CC, cujos pressupostos são que o subscritor tenha prestado declarações falsas, inexatas ou reticentes, omitindo factos relevantes para a formação da vontade contratual da Associação Mutualista, que estejam em causa declarações referentes a factos conhecidos pelo subscritor no momento da subscrição e que sejam suscetíveis de influenciar na decisão da Associação Mutualista.
A declaração falsa, inexata ou reticente traduz-se, também aqui, num facto impeditivo ou extintivo da validade da cobertura, cuja prova compete à Associação Mutualista, bem como a prova de que tais declarações, designadamente quando contidas nas respostas constantes do questionário clínico, influíram na aceitação da Garantia por parte da Associação Mutualista, em conformidade com o estabelecido no artigo 342º n.º 2 do CC.
Regressando ao caso dos autos, sabemos que a Autora e o seu ex-marido, e o Banco 1..., outorgaram uma escritura de mútuo com hipoteca e fiança, no dia 8 de janeiro de 2001, tendo este emprestado àqueles a quantia de doze milhões de escudos para a construção, pelo prazo de trinta anos, e que, para garantia de pagamento de encargos, cobrindo o risco de falecimento ou invalidez permanente, foi apresentado à Autora, por um funcionário do M... - Associação Mutualista, um formulário de inscrição garantia de pagamento de encargos da Ré, que aquela assinou, conforme lhe foi indicado pelo referido funcionário.
Para efeitos de subscrição da proposta a Autora assinou um questionário médico, e forneceu todos os elementos que lhe foram solicitados, tendo sido sujeita a uma avaliação médica, efetuado exames complementares de diagnóstico e análises clínicas com vista à avaliação da sua situação médica pela Ré.
A proposta foi aceite pela Ré na modalidade de garantia de pagamento de encargos, com as coberturas do risco de invalidez (correspondendo esta a um estado de incapacidade tendencialmente irreversível a que corresponda uma percentagem de incapacidade igual ou superior a 70%, conforme a Tabela Nacional de Incapacidades) e morte e entrou em vigor em janeiro de 2001.
A questão que aqui se suscita é se a Autora no questionário médico prestou declarações falsas, inexatas ou reticentes, designadamente porque sabia padecer ou ter padecido de nefropatia de IgA e de epilepsia e sabia que sua mãe também padecia de epilepsia, tendo omitido tais factos.
Quanto à doença renal crónica, não obstante no questionário médico nada se encontra assinalado no campo respeitante a “sofre de doenças crónicas?”, a questão nem se coloca uma vez que apenas foi diagnosticada em 2002.
Contudo, na parte destinada a assinalar doenças ou sintomas do candidato, nada se encontra assinalado no campo respeitante a “outras doenças”, à pergunta “considera bom o seu estado de saúde?”, encontra-se assinalado “sim”, e à pergunta se “existem atualmente quaisquer consequências de doenças passadas?” encontra-se assinalado “não”.
De salientar em primeiro lugar que no questionário médico não consta qualquer menção expressa a “realização de biopsia” ou a “nefropatia”.
Analisada a matéria de facto provada concluímos que a Autora em 2002 foi encaminhada para consulta de nefrologia, no âmbito da qual, posteriormente, tomou conhecimento de que padecia de uma doença renal crónica, e que até então não tinha noção de que padecia de qualquer doença renal.
Mas, essencialmente, não logramos concluir, em face da factualidade apurada, que, à data das declarações (da assinatura do questionário) à Autora tinha sido sequer diagnosticada, por biopsia renal, nefropatia de IgA.
Assim, e nesta parte, não resulta demonstrado nos autos que a Autora prestou declarações falsas, inexatas ou reticentes.
Já relativamente à epilepsia decorre inequivocamente dos autos [ponto DD) dos factos provados] que a Autora sofreu de epilepsia na infância, encontrando-se a mesma atualmente controlada, e que no questionário nada se encontra assinalado no campo respeitante a “doenças neurológicas”
No entanto, tal como se salienta na sentença recorrida, no questionário médico não existe referência expressa à epilepsia na parte destinada a assinalar doenças ou sintomas do candidato, não se podendo afirmar que a Autora, tendo sofrido crises apenas na infância, estivesse ciente de padecer ou ter padecido de “doença neurológica”, tanto mais que não resulta demonstrado nos autos que tivesse tido consultas de neurologia.
De todo o modo, ainda que a Autora considerasse bom o seu estado de saúde e considerasse não existirem quaisquer consequências da epilepsia, a verdade é que no questionário, na parte destinada a assinalar doenças ou sintomas que o candidato teve, também não se encontra nada assinalado no campo respeitante a “outras doenças”.
Podendo afirmar-se que a Autora efetivamente não prestou declarações exatas nessa parte, ou pelo menos, omitiu factos cujo conhecimento poderia ter interesse para a Ré, não pode, no entanto, concluir-se que eram suscetíveis de influenciar na decisão da mesma de aceitar a proposta de subscrição da Autora na modalidade de garantia de pagamento de encargos também na cobertura de risco de invalidez (um estado de incapacidade tendencialmente irreversível a que corresponda uma percentagem de incapacidade igual ou superior a 70%).
Releva aqui, por isso, o facto da Ré não ter demonstrado qualquer interferência na sua decisão decorrente do seu desconhecimento de que a Autora teve epilepsia durante a infância, designadamente que não teria aceite a cobertura de invalidez, mas apenas a do risco de morte (v. resposta negativa ao ponto 10º).
Por último, resulta também da matéria provada [ponto AA)] que a Autora nada referiu quanto à epilepsia de um familiar direto – mãe, e da declaração médica da ... consta como antecedentes familiares relevantes “Mãe com antecedentes de epilepsia”.
Não pode, no entanto, afirmar-se que a Autora sabia que sua mãe também padecia de epilepsia, e, por isso, que omitiu tais factos.
Tal não resulta da matéria de facto provada, sendo que nem sequer foi matéria alegada pela Ré; de todo o modo também não ficou demonstrado que tal facto tivesse influencia na aceitação pela Ré da cobertura do risco de invalidez.
Em face do exposto, não merecendo censura a sentença recorrida, improcede integralmente o presente recurso.
As custas são da responsabilidade da Recorrente atento o seu integral decaimento, em conformidade com o preceituado no artigo 527º n.º 1 e 2 do CPC.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 20 de abril de 2023
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Afonso Cabral de Andrade (1º Adjunto)
Alcides Rodrigues (2º Adjunto)