Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3068/20.0T8BRG.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
INÍCIO DA CONTAGEM DO PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O direito de indemnização fundado em responsabilidade civil extracontratual prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete.
II- São dois os elementos que têm de estar reunidos para se poder concluir que o lesado tem conhecimento do seu direito:
a) Saber da existência dos pressupostos fácticos que fundamentam a responsabilidade civil que pretende exigir;
b) Consciência da possibilidade legal de ser indemnizado pelos danos que sofreu, mesmo que ainda desconheça a extensão integral desses danos.
III- Invocando a autora, como causa de pedir, que as rés alegaram alguns factos inverídicos e deduziram contra si uma pretensão parcialmente infundada na petição inicial de um outro processo, conduta essa que considera violadora da sua honra e reputação e que lhe causou danos não patrimoniais, os factos integradores dos pressupostos da responsabilidade civil tornaram-se do seu conhecimento no momento em que foi citada para os termos daquela ação, em Novembro de 2016.
IV- Numa tal situação, o prazo de prescrição começou a correr a partir da citação da autora naquele primeiro processo, momento em que ficou a conhecer da existência dos factos que integram os pressupostos legais do direito de indemnização fundado na responsabilidade civil extracontratual, sabendo ter direito à indemnização pelos danos que sofreu.
É admissível a desistência, total ou parcial, do pedido no procedimento de injunção e na acção de processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. S. G. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra A. B. e Herança de J. A., pedindo a condenação das Rés no pagamento à Autora da quantia de € 30.100,00 (trinta mil e cem euros), acrescida de juros de mora, desde a citação até integral cumprimento.
Para o efeito, sustenta que sofreu danos não patrimoniais por ter sido interposta contra si a acção nº 4469/16.2T8BRG, onde os Réus peticionavam a sua condenação a pagar-lhes a quantia de € 9.643,53, referente a despesas com obras de reabilitação, encargos de condomínio e IMI suportadas pelos Réus e indemnização pela privação de uso da fracção, relativos a imóvel objecto de negócio celebrado com a Autora em 2006, e que aquela ocupou até Agosto de 2014, tendo-o entregue em estado de elevada danificação.
Alega que nessa acção, por decisão transitada em julgado a 29.06.2019, os Réus tiveram decaimento de 60%, tendo a condenação da Autora ascendido ao montante de € 4.180,79, referente a quantias gastas pelos Réus com pintura interior (€1.400,00), equipamentos eléctricos e sanitários (€2.100,73) e estores e janelas (€680,02); no mais, a Autora foi absolvida do pedido, no valor de € 5.462,73, ou seja, quanto às quantias de € 641,09, relativa a despesas de carpintaria (danos que alegaram terem sido causados pela Autora nas portas e pavimento), de € 1.537,73, por encargos de condomínio, de € 2.800,00, de indemnização por privação de uso e € 272,60 por IMI referente ao ano 2006.
Invoca que os Réus, na parte em que viram a sua pretensão improceder, praticaram facto ilícito consistente na alegação naquele processo de factos que não correspondiam à verdade e na exigência de obrigações inexistentes, assim lesando a Autora na sua honra e reputação.
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As Rés contestaram, por excepção, invocando a prescrição do direito invocado pela Autora e o abuso do direito, e por impugnação.
Quanto à prescrição, alegaram que as alegações e pedidos dos Réus naquele processo, pretensamente consubstanciadores da prática de facto ilícito, chegaram ao conhecimento da Autora em Novembro de 2016, aquando da sua citação, pelo que, nos termos do disposto no artigo 498º, nº 1, do Código Civil, quando a Autora intenta a presente acção, em 29.06.2020, há muito se mostrava decorrido o prazo de 3 anos a que alude tal normativo.
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Em resposta à matéria de excepção constante da contestação, a Autora pugnou pela improcedência da excepção da prescrição, alegando que o prazo de 3 anos a que alude o artigo 498º, nº 1, do Código Civil, apenas começou a correr, com o trânsito em julgado da decisão proferida no processo nº 4469/16.2T8BRG, em 29.06.2019, sustentando que só com aquela decisão ficou detentora dos elementos integradores da responsabilidade civil dos Réus que pretende ver reconhecida.
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1.2. Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferida a decisão recorrida – saneador-sentença –, com o seguinte dispositivo:
«Nesta conformidade, procede a alegada excepção, declarando-se por via desta decisão prescrito o direito que a A. pretendia fazer valer contra os RR. nestes autos».
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1.3. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«1. A Autora/Recorrente instaurou, em 29.06.2020, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra os Réus/Recorridos, pugnando pela condenação destes no ressarcimento do quantum indemnizatório de €30.100,00, acrescido de juros legais, desde a citação até efetivo pagamento, a título de compensação pelos danos de cariz não patrimonial padecidos no defluimento de uma Ação declarativa (identificada pelo Processo nº 4769/16.2T8BRG, que correu termos no Tribunal Judicial de Braga, Juízo Local Cível de Braga, Juiz 1), que os Réus/Recorridos precedentemente propuseram contra a Autora/Recorrente imputando-lhe uma conduta de inadimplemento obrigacional.
2. Citados, os Réus/Recorridos deduziram o seu articulado consistente na Contestação, e excecionando, invocaram, designadamente, o instituto da prescrição do direito que a Autora/Recorrente almeja alcançar na presente demanda.
Retorquindo, a Autora/Recorrente formulou a sua Réplica, na qual pugna pela improcedência das aduzidas exceções.
Fora proferida sentença que julgou procedente a exceção perentória da prescrição, desferida em sede de Contestação.
3. Inconformada com o douto aresto, a Autora dele interpõe o presente recurso, já que, salvo o devido respeito, que é muito, não poderá a Autora sufragar a apreciação jurídica emanada do Tribunal a quo.
O qual sustenta o posicionamento segundo o qual (em súmula) o prazo prescricional deve computar-se a partir do conhecimento por parte do lesado do direito que lhe compete, in casu, a partir da citação da Autora face à genética demanda (objeto de liminar propositura pelos Réus/Recorridos), fomentadora da ação em apreço.
4. Reduzindo-se a presente reflexão à seguinte dicotomia: se, como preconizado pela douta sentença recorrida, deve considerar-se prescrito o direito a indemnização, peticionado pela Autora/Recorrente, ou se, antagonicamente, de harmonia, com a ótica desta última, deverá determinar-se a não preclusão de tal prerrogativa.
5. A Autora/Recorrente alega a produção de danos cujo ressarcimento considera legítimo e imperativo, defluente do reflexo da Ação proposta pelos Réus/Recorridos (identificada pelo Processo nº 4769/16.2T8BRG, que correu termos no Tribunal Judicial de Braga, Juízo Local Cível de Braga, Juiz 1), cuja Sentença transitou em julgado em 29.06.2019, após proferimento do douto Acórdão emanado do venerando Tribunal da Relação de Guimarães (conforme prova documental, previamente carreada pela Autora/Recorrente).
6. Recordando o conteúdo substancial da demanda em apreço:
Os Réus/Recorridos propuseram, no ano de 2016, ação de processo comum contra a ora Autora, com a seguinte identificação: processo nº 4769/16.2 T8BRG, (cfr. Doc.1), o qual transitou em julgado em 29.06.2019 (após proferimento de Sentença e de Acórdão do venerando Tribunal da Relação de Guimarães (cfr. Doc.2, 3).
7. Tal demanda defluiu do seguinte circunstancialismo: no ano de 2016, os Réus/Recorridos propuseram (em convergência com o supra narrado) ação de processo comum contra a ora Autora/Recorrente (Processo nº 4769/16.2 T8BRG, cfr. Doc.2), peticionando o pagamento da quantia total de € 9.643,53.
8. A ação redundou, todavia, em procedência parcial do pedido (num índice percentual de 40%), condenando a Autora/Recorrente na quantia de €4.180,79 e tão-só face a 1 (singelo) segmento considerado objeto de prova: um reduzido rol de obras de reparação do interior da fração. Os 3 restantes conjuntos consubstanciadores do pedido, foram consequentemente considerados sem provimento, mormente, a Privação do uso da coisa, as Despesas de condomínio e o Imposto municipal sobre imóveis. Absolvendo-a parcialmente do pedido (num índice percentual de 60%), no valor de € 5.462,73.
9. Sobre o singelo segmento declarado sem provimento (€5.462,73) daquela demanda, versa a presente ação e correspondente pedido. Face ao qual a ora Autora/Recorrente se sente profundamente lesada e ofendida na sua honra e consideração (em virtude das identificadas improcedências, as quais plasmam, a exatidão da ocorrência fáctica).
10. In casu, e face à específica factologia por si invocada na presente demanda, praticaram os Réus/Recorridos um facto ilícito (consequentemente censurável), consistente na imputação Autora/Recorrente de uma obrigação de origem inexistente (na sua dimensão "inobjeto de prova, na ação judicial primordialmente proposta) com o feixe consequencial para esta última, no plano moral: reputacional, social, familiar e lato sensu, comunitário, atento o peculiar contexto obrigacional e vivencial (conexo com a habitação da Autora/Recorrente).
11. As alegações concernentes ao incumprimento tributário (imposto municipal sobre imóveis) similarmente conferiram um intenso e nefasto padecimento à Autora/Recorrente, nos seus fatais contornos reputacionais, similarmente junto da sociedade domiciliada no prédio em apreço, e muito singularmente no círculo familiar daquela (ressalve-se que o acervo da prova testemunhal arrolada pela Autora/Recorrente, na liminar demanda, constituiu integralmente membros familiares próximos: designadamente descendente, irmã e companheiro desta.
12. DA VIOLAÇÃO DO ARTIGO 498º Nº1 DO CÓDIGO CIVIL:
Estabelece o nº1 do artigo 498º do Código Civil (doravante, sintetizado na sigla C.C.) que "o direito a indemnização prescreve no prazo de três anos a contar data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária, se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso.
13. Em escalpelização, coligar-se-ia a expressão "conhecimento do direito" ao conhecimento do direito enquanto tal, intrinsecamente considerado, instrução e esclarecimento por parte do lesado de que se encontra juridicamente habilitado a exigir de terceiro o ressarcimento dos perpetrados danos.
14. A rácio da ilicitude dos atos que constituem a causa de pedir, na presente lide, reside no facto da Autora/Recorrente não ter protagonizado o incumprimento obrigacional que lhe fora imputado na (antecedente) ação, proposta pelos Réus/Recorridos.
Singela e tão-somente com o trânsito em julgado da decisão proferida no âmbito de tal (primordial) processo, resultou juridicamente reconhecido que a Autora/Recorrente não se inseriu em contexto de inadimplemento face ao agregado obrigacional elencado pelos Réus/Recorridos.
15. O direito indemnizatório, porque integrador de um dos pressupostos, segundo o qual a Autora/Recorrente não inobservou os respectivos compromissos mercantis e obrigacionais, apenas brota com a ratificação judicial desse pressuposto.
16. Unicamente com a emanação da decisão definitiva, do pelejo instaurado pelos Réus/Recorridos, se radicou na esfera jurídica da Autora/Recorrente, o seu estatuto de lesada e reflexo direito á reparação da lesão.
17. A perspectiva sustentada pelo Tribunal a quo, na sua (salvo o devido respeito) errónea interpretação normativa, especificamente do nº1 do artigo 498º do C.C., transportar-nos-ia rumo a contextos alegóricos, pois suscitaria nomeadamente que, quem se considerasse alvo da imputação de factos ofensivos da sua honra e consideração (especificamente, a imputação à Autora/Recorrente de um pseudo inadimplemento) teria de instaurar a competente ação indemnizatória de responsabilidade civil, antecipadamente à declaração da sua inculpabilidade pelo ilustre Tribunal.
18. O que por sua vez suscitaria, porventura, a coexistência de dois Tribunais em apreciação simultânea de similares factos e subsunções jurídicas, ademais operando uma multiplicação processual kafkiana, antagónica à pretendida racionalidade e congruência técnico-jurídica.
19. Verificando-se, analogamente (no domínio da interpretação decisória a quo), uma ablação da essência do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que delimitaria um (relevante) perímetro de dificultação do acesso ao Direito e á tutela jurisdicional efetiva por parte dos cidadãos contundidos.
20. Destarte, impunha-se, por parte do Tribunal recorrido, uma ótica diversa da sufragada, e o entendimento da improcedência da exceção do instituto da prescrição, invocado pelos Réus/Recorridos, numa mais perfeita e coesa aplicação do Direito.
21. Neste encalço, somente em 29.06.2019 (data do trânsito em julgado da sentença da liminar ação interposta pelos Réus/Recorridos) a ora impetrante alcançou o objetivo conhecimento da materialização de tais requisitos, e nesse hiato principiando a contabilização do prazo em apreciação, uma vez que, no período antecedente a Autora não dispunha do manancial probatório sustentador da pretensão ressarcitória.
22. A cronologia do ato de citação da genética ação (invocada pelo Tribunal a quo) ocorrida em 2 de Novembro de 2016, redunda, salvo o devido respeito, inócua na utilidade interpretativa de tal iniciação de contagem, por força da ignorância ainda, nesse exato e cirúrgico momento: da detenção objetiva dos elementos constitutivos do direito ao peticionamento indemnizatório.

SEM PRESCINDIR
23. Transversalmente à presente análise, se considera que o ato lesivo dos direitos da Recorrente consubstancia um ato de natureza continuada, cujos primórdios se situam, coerentemente, na data da citação relativa à liminar ação, interposta pelos Réus/Recorridos e se prolonga e estende até ao momento do trânsito em julgado da sentença conexa com tal ação.
Operando-se uma continuidade do ato ilícito praticado pelos Réus.
Na avaliação da aludida continuidade da ilicitude, extrair-se-ia a ilação segundo a qual somente em 29.06.2019, cessou a prática do ato lesivo e, reflexamente, apenas a partir de tal dia, advém legítimo declarar-se despoletada a iniciação do cômputo do prazo prescricional.
24. Com efeito, os danos desferidos na esfera jurídica da Autora/Recorrente, especificamente de cariz não patrimonial (mormente honra, dignidade, personalidade), perpetraram a sua concretização até á emanação pública da sua efetivação, da sua corroboração judicial, como o constitui o trânsito em julgado da sentença conexa com a genética ação (instaurada pelo Réus/Recorridos).
Até o alcance de tal momento, regeneram-se ciclicamente as ofensas ao caleidoscópio de direitos (fundamentalmente, de índole personalística) da Autora/Recorrente.
25. No decurso de cada dia, computado até ao trânsito em julgado da sentença relativa à primordial ação, consubstanciou-se uma nova lesão, caracterizada por uma reiterada disseminação comunitária, das imputações obrigacionais (tributárias, condominais e contratuais) produzidas pelos Réus/Recorridos, no momento da propositura da primitiva demanda.
26. Concludentemente, face aos danos ainda não verificados (ou novas lesões, por força da tipificação de facto continuado), o prazo prescricional de 3 anos apenas principia o seu cômputo a partir do momento em que o lesado obtém o conhecimento da produção efetiva de tais novos factos.
27. Inequivocamente, as obrigações futuras, somente conhecem a sua prescrição no hiato temporal de 3 anos, contabilizados a partir do momento em que cada uma resulte exigível ou conhecida, por parte do ofendido.
28. Destarte, as lesões padecidas pela Autora/Recorrente não se verificaram porventura na sua plenitude, em simultaneidade, antes em cada novo dia ter-se-á materializado um novo dano (evidentemente, de semelhante essência e raiz).
Nesta harmonia, advém incongruente a consideração da prescrição do direito da Autora/Recorrente, em virtude de: a perpetração das lesões reproduzir-se numa disciplina diária, num como que renascimento diário, até à sua ablação, verificada na data do trânsito em julgado da primitiva sentença judicial, a qual ocasiona a cessação de produção do derradeiro ato danoso.
29. Uma vez que tal decisão restabelece a verdade fáctica (em todo o caso, a verdade pela qual pugna a Autora/Recorrente), difundindo (por intermédio da sua emanação, e conteúdo parcialmente improcedente) a honorabilidade da Autora/Recorrente.
Neste raciocínio, aquando da citação da original ação, não decorrera objetivamente (paradoxalmente ao defendido pelo douto Tribunal recorrido) o prazo de prescrição de 3 anos prescrito no artigo 498º nº1 do C.C..
30. Não observou, pois, a douta decisão a quo, o disposto em tal dispositivo legal, conferindo-lhe uma interpretação díssona da redação e sentido da norma em estimação, bem como da Jurisprudência existente.
Impondo-se a revogação da decisão emanada do tribunal a quo, e sua substituição por outra que considere não prescrito o direito indemnizatório peticionado pela Recorrente.

Termos em que, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve a douta Decisão da 1ª instância ser revogada e em consequência, ser considerado não prescrito o direito indemnizatório peticionado pela Recorrente.
Vossas Excelências farão:
Sã, serena e objetiva justiça.».
*
As Rés apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
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1.4. Questão a decidir

Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir consiste em saber se está prescrito o direito de indemnização exercitado pela Autora.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

Na sentença recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:
«- No ano de 2016 os RR intentaram a acção nº 4469/16.2T8BRG, que correu termos, pelo Juízo Local Cível deste Tribunal de Braga - juiz 1 - , contra a aqui A., onde peticionavam a sua condenação a pragar-lhes a quantia de 9643,53€, referentes a obras de reabilitação, despesas de condomínio e IMI suportadas pelos RR - quando deveria ter sido a A. ali R. a suportá-las - e indemnização pela privação de uso da fracção, relativos a imóvel objecto de negócio celebrado com a A. em 2006, e que aquela ocupou até Agosto de 2014 – ver fls. 12 e ss.
- Nessa acção alegaram os RR que a fracção chegou à sua posse em Agosto de 2014, com um grau de deterioração muito elevado, chegando à sua posse sem condições de habitabilidade e com total ausência de salubridade;
- Com danos nas paredes, incluindo desenhos e pinturas;
- Com soalhos e rodapés destruídos;
- Com portas danificadas, com manchas e riscos;
- Com louças da casa de banho com sinais de ferrugem e riscadas,
- Com armários da cozinha destruídos, faltando-lhes as portas;
- Com estores e janelas totalmente danificados;
- Com as tomadas de eletricidade destruídas com fios visíveis;
- Com uma máquina de lavar sem tamo, frigorifico na varanda;
- Com lixo, vidros jornais e revistas, brinquedos e objectos partidos
- Nessa sequência alegaram os RR que para tornar o imóvel habitável despenderam 5033,19€;
- A aqui A., R. naquela acção foi citada para os seus termos por carta de 2.11.2016 – conforme consulta eletrónica do processo nº 4469/16.2T8BRG, que efectuei nesta data;
- Tendo a mesma a 17.11.2016 apresentado requerimento ao processo no sentido que havia solicitado apoio judiciário - conforme consulta eletrónica do processo nº 4469/16.2T8BRG, que efectuei nesta data;
- A contestação da R., aqui A., deu entrada em juízo a 25.1.2017 - conforme consulta eletrónica do processo nº 4469/16.2T8BRG, que efectuei nesta data;
- No âmbito da acção 4469/16.2T8BRG, o tribunal a 19.11.2018 proferiu a sentença que consta de fls. 63 e ss, confirmada na íntegra pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 27.6.2019;
- Naquela sentença foi dada como provada a generalidade dos factos alegados quanto ao estado da fracção incluindo que quando os AA entraram na posse da mesma, no 3º trimestre de 2014, a mesma não estava habitável, o que em 2006 ( data da celebração do contrato entre as partes) acontecia – ver fls. 64v - ;
- Apenas não resultando provado que os soalhos e rodapés estavam destruídos e riscados e que os AA despenderam 641,09€ em carpintaria diversa; 211,35€ em instalações e equipamentos eléctricos, sanitários e de cozinha –ver fls. 65;
- Tendo o tribunal decidido que não podiam os RR exigir da A., a quantia de IMI, com fundamento na prescrição, não sendo devidas as quantias pedidas de condomínio, por respeitar a obrigação do proprietário e bem assim não assistir direito à pretendida indemnização por privação de uso, por não terem os AA, aqui RR, demonstrado que pretendiam arrendar o apartamento, que as reparações demoraram 3 meses e que estava cumprida a condição antes de agosto de 2014 para a A., ali R., entregar a fracção – ver fls. 68;
- A presente acção deu entrada em juízo a 29.6.2020».
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Na sentença considerou-se prescrito o direito que a Autora pretendia fazer valer contra os Réus, por ter decorrido o prazo de três anos previsto no artigo 498º, nº 1, do Código Civil (CCiv.), entre a data em que a Autora teve conhecimento do seu direito e a data em que instaurou a acção.
Nos termos da aludida disposição legal «o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso».
A norma estabelece dois prazos prescricionais, com duração e momentos de início de contagem diversos. A prescrição ordinária de 20 anos (art. 309º do CCiv.) conta-se desde o “facto danoso”, enquanto o prazo especial de 3 anos começa a correr a partir do momento “em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete”.
Como geralmente é assinalado, a lei consagrou um prazo curto de prescrição do direito à indemnização por, em regra, a prova dos factos que interessam à definição da responsabilidade ser feita através de testemunhas, o que se torna extremamente difícil e bastante precário decorridos mais de três anos sobre a data dos factos integradores do conhecimento do direito que assiste ao lesado (2). Mas não é essa a única razão, pois, como refere Menezes Cordeiro (3), o prazo mais curto visa, por um lado, pôr rapidamente cobro a situações de insegurança e, por outro, incitar os lesados à realização pronta dos seus direitos. Enfim, dizemos nós, pretendeu-se que a definição da responsabilidade civil extracontratual, envolvendo a apreciação judicial do respectivo facto gerador, seja feita num prazo abreviado.

Importa definir o que se deve entender por “conhecimento do direito que lhe compete”, pois daí depende a decisão do recurso.
Segundo Antunes Varela (4), o lesado tem conhecimento do seu direito «a partir da data em que ele, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito à indemnização pelos danos que sofreu». E, de harmonia com o mesmo autor, a lei tornou o início da contagem independente do conhecimento da extensão integral dos danos «atendendo à possibilidade de o lesado formular um pedido genérico de indemnização, cujo montante exacto será nesse caso definido no momento posterior da execução da sentença, quando não seja possível determinar logo a extensão exacta do dano».

Portanto, são dois os elementos que têm de estar reunidos para se poder afirmar que o lesado tem conhecimento do seu direito:
a) Saber da existência dos pressupostos fácticos que fundamentam a responsabilidade civil que pretende exigir;
b) Consciência da possibilidade legal de ser indemnizado pelos danos que sofreu, mesmo que ainda desconheça a extensão integral desses danos.

Visto o enquadramento jurídico em termos abstractos, cumpre agora verificar, em concreto, quando a Autora tomou conhecimento do direito que exercitou nesta acção, pois é esse o momento em que se inicia a contagem do prazo de prescrição de 3 anos.
Para a Recorrente, o prazo só se iniciava na data em que transitou em julgado a sentença proferida no processo onde ocorreu o facto ilícito que motiva a instauração desta acção; para o Tribunal recorrido tal prazo começou a correr a partir da data da citação da Recorrente naquele primeiro processo, momento em que ficou a conhecer da existência dos factos que integram os pressupostos legais do direito de indemnização fundado na responsabilidade civil extracontratual, sabendo ter direito à indemnização pelos danos que sofreu.
Os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual integram o facto voluntário, a ilicitude (5), a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Reunidos esses pressupostos, o lesado tem direito a ser indemnizado pelos danos resultantes da lesão, em conformidade com o disposto no artigo 483º, nº 1, do CCiv., desde que a exija, o que pressupõe que tenha consciência de que a pode pedir.
In casu, o alegado facto ilícito foi praticado na acção nº 4469/16.2T8BRG, que correu termos pelo Juízo Local Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juiz 1 -, movida por Herança de J. A. e A. B. contra S. G., aqui Autora/Recorrente, onde peticionavam a sua condenação a pagar-lhes a quantia global de € 9.643,53€, referente a obras de reabilitação, despesas de condomínio e IMI suportadas pelas Rés e indemnização pela privação de uso da fracção, relativos a imóvel objecto de negócio celebrado com a Autora em 2006 e que aquela ocupou até Agosto de 2014.
Nessa acção a ora Autora foi citada por carta expedida em 02.11.2016, sendo que em 17.11.2016 apresentou requerimento a informar que havia requerido apoio judiciário, pelo que nesta última data necessariamente já tinha conhecimento da petição inicial e do seu conteúdo.
Por sentença de 19.11.2018, confirmada integralmente por esta Relação (acórdão de 27.06.2019), a acção foi julgada parcialmente procedente, a Ré condenada «no pagamento à A. e intervenientes da quantia de €: 4180,79 (quatro mil cento e oitenta euros e setenta e nove cêntimos) acrescida de juros à taxa prevista para as dívidas civis, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, absolvendo a R. do demais peticionado».
Tendo transitado em julgado a decisão proferida no processo 4469/16.2T8BRG, a aí Ré e aqui Autora intentou, em 29.06.2020, a presente acção contra as ora Rés, tendo delimitado a causa de pedir à conduta das Rés naquele processo, consubstanciada na alegação de factos inverídicos e na dedução infundada de pedidos contra a ora Autora, pelos quais «se sente profundamente lesada e ofendida na sua honra e consideração» (art. 35º da p.i.).
Tanto a alegação dos factos inverídicos como a dedução infundada de pedido constavam da petição inicial, da qual tomou conhecimento com a citação, em Novembro de 2016.
Portanto, é indiscutível que a Autora teve conhecimento do alegado facto ilícito – pressuposto da responsabilidade civil – praticado pelas Rés em Novembro de 2016, seguramente antes ou no próprio dia 17.11.2016. A própria Autora elucida no artigo 55º da petição inicial que «praticaram as Rés um facto ilícito (consequentemente censurável), consistente na imputação à A. de uma obrigação de origem inexistente». A imputação à Autora da obrigação inexistente, com a dedução do correspondente pedido, foi feita na petição inicial e, por isso, teve conhecimento de tal facto em Novembro de 2016.
Também nessa mesma altura estava plenamente ciente de que a actuação das Rés era censurável (veja-se a expressa referência, contida no art. 55º da p.i., ao «consequentemente censurável»), ou seja, que agiam com culpa, pelo que também, já nesse momento, em Novembro de 2016, estava reunido esse pressuposto da responsabilidade civil.
Se as Rés lhe imputaram algo que, em parte, não fez, invocando danos que não foram causados pela Autora ou despesas pelas quais não era responsável (na parte referente a «carpintaria diversa (pavimentos e portas) e Instalações e equipamentos elétricos, sanitários e de cozinha», «privação do uso da coisa», «despesas de condomínio» e «imposto municipal sobre imóveis» - v. artigos 37º a 40º da p.i.) e formularam um pedido de condenação a que sabiam não ter totalmente direito, mas apenas em parte, já então se verificavam a generalidade dos danos cuja compensação requereu na presente acção, sendo perfeitamente evidente o nexo de causalidade entre o facto ilícito, traduzido na alegação de factos inverídicos e na dedução de pretensão infundada, e tais danos.
É a própria Autora que nos artigos 35º e 56º, 65º e 70º da petição se encarrega de esclarecer que face à mencionada actuação das Rés, plasmada na petição inicial «se sente profundamente lesada e ofendida na sua honra e consideração» (art. 35º) e que «o dano materializa-se na repercussão e lesão do direito subjetivo de personalidade da A.: sua honra, dignidade, honorabilidade» (art. 56º). Acrescenta nos artigos 65º, 66º e 70º da petição: «Sentindo-se a Autora profundamente lesada e ofendida na sua honra e consideração, gerando intensa angústia, nervosismo, amargura, inquietações, consequências de ordem psicológica, perniciosas, vividas como uma verdadeira aniquilação psicológica, sentindo dor física e psíquica, uma mescla de sensações de impotência e revolta, atento o peculiar contexto obrigacional e vivencial (conexo com a habitação da Autora)» (arts. 65º e 66º), «sentindo as imputações materializadas pelas Rés, numa agressiva e hostil repercussão psicológica e emocional».
Por conseguinte, estando em causa, segundo o dizer da própria, a «não responsabilidade da Autora na produção dos danos invocados», em consequência da ofensa das Rés, produzida na petição inicial da acção intentada, logo a Autora se sentiu «ofendida na sua honra e consideração», como se sentiria qualquer outra pessoa quando lhe são imputados factos que não praticou e a demandam com base nos mesmos.
Sendo assim, como é, a Recorrente logo em Novembro de 2016 ficou a saber que estavam reunidos os pressupostos fácticos que fundamentam a responsabilidade civil que exige através da presente acção, bem como estava perfeitamente consciente da possibilidade legal de ser indemnizada pelos danos que sofreu, ainda que desconhecesse a extensão integral desses danos, que naturalmente perduram no tempo, pois o sofrimento não é algo que por natureza se esgote num único acto.
Consequentemente, é manifesto que decorreram mais de três anos entre o momento em que teve conhecimento do direito que lhe assistia, em Novembro de 2016, e a data em que propôs a presente acção, em 29.06.2020, sendo certo que a prescrição do direito de indemnização, de harmonia com o disposto no artigo 323º, nºs 1 e 2, do CCIV., in casu, só seria susceptível de se considerar interrompida decorridos cinco dias depois da data em que foi intentada a acção.
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2.2.2. Conclusões 1ª a 22ª

Sendo certo que as conclusões 1ª a 11ª são de enquadramento do litígio e do presente recurso, importa agora apreciar a argumentação que a Recorrente expõe nas conclusões 12ª a 22ª das suas alegações.
Alega a Recorrente que «unicamente com a emanação da decisão definitiva, do pelejo instaurado pelos Réus/Recorridos, se radicou na esfera jurídica da Autora/Recorrente, o seu estatuto de lesada e reflexo direito à reparação da lesão». No seu entender, «somente em 29.06.2019 (data do trânsito em julgado da sentença da liminar ação interposta pelos Réus/Recorridos) a ora impetrante alcançou o objetivo conhecimento da materialização de tais requisitos, e nesse hiato principiando a contabilização do prazo em apreciação, uma vez que, no período antecedente a Autora não dispunha do manancial probatório sustentador da pretensão ressarcitória».

Salvo o devido respeito, é manifesta a improcedência destas conclusões.
Em primeiro lugar, não existe a alegada relação de dependência entre os dois processos. Apenas se dá a circunstância de o alegado facto ilícito, pretensamente violador da honra e consideração devidas à Recorrente, ter sido praticado na petição inicial produzida no processo 4769/16.2T8BRG. Aí se esgota a relação entre as duas acções.

Em segundo lugar, como a Recorrente bem alegou no artigo 56º da petição inicial, está em causa a «lesão do direito subjetivo de personalidade da A.: sua honra, dignidade, honorabilidade». A lesão do direito subjectivo de personalidade da Autora – direito à honra, bom nome e reputação –, traduzida na ofensa à sua personalidade moral (6), não se efectiva com a decisão judicial proferida no processo 4769/16.2T8BRG, pois a fonte da lesão não é a sentença mas a petição inicial, enquanto acto voluntariamente praticado pelas Rés.
Portanto, a Recorrente não adquiriu o «estatuto de lesada e reflexo direito à reparação da lesão» com o trânsito em julgado da sentença proferida na anterior acção 4769/16.2T8BRG. A Recorrente adquiriu o direito a ser ressarcida da lesão no momento em que se verificaram os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, isto é, quando as Rés praticaram o facto ilícito, culposo, danoso e causal – cujo dano é consequência daquele facto ilícito. A eventual ilicitude e culpabilidade da conduta das Rés não emerge da decisão, mas do acto que praticaram na petição inicial. Também o dano não se concretizou com a prolação da sentença ou o seu trânsito em julgado, a menos que a decisão judicial fosse a causa do dano, que não é.
Em suma, a Recorrente considera-se como “lesada” no momento em que lhe foi infligido o dano na sua personalidade moral e isso é absolutamente independente da decisão judicial.

Em terceiro lugar, a decisão definitiva proferida no processo 4769/16.2T8BRG não operou a «materialização de tais requisitos» da responsabilidade civil.
Aliás, ab initio, tal acção era inapropriada ao reconhecimento ou “materialização” dos requisitos da responsabilidade civil das Rés perante a Autora.
Basta recordar, por um lado, que as Rés pediram naquela acção a condenação da Autora no pagamento da quantia de € 9.643,53€, referente a obras de reabilitação, despesas de condomínio e IMI suportadas pelas Rés, e indemnização pela privação de uso da fracção, relativos a imóvel objecto de negócio celebrado com a Autora em 2006 e que aquela ocupou até Agosto de 2014. Como é óbvio, eram as demandantes que tinham que provar os factos constitutivos do direito à quantia que peticionavam (art. 342º, nº 1, do CCiv.) e não a demandada provar que não praticou tais factos, sendo que a dúvida sobre a realidade dos mesmos sempre seria resolvida contra as demandantes (art. 414º do CPC).
Por outro lado, tendo as demandantes obtido parcial ganho de causa, a circunstância de não terem logrado provar alguns dos factos que alegaram, não significa que se tenha provado o seu contrário, ou seja, que a ora Recorrente não tenha praticado os factos que as outrora demandantes lhe imputaram.
Daí que a mera não demonstração de determinados factos numa acção não constitua a “materialização” ou “consolidação” dos pressupostos da responsabilidade civil para exigir à contraparte uma indemnização por imputações feitas na petição inicial.
Sendo certo que um facto não provado não corresponde à prova do seu contrário, também não se alcança como se pode chegar à conclusão de que só com a decisão final a demandada passou a dispor «do manancial probatório sustentador da pretensão ressarcitória». Nenhum facto, integrador dos pressupostos da responsabilidade civil, resulta directamente da decisão final proferida.

Em quarto lugar, como era insusceptível de na primeira acção ser dada como provada a tese factual da Recorrente, essa sim alicerçadora da responsabilidade civil, padece de inconcludência a sua tese de que ficou à espera que parte ou a totalidade da versão factual das demandantes não se provasse para poder agir contra elas, pois esse circunstancialismo não obstava à prescrição.
Desde logo, a parcial não demonstração da tese factual das demandantes não representa qualquer pressuposto da responsabilidade civil.
Depois, a pendência da primitiva acção nem constituía motivo legal para a prescrição não começar ou não correr (v. arts. 318º a 322º do CCiv.), nem operava a interrupção do respectivo prazo (arts. 323º a 327º do CCiv.).
Finalmente, a decisão judicial não era apta a demonstrar a ilicitude da conduta das demandantes, pois isso nem sequer era objecto da acção. Tenha-se em conta que a não prova de um facto, só por si, não torna ilícita a afirmação do facto. Se assim fosse, ninguém recorreria aos tribunais, pois arriscar-se-ia, acaso não conseguisse provar um facto, a que a sua conduta fosse inelutavelmente considerada ilícita. A inibição daí resultante constituiria uma clara violação do princípio do acesso ao direito constante do artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto, o exercício do seu direito à indemnização alicerçada em responsabilidade civil por factos ilícitos não dependia propriamente do resultado da primeira acção, mas apenas de estarem reunidos os seus pressupostos. Em rigor, na parte relevante, não existia qualquer impedimento legal à formulação de pedido de indemnização em acção autónoma.
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2.2.3. Conclusões 23ª a 30ª

Já em sede subsidiária, a Recorrente sustenta que o acto lesivo tem carácter continuado. Concretamente, alega que «o ato lesivo dos direitos da Recorrente consubstancia um ato de natureza continuada, cujos primórdios se situam, coerentemente, na data da citação relativa à liminar ação, interposta pelos Réus/Recorridos e se prolonga e estende até ao momento do trânsito em julgado da sentença». Daí, no seu entender, que «somente em 29.06.2019, cessou a prática do ato lesivo e, reflexamente, apenas a partir de tal dia, advém legítimo declarar-se despoletada a iniciação do cômputo do prazo prescricional».

A argumentação da Recorrente não tem qualquer lastro na causa de pedir que invocou na presente acção.
Dispõe o artigo 483º, nº 1, do Código Civil, que é a norma na qual a Autora estriba a sua pretensão: «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
O elemento básico da responsabilidade é o facto do agente, ou seja, o comportamento ou forma de conduta humana que viola ilicitamente o direito de outrem.
Ora, de harmonia com a causa de pedir invocada nesta acção, o facto ilícito consistiu na alegação pelas Rés, na petição inicial da acção com o nº 4769/16.2T8BRG, de factos inverídicos e na dedução infundada de pretensão contra a ora Autora.
Portanto, o facto ilícito, culposo e danoso consistiu na apresentação da petição inicial com aquele concreto conteúdo. Estamos, pois, perante um acto, consistente numa acção do agente, que é a alegada afirmação de factos inverídicos – e a dedução de pretensão em consonância com os mesmos – numa concreta peça processual, no caso uma petição inicial.
Tal facto, por a petição inicial se manter nos autos e a acção estar pendente durante um certo período de tempo, até findar por decisão transitada em julgado, não é um acto continuado. É um acto delimitado e concreto, que se praticou num determinado momento.
Em consonância com o alegado nesta acção, a imputação à ora Autora de factos inverídicos foi produzida uma única vez, na petição inicial, pelo que não tem natureza contínua. O facto é único: a apresentação da petição inicial com aquele concreto conteúdo, que a Autora considera atentar contra a sua honra e consideração.
Bastava à Autora ler a petição inicial para verificar se continha ou não factos inverídicos e, nessa medida, pedido infundado. Portanto, com a aquisição do conhecimento da petição inicial, a Autora ficou a saber que tinha sido praticado o alegado facto ilícito, que as Rés agiam com culpa, que a lesavam na sua honra e consideração ao imputarem-lhe factos inverídicos e que existia uma relação de causalidade entre a apresentação da petição inicial e os danos não patrimoniais que sofreu, embora ainda pudesse não conhecê-los na sua integralidade, mas nem isso é exigido pela lei.
Daí que careça de fundamento a alegação de que o facto ilícito se iniciou com a petição inicial e que só cessou com o trânsito em julgado da decisão judicial, em 29.06.2019.

Sustenta também a Recorrente que «as lesões padecidas pela Autora/Recorrente não se verificaram porventura na sua plenitude, em simultaneidade, antes em cada novo dia ter-se-á materializado um novo dano (evidentemente, de semelhante essência e raiz)» e que, nessa conformidade, «advém incongruente a consideração da prescrição do direito da Autora/Recorrente, em virtude de: a perpetração das lesões reproduzir-se numa disciplina diária, num como que renascimento diário, até à sua ablação, verificada na data do trânsito em julgado da primitiva sentença judicial, a qual ocasiona a cessação de produção do derradeiro ato danoso».
Nesta parte, sendo de reconhecer o empenho e labor teórico colocado na defesa da tese, com correspondência na realidade, de que as ofensas à personalidade moral, traduzidas em imputações factuais atentatórias da honra e da reputação feitas num único acto, têm efeitos ou consequências prolongadas no tempo, a realidade é que o próprio legislador previu e acautelou esta situação. Como é óbvio, estamos num campo que já não respeita à possibilidade de o direito de indemnização ser exercido mas sim à extensão do dano. Isso é bem patente na alegada renovação ou “renascimento diário” do efeito do facto ilícito, em que há sofrimento em cada dia que passa, que a ofensa se renova pelo eco da imputação falsa na comunidade, e, no final, se conclui que cada renovação do sofrimento ou a propagação comunitária da imputação é um “novo dano”, sendo certo que dificilmente se verifica a existência de sofrimentos de natureza instantânea, pois, regra geral, têm natureza continuada.
Pois bem, é por esta e por outras, razões, que o legislador no artigo 498º, nº 1, do CCiv. estabeleceu que o desconhecimento «da extensão integral dos danos» não obsta à prescrição do direito de indemnização.
Acresce que a não permanência ou o esgotamento de todas as consequências do facto ilícito (7) não é o factor relevante para efeitos de início do curso da prescrição, mas sim o conhecimento do direito e a possibilidade de exercê-lo.
Por isso, improcedem as respectivas conclusões.
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2.2.4. Concluindo, do exposto resulta que nenhuma censura merece a decisão recorrida.

Invocando a Autora, como causa de pedir, que as Rés alegaram factos inverídicos e deduziram contra si uma pretensão infundada na petição inicial do processo 4769/16.2T8BRG, conduta essa violadora da sua honra e reputação e que lhe causou danos não patrimoniais, os factos integradores dos pressupostos da responsabilidade civil tornaram-se do seu conhecimento no momento em que foi citada para os termos daquela acção, em Novembro de 2016.
Nessa altura, confrontada com tal situação e as consequências danosas que daí resultavam para si, estava em condições de agir contra as ora Rés: sabia que não tinha praticado as acções que lhe imputavam e que lhe estava a ser exigida uma obrigação inexistente; sentindo-se ofendida na sua honra e reputação, o que só por si é uma evidência de um dano não patrimonial, em consequência da conduta das demandantes, tinha a percepção dos pressupostos da responsabilidade civil e da possibilidade de ser indemnizada, mediante compensação monetária, pelos danos não patrimoniais sofridos.
Enfim, em 17 de Novembro de 2016, quando interveio pela primeira vez no processo onde havia sido citada e tomado conhecimento da petição inicial, a Autora dispunha das condições necessárias e suficientes para exercitar o direito de indemnização e tinha o ónus de o fazer no prazo de três anos, só assim impedindo a prescrição.
Portanto, a Autora teve conhecimento do direito que lhe competia em Novembro de 2016.
Como só instaurou a acção em 29.06.2020, é manifesto que o direito de indemnização se mostra prescrito, em conformidade com o disposto no artigo 498º, nº 1, do CCiv., como bem decidiu o Tribunal recorrido.
Termos em que improcede a apelação.

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2.3. Sumário

1 – O direito de indemnização fundado em responsabilidade civil extracontratual prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete.
2 – São dois os elementos que têm de estar reunidos para se poder concluir que o lesado tem conhecimento do seu direito:
a) Saber da existência dos pressupostos fácticos que fundamentam a responsabilidade civil que pretende exigir;
b) Consciência da possibilidade legal de ser indemnizado pelos danos que sofreu, mesmo que ainda desconheça a extensão integral desses danos.
3 – Invocando a autora, como causa de pedir, que as rés alegaram alguns factos inverídicos e deduziram contra si uma pretensão parcialmente infundada na petição inicial de um outro processo, conduta essa que considera violadora da sua honra e reputação e que lhe causou danos não patrimoniais, os factos integradores dos pressupostos da responsabilidade civil tornaram-se do seu conhecimento no momento em que foi citada para os termos daquela acção, em Novembro de 2016.
4 – Numa tal situação, o prazo de prescrição começou a correr a partir da citação da autora naquele primeiro processo, momento em que ficou a conhecer da existência dos factos que integram os pressupostos legais do direito de indemnização fundado na responsabilidade civil extracontratual, sabendo ter direito à indemnização pelos danos que sofreu.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pela Recorrente.
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Guimarães, 15.06.2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)



1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 5ª edição, Almedina, 1986, pág. 586.
3. Direito das Obrigações, vol. II, AAFDL, pág. 430.
4. Ob. cit., págs. 586 e 587.
5. Com a finalidade de simplificar a exposição iremos referir-nos a “facto ilícito”, querendo com isso dizer que se verifica um facto voluntário de natureza ilícita.
6. V. artigo 70º, nº 1, do CCiv.
7. Por exemplo, a cessação do sofrimento produzido por uma ofensa ao direito subjectivo de personalidade ou a reposição na comunidade da reputação de que o lesado beneficiava antes da lesão.