Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
200/13.3TBVRM-B.G1
Relator: JOSÉ AMARAL
Descritores: TRANSACÇÃO
NULIDADE DA TRANSAÇÃO
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I) O contrato de transacção previsto no artº 1248º, e sgs., do CC, quando celebrado em processo pendente nos termos dos artºs 283º, nº 2, e sgs., do CPC, é um negócio jurídico privado também com dimensão e reflexo processuais.
II) As nulidades da transacção a que alude o artº 291º, do CPC, não se confundem com a nulidade processual secundária prevista no artº 195º e sgs.
III) A necessidade de notificação pessoal ao mandante da sentença homologatória de transacção pressupõe a falta de poderes de representação exigidos no artº 45º, nº 2, pelo próprio mandatário forense constituído que a outorgou em nome daquele, e integra os vícios de nulidade e ineficácia previstos no nº 3, do artº 291º, supríveis conforme aí previsto.
IV) Se a transacção foi outorgada em acto judicial e na presença de um representante voluntário da parte habilitado por procuração junta aos autos, a eventual insuficiência de poderes deste para transigir obedece ao regime dos artºs 258º, e sgs., do CC.
V) Caso na sentença homologatória se tenha verificado o instrumento de representação e nada mais tenha sido exigido (pelo tribunal ou pela parte contrária) e antes se tenha declarado expressamente que aquele representante “tem procuração com poderes especiais” para o acto e, em função disso, julgado válida a transacção (não determinando a notificação pessoal do representado), sem que o mandatário deste (mesmo que só com poderes forenses gerais), também presente, tenha reclamado ou recorrido, verifica-se no processo caso julgado sobre a questão.
Decisão Texto Integral: Apelação nº 200/13.3TBVRM-B.G1 – 1.ª

Relator: José Fernando Cardoso Amaral (nº 160)
Adjuntos: -Des.ª Dr.ª Helena Maria de C. G. de Melo
-Desª Drª Higina Orvalho Castelo


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Numa acção sumária pendente no Tribunal de Vieira do Minho em que são partes, entre outras pessoas, como autora a Herança Ilíquida por óbito de AA e como réus BB e Outros, foi junto um documento intitulado “procuração”, segundo cujo texto (fls. 4 e 5), no dia 14-01-2013, perante Notária daquele Concelho, compareceu o dito BB e disse que “constitui procuradora CC […] a quem confere os poderes necessários para:
-O representar junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas, nomeadamente Serviços Municipalizados, representá-los, podendo denunciar qualquer contrato, requerer e levantar quaisquer documentos, na EDP, PT-Comunicações, Correios e Segurança Social, junto de qualquer empresa gestora dos serviços de água ou gás, em todos os assuntos que lhe diga respeito, promover, requerer e assinar tudo quanto se torne necessário e seja do seu interesse;
-Junto de qualquer organismo da administração pública apresentar quaisquer requerimentos e praticar tudo quanto se torne necessário;
-Para o representar em qualquer processo judicial recebendo qualquer citação ou notificação, podendo substabelecer estes poderes em profissional forense quando necessário.” [sublinhado ora por nós aposto]

Em documento junto a fls. 2, intitulado “Procuração” e datado de 06-07-2012, consta escrito e assinado que aquela CC “declara constituir seus bastantes procuradores [segue-se o nome de cinco advogado, todos na qualidade de sócios de uma sociedade forense] a quem confere poderes forenses gerais e que também substabelece aos mesmos os poderes que lhe foram conferidos por BB.” [sublinhado ora por nós aposto]

No início da audiência final que teve lugar em 10-05-2016, de que foi lavrada a acta junta a fls. 5 a 7 destes autos, que aqui se dá por reproduzida, e na qual consta que esteve pessoalmente presente aquela ré CC e um daqueles mandatários Dr. DD, no âmbito da tentativa de conciliação empreendida, foi dito à Mª Juiz que presidia ao acto e ficou exarado que as partes alcançaram um acordo quanto ao objecto do litígio nos termos da transacção a seguir clausulada, segundo o qual “as partes acordam e reconhecem que uma parcela de terreno, sensivelmente coincidente com a que está em causa nos presentes autos, se integra no domínio público da freguesia de Rossas”, parcela essa a seguir definida pela localização, área, confrontações segundo os quatro pontos cardeais e por sinais demarcatórios designados, fotografados e medidos em relação a certos pontos fixos referenciados, concluindo que “as partes comprometem-se a retirar todos os materiais de que são proprietários que se mostrem depositados na referida parcela de terreno até ao final do corrente mês de maio de 2016, para que a autarquia aí possa, de seguida, efectuar obras e arranjos que entenda convenientes.” [sublinhado ora por nós aposto]

Mais ficou exarada na acta a sentença homologatória, segundo a qual “Atenta a livre disponibilidade do objecto e a qualidade dos intervenientes – presença [entre outras partes] da ré CC, que tem procuração com poderes especiais do réu BB, acompanhadas pelos ilustres patrona e mandatário –, julga-se válida a transacção que antecede, a qual se homologa pela presente sentença, dando-a por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais, condenando-se e absolvendo-se as partes nos seus precisos termos.” [sublinhado ora por nós aposto]

Consta da acta que todos os presentes foram logo notificados mas dela não se vê que haja sido ordenada – nem feita – a notificação de qualquer parte mandante, designadamente do ora apelante, com fundamento na falta de poderes do mandatário à luz do nº 3, do artº 291º, do CPC.

Através de requerimento subscrito pelo mesmo advogado mandatário presente naquela diligência Dr. DD, mas em nome do réu recorrente BB, junto aos autos em 06-09-2016, conforme fls. 9 a 11, este pediu que fosse reconhecida e declarada a nulidade dos actos processuais subsequentes àquela transacção e se ordenasse a sua notificação nos termos do artº 291º, nº 3, do CPC.

Para tanto, alegou, em síntese, que, tendo no acto sido representado pela irmã CC através da citada procuração de 14-01-2013, não foi contudo notificado da transacção, devendo tê-lo sido porque aquela não lhe conferia poderes especiais para transigir (mas apenas poderes “forenses” gerais). A omissão de tal acto constitui nulidade nos termos do artº 195º, nº 1, CPC, geradora da anulabilidade dos actos subsequentes, impeditiva do trânsito em julgado, sendo que apenas “nos finais do mês de Agosto de 2016” tomou conhecimento da referida transacção com a qual não concorda, dado que um irmão “passou recentemente a afirmar que se tal parcela de terreno não é do réu [requerente] então também não será da Freguesia de Rossas, ocupando-a e impedindo que a mesma ingresse na esfera patrimonial da autarquia – que, por sua vez, já fez saber que não se envolverá numa disputa judicial por causa de uma pequena parcela de terreno”.

A autora, notificada, não se pronunciou.

Após, com data de 07-10-2016, foi proferida decisão, indeferindo o requerido, com o seguinte teor:

Ref.ª4328091 (fls.366-370): através do req. que antecede, veio o réu BB arguir nulidade processual por omissão do cumprimento do disposto no artigo 291º, n.º3, do Cód. Proc. Civil em relação à transação celebrada nos autos, porquanto através da procuração outorgada a favor da sua irmã, a ré CC, limitou-se a conferir poderes forenses gerais e não poderes especiais.
Notificada, a autora não se pronunciou.
*
Segundo o artigo 195º, n.º1, do Cód. Proc. Civil, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
As nulidades processuais constituem desvios do formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder, embora não de modo expresso, uma invalidade mais ou menos extensa de atos processuais. Estes desvios de caráter formal podem revelar-se através da prática de um ato proibido, seja na omissão de um ato prescrito na lei, seja ainda na realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.
Pois bem, no caso, por procuração outorgada no dia 14/01/2013, no Cartório Notarial sito na em Vieira do Minho, o réu BB constitui procuradora CC, também ré na presente ação, a quem conferiu os poderes necessários para: «O representar junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas, nomeadamente Serviços Municipalizados, representá-los, podendo denunciar qualquer contrato, requerer e levantar quaisquer documentos, na EDP, PT Comunicações, Correios e Segurança Social (…); Para o representar em qualquer processo judicial recebendo qualquer citação ou notificação, podendo substabelecer estes poderes em profissional forense quando necessário (…)» - cf. fls.77-78.
Na presente ação, CC constituiu, por si e como procuradora do réu BB, mandatário forense (cf. fls.61).
Ora, como ponto de partida, cumpre referir que mandato e representação são duas figuras distintas, podendo o mandato operar sem necessidade de procuração. Na realidade, o mandato com representação é um negócio misto de mandato e de procuração.
Juridicamente, o mandato é um contrato, ou seja, na sua estrutura existem pelo menos duas declarações de vontade e dele nascem, normalmente, obrigações para ambos os contratantes (mandante e mandatário): artigo 1157º do Código Civil.
Já a procuração, na medida em que constitui um mero ato de atribuição de poderes representativos, é um negócio jurídico unilateral e recetício; o procurador fica investido num poder (o poder de representação não obriga à prática dos atos, apenas a permite) - artigo 262º, n.º1, do Cód. Civil.
No caso em apreço, como acima se disse, através da procuração outorgada em 14/01/2013, o réu BB atribuiu à ré CC poderes para o representar em qualquer processo judicial, o que significa que a procuração em causa legitima a atuação de CC, em nome do representado, conferindo-lhe poderes para propor e contestar ações e o representar em todos atos processuais, como, por exemplo, na tentativa de conciliação e na audiência final.
Somos, assim, levados a concluir que, ao invés do que o réu entende, a procuração em causa concede poderes a CC para, em nome do representado, na audiência final transigir quanto ao objeto do litígio. De referir que a ré CC esteve presente na audiência final, acompanhada pelo mandatário que constituiu por si e como procuradora do réu BB.
Por outro lado, importa fazer-se notar ainda que o preceituado no artigo 291º, n.º3, do Cód. Proc. Civil é aplicável apenas nas situações de mandato insuficiente ou irregular (e não de mera representação, pois mandato e representação são figuras juridicamente distintas).
Termos em que, pelos fundamentos expostos, se julga inverificada a invocada nulidade processual, indeferindo-se, em consequência, o requerido.
Custas do presente incidente a cargo do réu requerente, cuja taxa de justiça se fixa em 1 e ½ UC – cf. artigo 7º, n.º8 e tabela II do Reg. Custas Processuais.
Notifique.

Dizendo-se inconformado, o réu requerente BB interpôs recurso de tal decisão, alegando e concluindo assim:

I. Não pode o Recorrentes concordar com o despacho proferido em 07.10.2016, de que ora se recorre, pois têm como certo que através da procuração que outorgou no dia 14.01.2013, no Cartório Notarial de Vieira do Minho, não conferiu à sua irmã os poderes especiais para confessar, desistir e transigir, mas apenas o poder de representação em processo judicial, poder este que a irmã substabeleceu, através de instrumento datado de 06.06.2013, ao advogado aqui signatário;
II. O Recorrente não foi notificado da sentença homologatória da transacção celebrada nos presentes autos em 10.05.2016, a qual foi celebrada sem a presença daquele, tendo apenas tido dela conhecimento em finais de Agosto último;
III. Tem o Recorrente como certo que estamos perante um caso de falta de poderes do mandatário, pois, independentemente das diferenças entre os institutos do mandato e da representação, o representado ou o mandatário só podem actuar dentro dos limites dos poderes que lhe são conferidos, sendo que apenas produz efeitos na esfera jurídica do representado, os negócios realizados pelo representante dentro dos limites dos poderes que lhe competem (cfr. art. 258.º do CCiv.);
IV. Conferindo a procuração em apreço poderes de representação judicial, os quais foram, nos exactos termos, substabelecidos no advogado aqui signatário, temos, naturalmente, de fazer apelo ao conteúdo e alcance do mandato forense, o qual exige que a concessão de poderes especiais para confessar, desistir e transigir tem de conste de forma a expressa na procuração (artigo 45.º, n.º 3, do CPCiv.);
V. Estando em causa a concessão de poderes específicos do mandato forense, parece-nos que essa exigência tem necessariamente de manter-se quando em causa está a concessão de poderes de representação judicial a uma pessoa que não seja advogado;
VI. Atento o acabado de expor, impõe-se concluir que, uma vez que o Recorrente apenas conferiu à sua irmã poderes gerais de representação judicial e não poderes especiais para esta, em seu nome, confessar, desistir e transigir, deveria o Tribunal a quo ter procedido à notificação pessoal daquele nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do art. 291.º do CCiv.;
VII. Não o tendo feito, omitiu a prática de um acto que a lei prescreve, gerador de nulidade nos termos do disposto no n.º 1 do art. 195.º do CPCiv., a qual foi tempestivamente invocada (cfr. requerimento de fls. __ dos autos), que determina a anulabilidade de todos os actos subsequentes que dele dependam absolutamente – como o trânsito em julgado da sentença e a elaboração da nota de custas;
VIII. Pelas razões expostas, e sem quebra do respeito devido, crê o or recorrente que mal andou o Tribunal a quo ao julgar inverificada a alegada nulidade, tendo violado, entre outros, o disposto nos arts. 258.º e 268.º, ambos do CCiv.., 45.º, n. 3, 291.º, n.º 3 e 195.º, n.º 1, todos do CPCiv..
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Ex.ªs doutamente suprirão, deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que julgue verificada a invocada nulidade, com todas as legais consequências.
Assim decidindo, farão V. Ex.ªs, como se impõe, a esperada JUSTIÇA!

Nas contra-alegações a autora concluiu deste modo:

A - Bem andou a Douta Instância Local ao proferir o Douto Despacho com o exacto teor nele explanado, já que não vislumbra a Recorrida qualquer razão fundamentada que coloque em efectiva crise o Douto Despacho proferido por aquela Douta Instância Local, pelo que, o recurso interposto pelo Recorrente carece absolutamente de fundamento;
B) O Recorrente não tinha de ser notificado da sentença homologatória da transacção celebrada nos presentes autos em 10.05.2016, a qual foi celebrada na presença da irmã do Recorrente, CC, já que esta, por si e em representação do Recorrente, esteve pessoalmente presente na audiência de julgamento na qual se alcançou a aludida transacção;
C) No caso vertente, através da procuração outorgada em 14/01/2013, o Recorrente BB atribuiu à sua irmã, CC, Ré nestes autos, poderes para o representar em qualquer processo judicial, o que significa que a procuração em causa legitima a actuação de CC, em nome do Recorrente conferindo-lhe poderes para propor e contestar acções e representar este em todos actos processuais, como, por exemplo, na tentativa de conciliação e na audiência final;
D) A irmã do Recorrente – CC – por si e em representação do Recorrente, por força da procuração por este outorgada a favor daquela, esteve pessoalmente presente na diligência de Audiência de Julgamento e, nessa medida, legitimada estava a actuar em nome do Recorrente, isto é, a transigir quanto ao objecto do litígio como efectivamente veio a suceder;
E) Na expressão genérica de o representar em qualquer processo judicialdeve considerar-se incluídos os poderes para praticar quaisquer actos no âmbito de processo judicial, nomeadamente, para confessar, desistir e transigir;
F) No caso dos autos, não veio a ser omitida a prática de qualquer acto que a lei prescreve, gerador de nulidade;
G) Bem andou a Douta Instância Local ao julgar inverificada a alegada nulidade;
H) Não ocorreu violação de qualquer norma, designadamente, as constantes dos artigos 258.º e 268.º, ambos do C.C., 45.º, n. 3, 291.º, n.º 3 e 195.º, n.º 1, todos do C.P.C..
I) Os poderes conferidos ao abrigo daquela procuração para representação do Recorrente em qualquer processo judicial perante Tribunais, legitima a irmã do Recorrente a actuar, no âmbito dos presentes autos, em nome do Recorrente e com eficácia directa na esfera jurídica deste, já que a mesma (irmã do Recorrente), por si e em representação, do Recorrente, esteve presente na Audiência de Julgamento acompanhada pelo seu Ilustre Mandatário;
J) Não haveria a Douta Instância Local de ordenar a notificação pessoal do Recorrente para ratificação do processado, mais concretamente dos termos da transacção celebrada nos autos.
k) Inexiste fundamento para censurar o Douto Despacho proferido, o qual deve manter-se nos seus exactos termos, e, em consequência, julgar-se inverificada a nulidade processual invocada pelo Recorrente.
TERMOS EM QUE,
Nos melhores de direito e com mui douto suprimento de VOSSAS EXCELÊNCIAS, deve negar-se provimento ao presente Recurso, mantendo-se na íntegra o Douto Despacho ora em crise, assim, fazendo, como sempre, serena e objectiva JUSTIÇA.

Foi admitido o recurso como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

Corridos os Vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos. Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, a questão a decidir consiste em saber se foi cometida a nulidade alegada como processual, o que passa por a distinguir da nulidade da transacção.

III. FACTOS

Relevam os atrás relatados, emergentes dos autos.

IV. DIREITO

Como resulta do requerimento do apelante (acima resumido) com que começou por suscitar esta questão, baseou-se ele em que, no acto (tentativa de conciliação), foi (como reconhece) representado pela sua irmã e procuradora mas sem que ela tivesse poderes especiais para transigir uma vez que a procuração outorgada à mesma não lhos atribuía, dando-lhe só “poderes forenses gerais”.

Devia, pois, ter sido, mas não foi, notificado pessoalmente da sentença homologatória da transacção conseguida e formalizada na audiência (nº 3, do artº 291º).

Tal integraria, ainda na sua óptica, uma nulidade processual do tipo previsto no nº 1, do artº 195º, CPC.

A decisão recorrida estribou-se, por um lado, na circunstância de, no acto, ter estado presente e sido notificada a sua procuradora com poderes conferidos através do respectivo instrumento (para transigir, para o representar no processo e receber qualquer citação ou notificação); e, por outro, na circunstância de a notificação alegadamente omitida e o mecanismo do nº 3 do artº 291º apenas respeitarem a situações de mandato insuficiente ou irregular.

Em face disso, insiste o réu, agora, ao apelar, que devia ter sido notificado pessoalmente da sentença homologatória, pois o seu advogado e mandatário forense, substabelecido pela sua irmã e procuradora, não tinha poderes especiais para transigir (artº 45º, nº 2) porque também àquela estes não haviam sido conferidos, muito menos de forma expressa, e, portanto, que se verifica e deve ser declarada a reclamada nulidade processual.(1)

Por seu turno, a apelada sustenta que não se verifica nulidade, que no acto e na transacção interveio a irmã do apelante, em cuja procuração devem considerar-se incluídos poderes para transigir, pelo que não era necessária a notificação deste, inexistindo qualquer omissão.

Vejamos, então.

Como se sabe, a transacção é um contrato típico – contrato mediante o qual, como diz o artº 1248º, do CC, as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões.

É também um “negócio jurídico processual” ou um negócio com uma “evidente dimensão processual”, na expressão dos Acórdãos do STJ, de 11-10-1992 e de 04-11-1993.(2)

Ocorrendo tal negócio jurídico no decurso da instância e versando ele sobre o objecto do processo, extingue-se aquela – artº 276º, d), CPC.

Além dos requisitos comuns a qualquer contrato, deve ele obedecer aos especificamente previstos na lei adjectiva, uns de natureza ainda substantiva e outros de cariz mais formal – artºs 283º, nº 2, 284º, 287º, 288º, 289º, nº 1 e 290º.

De acordo com o nº 4, deste último, a transacção pode fazer-se em acta. Tal pressupõe que as partes compareçam pessoalmente, estejam devidamente representadas como em geral para qualquer negócio jurídico, ou se façam representar no processo por mandatário judicial com poderes especiais (cfr. nº 2, do artº 594º).

Resultando de conciliação nessas condições obtida pelo juiz e vertida em acta, limita-se este a homologá-la.

Sendo a transacção feita por documento autêntico, particular ou termo lavrado pela secretaria no processo a pedido das partes, o juiz, conforme nº 3 daquele mesmo artigo, examina se, pelo seu objecto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, a transacção é válida.(3)

A qualidade das pessoas intervenientes no acordo respeita não só à posição delas, como partes, no processo (e ao litígio) mas também à sua ligação, como sujeitos interessados na relação jurídica visada (a constituída, modificada ou extinta), ao respectivo objecto negocial, designadamente à sua capacidade e legitimidade para deste disporem.

Essa intervenção pode dar-se, como é normal em qualquer negócio e pode também ocorrer no processo, mediante outorga da transacção pelo próprio sujeito da relação jurídica e parte na relação processual, ou pelo seu representante – artº 258º e sgs, do CC.(4)

Os mandatários judiciais – não se discute aqui a existência do mandato forense a advogado conferido pelo apelante(5) – representam a parte em todos os actos e termos do processo, sem prejuízo das disposições que exijam a outorga de poderes especiais pelo mandante – artº 44º, nº 2, CPC.

Com efeito, aqueles só podem transigir sobre o objecto da acção quando estejam munidos de procuração que os autorize expressamente a praticar tal acto – artº 45º, nº 2.

Caso na transacção não intervenha a parte (ou outra pessoa como sua representante devidamente habilitada com os necessários poderes) mas o seu mandatário judicial, este com falta de poderes ou munido de mandato irregular, ocorre nulidade – nulidade esta que, contudo, embora de cariz substantivo porque derivada da celebração de negócio marginalmente aos poderes representativos conferidos e de cariz processual porque materializadora de um acto revel à norma daquele artº 45º, nº 2, é suprível mediante ratificação, ainda que presumida, nos termos do nº 3, do artº 291º, CPC.

Precisamente sobre a nulidade e anulabilidade da confissão, desistência e transacção, dispõe-se neste:

-podem ser declaradas nulas ou anuladas como os outros actos da mesma natureza, sendo aplicável à confissão o disposto no n.º 2 do artigo 359.º do Código Civil (nº 1);
-o trânsito em julgado da sentença proferida sobre elas não obsta a que se intente a acção destinada à declaração de nulidade ou à anulação de qualquer delas, ou se peça a revisão da sentença com esse fundamento, sem prejuízo da caducidade do direito à anulação (nº 2);
-quando a nulidade provenha unicamente da falta de poderes do mandatário judicial ou da irregularidade do mandato, a sentença homologatória é notificada pessoalmente ao mandante, com a cominação de, nada dizendo, o acto ser havido por ratificado e a nulidade suprida; se declarar que não ratifica o ato do mandatário, este não produz quanto a si qualquer efeito (nº 3).

Uma coisa é, pois, a nulidade da transacção enquanto contrato, com fundamento em qualquer dos vícios invalidantes de negócios jurídicos da mesma natureza.

Outra coisa é a nulidade processual, com fundamento na prática de acto não admitido por lei ou na omissão de acto ou de formalidade prescritos na lei.

A invocação e declaração daquela subordinam-se ao regime dos nºs 1 e 2 referidos, que remetem para a acção comum ou a de revisão de sentença (no caso, a homologatória), com os normais fundamentos de qualquer delas e sem embargo de esta ter transitado em julgado.

A arguição e conhecimento desta regem-se pelo regime da nulidade dos actos e omissões emergente dos artºs 195º e sgs., do CPC.

Ora, a falta de especiais poderes de representação do mandatário forense (advogado) para poder em nome da parte mandante outorgar a transacção tem uma dimensão processual na medida em que viola o disposto no nº 2, do artº 45º, do CPC, mas, ao mesmo tempo, uma dimensão substantiva, porquanto o negócio celebrado por aquele, sem poderes para tal, é ineficaz em relação a este se não for por ele ratificado, como decorre do nº 1, do artº 268º, nº 1, CC.

Daí que o nº 3, do artº 291º,CPC, trate, primeiro, a falta de poderes do mandatário que tenha outorgado transacção como geradora de nulidade, mas admita que a mesma seja suprida por via de ratificação do acto; e disponha, depois, que, não sendo o acto do mandatário ratificado, ele não produz qualquer efeito quanto ao mandante, sendo-lhe, portanto, ineficaz.(6)

Note-se, porém, que a possibilidade de por tal via suprir vício da transacção confina-se unicamente à falta de poderes do mandatário judicial ou da irregularidade do mandato judicial.

O apelante enquadrou-o no regime da nulidade processual secundária, pois, diz ele, atenta a falta de poderes da irmã procuradora e consequentemente do advogado por ela substabelecido, deveria o tribunal tê-lo notificado pessoalmente nos termos e para os efeitos do nº 3, do artº 291º, CPC. Tendo omitido a prática desse acto (notificação), ocorreu nulidade nos termos do nº 1, do artº 195º, conclui.

De facto, a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Acontece que, neste caso, não é a simples falta de notificação ao mandante da sentença homologatória que está prevista no nº 3, do artº 291º como nulidade processual. O que está previsto é a falta de poderes do mandatário judicial para intervir na transacção. Essa é que é a patologia. A notificação do mandante é já o remédio prescrito para a sua cura.

De resto, a falta de notificação da sentença não influencia o anterior exame ou decisão da causa. Por um lado, o objecto da sentença homologatória é a transacção (embora apenas examinada com os acima apontados limites) e não o objecto da lide propriamente dito (que não chega a ser conhecido). Por outro, a notificação não precede sequer o respectivo exame e homologação, não a impede nem invalida. Deve suceder-lhe enquanto expediente previsto como modo de validar, isso sim, o negócio e lhe conferir plena eficácia, atenta a falta de poderes.

O que, afinal, permanece originariamente inquinado, e porventura carente de notificação para ratificação, é a própria transacção.

Assim, o regime da nulidade de actos processuais decorrente do artº 195º, nº 1, CPC, não se acomoda ao caso nem o problema se confina à simples falta de notificação da sentença homologatória, pois, se desse se tratasse, o certo é que não só ela foi notificada à procuradora (com poderes especiais para receber qualquer uma no processo), assim ficando afastada a invalidade por omissão do acto, como ao próprio mandatário judicial do apelante interveniente na transacção e presente na diligência (para tal efeito sem dúvida suficientemente mandatado, não podendo alegar-se que o recorrente não foi notificado nem teve conhecimento da decisão…), o qual confrontado com a sentença e todas as providências concomitantes nela ordenadas e, assim, com a omissão da relativa à notificação pessoal do mandante nos termos e para os efeitos do artº 291º, nº 3, logo a devia ter arguido a fim de ser regularizada a falta, o que não fez, tornando agora extemporânea qualquer reclamação reclamação nela fundamentada – artº 199º, nº 1.

Aliás, a entender-se o contrário e que, portanto, apenas no regime da nulidade dos actos decorrente dos artºs 195º e sgs, CPC, se enquadra juridicamente o requerimento do apelante indeferido e que a decisão ora recorrida se limitou a apreciá-lo nessa perspectiva e a decidir que com esse exclusivo fundamento(7) não se verifica tal nulidade, nem sequer, nos teremos do nº 2, do artº 630º, CPC, ela poderia ser objecto de recurso, tanto mais que não se verifica qualquer das excepções aí previstas à irrecorribilidade das decisões proferidas sobre nulidades do nº 1, do artº 195º.

Aqui chegados, tendo em conta que a própria procuradora CC estava presente quando foi outorgada a transacção e, bem assim, o mandatário judicial no qual esta havia substabelecido os poderes originais que lhe haviam sido conferidos pelo apelante (entenda-se todos os poderes, embora sem abdicar ou renunciar a qualquer, uma vez que nenhuma reserva foi feita(8) e, assim, este duplamente representado até, o verdadeiro problema radica na questão de saber se a procuração continha poderes bastantes para transigir.

Acontece que, na sentença homologatória, ao apreciar a qualidade dos sujeitos intervenientes – apreciação de que faz parte, como dissemos acima, a verificação dos poderes representativos – o tribunal a quo, salientando que estava presente no acto a ré CC, apreciou, entendeu e declarou logo que ela “tem procuração com poderes especiais do réu BB”.

Com este julgamento se conformou tal réu, cujo mandatário judicial presente e notificado e, portanto, ciente de tal juízo (e das suas implicações) não esboçou nos autos, apesar de para isso estar habilitado com poderes forenses para tal bastantes, qualquer reacção.

Constituindo a sentença caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, resulta, portanto, claro que a decisão proferida no sentido de que a procuradora interveniente na transacção celebrada tinha poderes especiais para o efeito adquiriu força obrigatória pelo menos dentro do processo – artºs 621º e 620º, CPC.

Nesta perspectiva, estando o réu apelante pela sua irmã procuradora devidamente representado e estando esta habilitada com poderes “especiais” suficientes para outorgar a transacção em nome dele, jamais poderá configurar-se uma nulidade proveniente da falta de poderes do mandatário judicial e consequente necessidade de notificação pessoal ao mandante da sentença homologatória, nos termos do nº 3, do artº 291º, CPC.

É que estando aquele voluntária e bastantemente representado no acto (processual e negocial) pela irmã procuradora presente, como é óbvio tornou-se desnecessária a intervenção do mandatário judicial nos termos do artº 45º, nº 2, e, para desempenho do seu papel de patrono forense nem sequer carecia este (apesar de substabelecido) de poderes especiais, não fazendo sentido, por isso, falar-se de falta deles e de qualquer nulidade daí resultante.

Mas suponhamos, ainda, que assim não é.

Como resulta dos autos, discutia-se nestes a propriedade de uma parcela de terreno, o apelante demandado como réu estava ausente em França, conferiu à irmã, por procuração notarial, os poderes necessários para o representar junto de quaisquer repartições, organismos e serviços públicos, praticar tudo quanto se torne necessário, bem assim, para o representar em qualquer processo judicial, incluindo para receber qualquer citação ou notificação.

A procuração em causa, enquanto negócio jurídico unilateral e receptício atributivo de poderes representativos (artº 262º, CC), é expressa quanto à declaração de atribuir vastos, diversificados e importantes poderes de disposição de bens, interesses e direitos, de diversa natureza e perante diversas instituições.

Admita-se, contudo, que não é clara e concreta quanto aos mesmos e, designadamente, quanto àqueles exercitáveis em qualquer processo judicial.

Aquela careceria, por isso, de ser interpretada a fim de se definir a espécie e limites de tais poderes no processo.

Apesar da amplitude de tais poderes ao recebimento de qualquer citação (um dos mais graves do processo) ou notificação (que pode ser a de comparência para a prática de acto de carácter pessoal como a intervenção em tentativa de conciliação), a sua não restrição a certos actos concretos ou específicos de representação a qualquer dos muitos que são susceptíveis de ser praticados pessoalmente no processo judicial mas antes abrangendo nela qualquer um sem distinguir, põe a claro que foi intenção do apelante confiar à sua irmã, dadas as circunstâncias e a evidente perspectiva do litígio, todos e quaisquer poderes para, em representação e nome dele, intervir nos actos respectivos, decidir sobre o modo de compor por consenso a demanda em qualquer processo e, inclusive, para tal ceder nos seus direitos e interesses questionados, hipótese com que normal e razoavelmente ele podia contar e contou ao conferir tal procuração.

Assim, nos termos do artº 236º, nº 1, do CC, o sentido da declaração constante de tal instrumento é o de que à procuradora CC foram atribuídos através dele poderes para transigir como lhe aprouvesse em nome do irmão ausente.

É, aliás, curioso que as partes convergiram no reconhecimento de que a parcela de terreno em disputa pertencia, afinal, ao domínio público da Freguesia (que não interveio nos autos) e dispuseram-se a abandoná-la e de lá retirar os seus pertences.

Como é curioso mas bem revelador da vontade com que o apelante outorgou a procuração e do espírito com que agora vem questionar o exercício da representação pela irmã no acto de transacção celebrado, que, embora refira formalmente que não lhe conferiu poderes para transigir e coloque manifestamente o acento tónico na falta de notificação pessoal da sentença homologatória no processo (de que quis estar manifestamente afastado, abandonando à sua irmã o poder de curar nele dos seus interesses) e consequente nulidade formal (não do contrato em si), ele não refute com veemência tal falta mas se limite a dizer que não concorda com a transacção – não porque ela contrarie a sua vontade, prejudique os seus interesses ou exorbite da representação conferida! – mas apenas porque outrem (o irmão Frutuoso, alheio ao processo) tomou posição adversa ao respectivo acordo… .

Esta discordância superveniente não põe em causa a suficiência dos poderes para o acto conferidos pela procuração à irmã, o substabelecimento dos mesmos por esta no mandatário judicial e, enfim, tendo ambos estado presentes, intervindo no acto e logo sido notificados da respectiva sentença homologatória, a validade e regularidade de tudo.

Termos em que, embora mediante este diverso trajecto argumentativo, concordando-se com o entendimento do tribunal recorrido pressuposto da sua decisão no sentido de que a CC tinha poderes para transigir, a apelação deve improceder.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.

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Custas da apelação pelo apelante – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).

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Notifique.

Guimarães, 16 de Fevereiro de 2017

José Fernando Cardoso Amaral
Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Higina Orvalho Castelo

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1 Note-se que, como mais adiante se porá em relevo, o recorrente aponta para nulidade processual e não para nulidade da transacção, figuras diferentes.
2 In BMJ´s 420º-431 e 431º-422.
3 Não lhe é exigível qualquer outro tipo de “exame”, salvo o relativo à “qualidade das pessoas” e ao “objecto”, a tal se limitando, pois, a sentença homologatória.
4 Cremos que ninguém põe em causa que qualquer pessoa pode demandar e ser demandado através de um representante – representação que pode ser atribuída globalmente para todos e quaisquer actos (desde a instauração da acção ou da citação para ela até à extinção da instância) ou especificamente só para alguns, mas que não se confunde com representação, patrocínio ou mandato forense, por vezes obrigatório.
5 E por isso não se percebe a sua alegação de que não foi notificado nem teve conhecimento da sentença homologatória – coisa e acto diverso da transacção e notificação desta – quando o seu advogado e mandatário forense lá estava presente e foi logo notificado de tal decisão.
6 Como se sabe, porém, a distinção entre as figuras dogmáticas de nulidade e ineficácia nem sempre é nítida.
7 Claramente, e como abaixo se verá, ela assenta no pressuposto de que a procuração atribuía a Maria das Dores poderes para transigir.
8 Cfr. Acórdão do STJ, de 29-02-1992, proferido no processo 0067672, relatado pelo Consº Santos Bernardino.