Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
349/17.3GCVNF.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: CRIME DE INJÚRIA
DECISÃO ÁRBITRO JOGO
EXPRESSÃO PALHAÇO
EXERCÍCIO DIREITO CRÍTICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A expressão "palhaço", dirigida pelo arguido, enquanto cronometrista de um jogo de hóquei em patins, ao assistente, na qualidade de árbitro que o expulsou do campo pelo facto de ele não ter acatado o pedido de dar o sinal sonoro para chamar as equipas para o ringue, entendendo o arguido que não lhe devia obedecer, traduz-se num juízo de valor em que o mesmo pretendeu exercer o direito de crítica relativamente àquela decisão, considerada injusta, mas não de humilhar ou vexar o assistente.
II) Por conseguinte, à luz dos padrões médios de valoração social, a expressão em apreço, no contexto e circunstâncias em que foi dirigida pelo arguido ao assistente, não é suscetível de ofender, de modo jurídico-penalmente relevante, a honra e consideração do visado, por não visar nitidamente a esfera da sua dignidade pessoal, não indo além de uma mera violação das regras de cortesia, delicadeza e boa educação, inserindo-se no âmbito de tolerância necessária, devido à normal conflitualidade e animosidade decorrente da vida em sociedade, sem atingir o âmago do mínimo de respeito indispensável a esse relacionamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de tribunal singular, com o NUIPC 349/17.3GCVNF, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão (Juiz 2), realizada o julgamento, por proferida sentença, em 03-03-2020 e depositada no dia seguinte, com o seguinte dispositivo (transcrição[1]):

«Pelo exposto:
1. Condeno o arguido, C. C., pela prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelo artigo 181°, n.º 1 e 184°, por referência ao artigo 132°, n.º 2 al. l), todos do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa à taxa diária de 5,00 (cinco) euros, perfazendo o total de 700,00 (setecentos) euros;
2. Condeno o arguido, C. C., pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143°, n.º 1, 145°, n.º 2, por referência ao artigo 132°, n.º 2, aI. l), todos do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão;
3. Ao abrigo do disposto no art. 45°, n. ° 1, do Código Penal substituo a pena de 7 (sete) meses de prisão aplicada ao arguido por 210 (duzentos e dez) dias de multa à taxa diária de 5,00 (cinco) euros, perfazendo o total de 1.050,00 (mil e cinquenta) euros;
4. Condeno o demandado civil, C. C., a pagar ao demandante civil, B. M., a quantia de 2.000,00 (dois mil) euros, a título de danos morais por este sofridos, mercê da conduta daquele, quantia, esta, acrescida de juros legais, vencidos e vincendos e contados desde a data desta decisão e até efetivo e integral pagamento;
5. E absolvo o arguido/demandado do demais peticionado no pedido de indemnização civil formulado nos autos contra o mesmo;
6. Condeno o arguido nas custas criminais, que fixo em 3 U'sC, e nos demais acréscimos legais que fixo no mínimo;
7. Condeno o demandado civil e o demandante civil no pagamento das custas civis e na proporção do respetivo decaimento.»

2. Inconformado, o arguido e demandado civil interpôs recurso da sentença, formulando no termo da sua motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
«CONCLUSÕES:

1. (…)
3. O Recorrente discorda absolutamente da sentença sob apreciação, pois que, salvo devido respeito por entendimento diferente, enferma a mesma de uma parca avaliação da realidade fáctica e de todas as atenuantes que constam dos presentes autos e que abonam - pois que apenas podem abonar - a favor do Recorrente.
4. De facto, o Tribunal a quo valorou apenas como sinceros, genuínos, espontâneos e objetivos as declarações prestadas pelo Assistente e os depoimentos prestados pelas Testemunhas M. O. e B. G..
5. Desconsiderando, assim, o Tribunal a quo os depoimentos prestados pelas demais testemunhas, e ainda as declarações prestadas pelo Arguido, alegando a tentativa do mesmo de apresentar uma versão dos factos distinta da apresentada pelo Assistente e pela testemunha por si arrolada, M. O..
6. Não obstante, e ao contrário do que considerou o Tribunal a quo relativamente ao depoimento da Testemunha M. O., verifica-se que o mesmo é marcado por gritantes incoerências com os demais prestados, diferindo inclusive das declarações prestadas pelo Assistente em pontos fundamentais.
7. De facto, a mesma refere, ao contrário do referido por todos os demais intervenientes processuais que, à data dos factos, o Assistente se encontrava junto à mesa do cronómetro a conversar e a rir com outro senhor que lá se encontrava. Tendo posteriormente, surgido um segundo sujeito, vindo da porta de onde saem os jogadores, que se dirigiu ao Assistente, desferindo-lhe um murro.
8. Mais acresce, a testemunha M. O., aquando do seu depoimento, que posteriormente ao referido murro, o agressor foi retirado do ringue por mais dois senhores ("um senhor de óculos" e "um senhor mais velho", como a mesma refere), retirando-se os três para uma porta, de onde saiu, posteriormente, o "senhor de óculos', sem os óculos e a sangrar.
9. Ora, de facto, e ao contrário do que considerou o Douto Tribunal a quo, a versão dos factos apresentada pela testemunha M. O. não corrobora a versão trazida aos autos quer pelo Assistente, quer pelos demais intervenientes processuais, sendo aliás completamente distinta das demais.
10. Se não vejamos, todos os demais intervenientes processuais, inclusive o próprio Assistente, referem que no momento dos factos, o Arguido se encontrava já na mesa do cronómetro, e que junto a ele se encontrava também a testemunha M. V. (referido pela testemunha M. O. como o "senhor de óculos"). Posteriormente, no decorrer das alegadas agressões no ringue, a testemunha M. V. acabou por se também ele alvo de uma agressão na cara que lhe partiu os óculos e que o colocou a sangrar.
11. Assim, é manifesta a incoerência do depoimento prestado pela Testemunha M. O. com os demais, inclusive com as declarações do próprio Assistente. Não sendo compreensível assim o peso atribuído ao depoimento desta testemunha para a descoberta da verdade e corroboração da versão trazida aos autos pelo Assistente.
12. Mais acresce, que não podemos ainda concordar, salvo o devido respeito, que é imenso, com as os factos provados n.º 6 e 7, onde se pode ler que o arguido: "6. E desferiu socos, em número não concretamente apurado, na face do lado direito do assistente, tendo este recuado para o meio da pista para não continuar a ser agredido. "e "7. O arguido dirigiu-se ao meio da pista e desferiu mais um murro na cabeça do assistente e deu-lhe um pontapé no joelho direito, e apelidou-o de "filho da puta", e sendo que as agressões só cessaram com a intervenção dos colegas do arguido;".
13. De facto, no que se refere aos socos e murro, decorre da leitura da sentença em apreço que o Douto Tribunal fundamentou a sua convicção tão só e apenas na versão trazida aos autos pelo Assistente, alegadamente corroborada pelo depoimento da Testemunha M. O..
14. Sucede que, conforme vimos, o referido depoimento é marcado por contradições e imprecisões que contribuem para a sua descredibilização.
15. Acresce ainda que, pese embora tenha o Tribunal a quo desconsiderado as declarações do arguido e demais testemunhas (M. V., A. M. e P. A.), certo é que todos eles apresentam uma versão consentânea dos factos, referido que o Arguido se terá envolvido em agressões mútuas com o Assistente sim, mas que, tais agressões terão sido "sapatadas" de mão aberta, e não socos e murros, como considerou provado o Tribunal a quo.
16. Ademais, as lesões constantes do Relatório do Instituto de Medicinal Legal são coerentes com tal versão dos factos, já que do mesmo relatório consta que o Assistente apresentava "escoriações", i.e. arranhões. Ora, a ser verdade que o arguido tivesse desferido no Assistente socos e um murro, o mesmo deveria apresentar como lesões hematomas (i.e. pisaduras), e nunca escoriações como de facto apresentava.
17. Nesse sentido, o próprio Tribunal a quo deu como provado que as alegadas agressões provocaram no Assistente "lesão intra-gengival direita na zona bucinadora, do tipo escoriação linear e, no pescoço, lesão do tipo escoriação linear com 3 e 4 cm na face lateral direita (arranhaduras)". (facto provado n. o 8).
18. No que se refere ao pontapé alegadamente desferido pelo Arguido no Assistente, certo é que apenas o Assistente refere tal facto aquando das suas declarações. De facto, os demais intervenientes processuais não fazem qualquer referência a agressões desse tipo. A própria testemunha M. O., a quem o Tribunal a quo atribuiu tão elevada credibilidade, nada refere relativamente a pontapés.
19. Ademais, é indiscutível que do Relatório do Instituto de Medicina Legal e, consequentemente, do facto provado n.º 8, onde se elencam as lesões dadas como provadas, não constam quaisquer lesões nos membros inferiores do Assistente e que fossem coerentes com a efetiva ocorrência do “pontapé no joelho direito” do Assistente.
20. Dito isto, e apesar de o julgador ter dado como provadas as lesões elencadas no relatório pericial do Instituto de Medicina Legal, respeitando, assim, o previsto nos termos do art.º 163, n.º 1 do C.P.P., não deixa de ser menos verdade que o mesmo julgador valorou igualmente como provados factos contraditórios com os resultantes do referido relatório.
21. Assim, e apesar do legislador permitir ao julgador a explanação de uma convicção distinta da resultante do relatório pericial, tal divergência deverá sempre ser fundamentada (cfr. n.º 2 do art.º 163 do C.P.P.).
22. Ora, no caso em apreço, o julgador limitou-se a fundamentar indiretamente tal decisão meramente no facto de considerar as declarações do assistente como prestadas de forma “sincera, genuína, espontânea, isenta, objetiva e, por isso, credível” considerando, assim, como provada a versão trazida aos autos pelo assistente, versão essa, que de acordo com o Tribunal a quo foi inclusive corroborada, em parte pelos depoimentos da testemunha B. G. e em especial da testemunha M. O., cujo depoimento considerou “espontâneos, genuínos, isentos, objetivos e credíveis”.
23. Sucede que, tal fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo é caraterizada por uma abstração que não permite convencer-nos de qual o alcance do raciocínio lógico operado pelo julgador. Sendo ainda de salientar, que os vagos apontamentos apresentados pelo Douto Tribunal relativamente à valoração do depoimento prestado pela testemunha M. O. não mencionam as gritantes contradições e imprecisões do mesmo, e que, consequentemente, inviabilizam, ou deveriam ter inviabilizado, a classificação de tal depoimento como “espontâneo, genuíno, isento, objetivo e credível”.
24. Face ao exposto, não podemos concordar com a posição tomada pelo Tribunal a quo relativamente aos factos provados n.º 6 e 7.
25. Não podemos ainda concordar, salvo devido respeito que é imenso, com a douta sentença do Tribunal a quo relativamente ao facto dado como provado n.º 5, onde se pode ler “5. Nesse momento o assistente deu ordem de expulsão ao arguido e o arguido dirigiu-se àquele e insultou-o, repetidas vezes, em tom alto, de “filho da puta” e “palhaço”;”. Sendo, consequentemente, imputada ao arguido a prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos art.º 181, n.º 1 e art.º 184 do Código Penal.
26. Sucede que, mais uma vez, o Tribunal a quo parece ter fundamentado a sua convicção apenas, e tão só, nas declarações prestadas pelo assistente B. A e depoimento pela testemunha M. O..
27. Sendo certo que, como já vimos anteriormente, o depoimento prestado pela testemunha M. O., foi marcado por uma quase automática explanação dos factos alegadamente presenciados, tendo inclusive esta apresentado uma versão dos factos completamente distorcida relativamente a aspetos essenciais, e sem correspondência com a versão trazida aos autos pelas restantes testemunhas e assistente, não devendo, portanto, ao seu testemunho ser dada qualquer relevância para o alcance da verdade material.
28. Conforme pode ler-se da transcrição do depoimento da testemunha M. O., a mesma refere que, no momento dos factos, se encontrava na bancada em frente à mesa (do cronómetro), quando questionada pela mandatária do arguido se então estava do outro lado em relação à mesa, a mesma respondeu categoricamente que sim. Sucede que, posteriormente, quando questionada sobre a que distância estaria então da mesa, a aqui testemunha retorquiu “Praí 4, 5 metros”.
29. Ora, a mesa do cronómetro encontra-se situada fora do ringue, imediatamente encostada às tabelas do mesmo, assim, à data dos factos, a testemunha M. O. encontrando-se na bancada do outro lado em relação à mesa, deveria estar a uma distância da mesa no mínimo de 17 metros, já que as medidas de um ringue de hóquei serão, no mínimo de 17 metros de largura e 34 metros de comprimento – conforme se pode aferir nos termos do art.º 1, n.º 3 do Regulamento Técnico do Hóquei em Patins (disponível para consulta no website na Federação de Patinagem de Portugal, em https://fpp.pt/wpcontent/ uploads/Regras-de-Jogo-e-Regulamento-T%C3%A9cnico-do-H%C3%B3quei-em-Patins.pdf.
30. Assim, e pese embora fosse compreensível que a testemunha não fosse capaz de identificar a distância com uma exatidão precisa, não nos parece razoável uma dissemelhança tão acentuada entre medidas por si percecionadas (“praí 4, 5 metros”) e a real medida do campo (no mínimo 17 metros de largura).
31. Face ao exposto, a discrepância entre as reais medidas de um ringue de hóquei e as descritas pela testemunha M. O., bem como as demais disparidades anteriormente elencadas, levam-nos a crer que, de facto, a testemunha não presenciou os factos, ao contrário do que alegou no seu depoimento.
32. Aliadas às discrepâncias acima descritas, é ainda de salientar que resulta da análise detalhada do depoimento prestado pela testemunha M. O. que a mesma à data dos factos residia no Porto, nunca tendo visto qualquer jogo de hóquei, alegando que o facto de ir ver aquele jogo em específico se tratou de um mero acaso.
33. Ora, não deixa de ser curioso e, indubitavelmente conveniente, que alegadamente tenha a testemunha, naquele preciso dia se deslocado do Porto (onde residia), até … (freguesia localizada a cerca de 50 km da cidade onde residia a testemunha à data dos factos), com o único propósito de assistir a um jogo de hóquei.
34. De facto, as equipas em jogo não tinham qualquer visibilidade em especial a nível nacional ou mesmo regional, tratando-se, como foi inclusive referido pelo próprio Assistente “de uma equipa de miúdos”. Mais acresce que a própria testemunha M. O., quando inquirida pela Advogada de defesa sobre quais as equipas em jogo, a mesma refere não saber. Ora, não deixa de ser estranho que a mesma seja incapaz de identificar pelo menos uma das equipas como sendo de ….
35. Assim, e apesar de a testemunha M. O. ter procurado convencer o Digníssimo Tribunal que a sua presença naquele jogo de hóquei em específico se tratou de um mero acaso, tal versão não merece qualquer credibilidade.
36. De facto, e apesar de na Douta Sentença se verificar a qualificação deste testemunho como espontâneo, genuíno, isento, objetivo e credível, certo é que aquando da inquirição pela levada a cabo pela Mm.ª Juiz, a mesma acaba por utilizar um tom sarcástico que denota uma total descrença na versão apresentada pela testemunha M. O., consoante se pode verificar nas transcrições supra mencionadas.
37. Ora, mais uma vez não nos parece credível que a testemunha, que residia no Porto, a cerca de 50km de …, se tenha deslocado naquela data, com o único propósito de assistir àquele jogo de hóquei em específico, já que não tinha qualquer interesse especial sobre aquele desporto, e não apresentava aquele jogo qualquer especificidade que o torna-se especialmente apelativo, e que motivasse uma deslocação de 50km.
38. Mais acresce que, de facto, nenhum dos restantes intervenientes refere ter ouvido o arguido a pronunciar tais expressões (“filho da puta” e “palhaço”). Sendo certo que, o próprio assistente apenas relata de forma espontânea ter sido apelidado pelo arguido de “filho da puta”, nada referindo relativamente ao facto de ter sido apelidado de palhaço”, apenas o fazendo quando questionado de forma direta e inequívoca pela Meritíssima Procuradora do Ministério Público especificamente sobre esse insulto.
39. Dito isto, pela proximidade das testemunhas junto dos aqui intervenientes (arguido e assistente), aquando dos factos aqui em discussão, o descrédito atribuído pelo Tribunal aos depoimentos das restantes testemunhas, descreditando os mesmos, e relevando simplesmente o depoimento do assistente e da testemunha M. O., que conforme vimos é marcado por acentuadas discrepâncias,
40. Traduz inevitavelmente um erro grosseiro de valoração da prova produzida em sede de audiência de julgamento,
41. Devendo o arguido, ora Recorrente, ser absolvido do crime de injúria agravada a que foi condenado na douta sentença, por o mesmo carecer de prova séria e credível que o confirme.
42. Acresce que, e ainda que se considerasse por verdade que o aqui arguido tivesse apelidado o aqui assistente de “palhaço”, tal expressão não integra objetiva ou subjetivamente o crime de injúrias por falta de carga ofensiva, podendo apenas pela grosseira ou falta de educação ferir a suscetibilidade do assistente, o que no presente pleito não se verificou.
43. Sem conceder, e por mera cautela de patrocínio, caso não se julgue procedente o pedido de absolvição do ora Recorrente relativamente ao crime de injúria agravada,
44. Verifica-se que a pena aplicada ao Recorrente ultrapassa os limites da moldura penal aplicável ao caso concreto, pelo que, não pode o Recorrente concordar com a mesma.

Senão vejamos.
45. De facto, e conforme demonstramos anteriormente, a pena aplicada ao arguido resulta de uma valoração errónea da prova produzida.
46. Verifica-se ainda uma incorreta avaliação de todas as circunstâncias que depuseram a seu favor e que deveriam, portanto, ter implicado a atenuação especial da pena (cfr. art.º 72 e 73 do C.P.P.), como adiante se demonstrará.
47. A páginas 17 da sentença em causa, considerou o Tribunal a quo não se verificar “qualquer provocação prévia por parte do assistente mas apenas a atuação deste no normal exercício das suas funções”, não obstante, e salvo devido respeito que é imenso, não pode o aqui Recorrente concordar com tal posição.
48. De facto, e conforme foi categoricamente explicado por todos os intervenientes processuais, inclusive pelo próprio Assistente, o início do jogo não se encontra de qualquer forma dependente da buzina que o Assistente tanto insistiu que o Arguido, aqui Recorrente, acionasse. Assim, refere o regulamento que regula a prática desportiva de Hóquei em Patins que, deparando-se o árbitro com a ausência das equipas no ringue de hóquei à hora agendada para o início do jogo, deverá o mesmo registar tal incumprimento das equipas e aguardar a sua chegada.
49. Não obstante, o próprio Assistente explica em sede das declarações por si prestadas que neste ponto, opta regularmente por não seguir o estipulado nos regulamentos, optando, em vez disso, face ao eventual atraso das equipas, por solicitar ao responsável pelo cronómetro (in casu, o arguido, aqui Recorrente) que dê o sinal sonoro para chamar as equipas para o recinto, não sendo, no entanto, a prática imposta pelo regulamento que regula a prática do desporto de hóquei em patins.
50. Face ao exposto, não podemos deixar de considerar que a opção tomada pelo Assistente visou, tão só e apenas, a imposição desmedida da sua posição e autoridade enquanto árbitro. Autoridade essa que, de acordo com as crenças do aqui Assistente, extravasam em muito o que seria, e o que é, a realidade de tal função.
51. Dito isto, a decisão do Assistente de mais uma vez insistir junto do Arguido para que este buzinasse, mais não foi do que uma tentativa (provocatória) de impor a sua autoridade numa situação totalmente desnecessária e totalmente evitável se o assistente se tivesse limitado a seguir o protocolo desportivo estabelecido, ao invés de procurar aplicar práticas por si consideradas como adequadas.
52. Considerou ainda o Tribunal a quo, aquando da determinação da medida da pena que quanto às exigências de prevenção especial haveria que considerar que “o arguido tentou, em juízo, dar aos factos uma versão não consentânea com a realidade dos mesmos demonstrando, por isso, que em rigor, ainda não interiorizou a censurabilidade do seu comportamento”, entrando assim o Tribunal a quo em plena contradição com o por si explanado na pág. 8 e 9 da sentença.
53. De facto, a páginas 8 da Douta sentença pode ler-se que o Tribunal a quo considerou que “Igualmente, o arguido e o assistente referiram, de forma unânime, que este último, enquanto árbitro, referiu àquele, enquanto cronometrista, para dar o sinal sonoro para chamar as equipas de hóquei, o que o arguido não fez e que após o assistente voltou a referir ao arguido para dar o sinal sonoro para chamar as equipas de hóquei para o campo, o que o arguido voltou a não fazer e que nesta ocasião o assistente após ter referido ao arguido, segundo este, se ali estava para complicar, e segundo o assistente se ali estava para ajudar, deu ordem de expulsão ao arguido; (...)”.
54. Desta feita, e salvo devido respeito, torna-se inegável que o próprio Tribunal a quo reconheceu a coincidência entre as versões apresentadas pelo Arguido e pelo Assistente, entrando assim o Tribunal a quo em contradição direta com o que vem posteriormente referir a pág. 19 da sentença, onde refere que o arguido tentou “dar aos factos uma versão não consentânea com a realidade dos mesmos” (sublinhado nosso).
55. Não pode ainda o aqui Recorrente concordar com as considerações tecidas pelo Tribunal a quo relativamente à não interiorização da censurabilidade do seu comportamento e consequente valoração negativa de tal facto para fins de exigências de prevenção especial, de facto (pág. 19 da sentença).
56. De facto, tais considerações entram em direta contradição com o entendimento do mesmo Tribunal a quo a pág. 9 da douta sentença, onde se pode ler que o arguido reconheceu a existência de agressões entre ambos, tendo o mesmo ainda procurado explicar relativamente ao gesto do Assistente em esticar a mão na sua direção, que à data dos factos “entendeu como uma agressão, mas que atualmente acredita que não foi uma agressão”, sendo certo que tal facto demonstra por parte do arguido a capacidade de reconhecer, e até mesmo admitir que poderá ter interpretado de forma errada a conduta do Assistente, conduta essa que despoletou as posteriores agressões mútuas.
57. Demonstrando, consequentemente, a interiorização pelo arguido da censurabilidade do seu comportamento, pelo que tal circunstância deveria ter sido valorada a seu favor para aferição das exigências de prevenção especial, cfr. n.º 1 do art.º 72, devendo implicar consequentemente a redução dos limites da pena aplicável, cfr. art.º 73, todos do C.P., no entanto, tal não sucedeu.
58. Aquando do juízo de prognose deverá ter-se por base as circunstâncias que acompanharam o crime, isto é, a culpa diminuta do Recorrente, as exigências de prevenção e, a sua atitude perante os factos pelos quais foi condenado.
59. Face ao anteriormente exposto, é notório que se verificou por parte do arguido, aqui Recorrente, a interiorização da censurabilidade do seu comportamento, devendo esse comportamento ser valorado positivamente no momento da determinação da medida da pena.
60. Acresce ainda que, resultou provado nos presentes autos a inexistência de antecedentes criminais averbados no Certificado de Registo Criminal do ora Recorrente, o que, na determinação da medida da pena a aplicar ao Recorrente, segundo o Tribunal a quo, foi um dos pontos que militou a seu favor.
61. Sucede porém que, a moldura penal da pena de multa aplicável ao crime de injúria agravada varia entre os 15 e os 180 dias, tendo, in casu, sido fixada em 140 dias a pena de multa aplicada ao ora Recorrente, pena essa extremamente próxima do limite máximo aplicável.
62. Ora, em face do exposto, ter-se-á que considerar a pena aplicada ao Recorrente desajustada e, em nada proporcional, porquanto, tinha a inexistência de antecedentes criminais que refletir-se numa pena a aplicar ao Recorrente igual ou muito mais próxima do limite mínimo para a moldura penal prevista para o crime de que vinha acusado o Recorrente, o que não sucedeu.
63. Mais acresce que, ao contrário do que considerou o Tribunal a quo, se verificou a existência de uma atitude provocatória por parte do Assistente, circunstância essa que deverá ser valorada nos termos dos art.º 72, n.º 2, alínea b) do C.P. Devendo, consequentemente, atender-se ao plasmado no art.º 73.º do CP.
64. (…)
65. Assim, da conjugação de toda a legislação supra referida constata-se que, no caso em apreço, o Tribunal a quo na determinação da medida da pena deveria ter operado uma atenuação da pena aplicável ao arguido, devendo reduzir a um terço o limite máximo da pena de multa aplicável e o limite mínimo para o mínimo legal, cfr. art.º 73, n.º 1, alínea c) do C.P.
66. Não obstante, verificou-se que relativamente ao crime de injúria agravada, de uma pena de multa que não poderia ultrapassar os 60 dias de multa, foi aplicada ao aqui Recorrente uma pena de multa de 140 dias.
67. E ainda, relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada, de uma pena de multa que não poderia ultrapassar os 120 dias de multa, foi aplicada ao aqui Recorrente uma pena de multa de 210 dias.
68. Nesta medida, quanto ao número de dias de multa deveria ter sido aplicada uma pena bastante inferior à aplicada, sendo certo que, ao não assim decidir, a douta sentença a quo efetuou uma incorreta valoração e aplicação do disposto nos artigos 47º, 72º e 73.º do C.P.
69. Face ao exposto, e salvo o devido respeito, por opinião contrária, as penas aplicadas ao arguido é manifestamente exageradas.
70. Ademais, a condenação do arguido no pagamento de indemnização de €2.000,00 é indubitavelmente excessiva quando comparada com os valores praticados no sistema judicial português, mostrando-se excessivo face ao dano alegadamente causado ao aqui assistente.
71. Assim, salvo devido respeito, não podemos concordar com o valor da indemnização aplicada ao aqui recorrente que se afigura manifestamente desadequada atendendo ao principio da equidade constante do art.º 496 do C.C.

Nestes termos e nos demais de direito, que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, deverá a douta sentença ser revogada por outra em que se condene com a pretensão exposta, assim se fazendo a costumada justiça.»
3. A Exma. Procuradora da República junto da primeira instância respondeu à motivação do recorrente, opinando que este deve ser convidado a completar ou esclarecer as especificações ordenadas pelo n.º 4 do art. 412º, do Código de Processo Penal, conforme dispõe o art. 417º, n.º 3, do mesmo código, e, a final, ser julgado improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida, com base nas razões que sintetizou nas conclusões seguintes (transcrição):

«1.
O recorrente começa por atacar a sentença condenatória, impugnando a matéria de facto, invocando, para tanto, a incorreta valoração da prova; e especifica: as declarações da testemunha M. O.; as declarações do arguido C. C.; a prova pericial – relatório médico-legal.
2.
O ónus de especificação está cumprido de modo pouco claro quanto aos concretos factos que pretende ver impugnados, tornando confusa a pretensão do recorrente.
3.
Acresce que não cumpre o referido ónus de especificação enunciado nas alíneas b) e c), do artigo 412.º, n.º 3 e nº 4, do CPP, pois não indica, nas as concretas passagens das gravações em que se fundamenta a impugnação, indicando-as, porém, na motivação.
4.
Ponderando que o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, consideramos que os pontos de facto postos em crise são somente os enunciados nos n.ºs 5., 6., 7., 8.
5.
Consideramos que o recorrente deverá ser convidado a completar ou esclarecer as especificações ordenadas pelo n.º 4, do artigo 412.º, do CPP, conforme dispõe o artigo 417.º, n.º 3, do CPP.
6.
As razões que alegadamente fragilizam a valoração dada pela Juíza da 1.ª instância às concretas provas por declarações da referida testemunha e do arguido e que deveriam impor decisão diversa da recorrida, estão intrinsecamente ligados a aspetos que conferem credibilidade ou não credibilidade àquelas declarações, quais sejam, as atinentes à oralidade e à imediação.
7.
O desconhecimento que a testemunha M. O. demonstra em relação a alguns factos, a circunstância pontual em que assiste ao referido jogo, não retira crédito ao depoimento, conferindo até isenção e desinteresse na causa; e as dissonâncias não fragilizam os pontos essenciais das suas declarações que correm no sentido de serem concordantes com as declarações do assistente.
8.
A desconsideração do depoimento do arguido para determinados efeitos é ainda compatível com a sua consideração para a prova de outros factos, desde logo porque a ambivalência é algo que acompanha a condição do ser humano, e o Julgador valorizou o necessário e pertinente para acompanhar ou não a acusação, sem ter incorrido em contradição insanável nessa avaliação, o que resulta claro do texto da fundamentação.
9.
A objeção oposta à valoração da prova pericial não colhe com a segurança exigida – as lesões descritas são compatíveis com as agressões que lhe antecederam (socos e murros), como a não observação e descrição médico-legal de qualquer lesão no joelho direito, não afasta a ocorrência da agressão correspondente (pontapé).
10.
As aludidas provas postas em crise, se apreciadas em conjunto, entre si, e com os demais elementos, não têm força bastante para, com segurança, atingir a convicção formada pelo tribunal a quo, a ponto de sustentar e impor, à luz das regras da experiência, uma decisão diversa daquela que foi adquirida com recurso à imediação e oralidade da audiência.
11.
Os factos provados devem ser mantidos como foram fixados pela Juíza na 1.ª instância, porque espelham a totalidade da prova produzida, prova essa que aponta para um elevado grau de probabilidade de os factos terem acontecido nos termos que constam dados como provados nessa mesma decisão.
12.
Consequentemente, esta conclusão inviabilizará o conhecimento dos pedidos a ela inerentes – a revogação da sentença, ou, subsidiariamente, a diminuição da medida concreta das penas aplicadas.
13.
Alega ainda que existe contradição notória a nível dos factos provados, entre os factos n.ºs 6. E 7. (as concretas agressões) e os factos descritos no n.º 8. (as concretas lesões verificadas). Tal contradição não poderá proceder pelas razões já apontadas no ponto 9. destas conclusões.
14.
Mais alega que ocorre contradição entre o que vem fundamentado quanto à determinação da medida da pena, e o que vem fundamentado na matéria probatória da matéria de facto (página 8 da sentença), afetando as circunstâncias que entende poder depor a favor do recorrente. A contradição invocada não se enquadra em nenhuma das situações sob as quais se pode apresentar o vício da alínea b), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP.
15.
Não se vislumbra qualquer outro vício enumerado naquele normativo (410.º, do CPP).
16.
Consequentemente, esta conclusão inviabilizará o conhecimento dos pedidos a ela inerentes – a revogação da sentença, ou, subsidiariamente, a diminuição da medida concreta das penas aplicadas.
17.
A expressão “palhaço” que o arguido dirigiu ao ofendido possui, no contexto em que foi proferida, um significado ultrajante, quer para a honra quer para a consideração, pessoal e profissional, pelo que a conduta do arguido, aqui recorrente, é subsumível ao crime de injúria agravada.
18.
Não se mostram violados os artigos 410.º, n.º 2, 412.º, n.º 3, 4 e 6 (este, quanto ao erro na valoração da prova), do CPP, nem o artigo 184.º, do CP – improcedendo o recurso.»
4. Também o assistente e demandante civil, B. A., na resposta apresentada, pugnou pelo integral acerto da decisão, entendendo que a mesma deve ser mantida.
5. Neste Tribunal da Relação, Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento, por concordar com a resposta apresentada pela Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância, acrescentando que, por um lado, não se descortina que o Tribunal tenha feito uma errada aplicação do princípio da livre apreciação da prova, limitando-se o recorrente a questionar a convicção alcançada pelo julgador, sem lograr demonstrar qualquer erro de julgamento, e, por outro lado, que o Tribunal não deu como provados quaisquer factos donde resulte que a conduta do arguido foi determinado por uma atitude provocatória do assistente, pelo que não se verificam os pressupostos para a atenuação especial da pena.
6. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o assistente apresentou resposta a esse parecer, manifestando a sua concordância relativamente ao mesmo e reafirmando que o recurso deve improceder.
6. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do citado código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Como é consensual, quer na doutrina quer na jurisprudência, são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, sintetizando as razões do pedido, que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando para o tribunal superior as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais[2].

Todavia, no caso vertente impõe-se apreciar e decidir as seguintes questões prévias:

1.1 - Em primeiro lugar, da leitura da sentença recorrida constata-se que a mesma, no ponto 4. do dispositivo, identifica o demandante civil com o nome de B. M., quando o seu nome correto é B. A..
Estamos perante um mero erro ou lapso de escrita, resultante da confusão com o nome do arguido e demandado, que se chama C. C., e revelado no próprio texto da sentença, donde resulta inequivocamente que o demandante se chama B. A..
Nos termos do art. 380º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, compêndio legal a que pertencem os preceitos doravante citados sem referência a qualquer diploma, tal lapso é suscetível de eliminação, desde que não importe uma modificação essencial da decisão.
O que é evidente, uma vez que ao longo do processo e, inclusivamente, no relatório da própria sentença e no elenco dos factos nela dados como provados, o demandante civil é sempre identificado como B. A., sendo o nome "B. M." uma mistura entre o seu nome e o do arguido e demandado civil.
Nos termos do n.º 2 do art. 380º, "se já tiver subido recurso da sentença, a correção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso".
Impõe-se, assim, proceder à correção do erro ou lapso de escrita em questão, determinando que, no ponto 4. do dispositivo da sentença, onde consta "(…) a pagar ao demandante civil, B. M., (…)" passe a constar "(…) a pagar ao demandante civil, B. A., (…)".

1.2- Em segundo lugar, cumpre apreciar a questão prévia da inadmissibilidade do recurso no segmento relativo ao pedido de indemnização civil.
De acordo com o disposto no art. 402º, n.º 1, o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão, ressalvando, no entanto, o preceituado no artigo seguinte, segundo o qual o recorrente pode limitar o recurso a uma parte da decisão, desde que ela possa ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas, como sucede, nomeadamente, com a parte da decisão que se referir a matéria penal e a matéria civil.

Na presente situação, o arguido e demandado não limitou o recurso à parte criminal, insurgindo-se também contra o valor da indemnização civil que foi condenado a pagar ao demandante, considerando-o indubitavelmente excessivo quando comparado com os valores praticados no sistema judicial português, face ao dano alegadamente causado e atendendo ainda ao princípio da equidade constante do art. 496º do Código Civil (conclusões 70ª e 71ª).
Ora, nessa matéria, o art. 400º, n.º 2, estabelece regras idênticas às do processo civil, estipulando que, sem prejuízo do disposto nos arts. 427º e 432º (manifestamente inaplicáveis ao caso em análise), o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível se o valor do pedido for superior ao da alçada do tribunal recorrido e se a decisão impugnada for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
O art. 44º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto), em matéria cível, fixou a alçada dos tribunais da relação em € 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância em € 5.000,00.
Por conseguinte, a recorribilidade da decisão de primeira instância, relativa ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal, depende da verificação cumulativa de duas condições: que o pedido formulado seja superior a € 5.000,00 e que o decaimento para o recorrente seja superior a € 2.500,00.

In casu, o valor global do pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante é de € 4.500,00, tendo o demandado sido condenado no pagamento da quantia de € 2.000,00, sendo, pois, este o valor do respetivo decaimento.

Assim sendo, não se mostram verificadas as duas condições enunciadas, termos em que o recurso sobre a decisão proferida em matéria cível não é admissível.
Nos termos do art. 420º, n.º 1, al. b), o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do art. 414º, onde se inclui a irrecorribilidade da decisão.

Impõe-se, pois, rejeitar o recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil, por a decisão não ser recorrível, não se conhecendo dele, sem prejuízo, naturalmente, das consequências a extrair de uma eventual absolvição do arguido dos crimes pelos quais foi condenado, em caso de procedência das demais questões suscitadas.

Posto isto, atenta a conformação das conclusões formuladas pelo recorrente, bem como a inadmissibilidade do recurso na parte relativa ao pedido de indemnização civil, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:

a) - A impugnação da matéria de facto por erro de julgamento (conclusões 3ª a 41ª);
b) - A irrelevância penal da expressão "palhaço", dirigida pelo arguido ao assistente (conclusão 42ª);
c) - A atenuação especial da pena (com fundamento na atitude provocatória do assistente e na interiorização pelo arguido da censurabilidade do seu comportamento e na ausência de antecedentes criminais) (conclusões 43ª a 69ª).

2. DA SENTENÇA RECORRIDA

É do seguinte teor a fundamentação de facto da sentença recorrida (transcrição):
«1.1 – Factos provados:

Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia -.11.2017, cerca das 14h50m, no Pavilhão de Hóquei, sito na Avenida das …, em …, Vila Nova de Famalicão, momentos antes de iniciar o jogo de Hóquei de sub 15, entre as equipas X – e o Y, para o qual o assistente, B. A., estava nomeado para arbitrar, este pediu ao arguido (cronometrista nomeado para o referido jogo), para dar o sinal sonoro para chamar as equipas;
2. O arguido não acatou o pedido;
3. Por esse motivo, passado cerca de 1 ou 2 minutos, o assistente voltou a solicitar ao arguido para dar o sinal sonoro para chamar as equipas;
4. E o arguido voltou a não acatar o mencionado pedido;
5. Nesse momento o assistente deu ordem de expulsão ao arguido e o arguido dirigiu-se àquele e insultou-o, repetidas vezes, em tom alto, de “filho da puta” e “palhaço”;
6. e desferiu socos, em número não concretamente apurado, na face do lado direito do assistente, tendo este recuado para o meio da pista para não continuar a ser agredido;
7. O arguido dirigiu-se ao meio da pista e desferiu mais um murro na cabeça do assistente e deu-lhe um pontapé no joelho direito, e apelidou-o de “filho da puta”, e sendo que as agressões só cessaram com a intervenção dos colegas do arguido;
8. Com a sua atuação o arguido provocou ao assistente, na face, lesão intra-gengival direita na zona bucinadora, do tipo escoriação linear e, no pescoço, lesão do tipo escoriação linear com 3 e 4 cm na face lateral direita (arranhaduras);
9. Tais lesões determinaram ao assistente 4 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e com afetação da capacidade de trabalho profissional por 1 dia;
10. O assistente exerce as funções de árbitro desportivo do quadro nacional (quadro B, com o n.º 49, adstrito ao CA-AP do Minho) e, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, exercia essa atividade sob jurisdição da Federação de Patinagem de Portugal;
11. O arguido agiu com o propósito concretizado de ofender o assistente na sua honra, dignidade e consideração profissionais;
12. Ao agredir o assistente, agiu o arguido com o propósito concretizado de o maltratar fisicamente, bem sabendo que da sua conduta resultariam, como resultaram, dores físicas e as lesões supra referidas;
13. O arguido sabia que o assistente exercia as suas funções na qualidade referida em 10., o qual se encontrava devidamente identificado, no exercício das suas funções de árbitro, não se coibindo de assim atuar;
14. O arguido agiu livre, consciente e voluntariamente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
15. Como consequência direta e necessária da atuação do arguido o assistente dirigiu-se ao hospital, no dia 19.11.2017, pelas 16h47m, com episódio de urgência n.º 17049440, onde recebeu tratamento hospitalar, e teve alta no mesmo dia pelas 17h45m;
16. Como consequência direta e necessária da atuação do arguido o assistente sofreu dores nas zonas por aquele atingidas e sentiu medo, humilhação, vexame e vergonha ao ser por aquele agredido fisicamente e insultado como acima descrito;
17. A conduta do arguido perpetrada contra o assistente, no local e data acima mencionados, foi alvo de notícia no jornal da localidade … e foi divulgada na internet e redes sociais Facebook da página Hóquei …-Pagina Inicial;
18. O arguido não tem antecedentes criminais;
19. O arguido tem o 9º ano de escolaridade; é gerente de uma empresa e aufere a remuneração mensal de cerca de 600,00 euros;
20. O arguido é divorciado; tem uma filha com 15 anos de idade e que reside com a respetiva progenitora; o arguido paga de prestação de alimentos à sua filha a quantia de 150,00 euros/mês;
21. O arguido reside com a mãe, em casa arrendada por esta.
*
1.2. Factos não provados.

Com interesse para a causa resultaram “não provados” os seguintes factos:
1. Que na ocasião referida no número 2 dos “factos provados” o arguido tivesse apelidado o assistente, por repetidas vezes e em tom bem alto, de “filho da puta” e “palhaço” e tivesse desferido três socos no lado direito da face do assistente,
2. Que as funções de árbitro desportivo do assistente se insiram no quadro nacional adstrito ao CA-AP do Porto;
*
1.3. Motivação.

Determina o art. 374º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, além do mais, que a fundamentação da sentença contenha a enumeração dos factos provados e não provados que serão, como resulta do art. 368º, n.º 2, do mesmo Diploma, apenas os que sendo relevantes para a decisão estejam descritos na acusação, ou na pronúncia, tenham sido alegados na contestação, ou que resultem da discussão da causa.
Com efeito, atenta a uniformidade do entendimento que desde há muito o STJ tem vindo a adotar sobre este ponto [Cfr. por todos os acs. STJ de 3.4.91 e de 5.2.98, CJ, 1991, t 2, 19 e CJ t2, 245, respetivamente] aquela enumeração visa a exaustiva cognição do “thema probandum”, i. é, a demonstração de que o Tribunal analisou especificamente toda a matéria de prova que foi submetida à sua apreciação e que revista de interesse para a decisão da causa, pelo que a obrigação legal, de na sentença, se fazer a descrição dos factos provados e não provados, se refere tão somente “(...) aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação”[Cfr. ac. STJ de 15.1.97, CJ, Ac. STJ, 1997, t 1, 181].
Cumpre, ainda, referir que, como é consabido, em matéria de apreciação da prova, vigora o princípio de acordo com o qual o julgador formará livremente a sua convicção, objetivando-a racionalmente nos elementos produzidos ou analisados em audiência de julgamento e, com apoio, as mais das vezes, num raciocínio dedutivo ou indutivo, confrontando-a com as chamadas regras da experiência comum, entendidas como juízos hipotéticos assentes nas máximas da experimentação ordinária, independentes dos casos individuais em que se alicerçam e para lá dos quais mantêm validade - cfr. art. 127º do Cód. de Proc. Penal.
Não se duvidando, pois, da tendencial impossibilidade de, em razão da conhecida subjetividade inerente à individual perceção de acontecimentos, alcançar um conhecimento direto e esgotante da realidade fenomenológica passada com apoio em testemunhos presenciais (quando os há) convergentes ou compatíveis, impõe-se um particular esforço de racionalidade na correlativa e dialética apreciação da prova produzida, subordinado aos princípios da lógica e condicionado pela credibilidade que seja de reconhecer a cada uma das fontes de conhecimento em presença.
Com efeito, a convicção do tribunal é formada dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que transpareçam em audiência das declarações e depoimentos.
Posto isto, vejamos o percurso da motivação do Tribunal.
Desde logo, as declarações prestadas pelo arguido e pelo assistente são coincidentes no que tange à data e ao local dos factos em causa nos autos, bem como no que concerne às funções que um e outro ali exerciam.
Igualmente, o arguido e o assistente referiram, de forma unânime, que este último, enquanto árbitro, referiu àquele, enquanto cronometrista, para dar o sinal sonoro para chamar as equipas de hóquei, o que o arguido não fez e que após o assistente voltou a referir ao arguido para dar o sinal sonoro para chamar as equipas de hóquei para o campo, o que o arguido voltou a não fazer e que nesta ocasião o assistente após ter referido ao arguido, segundo este, se ali estava para complicar, e segundo o assistente se ali estava para ajudar, deu ordem de expulsão ao arguido; embora mais referindo o arguido que na ocasião não deu os mencionados sinais sonoros porquanto o assistente se lhe dirigiu de forma imprópria, explicando, o mesmo, que o assistente não o cumprimentou nem lhe pediu “por favor”, e referindo o assistente que cumprimentou o arguido e demais pessoas que ali estavam e que se dirigiu, nas referidas ocasiões, ao arguido dizendo-lhe “se não se importa dê um toque na buzina para chamar as equipas”.
No mais o assistente descreveu, e de modo que se evidenciou sincero, genuíno, espontâneo, isento, objetivo e, por isso, credível, os factos como os mesmos vieram a ser dados como provados, sendo que parte das suas declarações foram corroboradas pelos depoimentos das testemunhas M. O. e B. G. e como infra se verá.
E o arguido reportou que o assistente quando lhe deu ordem de expulsão lhe deu uma sapatada no ombro e que na altura o arguido entendeu como uma agressão, mas que atualmente acredita que não foi uma agressão e que houve “arrufos” entre eles, “com os braços, um e outro, umas sapatadas com a mão aberta”; mais negou ter desferido pontapés contra o assistente.
Num outro momento das suas declarações o arguido questionado se desferiu murros contra o assistente respondeu que os factos ocorreram há mais de dois anos, referindo “eu também, acho, levei dois ou três murros na cara” e que algumas pessoas os separaram.
Aqui chegados cumpre referir que o arguido prestou estas declarações de forma que se evidenciou ostensivamente subjetiva, titubeante e evasiva, não conseguindo convencer o tribunal da sua versão dos factos, ao que acresce que foram tais declarações contrariadas pelas prestadas pelo assistente e pela testemunha M. O..
Na verdade, as declarações do assistente foram corroboradas pelo testemunho prestado por M. O., colega de trabalho (à data) do assistente.
A mencionada testemunha reportou, sempre de forma que se mostrou espontânea, genuína, isenta, objetiva e crível, ter ido ver o aludido jogo de hóquei e, por isso, ter presenciado os factos em apreço nos autos.
Relatou ter presenciado o arguido a desferir um murro na cara do assistente e ao mesmo tempo que o apelidou de “filho da puta”, e que o assistente recuou para o meio da pista e pediu para ser chamada a polícia ao local e, entretanto, o arguido dirigiu-se ao assistente e desferiu-lhe mais um murro e apelidou-o, outra vez, de “filho da puta” e, entretanto, uns senhores agarraram no arguido e dali o levaram.
Mais deu conta ao Tribunal do padecimento sofrido pelo assistente, mercê dos factos em causa – mormente as lesões físicas (arranhaduras) sofridas pelo ofendido e a humilhação, vexame e vergonha, também pelo ofendido sofridas e por causa da conduta do arguido, sendo que das mesmas teve conhecimento porquanto era colega de trabalho do assistente e, por isso, na ocasião convivia com o mesmo.
Igualmente a testemunha B. G., mãe do assistente, referiu não ter presenciado os factos em causa nos autos, mas ter tido conhecimento, porquanto enquanto mãe do assistente com o mesmo convivia e convive frequentemente, dos danos sofridas pelo assistente em consequência dos aludidos factos, e que descreveu em juízo, mormente as lesões físicas e as dores, vergonha, humilhação, medo sentidos pelo ofendido.
Cumpre referir que as testemunhas M. V., A. M. e P. A. relataram estar presentes no local dos factos e na data dos mesmos, sendo que o primeiro era delegado de escalão do … Sub 15, o segundo estava na mesa do cronometrista e o terceiro estava na bancada.
No mais, referiu a testemunha M. V. que quando levou águas à dita mesa ouviu o assistente, enquanto árbitro, a pedir ao arguido para “tocar à campainha para chamar as equipas” e que houve “um bate boca” entre arguido e assistente e, entretanto, a própria testemunha foi agredida com um murro; e mais disse não ter ouvido qualquer insulto nem ter visto o que se passou entre assistente e arguido.
A testemunha A. M. referiu que após o assistente ter determinado ao arguido por duas vezes para dar o sinal sonoro para chamar as equipas e o arguido se ter negado a tal, o assistente ia pôr a mão no ombro do arguido e disse “está expulso” e gerou-se, entre eles, uma confusão, e que acha que o arguido lançou a mão ao pescoço do assistente e nessa ocasião o pessoal foi para a pista para separar o arguido e o assistente. Mais disse que não se apercebeu de terem sido proferidos insultos na ocasião.
E a testemunha P. A. relatou ter ouvido o assistente a dizer ao arguido que este estava expulso e que o assistente se dirigiu ao arguido e esticou o braço para a frente, não sabendo a testemunha se o mesmo tocou ou não no arguido, e que nesse momento o arguido ficou ainda mais indignado e questionou aquele porque é que estava expulso, e entretanto as pessoas que ali estava perto interferiram e levaram o arguido para fora dali. Mais disse ter ouvido insultos, porém não os conseguiu reproduzir nem dizer quem os preferiu.
Aqui chegados, cumpre salientar que tais testemunhas prestaram os seus depoimentos de forma ostensivamente evasiva, titubeante, subjetiva, demonstrando parcialidade e, por isso, os seus depoimentos não contribuíram para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Por fim, a testemunha R. S., referiu que na data dos factos era o Presidente do Hóquei de …. Mais disse não ter presenciado os factos em apreço nos autos e que dos mesmos teve conhecimento porquanto um dos delegados de tal clube lhe telefonou a relatar tais factos assim como posteriormente falou com o arguido sobre tais factos – ou seja, a testemunha teve conhecimento indireto dos factos em consideração nos autos e, por isso, o seu testemunho em nada adiantou para a descoberta da verdade.
O Tribunal considerou, ainda, o teor do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, de fls. 8 a 10; do Auto de Notícia, de fls. 15 a 17; dos Elementos Clínicos, de fls. 70 e 71; da Notícia, de fls. 110; da Declaração de fls. 111; das Declarações de fls. 138 e 139; do print de fls. 140 e 141; das fotografias de fls. 207 a 209; da informação de fls. 211 e 212 e 226 a 228.
O Tribunal teve, ainda, em consideração o teor do CRC do arguido, junto aos autos.
E, quanto à situação pessoal e económica do arguido teve em consideração, o Tribunal, as declarações pelo mesmo prestadas a propósito, as quais, nesta parte, se evidenciaram sinceras, objetivas e credíveis.
A prova do elemento subjetivo, na falta de confissão, é sempre indireta e deve ser extraída dos demais elementos existentes nos autos conjugados e analisados à luz das regras de experiência comum.
Desta perspetiva, atenta a prova acima exarada e analisada criticamente e à luz das regras da experiência comum pode certamente dizer-se que, ao atuar da forma que o fez, e contra o ofendido, o arguido, atuou de forma deliberada, livre e consciente, com a intenção, conseguida, que se deu como assente, mais sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas por lei, e ainda assim não se coibiu de as praticar.
Os factos não provados resultaram da ausência de produção de prova que os corroborasse.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 – Da impugnação da matéria de facto por erro de julgamento

O recorrente insurge-se contra a decisão proferida sobre a matéria de facto, alegando que o tribunal a quo não valorou corretamente a prova produzida (conclusões 3ª a 41ª).

3.1.1 - Nos termos do art. 428º, os tribunais da relação conhecem não só de direito mas também de facto, assim se concretizando a garantia do duplo grau de jurisdição na matéria de facto, sendo uma das vertentes admitidas a da impugnação ampla, visando o chamado erro de julgamento.
Este erro resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Tal erro pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.
Nesta forma de impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida (como acontece com os vícios previstos no art. 410º, n.º 2), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, nomeadamente pela audição da prova gravada por parte do tribunal de recurso, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431º, al. b).
Todavia, conforme jurisprudência constante[3], esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição das gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como é salientado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2010[4], «(…) o regime do recurso em matéria de facto, se não exige do tribunal de recurso uma avaliação global, impõe-lhe, todavia, como se referiu, que confronte o juízo sobre os factos do tribunal recorrido com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifica nas conclusões da motivação.
A decisão do recurso sobre a matéria de facto exige que aprecie se, no caso concreto, a matéria de facto, rectius, os pontos questionadas da matéria de facto, tem efetivo suporte, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados na decisão recorrida e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem «decisão diversa». (…)
Mas a convicção autónoma sobre o sentido da decisão em matéria de facto relativamente aos pontos questionados só poderá resultar da ponderação, em concreto, das provas identificadas pelo recorrente que o tribunal de recurso deve analisar em juízo e ponderação autónomos; as razões da convicção têm de ser as razões da convicção do próprio tribunal formadas perante os elementos de prova que ponderou nos limites do recurso, e não a assunção ou a recuperação genéricas da convicção ou dos termos da convicção do tribunal recorrido. (…)
Com efeito, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto tem como pressuposto que o princípio da livre apreciação da prova (e a livre convicção, no sentido materialmente adequado do conceito) não esteja deferido, ou seja passível de aplicação, apenas ao tribunal de 1ª instância, mas também à instância de recurso no limite dos poderes de cognição definidos pela delimitação do recorrente.
A livre convicção do tribunal de recurso substitui-se, nos limites da cognição, à convicção do tribunal recorrido, aceitando-a na identidade de apreciação, ou sobrepondo-lhe, se for o caso, a sua própria convicção.».
Em suma, o tribunal de recurso deve verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova nela indicados e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa, cabendo-lhe confrontar o juízo que sobre esses pontos foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada por uma autónoma valoração probatória.
Daí a exigência que é feita nas als. a), b) e c) do n.º 3 do art. 412º, no sentido de o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto ter de especificar, respetivamente, os concretos pontos da mesma que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sendo caso disso, as que devem ser renovadas.
3.1.2 – No caso em apreço, cumprindo o ónus previsto nessa primeira alínea, o recorrente especifica, nas conclusões 12ª e 25ª, como factos individualizados que considera terem sido erroneamente julgados, respetivamente:
- os pontos 6º e 7º da matéria de facto provada, onde se descreve que o arguido desferiu socos, em número não concretamente apurado, na face do lado direito do assistente, tendo este recuado para o meio da pista para não continuar a ser agredido (6º), e que aquele se dirigiu ao meio da pista e desferiu mais um murro na cabeça do assistente e deu-lhe um pontapé no joelho direito, e apelidou-o de “filho da puta”, sendo que as agressões só cessaram com a intervenção dos colegas do arguido (7º).
- o ponto 5º da mesma matéria, na parte em que é dado como provado que o arguido também insultou o assistente, repetidas vezes e em tom alto, de "palhaço".
Por seu lado, a exigência de especificação das concretas provas que impõem decisão diversa só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios probatórios ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem essa decisão diversa.
Para satisfazer esse ónus, o recorrente terá de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.
Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou justifica o facto dado como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
De acordo com o n.º 4 do art. 412º, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas als. b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do n.º 2 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, cabendo ao tribunal da relação proceder à audição das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa (art. 412º, n.º 6). Ao recorrente é, assim, exigível que quando efetue a indicação concreta da sua divergência probatória, fazendo-o para os suportes onde se encontra gravada a prova, remeta para os concretos locais da gravação que suportam a sua tese[5].
No caso em preço, as conclusões extraídas da motivação pelo recorrente são omissas quanto à localização das passagens da gravação em que se encontram registados os depoimentos que o mesmo convoca para demonstrar o invocado erro de julgamento.
Não obstante o art. 417º, n.º 3, permitir o convite ao aperfeiçoamento da respetiva peça processual se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do art. 412º, entendemos que, se analisada a peça do recurso, constatarmos que a indicação das especificações legais, embora não constando das conclusões, consta do corpo da motivação de forma suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não se deverá ser demasiado formalista ao ponto de atrasar a tramitação de um processo quando existem conclusões e se consegue das mesmas deduzir, mesmo que parcialmente e por recurso ao texto das motivações, as mencionadas indicações.
Acresce que ainda por uma outra razão não se justificaria proceder a esse convite, tanto mais que o seu não acatamento não conduziria à rejeição do recurso na parte relativa à questão da impugnação da matéria de facto, apesar de tal consequência estar prevista no art. 417º, n.º 3.
Isto porque, como o Supremo Tribunal de Justiça vem considerando[6], ainda que no âmbito do processo civil, mas que entendemos ser transponível para o processo penal[7], relativamente aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação, e um ónus secundário, este tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo tribunal da relação aos meios de prova gravados relevantes, atualmente consubstanciado na exigência de indicação concreta das passagens da gravação dos meios de prova oralmente produzidos e em que se funda a impugnação (art. 412º, n.º 4, in fine). Este ónus de indicação concreta das passagens relevantes das declarações e dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, mostrando-se satisfeito quando não exista dificuldade relevante na localização pelo tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja baseado para demonstrar o invocado erro de julgamento.
É o que sucede no caso vertente, em que o recorrente, no corpo da motivação, indica os excertos dos depoimentos que, em seu entender, impõem uma decisão diferente da que foi proferida sobre a matéria de facto impugnada, por referência aos minutos e segundos da gravação em que se encontram registados, procedendo inclusivamente à sua transcrição, permitindo, assim, ao tribunal da relação proceder à fácil localização e audição dos mesmos.
Por conseguinte, entendemos que se mostra cabalmente cumprido o ónus de especificação previsto na al. b) do n.º 3 e no n.º 4 do art. 412º.

3.1.3 - Posto isto, apreciemos a impugnação da matéria de facto.
Em primeiro lugar, insurge-se o recorrente contra o facto de o tribunal a quo ter considerado apenas como sinceros, genuínos, espontâneos e objetivos as declarações prestadas pelo assistente e os depoimentos prestados pelas testemunhas M. O. e B. G., desconsiderando, assim, os depoimentos prestados pelas demais testemunhas e as declarações prestadas por ele próprio (arguido), mencionando que este tentou apresentar uma versão dos factos distinta da apresentada pelo assistente e pela testemunha M. O..
Para tanto, alega o recorrente que, ao contrário do que considerou o tribunal a quo, este último depoimento pautou-se por gritantes incoerências com os demais, inclusivamente diferindo em pontos fundamentais das declarações prestadas pelo assistente.

Conforme resulta da esclarecedora motivação da decisão de facto, a Mmª. Juíza reconheceu a existência de duas versões antagónicas sobre os factos impugnados:

- Uma delas, ancorada nas declarações negatórias do arguido, ao afirmar que houve "arrufos" entre ele e o assistente, "com os braços, um e outro, umas sapatadas com a mão aberta", negando ter-lhe desferido pontapés, sendo que, instado se lhe desferiu murros, respondeu que os factos já tinham ocorrido há mais de dois anos e que "eu também, acho, levei dois ou três murros na cara".
- A outra versão, assente nas declarações do assistente, ao relatar os factos da forma como vieram a ser dados como provados, em parte corroboradas pelos depoimentos das testemunhas M. O. e B. G..
Refira-se que a divergência de versões não tem nada de inesperado ou inusual, sendo até o que sucede na esmagadora maioria dos casos submetidos a julgamento nos tribunais.
Decorrendo da prova produzida em audiência diferentes versões dos factos, não é imperioso que o tribunal se fique por um non liquet nem que opte pela versão suportada pelo maior número de depoimentos. Estes valem pela credibilidade que merecem e não pela sua quantidade.
Na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção desde que essa apreciação não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, por referência ao homem médio suposto pela ordem jurídica[8].
Com efeito, ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, importa ter presente que entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, segundo o qual [s]alvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
O que pressupõe que a prova seja considerada segundo critérios objetivos que permitam estabelecer o substrato racional da fundamentação da convicção, sem que tal signifique, de modo algum, que a atividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Concedendo esse princípio uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, o julgador deverá ser capaz de o fundamentar de modo lógico e racional.
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária dos meios de prova, impondo-lhe a lei que extraia deles um convencimento lógico e motivado, avaliando-os com sentido de responsabilidade e bom senso.
Mais se exige que o julgador indique os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito. Não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
Se a decisão factual se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível, optando o julgador por uma das soluções permitidas pelas regras de experiência comum e da lógica, a fonte de tal convicção, obtida com os benefícios da imediação e da oralidade, apenas deverá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização, pelas mesmas regras.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma revisão da convicção alcançada pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, havendo antes que demonstrar que as provas indicadas a impõem, conforme resulta expressamente do art. 412º, n.º 3, al. b).
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe analisar o processo de formação da convicção do julgador do tribunal a quo, verificando se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar, não bastando, para uma eventual alteração, uma diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova produzida.
Por isso, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem a ela, já não o devendo ser quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ou seja, o tribunal da relação só pode e deve determinar uma modificação da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão[9].
Como claramente resulta da motivação da decisão de facto, supra transcrita, a Mmª. Juíza, como se impunha, norteou-se pelo princípio da livre apreciação da prova e pelas regras da experiência comum, procedendo à avaliação global da prova produzida, numa perspetiva crítica, que registou de forma proficiente, encontrando-se, assim, a decisão relativa aos pontos de facto objeto de impugnação devidamente fundamentada, com exposição clara e segura das razões que fundamentam a opção tomada, permitindo, assim, aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional subjacente a essa convicção.
Em relação aos concretos pontos de facto impugnados, a convicção da julgadora assentou essencialmente nas declarações do assistente, sem que a apontada oposição de versões tenha sido impeditiva da formação da sua convicção no sentido da prática, pelo recorrente, desses factos.
Com efeito, conforme expressamente consignou na referida motivação, a Mmª. Juíza considerou que o assistente prestou declarações credíveis, já que lhe pareceram sinceras, genuínas, isentas e objetivas, para mais tendo sido corroboradas pelos depoimentos das testemunhas M. O. e B. G.. A primeira porque, de forma espontânea, genuína, isenta, objetiva e credível, relatou ter presenciado o arguido desferir um murro na cara do assistente e, instantes depois, já no meio da pista, um outro murro, mais demonstrando conhecimento das lesões apresentadas por este. E a segunda porque, na qualidade de mãe do mesmo, demonstrou conhecimento das lesões físicas por ele apresentadas.
Acresce que tais lesões se encontram descritas nos elementos clínicos e no relatório da perícia de avaliação de dano corporal juntos a fls. 70 a 71 e 8 a 10, e são observáveis nas fotografias de fls. 207 a 209, documentos esses igualmente valorados pelo tribunal.
Por contraposição a esses meios probatórios, a Mmª. Juíza considerou que as declarações do arguido foram prestadas de forma ostensivamente subjetiva, titubeante e evasiva, não conseguindo convencer o tribunal da sua versão dos factos, e que as demais testemunhas - M. V. (delegado de escalão de uma das equipas), A. M. (que se encontrava na mesa do cronometrista) e P. A. (que se encontrava na bancada) - prestaram os seus depoimentos de forma ostensivamente evasiva, titubeante, subjetiva, demonstrando parcialidade, razão pela qual não contribuíram para a descoberta da verdade.
Sustenta o recorrente que o depoimento da testemunha M. O. é marcado por gritantes incoerências, diferindo inclusivamente das declarações prestadas pelo assistente em pontos fundamentais (conclusões 6ª a 14ª).
Todavia, na concretização desses pontos, limita-se a alegar que a testemunha refere que o assistente se encontrava junto à mesa do cronómetro a conversar e a rir com outro senhor que lá se encontrava, tendo, posteriormente, surgido um segundo sujeito, vindo da porta de onde saem os jogadores, que se dirigiu ao assistente, desferindo-lhe um murro, após o que o agressor foi retirado do ringue por mais dois senhores ("um senhor de óculos e um senhor mais velho"), retirando-se os três por uma porta, de onde saiu, posteriormente, o "senhor de óculos", sem os óculos e a sangrar.
Sustenta o recorrente que esta versão dos factos não corrobora a versão trazida, quer pelo próprio assistente, quer pelos demais intervenientes processuais, os quais referem que, no momento dos factos, o arguido se encontrava já na mesa do cronómetro, e que junto a ele se encontrava também a testemunha M. V. (referido pela testemunha M. O. como o "senhor de óculos"), e que, posteriormente, no decorrer das alegadas agressões no ringue, a testemunha M. V. acabou por se também ele alvo de uma agressão na cara que lhe partiu os óculos e que o colocou a sangrar.
O teor da alegação do recorrente não evidencia, de todo, a existência de contradições entre as versões em confronto. Desde logo porque, por um lado, a testemunha M. O. não refere que a agressão foi perpetrada imediatamente a o agressor ter chegado junto da mesa do cronómetro, o que nem faria sentido, na medida em que ambos os intervenientes (assistente e arguido) são unânimes em afirmar que previamente aos factos, o primeiro pediu ao segundo, por duas vezes, para chamar as equipas. Por outro lado, do depoimento da testemunha M. O. não se retira a declaração de que a testemunha M. V. foi agredida depois de esta se ter retirado do ringue, mas apenas que quando a mesma aí regressou vinha sem os óculos e a sangrar, o que não invalida que a agressão tivesse ocorrido antes da referida retirada.
Acresce que, contrariamente ao que o recorrente parece pressupor, não é de exigir para a prova de um facto que todas as testemunhas o relatem de forma coincidente, sendo natural que existam algumas divergências, perfeitamente compreensíveis em face das regras da experiência da vida e das coisas.
A existência de imprecisões ou incoerências num depoimento ou entre depoimentos não é suficiente, por si só, para pôr em causa a credibilidade de quem os presta, uma vez que um testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo, sendo inúmeros os fatores que contribuem para a sua falibilidade.
É normal e compreensível que os testemunhos contenham imprecisões decorrentes de deficiências dos próprios sentidos, posto que são narrações de factos percebidos através destes. Daí que a circunstância de não serem coincidentes não significa necessariamente que sejam falsos, demonstrando, aliás, a experiência judiciária que a concertação de versões inverídicas é que geralmente origina descrições de factos perfeitamente coincidentes entre si, diversamente do que sucede com os depoimentos mais espontâneos e verdadeiros.
Por conseguinte, as alegadas incoerências entre o declarado pela testemunha M. O. e pelos os demais depoimentos, inclusive pelo assistente, a existirem, não seriam aptas a retirar credibilidade àquele depoimento testemunhal, por ser consabido que o testemunho de uma pessoa sobre um facto depende, essencialmente, de como ela percecionou esse acontecimento, de como a sua memória o armazenou e o evocou e, ainda, do modo como esse facto pode ser ou foi expresso por quem o relatou.
Na tentativa de pôr em causa a credibilidade da testemunha M. O., pretendendo demonstrar que a mesma não teria estado presente no local onde os factos ocorreram, alega também o recorrente (conclusões 28ª a 31ª) que não parece razoável uma dissemelhança tão acentuada entre a medida percecionada pela testemunha ("praí 4, 5 metros") relativa à distância que separava o local onde se encontrava a assistir ao jogo (na bancada em frente à mesa do cronómetro) e a distância real entre esses dois pontos (pelo menos 17 metros, por ser a largura mínima de um campo de hóquei em patins, segundo o regulamento técnico deste desporto).
Não cremos que assim seja, por ser consabida a dificuldade que muitas pessoas, mormente quando inquiridas em audiência, têm em traduzir em metros a distância percecionada pelos seus sentidos, como qualquer interveniente em julgamentos já seguramente teve oportunidade de constatar.
No mesmo sentido, invoca ainda o recorrente - conclusões 32ª a 37ª - a incredibilidade derivada da estranheza de, residindo a testemunha M. O. no Porto, nunca ter assistido a um jogo de hóquei e não ter qualquer interesse especial sobre esse desporto, no circunstancialismo em apreço se ter deslocado até …, freguesia localizada a cerca de 50 Km da cidade onde residia, com o único propósito de assistir especificamente àquele jogo, o qual não apresentava qualquer especificidade que o tornasse especialmente apelativo, por ser entre equipas que não tinham qualquer visibilidade e que nem sequer foi capaz de identificar.
Nesta argumentação olvida, porém, o recorrente o excerto do depoimento da testemunha M. O., indicado por ele próprio, donde resulta que, ao ser expressamente confrontada com esses factos, a mesma explicou que "nós [ela e o namorado] tínhamos ido passear por Famalicão, tínhamos ido dar uma volta e como sabíamos que ia haver ali um jogo fomos ver", acrescentando que o assistente tinha dito que ia arbitrar aquele jogo de hóquei, explicação essa plausível à luz das regras da experiência comum,
Não há, assim, fundamento suficiente para pôr em causa o depoimento da testemunha M. O..
Alega ainda o recorrente - conclusão 15ª - que apesar de o tribunal a quo ter desconsiderado as declarações prestadas por si e pelas testemunhas M. V., A. M. e P. A., certo é que todos eles apresentaram uma versão consentânea dos factos, referindo que o arguido se terá envolvido em agressões mútuas com o assistente, mas que tais agressões terão sido "sapatadas" de mão aberta e não socos e murros. Bem como que, em relação aos insultos, o assistente apenas relatou de forma espontânea ter sido apelidado pelo arguido de "filho da puta", nada referindo relativamente ao facto de também ter sido apelidado de "palhaço", somente o fazendo quando questionado de forma direta e inequívoca pela Exma. Magistrada do Ministério Público especificamente quanto a esse insulto.
Todavia, ao invés do que mais uma vez parece ser pressuposição do recorrente, nada impede que a prova produzida em audiência assente essencialmente nas declarações da própria vítima, sem corroboração direta por qualquer outro elemento probatório.
Com efeito, num sistema de prova livre, como é o consagrado no art. 127º, a prova de um facto pode resultar da valoração de um único meio de prova, nomeadamente das declarações do assistente ou ofendido ou do depoimento de uma testemunha. O que é necessário é que esse meio de prova, fundamentador da convicção, seja credível e que o tribunal explique as razões que determinaram a atribuição de credibilidade ao mesmo, como claramente sucede na situação dos autos. Não só há muito que deixou de vigorar a velha regra traduzida pelo brocardo latino "testis unus, testis nullus" (uma só testemunha, nenhuma testemunha), como os depoimentos não valem pelo número, mas pelo peso da credibilidade que merecem[10].
De todo o modo, a Mmª. Juíza explicitou as razões pelas quais as declarações do arguido não lhe mereceram credibilidade, nomeadamente por ter deposto de forma titubeante e evasiva, nomeadamente quando, ao ser questionado sobre se desferiu murros ao assistente, ter respondido que os factos ocorreram há mais de dois anos e dizendo "eu também, acho, levei dois ou três murros na cara", donde se infere que admite a possibilidade de ter desferido murros ao assistente, conforme relatado por este e pela testemunha M. O..
Não colhe, pois, a alegação de que a "fundamentação apresentada pelo tribunal a quo é caracterizada por uma abstração que não permite convencer-nos de qual o alcance do raciocínio lógico operado pelo julgador" (conclusão 23ª).
Por seu turno, a alegada falta de espontaneidade do assistente quanto à expressão "palhaço" pode encontrar uma fácil e natural explicação na circunstância de, no confronto com o outro insulto, lhe atribuir menor relevo, não o valorizando.
Prossegue o recorrente, alegando que as lesões descritas no relatório do Instituto de Medicina Legal e dadas como provadas (escoriações) são compatíveis com a forma de agressão por si descrita ("sapatadas com a mão aberta") e que se tivesse agredido o assistente a socos e murro, o mesmo deveria apresentar hematomas e nunca escoriações como de facto apresentava (conclusões 16ª e 17ª).
Mas sem razão, porquanto não se vê em que medida uma pancada com a mão aberta (sapatada) seja mais adequada a causar escoriações do que socos e murros, afigurando-se-nos precisamente o contrário, por esta última forma de agressão poder implicar maior pressão e fricção na pele, para além de que as escoriações, enquanto exposição da derme devido ao arrancamento da epiderme por ação tangencial, poderem resultar do impacto de unhas ou anéis durante o desferimento de socos e murros. Acresce que a "lesão intra-gengival direita na zona bucinadora, do tipo escoriação linear", dada como provada e perfeitamente visível na fotografia de fls. 209, é perfeitamente compatível com a fricção com os dentes decorrente do desferimento de socos na face.
Cai, assim, por terra a alegação do recorrente de que a julgadora considerou como provados factos contraditórios com o resultado do referido relatório, sem fundamentar tal divergência (conclusões 20ª e 21ª), sendo certo que, contrariamente ao que pressupõe o recorrente, a descrição das lesões apresentadas pelo assistente, com base nos elementos clínicos relativos à assistência hospitalar imediatamente a seguir aos factos, não está a coberto do valor da prova pericial.
Quanto ao pontapé desferido pelo arguido no joelho direito do assistente, vem alegado - conclusões 18ª e 9ª - que apenas este último refere tal facto, já que as demais testemunhas não fazem qualquer tipo de referência a agressões desse tipo, e que na descrição das lesões constante do relatório do Instituto de Medicina Legal, tal como nos factos provados, não constam quaisquer lesões nos membros inferiores.
Todavia, olvida o recorrente que o desferimento de um pontapé pode não deixar qualquer lesão, tanto mais que, como se alcança da fotografia de fls. 210, o assistente teria as pernas cobertas por calças e embora nestas sejam visíveis marcas de sapatos, tal não significa que daí tenha advindo qualquer lesão.
Quanto ao facto de apenas o assistente aludir ao facto em apreço, remetemos para o referido supra a propósito da suficiência de um único meio de prova.
Tudo o que se vem de dizer justifica a nossa convicção, na mesma linha da formada pelo tribunal a quo, de que o assistente se manteve fiel à verdade, motivo pelo qual não há razões suficientes para não conferir total credibilidade às suas declarações, nada havendo a censurar no processo lógico e racional subjacente à formação da convicção da Mmª. Juíza, o qual se mostra explicitado em termos percetíveis e assimiláveis, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum ou qualquer apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, em pleno respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, não tendo o recorrente logrado demonstrar a imposição de decisão diversa quanto aos factos impugnados.
Assim se compreendendo perfeitamente que, quanto a eles, a julgadora, em detrimento das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas M. V., A. M. e P. A., tenha valorado as declarações do assistente, conjugadas e corroboradas pelos referidos depoimento testemunhal e documentos.
Improcede, assim, a questão da impugnação ampla da matéria de facto.

3.2 - Da irrelevância penal da expressão "palhaço" dirigida pelo arguido ao assistente

Subsidiariamente, na eventualidade de se manter como provado que o recorrente apelidou o assistente de "palhaço", defende aquele que tal expressão não integra objetiva ou subjetivamente o crime de injúria, por falta de carga ofensiva, podendo apenas, pela grosseria ou falta de educação, ferir a suscetibilidade do visado (conclusão 42ª).
3.2.1 - De acordo com o teor do art. 181º do Código Penal, incorre na prática deste crime “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração”.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-12-2007[11], para efeitos de tutela penal, cujo fundamento se busca na proteção do direito fundamental ao bom nome e reputação constitucionalmente consagrado no art. 26º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a honra traduz-se num bem jurídico multiforme, que mistura uma conceção fáctica, subjetiva e objetiva, com uma conceção normativa, pessoal e social, incluindo, desta forma, por um lado, o valor e dignidade pessoal e interior de cada indivíduo, e, por outro, a sua integração e consideração na comunidade em que se insere.
No caso do crime de injúria, prevê-se que a imputação de factos e a simples direção de palavras a outrem podem traduzir uma forma de ofensa da honra e consideração do visado.
No entanto, a ordem jurídica acolhe os direitos ao bom nome e reputação de forma harmonizada e convergente, de tal modo que, entre outros, devem ser excluídos do seu âmbito de proteção os conteúdos que possam considerar-se de plano constitucionalmente inadmissível, mesmo quando não ressalvados na sua definição literal.

Pela sua pertinência, transcrevemos o seguinte excerto do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-01-2010[12]:
«Como é sabido, a vida em sociedade pauta-se por normas, nem todas elas de carácter jurídico. A teia de relações sociais que necessariamente se estabelece em torno de cada indivíduo e que lhe permite interagir com os demais, pressupõe, por força da própria natureza humana, uma regulação normativa. Basicamente, é usual distinguir-se entre normas religiosas, normas de costume, normas morais e normas jurídicas - Para desenvolvimento do tema, veja-se Alessandro Groppali, “Introdução ao Estudo do Direito”, 3ª Ed., pags. 31/35.
As primeiras, valem nas relações entre os crentes de uma mesma religião ou fé e entre estes e o Deus em que acreditam. A violação destas normas importa, para o crente, a sanção do castigo divino e a desaprovação dos outros crentes.
As normas de costume respeitam ao comportamento em determinadas circunstâncias; são normas de conveniência, de decoro, de higiene, de etiqueta ou de cerimónia. A sua violação acarreta a reprovação por parte de quem lhes atribui importância, e pode importar ainda um sentimento de mal-estar ou desconforto social para quem, respeitando por princípio essas normas, delas se afastou. A sanção que as acompanha é, pois, essencialmente, uma reprovação social.
As normas morais radicam numa noção de “bem” e de “mal”, são normas cuja violação gera uma intensa reprovação por parte dos membros da comunidade e que nos casos mais ostensivos conduz a uma verdadeira desqualificação social do infrator, que se verá olhado com desdém ou deixará de ser aceite em certos círculos sociais.
Por fim, as regras jurídicas prendem-se com o núcleo essencial da convivência humana. Tutelam valores de tal modo relevantes para a vida em sociedade que o Estado impõe coativamente a sua observância, estipulando sanções para os infratores.
Todos estes grupos de normas se refletem, direta ou indiretamente, na personalidade moral dos indivíduos e todas as sociedades, pelo menos, as sociedades de pendor humanista, tutelam a personalidade moral.
Assim sucede entre nós, tutelando a Constituição da República Portuguesa a personalidade moral, consagrando a sua inviolabilidade no art. 25º, nº 1 - Art. 25º, nº 1, da CRP: “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”.
No desenvolvimento desse princípio, o Código Civil consagra uma tutela geral, estatuindo, no respetivo art. 70º, nº 1, que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.
O direito penal, por seu turno, tutela a honra e reputação do indivíduo, enquanto expressão da irrenunciável dignidade pessoal.
Honra, no sentido pressuposto pelas normas que lhe conferem tutela penal, tanto pode ser a honra subjetiva ou interior, no sentido de juízo valorativo que cada um faz de si mesmo, como honra objetiva ou exterior, correspondente à consideração de que alguém goza entre quem o conhece, ao bom nome e reputação no contexto social envolvente - Para desenvolvimento do tema veja-se José de Faria Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, pág. 603, em anot. ao art. 180º.
A ofensa à honra ou consideração não é, no entanto, suscetível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direcionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objeto de sanção penal.»
Nestes termos, nem todo o comportamento incorreto de um indivíduo merece tutela penal, devendo-se destrinçar as situações que traduzem, de facto, uma ofensa da honra de terceiros com dignidade penal, daquelas situações suscetíveis de revelar tão só indelicadeza, grosseirismo ou uma má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado. Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma deselegante ou indelicada. Contudo, o direito não pode intervir sempre que a linguagem ou as afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.
Por conseguinte, atentos os múltiplos fatores que concorrem para a identificação das condutas ofensivas da honra, apenas nos casos concretos é possível discernir quais as palavras ou afirmações que, efetivamente, comportam uma carga ofensiva da honra de um indivíduo. Para este efeito, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como sejam, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.
Como é sumariado no acórdão desta Relação de Guimarães de 22-01-2018[13], «[o] tipo legal previsto no art. 181º do C. Penal (crime de injúria), assegura o direito ao “bom-nome” e a “reputação”, constitucionalmente garantidos (art. 26º, nº 1 da CRP), sendo indispensável à formulação do juízo sobre a tipicidade a contextualização das expressões proferidas, de modo apreciar se, nas circunstâncias em que o foram, atingiram a pessoa visada, quer no valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer na própria reputação ou consideração exterior, no patamar mínimo exigível de carga ofensiva abaixo do qual não se justifica a tutela penal, segundo os princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade, imanentes ao estado de direito».

Mais desenvolvidamente, menciona-se na fundamentação desse aresto o seguinte:

«Assim, e no que respeita à “injúria”, nem tudo o que causa contrariedade e se apresenta como desagradável, grosseiro e pouco educado, mesmo até quando formalmente pareça integrar o tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. A lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua suscetibilidade ou melindre. A valoração deve fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. (…) Impõe-se, assim, olhar a expressão em apreciação, não isoladamente, mas no contexto e circunstâncias em que foi proferida, e apreciar se, nesse contexto, atingiu a visada num quadro merecedor de tutela penal. (…) Todavia, existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que, objetivamente, atingem a honra do visado, a não ser que se demonstre que este as emprega usualmente e aceita sempre receber a carga de ofensividade que é inerente a elas». (…) É certo que o atentado à honra não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez ou mesmo com a grosseria (…) é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente incomodada por outra “pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função».
3.2.2 – Tendo, então, presente que a relevância penal das ofensas cometidas ao bem jurídico da honra e consideração deverá ser aferida em função do contexto em que as mesmas ocorram, bem como que há um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo do qual não se justifica a tutela penal[14], no caso vertente, afigura-se-nos que a expressão "palhaço", dirigida pelo arguido ao assistente, nas circunstâncias em que foi proferida, não deve ser considerada objetivamente ofensiva da honra e consideração do visado.
Com efeito, resultou provado que antes do início de um jogo de hóquei em patins de sub 15, para o qual o assistente estava nomeado como árbitro e o arguido como cronometrista, aquele pediu a este que desse o sinal sonoro para chamar as equipas, o que ele não acatou. Passado cerca de um ou dois minutos, o assistente repetiu o pedido, que o arguido voltou a não acatar. Nessa sequência, o assistente expulsou o arguido e este dirigiu-se a ele, insultou-o, repetidas vezes, em tom alto, de "filho da puta" e "palhaço", e agrediu-o fisicamente, desferindo-lhe socos na face, um murro na cabeça e um pontapé no joelho.
A Mmª. Juíza considerou que «"[i]n casu", as expressões "filho da puta" e "palhaço" que o arguido dirigiu ao ofendido possuíram, no contexto em que foram proferidas e que acima ficou descrito, um significado ultrajante, quer para a honra quer para a consideração pessoal e profissional, do último, (…).».
Todavia, são abundantes as situações em que os tribunais superiores têm negado à expressão "palhaço", dirigida nomeadamente a políticos ou agentes de autoridade, aptidão ofensiva da honra e consideração do visado.

Nomeadamente, refere o sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 17-04-2018[15] que:

«1. As expressões “vocês são uns palhaços”, “não valeis nada”, “ide-vos foder” dirigidas pela arguida a agentes da PSP que a tinham acabado de chamar a atenção sobre um seu comportamento, inculcam a ideia de que a arguida criticou um comportamento mas não expressamente as pessoas dos ofendidos.
2. Mesmo que se possa considerar que se trata de uma crítica diretamente dirigida à atuação dos ofendidos é patente que ela se situa na área do seu comportamento estritamente profissional e não atinge o núcleo da dignidade pessoal dos ofendidos.
3. No contexto em que foram preferidas, as expressões não têm outro significado que não seja a mera verbalização de linguagem grosseira, ordinária, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom nome ou reputação dos visados.
Também a Relação do Porto, nos acórdãos de 24-02-2016[16], de 09-09-2009[17] e de 19-12-2007[18], decidiu, respetivamente, que «integra o crime de injúrias o ato da arguida traduzido em dirigir-se ao ofendido e apelidá-lo de “Nojento: És um Nojento” mas não o apelidá-lo de “ Palhaço”», que «as expressões “palhaço” e “camelo”, dirigidas a outrem [um agente da PSP no exercício das suas funções e por causa desse exercício] constituem, sem dúvida alguma, uma grosseria, mas não excedem o âmbito da mera falta de educação nem têm aptidão para ofender a honra e consideração do visado» e que «a expressão “és um palhaço”, ainda que proferida para manifestar desconsideração, não é ofensiva da honra ou consideração do visado».
Cite-se, ainda o acórdão desta Relação de Guimarães de 17-02-2014[19], em cujo sumário se pode ler que «não comete o crime de injúria quem profere a expressão “vocês são uns palhaços, não sei como o povo vos escolheu”, dirigida a um presidente de Junta de Freguesia no âmbito de uma contenda motivada por questões relacionadas com a atuação dos membros da autarquia, por a mesma se traduzir num juízo de valor em que se exerce o direito de crítica».
Com efeito, a palavra “palhaço” tem um sentido polissémico. De acordo com o Grande Dicionário da Língua Portuguesa[20], significa artista de circo, aquele que diverte o público com habilidades, anedotas, etc; pessoa que por atos ou palavras faz rir os outros, falando-se especialmente de quem tem a pretensão de ser engraçado”.
Também o dicionário de português online (www.lexico.pt) aponta como significado de palhaço: "1. Denominação de uma personagem engraçada e burlesca, geralmente encontrada no circo; tem a função de entreter os espectadores com piadas e situações cómicas e burlescas;
2. (Figurado; Pejorativo) Designação de indivíduo que está constantemente a fazer piadas e a tentar ser engraçado sem ter grande sucesso; 3. (Figurado; Pejorativo) Sujeito que não pode ser levado com seriedade; 4. (Figurado; Pejorativo) Indivíduo que altera a sua opinião e pontos de vista com muita frequência;".

Como se refere no referido acórdão da Relação do Porto de 19-12-2007, quando uma palavra tem uma pluralidade de sentidos, não temos de acolher o significado atribuído pelo visado tão-só por se ter considerado ofendido, sendo que isso terá de resultar inequivocamente dos factos.

No caso dos autos, ainda que se considere que o arguido chamou "palhaço" ao assistente, cronometrista do jogo de hóquei em que ele era árbitro, com o intuito de demonstrar falta de apreço pelo mesmo, o certo é que tal afirmação não excede a grosseria, a falta de educação, tratando-se de um mero juízo de valor que não tem aptidão para atingir a honra e a consideração do visado, inserindo-se no âmbito de tolerância necessária, devido à normal conflitualidade e animosidade decorrente da vida em sociedade.
Com efeito, apelidar de "palhaço" o árbitro que o expulsou do jogo pelo facto de ele, enquanto cronometrista, não ter acatado o pedido de dar o sinal sonoro para chamar as equipas para o ringue, traduz-se num juízo de valor em que se pretende exercer o direito de criticar aquela decisão, considerada injusta, mas não de humilhar ou vexar.
Atentando no concreto circunstancialismo do caso, constata-se que, apesar de o assistente desempenhar as funções de árbitro do jogo, o arguido tinha um papel auxiliador nessa tarefa, sendo o cronometrista nomeado, pelo que havia uma certa relação funcional entre ambos. Por outro lado, o comportamento do arguido deveu-se a uma forma de protesto ou de crítica relativamente à decisão do assistente o expulsar do jogo pelo facto de ele se recusar a dar o sinal sonoro para chamar as equipas, sendo seu entendimento que não o deveria fazer.
Por conseguinte, à luz dos padrões médios de valoração social, a expressão em apreço, no contexto e circunstâncias em que foi dirigida pelo arguido ao assistente, não é suscetível de ofender, de modo jurídico-penalmente relevante, a honra e consideração do visado, por não visar nitidamente a esfera da sua dignidade pessoal, não indo além de uma mera violação das regras de cortesia, delicadeza e boa educação, sem atingir o âmago do mínimo de respeito indispensável ao relacionamento em sociedade.
Pelo exposto, merecendo o recurso provimento nesta parte, com a consequente circunscrição do crime de injúria agravada ao comportamento de chamar ao assistente "filho da puta", há que reduzir o número de dias da pena de multa aplicada ao arguido (140 dias), o que se fará após a apreciação da questão da atenuação especial da pena, por a eventual procedência da mesma contender com a definição dos limites da moldura legal aplicável.

3.3 - Da atenuação especial da pena

Sustenta também o recorrente - conclusões 43ª a 69ª - que o tribunal a quo, na determinação da medida da pena, deveria ter procedido à atenuação especial da mesma, nos termos dos arts. 72º, n.ºs 1 e 2, al. b), e 73º do Código Penal, por a sua conduta ter sido determinada por uma atitude provocatória por parte do assistente, invocando ainda a interiorização da censurabilidade da sua conduta e a ausência de antecedentes criminais.

Nessa sequência, o recorrente pugna pela redução do limite máximo da pena de um terço (e não a um terço como erradamente refere na conclusão 65ª) e pela redução do limite mínimo ao mínimo legal [art. 73º, n.º 1, als. a), b) e c)], donde extrai a conclusão de que as penas concretas aplicadas (140 dias de multa pelo crime de injúria agravada e 210 dias de multa pelo crime de ofensa à integridade física qualificada) ultrapassam os limites das molduras penais aplicáveis ao caso.

3.3.1 - Todavia, é manifesta a falta de razão do recorrente ao pretender que a pena lhe seja especialmente atenuada.

Dispõe o n.º 1 do art. 72º do Código Penal que “[o] tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”.

Como refere Figueiredo Dias[21] “[a]o legislador compete, desde logo, estatuir as molduras penais cabidas a cada tipo de factos que descreve na PE do Código CP e em legislação extravagante, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um daqueles tipos de factos pode presumivelmente assumir. Mas porque o sistema não poderia funcionar de forma justa e eficaz se não fosse dotado, a este propósito, de válvulas de segurança, o legislador prevê ainda aquelas circunstâncias que, em casos especiais, podem agravar ou atenuar os limites máximo e (ou) mínimo das molduras penais, cabidas como regra a um certo tipo de factos (circunstâncias modificativas). (...) Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respetiva, aí teremos um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena. (...) A diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da atuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo.”.
Daí o entendimento de que a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar, já que para a generalidade dos casos existem as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios.
O n.º 2 do citado art. 72º enumera, exemplificativamente, várias circunstâncias suscetíveis de serem consideradas para o efeito do disposto no n.º 1, entre elas aquela que é invocada pelo recorrente, traduzida em a conduta do agente ter sido determinada por provocação injusta ou ofensa imerecida [al. b), parte final].
No entanto, tais situações não têm o efeito automático de atenuar especialmente a pena, apenas o possuindo se e na medida em que desencadeiem o efeito de diminuir, de forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção, nos termos sobreditos, funcionando esta diminuição como um verdadeiro pressuposto material da atenuação especial da pena.
Conforme resulta expressamente da letra da lei, tal enumeração não é taxativa, podendo atender-se a outras circunstâncias aí não previstas, desde que sejam reveladoras de uma diminuição acentuada da culpa, da ilicitude ou da necessidade da pena.
Uma vez verificados os respetivos pressupostos, a atenuação especial da pena não fica no arbítrio ou na discricionariedade do juiz, antes constituindo um dever ou uma obrigação.

3.3.2 – No caso vertente, a primeira circunstância invocada pelo recorrente para fundamentar a pretendida atenuação especial da pena consiste naquilo que ele considera ter sido uma atitude provocatória do assistente (cf. conclusões 47ª a 51ª e 63ª).
Para tanto, alega que, segundo o regulamento que regula a prática desportiva de hóquei em patins, deparando-se o árbitro com a ausência das equipas no ringue à hora agendada para o início do jogo, deve registar tal incumprimento e aguardar pela chegada das equipas, procedendo posteriormente à pertinente comunicação do facto à Federação de Patinagem de Portugal, a quem caberá a aplicação de uma eventual multa aos clubes envolvidos.
Por isso, considera o recorrente que a opção tomada pelo assistente, ao insistir consigo para dar o sinal sonoro para chamar as equipas para o recinto, visou, tão só e apenas, a imposição desmedida da sua posição e autoridade enquanto árbitro, extravasando as respetivas funções, não passando de uma tentativa provocatória de impor tal autoridade numa situação totalmente desnecessária e evitável se se tivesse limitado a seguir o protocolo desportivo estabelecido.
Como é bom de ver, a situação é manifestamente insuscetível de configurar uma provocação.
Desde logo porque se o arguido entendia que o assistente, enquanto árbitro nomeado para o jogo, não tinha poderes para lhe pedir que desse o sinal sonoro para chamar as equipas, bastava-lhe, civicamente, não satisfazer esse pedido, como efetivamente não satisfez, bem como acatar a subsequente ordem de expulsão, reagindo posteriormente a esta da forma e nas instâncias adequadas, em vez de recorrer à violência, agredindo física e verbalmente o assistente, numa atitude desproporcionada e altamente reprovável.
Importa ter presente que a verificação da circunstância da provocação a que se refere a al. b) do n.º 2 do art. 72º do Código Penal exige um estado emotivo ininterrupto de excitação, cólera ou indignação (estado esténico), com capacidade para diminuir a culpa do provocado, produzido por um ato injusto, bem como ainda que haja proporcionalidade entre este e o crime praticado.
A provocação compreende dois elementos: um estado emotivo de ira ou de cólera e um facto injusto do provocador que determina aquele estado. Mas, é ainda necessário que haja uma certa proporcionalidade entre o "facto injusto" e a reação do agente e que o estado emotivo de ira ou de cólera tenha alterado as condições normais de determinação do mesmo. O "facto injusto" deve ser apto a produzir uma exaltação no homem médio suposto pela ordem jurídica. Não basta que a produza num homem especialmente excitável, pois então funcionaria como atenuante o carácter do pretenso provocado e não o facto injusto que determinou a exaltação[22].

Ora, no caso vertente, ainda que se pudesse considerar verificada uma provocação e que esta fosse injusta ou imerecida, sempre faltaria o apontado estado emotivo e, particularmente, o requisito da proporcionalidade, atenta a diferente natureza e gravidade dos dois comportamentos em confronto e, consequentemente, a desproporção entre o “facto injusto” praticado pelo assistente, ao expulsar o arguido por ter desobedecido à ordem de chamar as equipas, e a reação deste, ao ofendê-lo física e verbalmente da forma que o fez.
Além de que sempre a provocação injusta estaria dependente da verificação do pressuposto material da atenuação especial da pena ou seja, de uma acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena.
Com efeito, a atenuação especial da pena exige que essa diminuição seja de tal modo acentuada que deixe transparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo normal de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respetiva, a ponto de se justificar a substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa.

Como refere Figueiredo Dias[23], não deve esquecer-se que esta solução de consagrar legislativamente uma “cláusula geral de atenuação especial” como válvula de segurança, dificilmente se pode ter como apropriada para um Código como o nosso, “moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas”, sendo, pois, uma solução antiquada, devendo ser reservada para situações relativamente extraordinárias ou mesmo excecionais, por estarem em causa valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade[24].

O que, manifestamente não é o caso, pelas razões expostas.

Invoca também o recorrente que, contrariamente ao que foi considerado pelo tribunal a quo, demonstrou ter interiorizado a censurabilidade do seu comportamento, pelo que tal circunstância deveria ter sido valorada a seu favor para aferição das exigências de prevenção especial nos termos do n.º 1 do art. 72º do Código Penal, com a consequente atenuação especial da pena (conclusões 52ª a 59ª).

Em primeiro lugar, não vislumbramos a contradição apontada pelo recorrente entre, por um lado, a afirmação feita pela Mmª. Juíza aquando da determinação da pena, ao ponderar que «o arguido tentou, em juízo, dar aos factos uma versão não consentânea com a realidade dos mesmos demonstrando, por isso, que em rigor, ainda não interiorizou a censurabilidade do seu comportamento”, e, por outro lado, ao referir na motivação da decisão de facto, que «(…) o arguido e o assistente referiram, de forma unânime, que este último, enquanto árbitro, referiu àquele, enquanto cronometrista, para dar o sinal sonoro para chamar as equipas de hóquei, o que o arguido não fez e que após o assistente voltou a referir ao arguido para dar o sinal sonoro para chamar as equipas de hóquei para o campo, o que o arguido voltou a não fazer e que nesta ocasião o assistente após ter referido ao arguido, segundo este, se ali estava para complicar, e segundo o assistente se ali estava para ajudar, deu ordem de expulsão ao arguido (…)» e que o arguido reconheceu a existência de agressões entre ambos, tendo o mesmo ainda procurado explicar relativamente ao gesto do assistente em esticar a mão na sua direção, que à data dos factos “entendeu como uma agressão, mas que atualmente acredita que não foi uma agressão”, sendo certo que tal facto demonstra por parte do arguido a capacidade de reconhecer, e até mesmo admitir que poderá ter interpretado de forma errada a conduta do assistente, conduta essa que despoletou as posteriores agressões mútuas, demonstrando, consequentemente, a interiorização da censurabilidade do seu comportamento.

Tais afirmações em nada se contradizem, porquanto, como claramente resulta da motivação da decisão de facto, o arguido não admitiu o essencial dos factos em apreço nos autos e dados como provados, ou seja, ter chamado ao assistente "filho da puta" e "palhaço" e ter-lhe desferido socos na face, um murro na cabeça e um pontapé no joelho.

Com efeito, como consta da motivação da decisão de facto, a unanimidade entre as declarações do arguido e do assistente é restrita aos pedidos deste para aquele chamar as equipas, à recusa do arguido em fazê-lo e à subsequente expulsão do mesmo, sendo que, em relação às agressões, apenas admitiu que, na sequência de o assistente lhe ter dado uma sapatada no ombro, houve "arrufos" entre eles, "com os braços, um e outro, umas sapatadas com a mãe aberta", afirmando não se recordar se desferiu murros contra o assistente e referindo "eu também, acho, levei dois ou três murros na cara".

Versão esta que, efetivamente, não é consentânea com a realidade dos factos, donde se pode inferir que o arguido não demonstrou ter interiorizado a censurabilidade do seu comportamento, posto que tentou-se justificar com uma pretensa agressão por parte do assistente e com um envolvimento recíproco, em dessintonia com o que foi dado como provado.

Por fim, invoca o recorrente - conclusão 60ª - a inexistência de antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal, o que, em seu entender, conjuntamente com as circunstâncias de interiorização da censurabilidade da sua conduta e existência de uma atitude provocatória por parte do assistente, deveria ter conduzido à atenuação especial da pena.

Como, mais uma vez, é bom de ver, também esta circunstância, à semelhança do que sucederia com a interiorização da censurabilidade da conduta, caso estivesse demonstrada, é insuscetível de preencher o apontado pressuposto material da atenuação especial da pena,
Com efeito, de modo algum estamos perante um caso extraordinário ou excecional de redução do grau da ilicitude do facto, da intensidade da culpa ou da necessidade da pena, pelo que a imagem global do facto não é especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respetiva, não se justificando, pois, proceder à atenuação especial da pena, correspondendo, aliás, a ausência de antecedentes criminais ao que é esperado do cidadão comum.
Aliás, esta circunstância releva na determinação da medida concreta da pena pela via do bom comportamento anterior, conforme previsto na al. e) do n.º 2 do art. 71º do Código Penal, conforme foi ponderado na sentença recorrida.

Improcede, pois, a pretensão do recorrente em ver atenuada especialmente a pena.
Como referimos, não assumindo a expressão "palhaço" dignidade penal, com a consequente restrição do comportamento penalmente relevante do arguido ao facto de ter chamado ao assistente "filho da puta", cumpre agora proceder à redução da pena, fixada pelo tribunal a quo em 140 dias de multa.
Mantendo-se a moldura abstrata do crime de injúria agravada no mínimo de 15 dias e no máximo de 180 dias (arts. 181º, n.º 1, 184º e 132º, n.º 2, al. l), do Código Penal), ponderando os demais critérios corretamente elencados na sentença recorrida, concretamente a atuação do arguido com dolo direto, as exigências de prevenção geral (situadas acima da mediania, atenta a prática frequente deste tipo legal de crime), a ausência de particulares exigências de prevenção especial (dada a ausência de antecedentes criminais e a inserção familiar e profissional) e a falta de interiorização da censurabilidade do seu comportamento, afigura-se-nos adequado a pena de 100 dias de multa, à taxa diária fixada pela primeira instância (€ 6,00).
Em suma, o recurso procede parcialmente.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em:

A) - Proceder à correção do erro de escrita detetado na sentença recorrida, determinando que no ponto 4. do dispositivo, onde consta "(…) a pagar ao demandante civil, B. M., (…)", passe a constar "(…) a pagar ao demandante civil, B. A., (…)".
B) - Na parte relativa ao pedido de indemnização civil, rejeitar, por a decisão ser irrecorrível, o recurso interposto pelo demandado, C. C..
C) - Na parte criminal, julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido, C. C., reduzindo para 100 (cem) dias de multa, a pena aplicada pelo crime de injúria agravada, confirmando, quanto ao mais, a sentença recorrida.

Pela rejeição do recurso na parte cível, condena-se o recorrente na importância correspondente a três UC (art. 420º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
Na parte criminal, sem tributação em custas (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a contrario).
*
*
(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
*
Guimarães, 09 de novembro de 2020

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
(assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página)



1. - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo a correção de gralhas evidentes, a ortografia e a formatação, que são da responsabilidade do relator.
2. - Vd. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª edição, Verbo, pág. 335, o acórdão do STJ de 28-04-1999, in Coletânea de Jurisprudência - Acórdãos do STJ, ano de 1999, tomo II, pág. 196, e o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
3. - Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 18-01-2018 (processo n.º 563/14.3TABRG.S1), de 17-03-2016 (processo n.º 849/12.1JACBR.C1.S1), de 20-01-2010 (processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1), de 14-03-2007 (processo n.º 07P21) e de 23-05-2007 (processo n.º 07P1498) e do TRP de 11-07-2001 (processo n.º 110407), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
4. - Proferido no processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
5. - Cf. o acórdão do TRC de 24-02-2010 (proc. 138/06.0GBSTR.C1), disponível em http://www.dgsi.pt.
6. - Cf., nomeadamente, o acórdão de 29-10-2015 (processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1), disponível em http://www.dgsi.pt.
7. - Conforme, aliás, já foi entendido no acórdão desta Relação de 11-07-2017 (processo n.º 376/11.4TACHV.G2), disponível em http://www.dgsi.pt.
8. - Cf. o acórdão do TRP de 20-12-2011 (processo n.º 51/08.7GAMCD.P1), disponível em http://www.dgsi.pt.
9. - Cf. os acórdãos do STJ de 18-01-2018 (processo n.º 563/14.3TABRG.S1) e de 25-03-2010 (processo n.º 427/08.OTBSTB.E1.S1), disponíveis em http://www.dgsi.pt.
10. - Cf. os acórdãos do TRC de 15-12-2016 (processo n.º 55/15.3GCMBR.C1), do TRE de 30-06-2015 (processo n.º 1340/14.7TAPTM.E1), do TRG de 25-02-2008 (processo 557/07-1) e do TRP de 20-12-2011 (processo n.º 51/08.7GAMCD.P1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
11. - Proferido no processo n.º 0745811, disponível em http://www.dgsi.pt.
12. - Proferido no processo n.º 862/08.3TAPBL.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
13. - Proferido no processo n.º 154/15.1GAPCR.G1, disponível em http://www.dgsi.pt.
14. - Cf. ainda o acórdão do TRG de 23-02-2015, proferido no processo n.º 218/12.3TAPRG.G1, disponível em http://www.dgsi.pt.
15. - Proferido no processo n.º 515/17.1PHSNT.L1 5ª Secção, in http://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?nid= 5423&codarea=57&.
16. - Proferido no processo n.º 719/14.9TAMAI.P1, disponível em http://www.dgsi.pt.
17. - Proferido no processo n.º 564/07.8PAVCD.P1, disponível em http://www.dgsi.pt.
18. - Proferido no processo n.º 0745811, disponível em http://www.dgsi.pt.
19. - Proferido no processo n.º 1500/10.0GBGMR.G1,
20. - Editado pela Sociedade da Língua Portuguesa, Publicações Alfa, S.A., Lisboa 1991, para o Círculo de Leitores, sob a coordenação de José Pedro Machado, volume III, pág. 518.
21. - In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, págs. 192, 302 e 306.
22. - Vd. Acórdãos do TRP de 26-05-1993, de 14-06-1995 e de 17-3-1999, disponíveis em www.dgsi.pt.
23. - In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 312.
24. - Vd. Também o acórdão do STJ de 08-03-2007, disponível em www.dgsi.pt.