Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
582/18.0T9GMR-A.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
ARTº 23º DO CPP
CONCEITO DE «TRIBUNAL»
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: CONFLITO NEGATIVO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
Nos casos em que o julgamento não pode ser feito num Juízo Local, por nele exercer funções um juiz de direito que é ofendido no processo (art. 23 do CPP), a competência transfere-se para o Juízo Local com sede mais próxima, da mesma ou de outra Comarca.
Decisão Texto Integral:
I - No Proc. 582/18.0T9GMR, para ser julgado pelo Tribunal Singular, o arguido A. S. foi acusado como autor de:

- 1 crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo art. 365 nº 1 do Cod. Penal; e
- 1 crime de difamação p. e p. pelos arts. 180 nº 1 183 nºs 1 als. a) e b) e 184, todos do Cod. Penal.

Segundo as regras gerais que fixam a competência territorial (art. 19 do CPP), seria competente para o julgamento o Juízo Local Criminal de Guimarães.

Porém, como o ofendido A. J. exerce funções de juiz de direito no referido Juízo Local Criminal de Guimarães, o Ministério Público, interpretando a norma do art. 23 do CPP (competência em processo respeitante a magistrado), fez distribuir o processo no Juízo Local Criminal de Viana do Castelo-J1.

II – A sra. juíza a quem o processo foi distribuído em Viana do Castelo, declarou a incompetência do seu tribunal e a competência do Juízo Local Criminal de Fafe, por considerar ser este o tribunal da mesma hierarquia ou espécie com sede mais próxima daquele em que o magistrado ofendido exerce funções.
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III - Remetido o processo a Fafe, também a sra. juíza do Juízo Local Criminal de Fafe declarou este incompetente e competente o Juízo Local Criminal de Viana do Castelo, por considerar que “atenta a atual organização judiciária, deverá entender-se que nos casos subsumíveis ao art. 23 do CPP, a Instância Local competente para a apreciação dos autos deverá ser a Instância Local mais próxima, mas fora da Comarca onde o magistrado ofendido exerce funções. Na verdade, com o novo mapa judiciário foi estabelecida uma nova organização judicial onde a unidade de gestão é a Comarca, o que implica contactos frequentes entre os diversos juízes dessa comarca, o que poderá ser entendido em abstrato como podendo indesejavelmente afetar a transparência, isenção e imparcialidade (…) no julgamento por um dos pares da comarca de uma causa onde um seu colega da mesma comarca seja ofendido”.
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Suscitado o conflito, foi observado o disposto no art. 36 nºs 1 do CPP.

A sra. procuradora-geral adjunta junto deste tribunal pronunciou-se, “no sentido de ser atribuída a competência ai Juízo Local Criminal de Fafe”.

Cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

Está em causa a interpretação do art. 23 do CPP, que dispõe:

Se num processo for ofendido, pessoa com a faculdade de se constituir assistente ou parte civil um magistrado, e para o processo devesse ter competência, por força das disposições anteriores, o tribunal onde o magistrado exerce funções, é competente o tribunal da mesma hierarquia ou espécie com sede mais próxima, salvo tratando-se do Supremo Tribunal de Justiça.

A solução está em determinar o que é um «tribunal», para o efeito desta norma.

Vejamos:

Tradicionalmente, a divisão territorial dos tribunais de 1ª instância era feita por «comarcas». A título de exemplo, dispunha o art. 12 nº1 da Lei 82/77 de 6-12 (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais) que “os tribunais judiciais de 1ª instância são, em regra, os de comarca”. A mesma redação teve, posteriormente, o art. 62 nº 1 da Lei 3/99 de 13-1.

A regra era em cada comarca haver um tribunal de comarca (art. 44 da mencionada Lei 82/77), entendido este como o órgão judicial titulado por um juiz.

Aquando da publicação do atual Código de Processo Penal (Dec.-Lei 78/87 de 17-2), estava em vigor a Lei 82/77 de 6-12, com o enquadramento referido.

A norma do art. 23 do CPP, que, no essencial, se mantém inalterada desde o início, foi criada tendo em vista esta realidade.

Pois bem, com a Reforma Judiciária operada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) alterou-se a natureza da circunscrição judicial «comarca». Alterou-se a regra de a cada comarca corresponder um «tribunal», entendido este como o órgão judicial titulado por um juiz.

Cada comarca passou a abranger uma multiplicidade de “tribunais”, os quais primeiro foram designados «instâncias» e depois «juízos» (locais e centrais).

Atualmente, cada Juízo, seja Local ou Central, é referenciado pela localidade onde estão as suas instalações. É nessa localidade que tem a sua «sede». É um «tribunal», no sentido em que este termo é usado na norma do art. 23 do CPP.

Essencial, por questões de credibilidade e isenção da administração da Justiça, é garantir que nenhum processo seja decidido em Juízo em que exerça funções juiz ou magistrado do Ministério Público que tenha a faculdade de se constituir assistente ou parte civil.

É apenas esse o âmbito de proteção da norma do art. 23 do CPP.

No caso destes autos, segundo as regras gerais que fixam a competência territorial (art. 19 do CPP), o julgamento deveria ser feito por um dos juízes do Juízo Local Criminal de Guimarães.

Porém, por força da já transcrita norma do art. 23 do CPP, como o ofendido A. J. é aí juiz, o julgamento não poderá ocorrer no Juízo Local Criminal de Guimarães, sendo competente o Juízo Local Criminal com sede mais próxima, da mesma ou de outra comarca.

Isto é, o Juízo Local Criminal de Fafe.

Deixo só mais uma nota:

A senhora juíza de Fafe, fundamentou a sua decisão de a competência ser dum juízo situado “fora da Comarca onde o magistrado ofendido exerce funções”, no facto da Comarca ser agora a unidade de gestão da nova organização judicial, “o que implica contactos frequentes entre os diversos juízes dessa comarca, o que poderá ser entendido em abstrato como podendo indesejavelmente afetar a transparência, isenção e imparcialidade no julgamento por um dos pares…”.

Embora este não seja o local adequado para uma resenha histórica, referirei que em 1987, quando o Código de Processo Penal entrou em vigor, fora das grandes cidades, os coletivos eram presididos pelos então designados «juízes de círculo» (art. 48 da Lei 82/77). Nas comarcas de menor dimensão, intervinham como adjuntos o juiz da própria comarca e o juiz da comarca mais próxima (art. 50 nº 2 da Lei 82/77). Essa realidade, inevitavelmente, mais do que “contactos frequentes”, implicava que juízes de comarcas vizinhas interviessem e colaborassem nos mesmos julgamentos. Isso não impediu que o legislador, no seu Alto critério, tivesse criado a norma do art. 23 do CPP.

A razão está, pois, do lado da juíza do Juízo Local Criminal de Viana do Castelo-J1.

DECISÃO

Decido o presente conflito negativo atribuindo a competência para o julgamento ao Juízo Local Criminal de Fafe.
Não é devida tributação.
Observe-se o disposto no art. 36 nº 3 do CPP.
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3-7-2019

Fernando Monterroso