Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3144/18.9T8VNF-B.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
ONERAÇÃO DE BENS – HIPOTECA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Considera-se culposa a insolvência dos devedores, por terem disposto do seu património a favor de um terceiro – onerando o imóvel apreendido, com a constituição de hipoteca unilateral sobre o mesmo -, dois anos antes de ter sido requerida a sua insolvência.
Decisão Texto Integral:
Por sentença proferida nos autos apensos, foi declarada a insolvência de J. V. e M. F., e em sede de assembleia de credores, de apreciação do relatório declarado aberto, o respetivo incidente de qualificação de insolvência, com caráter pleno.

O Sr. administrador de insolvência emitiu e juntou aos autos o seu parecer, em obediência ao disposto no artigo 188º nº 2 do CIRE, pronunciando-se pela qualificação da insolvência como culposa.

O Ministério Público, nos termos do artigo 188º nº 3 do CIRE pronunciou-se também no sentido da qualificação da insolvência como culposa, devendo ser afetados pela qualificação os próprios insolventes.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 188, nº 6 do CIRE, tendo os insolventes sido notificados para se oporem, querendo.
Os requeridos vieram então deduzir oposição a fls 28 e ss dos autos.
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Tramitados regularmente os autos foi proferida a seguinte decisão:

“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decido:
a) Qualificar como fortuita a insolvência de J. V. e M. F.…”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela veio o Mº Pº interpor o presente recurso de Apelação, apresentando Alegações e formulando as seguintes Conclusões:

“1. O artº 186°, nº 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, legitima a aplicação às pessoas singulares do estatuído nos números 2 e 3 do mesmo normativo, desde que a isso não se oponha a diversidade das situações;
2. O facto de ter-se considerado (e bem) que M. L. não tinha relações especiais com os devedores, tal como exigido pelo art° 48°, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e, como tal, não ser possível considerar que o seu crédito era subordinado para efeitos de graduação, não obnubila o dever do Tribunal em dali inferir que ainda assim houve uma disposição de um bem em evidente seu favor;
3. A constituição de uma hipoteca sobre o imóvel dos devedores em favor daquela credora, que já foi casada com um irmão do insolvente marido, transformou um crédito comum (por se tratar de uma quantia atinente a mútuos) sobre terceiro (sociedade "X - Urbanizações e Obras Públicas, Lda.”) num crédito garantido sobre a insolvência, facto que legitimou a sua graduação em primeiro lugar e, como tal, irá ser satisfeito de acordo com o determinado no art° 174°, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, em evidente prejuízo dos demais credores;
4. Ademais, e porque a dívida subjacente à constituição da aludida hipoteca não era dos devedores mas sim da sociedade "X - Urbanizações e Obras Públicas, Lda", da qual foram sócios o insolvente marido e o seu irmão, casado que foi com a credora M. L., a identificada garantia serviu, também, para beneficiar injustificadamente tal pessoa colectiva;
5. Para chegar a este juízo é absolutamente irrelevante que inexistam relações consideradas especiais entre os devedores e a credora pois que em causa esteve, está e sempre estará o óbvio favorecimento de terceiros [uma credora (M. L.) e uma entidade devedora (sociedade "X - Urbanizações e Obras Públicas, Lda.”] em detrimento do património pessoal, que nunca seria responsável legal pelo pagamento daquela dívida;
6. É também impertinente colocar a tónica na não impugnação do crédito de M. L., pois não se questiona a sua veracidade, apenas a validade do meio utilizado para o garantir;
7. Porque tal factualidade se mostra perfectibilizada, a insolvência só poderia deixar de ser qualificada como culposa se os apelados demonstrassem (o que não fizeram) que não outorgaram qualquer escritura no âmbito da qual constituíram a favor de M. L. (até essa data credora de terceiro e não dos próprios) uma hipoteca unilateral sobre o referido imóvel para garantir a quantia de 310 372,47 €;
8. Não o tendo feito, a actuação do Tribunal a quo traduz uma inequívoca violação de lei substantiva, por erro de julgamento, porquanto acarinha uma interpretação incorrecta de uma norma jurídica [artº 186°, nº 2, als d) e f), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que assim foi violada] que acaba por afectar o respectivo conteúdo, modificando-o para o sentido precisamente oposto e motivando o denominado errar in judicando que se invoca para conhecimento pelo Tribunal ad quem.

Termos em que se conclui como supra, proferindo-se douto acórdão que revogue a sentença averiguada e:
1. Qualifique como culposa a insolvência de J. V. e M. F., nos termos do arf 186°, nº 1 e nº 2, als. d) e f), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
2. Considere afectados pela qualificação J. V. e M. F. [arfo 189°, nº 2, al. a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas];
3. Fixe em 06 (seis) anos o período em que aqueles ficarão inibidos para administrar patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa [artº 189°, nº 2, als. b) e c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas];
4. Determine a perda de quaisquer créditos que detenham sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, a existirem, e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos [artº 189°, nº 2, al. d), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas];
5. Condene ambos a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património [artº 189°, nº 2, al. e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas];
6. Ordene o registo da inibição para o exercício do comércio na Conservatória do Registo Civil [arfs. 189°, nº 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e 69°, nº 1, al. I), do Código de Registo Civil]…”
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Os recorridos vieram apresentar Resposta ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é apenas a de saber se a Insolvência dos devedores deverá ser qualificada como culposa (e dessa qualificação retirar as devidas consequências).
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Foram dados como provados na 1ª instância os seguintes factos:

“1- Nos autos principais foi proferida douta sentença, datada de 10 de maio de 2018 e devidamente transitada em julgado, a declarar a insolvência de J. V. e M. F., casados entre si.
2- Os insolventes residem na Rua …, Braga.
3- Contra o insolvente marido (entre outros) correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Execução de Guimarães, Juiz 2, a Execução nº 4244/15.2 T8BRG, em que foi exequente o Banco ..., SA, no âmbito da qual foi penhorado o prédio urbano sito na Rua … Braga, inscrito na matriz predial rústica sob o artº … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº …/….
4- No dia 16-12-2015 os insolventes outorgaram uma escritura no âmbito da qual constituíram a favor de M. L. uma hipoteca unilateral sobre o referido imóvel para garantir a quantia de € 310.372,47 respeitante a alegados empréstimos por aquela efetuados à sociedade “X – Urbanizações e Obras Públicas, Ldª” e não aos próprios.
5- Esta hipoteca foi constituída cinco dias antes de os executados deduzirem oposição na execução referida no artigo 3º.
6- A sociedade “X – Urbanizações e Obras Públicas, Ldª”, que foi declarada insolvente no dia 03 de Agosto de 2017, tinha como sócios (entre outros) o insolvente e o seu irmão A. C., este também gerente.
7- A. C. foi casado com M. L. até 10 de Novembro de 2000.
8- Na sentença proferida no apenso de reclamação de créditos (da insolvência) foi qualificado como garantido e graduado em primeiro lugar, juntamente com outro crédito garantido por hipoteca, pelo que o produto da venda do aludido imóvel, que se encontra apreendido nos autos, será destinado ao pagamento imediato da quantia de € 310.372,47, reclamada por M. L., e desse outro crédito, e só no caso da venda venha a resultar um valor superior, é que serão ressarcidos os demais credores.
9- A insolvência de J. V. e M. F. foi requerida a 08 de maio de 2018.
10- O insolvente marido (J. V.) é sócio da sociedade “X – Urbanizações e Obras Públicas, Lda.” (doravante designada por “X”) pelo menos desde o ano de 1988, tendo mantido essa qualidade até à insolvência e subsequente liquidação da sociedade, no ano de 2017.
11- Os insolventes exerceram a sua atividade profissional – durante a maior parte da sua vida ativa – ao serviço da X, sendo que o Insolvente marido labutava no departamento de escrituração da empresa, mas não era contabilista.
12- A empresa e o trabalho que esta lhes garantia representava a sua única fonte de rendimentos e de sustento familiar, pois que os salários que auferiam em virtude do seu labor eram o seu singular “ganha-pão”, constituindo a pessoa coletiva, assim, um elemento vital e impreterível na vida do casal.
13- Por conta dos financiamentos realizados à X por entidades bancárias – os quais, na sua totalidade, ascenderam a largas dezenas de milhões de euros – os Bancos exigiram a prestação de avais de todos os sócios – os quais foram concedidos – e, em alguns casos, os das respetivas esposas.
14- No caso de incumprimento pela X de reembolso dos montantes mutuados, sócios e esposas responderiam pelo cumprimento dessa obrigação, até às forças do seu respetivo património.
15- Do passivo dos insolventes nestes autos (superior a seis milhões de euros), apenas uma dívida é própria do casal – a relativa ao seu crédito habitação – sendo que, o restante passivo, na sua grande maioria, respeita a dívidas da sociedade X à Banca, onde se inclui a dívida ao Banco ..., S.A.
16- No ano de 2009 a X veio a ser declarada insolvente, no âmbito do processo n.º 214/09.8TBPVL que correu termos pela seção única do Tribunal Judicial da Comarca da Póvoa de Lanhoso.
17- No âmbito da insolvência, foram reconhecidos definitivamente, entre outros, os créditos de várias entidades bancárias e da credora M. L. (os quais não foram impugnados) tendo sido reconhecido à última um crédito de natureza comum sobre a X (integrante da lista de maiores créditos da insolvência) no montante de €1.034.574,90.
18- Nesse seguimento e no mesmo processo falimentar, os credores da X vieram a aprovar-lhe um plano de insolvência, o qual previa um perdão de juros de mora e de 50% do capital comum e o pagamento do montante remanescente do capital em 20 semestralidades.
19- Foi sob os cânones desse plano que a X começou a laborar desde finais de 2009.
20- Em 2015 e no decurso da maior crise económica que alguma vez assolou, em Portugal, o setor da construção, a X laborava com dificuldades, lidando com uma enorme contração de mercado e consequente decréscimo dos seus lucros enquanto que, simultaneamente, estava onerada e procurava cumprir com a obrigação de pagamento dos créditos da insolvência, compreendidos no seu plano de recuperação.
21- Os insolventes acreditavam que a empresa seria recuperável, pelo que o ato de constituição de hipoteca mais não foi do que uma forma de afiançar o cumprimento da obrigação pela sociedade X, circunstância que julgavam que iria acontecer.
22- A hipoteca foi constituída com o fito de garantir e salvaguardar a manutenção da sociedade”.

E foram dados como não provados os seguintes:

“A- A esposa, à altura, do sócio da X, A. C., emprestou à sociedade importâncias pecuniárias que, no seu todo, ascenderam a montante superior a um milhão de euros.
B- Depois disso, e há mais de vinte anos atrás, o sócio A. C. e a esposa M. L. separaram-se em maus termos, circunstância que gerou, desde esse momento, uma relação de inimizade entre ambos – de conhecimento público no meio em que viviam - e que, ainda hoje se mantém e se estende à família do primeiro.
C- Tal conjuntura determinou que a X tenha logrado cumprir apenas (do plano de recuperação) com os pagamentos de prestações aos Bancos mas não aos restantes credores comuns, nada tendo pago, portanto, à credora M. L. por conta do seu crédito que, nos termos do plano e perdão previsto, se cifrava no montante de € 517.287,45 (quinhentos e dezassete mil duzentos e oitenta e sete euros e quarenta cinco cêntimos).
D- É neste contexto de crise e permanente ameaça de queda total e irremediável da X que, em finais do ano de 2015, a credora M. L., tendo tomado conhecimento do pagamento a bancos e outros credores de prestações decorrentes do plano de insolvência, exigiu o pagamento das prestações vencidas por conta do seu crédito sobre a insolvência, prestações essas que perfaziam, naquele ano, o valor global de € 310.372,47 (trezentos e dez mil, trezentos e setenta e dois euros e quarenta e sete cêntimos) – equivalente a 12 prestações vencidas e não pagas - sob pena de dar sem efeito o plano de insolvência e o respetivo perdão de capital nele previsto.
E- A concretização desse desígnio significava que a credora ficaria imediatamente intitulada à cobrança (com título executivo) do montante total do crédito que lhe foi reconhecido na insolvência (€1.034.574,90)”.
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A questão da qualificação da insolvência dos devedores (como culposa):

Começamos por dizer que subscrevemos na íntegra as considerações gerais tecidas na decisão recorrida sobre a qualificação da insolvência (culposa ou furtuita).
Efetivamente, a insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita (artigos 185.º e 186.º do CIRE), decorrendo do artº 185º que será fortuita a insolvência que não seja passível de ser qualificada como culposa, uma vez que o regime legal apenas define expressamente o âmbito desta última. Ou seja, a delimitação do conceito de insolvência fortuita obtém-se por exclusão de partes.
Por sua vez, nos termos do artigo 186º nº 1 do CIRE “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
Nos termos do preceito legal transcrito, a insolvência culposa implica sempre uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, determinados estes nos termos do artigo 6° do CIRE.
Uma vez que o CIRE nada refere quanto às noções de dolo ou culpa grave, deverá atender-se, na densificação desses conceitos, às regras gerais de direito sobre esta matéria (como defendem Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, pág. 14).
Além disso, como decorre também do nº 1 do artigo 186º do CIRE, essa atuação dolosa ou com culpa grave deverá ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.
Refira-se também que todo o facto atendível para a qualificação da insolvência como culposa terá de ter ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo da insolvência, atento o limite temporal de três anos previsto naquele normativo.
Para além da referida noção geral, a lei prevê no nº2 do citado artº 186º, determinadas situações em que se presume sempre culposa a insolvência do devedor.
Prevê efectivamente o nº 2 do artigo 186º do CIRE, entre outras situações, as seguintes (directamente relacionadas com o caso em análise): “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular (mas que lhe é aplicável, com as devidas adaptações, onde a isso não se opuser a diversidade das situações, por força do nº 4 do mesmo preceito), quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham (…) disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto”.
Assim, o nº 2 deste artigo 186º considera a insolvência sempre culposa se ocorrer qualquer dos factos enumerados nas suas alíneas, quando praticados pelos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores à declaração da insolvência.
Da letra da lei resulta portanto que o legislador estabeleceu nestes casos uma presunção iuris et de iure, inilidível portanto, atento o que vem disposto no art. 350º, n.º 2, in fine, do Código Civil, conducentes à qualificação da insolvência sempre como culposa.
Significa isso que, verificada que seja qualquer uma das situações enumeradas nas citadas alíneas, presumir-se-á a culpa do devedor (ou dos seus administradores). A única forma do devedor se eximir da qualificação da insolvência como culposa é afastando a existência do próprio facto, porque a sua verificação determina, inelutavelmente, a qualificação da insolvência como culposa, sem possibilidade de prova em contrário (cfr. na doutrina, Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, pág. 14; Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, pág. 175, 2.ª edição e, do mesmo autor, “Direito da Insolvência”, página 270; Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Vol. II, pág. 963 e ROA, Ano 66, Set. 2006, pg. 692; e Maria do Rosário Epifânio “Manual de Direito da Insolvência”, pág. 132. Na jurisprudência, entre outros, os Acs da RC de 14/11/06; da RP de 22/05/07, de 18/06/07, de 13/09/07 e de 27/11/07; da RL de 22/01/08 e desta RG, de 20/09/07 e de 5.6.2014, todos disponíveis in www. dgsi.pt).

Como se refere no último dos acórdãos citados, desta Relação de Guimarães, “Há, porém, certos comportamentos ilícitos dos administradores das pessoas colectivas que o legislador tipificou como insolvência culposa, prescindindo do juízo sobre a culpa, os quais vêm taxativamente enumeradas no nº. 2. Trata-se de comportamentos que afectam negativamente e de forma muito significativa o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar o ressarcimento dos credores, presumindo-se, por isso, juris et de jure, que a insolvência é culposa.”
Muito acertadamente, vem também referido no Acórdão desta mesma Relação, de 1/10/2013 (também disponível em www.dgsi.pt), que “O preenchimento de qualquer das situações ou factos-índice previstos no n.º 2 deste artigo determina a qualificação da insolvência como culposa, pois que da ocorrência do(s) mesmo(s) estipula a lei uma presunção inilidível, jure et jure, de culpa, o que dimana do advérbio «sempre». Por isso que seja mais correcto afirmar-se, em nosso entender, que nas situações a que se faz referência no art.º 186º, nº2, do CIRE, mais do que uma presunção legal, se verifica o que Batista Machado define (em “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, págs. 108 e 109) como “ficções legais”, pois que o que o legislador extrai a partir do facto base não é um outro facto, mas antes uma conclusão jurídica, numa remissão implícita para a situação definida no nº 1 do art.º 186º do CIRE. E por isso que, à semelhança das presunções juris et de jure, não admita prova em contrário, sendo que dispensa a alegação – e consequentemente a prova - de qualquer outro facto, ficcionando desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa…”.

Consideramos ser esta a definição mais fiel da situação prevista nas várias alíneas do nº 2 do artº 186º do CIRE: verificada qualquer uma das situações ali tipificadas, deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa, já que estes factos-índice, mais do que simples presunções inilidíveis, são situações típicas de insolvência culposa. Ou seja, enquanto naquelas situações o legislador apenas faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos a ilação de que um outro facto - fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível - ocorreu, nestas, desde logo se estabelece uma valoração normativa da conduta que esses factos integram. Assim, provada qualquer uma das situações enunciadas nas várias alíneas do nº2, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do devedor ou do seu administrador, sem necessidade de demonstração de qualquer outro facto demonstrativo do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11. 2008, DR, 2ª Série, n.º 9, de 14.01.2009).
Tem-se justificado esta tomada de posição do legislador com o facto de a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e a insolvência ou o seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, se revelar muitas vezes extraordinariamente difícil.
Por isso o legislador elencou essas situações - factos e situações consideradas em si mesmas objectivamente graves -, para facilitar essa qualificação.
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Fazendo agora aplicação dos preceitos e princípios enunciados ao caso dos autos, não temos dúvidas em afirmar, perante a matéria de facto provada - que o MºPº reforça nas suas conclusões de recurso -, que se mostram verificadas as circunstâncias previstas nas alíneas d) e f) do nº2 do artigo 186º do CIRE, para a qualificação da insolvência dos devedores como culposa.

Ou seja, ficou provado nos autos que os insolventes dispuseram de um bem que lhes pertencia – o imóvel de que eram proprietários -, em proveito de um terceiro - (alínea d) -, tendo feito uso do seu património em sentido contrário ao seu interesse e em proveito pessoal daquele mesmo terceiro - (alínea f).
É de referir que, como tem sido considerado, quer na doutrina, quer na jurisprudência, a expressão utilizada na al. d) do nº 2 do artº 186º do CIRE – disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiro - não se confunde, nem tem equivalência com a transferência do direito de propriedade dos bens do devedor. A transferência do direito de propriedade representa apenas uma forma pela qual o administrador pode dispor daqueles bens; mas há outras formas de actuação que implicam uma conduta equivalente a dispor dos bens com um alcance diferente. Pode dizer-se que o administrador dispõe também dos bens do devedor quando, designadamente, sobre eles constitui outros direitos menores (comodato, usufruto, arrendamento, etc.) ou quando os limita com algum ónus ou garantia que sobre eles passam a incidir (hipoteca, penhor, etc.), como sucedeu no caso dos autos.
O ato é censurado na medida em que se retira do património do devedor (total ou parcialmente) um bem que devia ali ser mantido para pagamento dos credores em geral, segundo as regras consignadas no CIRE, e se beneficia com esse ato um determinado credor ou um terceiro em prejuízo dos demais.
Ou seja, sendo o processo de insolvência um processo de execução universal, todos os credores são chamados a reclamar os seus créditos, e todos se apresentam à insolvência para serem pagos, na medida do possível, pelos bens do devedor. Não faria por isso sentido que fosse o devedor a dispor do seu património, defraudando as expectativas daqueles credores – que podem muito bem ter concedido crédito ao devedor em face do seu património, com o qual contavam como garantia do seu crédito –, arrecadando para si o produto do mesmo, ou pagando, a seu bel prazer, a quem entendesse, beneficiando uns credores em detrimento de outros.
Ora, no caso dos autos, foi precisamente o que aconteceu: os insolventes dispuseram do seu património, onerando-o, a favor de um terceiro, que beneficiaram, sem qualquer contrapartida, constituindo a favor do mesmo uma hipoteca voluntária sobre a sua casa de habitação, sendo certo que a dívida que a hipoteca se destinava a garantir não era sua mas de uma empresa - a X -, onde os devedores também tinham interesses.
Cronologicamente, os dados existentes nos autos com interesse para a situação em apreço são os seguintes: No ano de 2009 a X (sociedade da qual eram sócios gerentes o insolvente marido e um irmão) veio a ser declarada insolvente; Foi ali reconhecido o crédito (comum) da credora M. L. (ex-mulher do irmão do insolvente marido), no montante de € 1.034.574,90; Os credores da X vieram a aprovar-lhe um plano de insolvência; A X começou a laborar mediante esse plano desde finais de 2009; Em 2015 a X laborava com dificuldades; A constituição da hipoteca sobre o imóvel - único bem do casal -, a favor da credora M. L. foi feita em 16.12.2015 (para garantir uma dívida dessa credora sobre a empresa - de que o A marido era sócio gerente).
Ficou ainda provado nos autos que “Os insolventes acreditavam que a empresa seria recuperável, pelo que o ato de constituição da hipoteca foi uma forma de afiançar o cumprimento da obrigação pela sociedade X, circunstância que julgavam que iria acontecer”; e que “A hipoteca foi constituída com o fito de garantir e salvaguardar a manutenção da sociedade”.
Confessamos ser para nós incompreensível a prova destes últimos factos. Não vemos como e em que medida a constituição da hipoteca pelos insolventes a favor da credora M. L., em 2015, iria afiançar o cumprimento da obrigação por parte da sociedade X, sendo certo que, de acordo com a matéria de facto provada, o crédito da M. L. estava já constituído antes da declaração de insolvência da empresa – antes de 2009 –, tendo nesse processo sido considerado e graduado como crédito comum.
Também não vemos em que medida a hipoteca foi constituída com o fito de garantir e salvaguardar a manutenção da sociedade…
Aliás, não ficou provado o alegado pelos devedores, de que “a X tenha logrado cumprir apenas (do plano de recuperação) com os pagamentos de prestações aos Bancos mas não aos restantes credores comuns, nada tendo pago à credora M. L. por conta do seu crédito que, nos termos do plano e perdão previsto, se cifrava no montante de € 517.287,45”.
E também não ficou provado que tenha sido “…neste contexto de crise e permanente ameaça de queda total e irremediável da X que, em finais do ano de 2015, a credora M. L., tendo tomado conhecimento do pagamento a bancos e outros credores de prestações decorrentes do plano de insolvência, exigiu o pagamento das prestações vencidas por conta do seu crédito sobre a insolvência, prestações essas que perfaziam, naquele ano, o valor global de € 310.372,47 (…) equivalente a 12 prestações vencidas e não pagas - sob pena de dar sem efeito o plano de insolvência e o respetivo perdão de capital nele previsto”.
Outrossim não ficou provado que “A concretização desse desígnio significava que a credora ficaria imediatamente intitulada à cobrança (com título executivo) do montante total do crédito que lhe foi reconhecido na insolvência (€1.034.574,90)”.
Ou seja, a hipoteca constituída pelos devedores à credora da X em 2015 não visou qualquer finalidade ou intuito lucrativo, constituindo apenas uma mera liberalidade a favor de um terceiro em prejuízo dos demais credores dos insolventes. Daí que, como ficou provado nos autos, na sentença proferida no apenso de reclamação de créditos da insolvência, o crédito daquele terceiro (não sobre os insolventes mas sobre a X) tenha sido qualificado como garantido e graduado em primeiro lugar (juntamente com outro crédito garantido por hipoteca), sendo o produto da venda do imóvel hipotecado destinado ao pagamento imediato da quantia de € 310.372,47, por ele reclamada (e desse outro crédito), e só depois seriam ressarcidos os demais credores.
Verifica-se aqui uma situação patente de uso do património dos insolventes contrário ao seu interesse e do seu património, e da disposição dos bens do devedor em proveito de terceiros (artigo 186° nº 2 alíneas f) e d) do CIRE, respectivamente).
Acresce que a hipoteca foi constituída em 16-12-2015, e o requerimento de insolvência dos requeridos deu entrada em juízo em 8-5-2018, cerca de dois anos e meio antes da declaração de insolvência daqueles, pelo que aquele ato foi praticado no período considerado lesivo dos interesses dos insolventes, presumindo-se assim a insolvência dos devedores, iure et de iuri, como culposa.

Mostram-se assim verificados, perante a matéria de facto provada, os dois requisitos para a qualificação da insolvência dos devedores como culposa:

os devedores fizeram dos seus bens (do seu património pessoal) um uso contrário ao seu interesse – dando o mesmo bem de garantia, sem qualquer contrapartida, prejudicando o seu próprio património –, em proveito de um terceiro, nos três anos anteriores à declaração da sua insolvência.
Assim, impõe-se concluir pela qualificação da insolvência dos devedores como culposa face ao disposto no artº 186° nº 2 als. d) e f) do CIRE.
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As consequências da qualificação da insolvência como culposa:

O MºP/recorrente termina as suas conclusões de recurso pedindo que se considerem ambos os requeridos afectados pela qualificação da insolvência como culposa; que os mesmos fiquem inibidos, pelo período de 6 anos, para administrar patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; que se determine a perda de quaisquer créditos que eles detenham sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, a existirem, e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; que se condene os mesmos a indemnizar os credores no montante dos créditos não satisfeitos até às forças do respectivo património (nos termos do artº 189° nº 2 als. a), b), c), d) e e) do CIRE); e se ordene o registo da inibição para o exercício do comércio na Conservatória do Registo Civil (nos termos do artº 189° nº 3 do CIRE e 69° nº 1 al. l) do Código de Registo Civil).
Trata-se de "sanções civis" previstas nas diversas alíneas do nº2 do citado art° 189° do CIRE, que se impõem fixar na decisão, face à qualificação culposa da insolvência dos devedores, como decorre do teor literal do preceito em análise e desde logo da expressão nele inserta de que “o juiz deve…”.

Dispõe efectivamente tal normativo que “Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: a) Identificar as pessoas (…) afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respectivo grau de culpa; b) Decretar a inibição das pessoas afectadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos; c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; d) Determinar a perda de quaisquer créditos que eles detenham sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, a existirem, e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; e) Condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afectados (…).
No entanto, segundo o nº4 do preceito em análise, “Ao aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efectuar em liquidação de sentença”.
A aplicação imperativa das sanções civis previstas nas alíneas transcritas visa a tutela de um interesse colectivo relevante, que é a credibilidade do comércio em geral e dos cargos de gestão enunciados - cujo acesso fica vedado aos atingidos pela qualificação culposa da Insolvência -, que poderia ser posta em causa se os mesmos fossem ocupados por pessoas reconhecidamente culpadas da insolvência decretada (Ac RC de 5.2.2013, disponível em www.dgsi,pt).
Quanto ao período a considerar para a inibição, que a lei apenas baliza de 2 a 10 anos, a norma não enuncia as circunstâncias que devem ser sopesadas na determinação e fixação daquele período em concreto, deixando tal tarefa ao intérprete e aplicador da norma.
Nesta questão deverá ser ponderado, em nosso entender, o comportamento em concreto do visado, designadamente a sua gravidade, grau de culpa (dolo ou culpa grave), se ele criou ou apenas agravou a situação de insolvência, se havia autonomia decisória, quais as consequências da sua atuação, entre outras que se mostrem relevantes no caso em consideração (cfr. neste sentido Acs. da RC de 20/04/2010, 11/12/2012 e 05/02/2013).

No caso concreto, e face aos factos assentes, afigura-se-nos que deverão ser abrangidos pela qualificação da insolvência ambos os devedores, uma vez que ambos participaram na prática do ato em análise (a constituição da hipoteca sobre o imóvel a favor do terceiro).
Considerando ainda as circunstâncias em que o ato foi praticado – acima mencionadas, e que consideramos desnecessário repetir aqui -, afigura-se-nos equilibrado que os mesmos fiquem inibidos, pelo período de 5 anos, para administrar patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
Mais se determina a perda de quaisquer créditos que eles detenham sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, a existirem, e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.
Condena-se ainda solidariamente os insolventes a indemnizar os credores, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património.
Como não dispomos dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, deverão os mesmos ser calculados em sede de liquidação de sentença, sendo os critérios a utilizar para a determinação dos mesmos a consideração do património dos devedores sem a oneração do imóvel (com a hipoteca) a favor da M. L. (artº 189° nº 2, als. a), b), c), d) e e) do CIRE).
Ordena-se finalmente o registo da inibição dos devedores para o exercício do comércio na Conservatória do Registo Civil (artº 189° nº 3 do CIRE e 69° nº 1 al. l) do Código de Registo Civil).

Procedem, assim, na íntegra, as conclusões de recurso do MºPº.
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Decisão:

Julga-se procedente a apelação e revoga-se a decisão recorrida, considerando-se culposa a insolvência dos devedores, J. V. e M. F., os quais:

- Ficam ambos abrangidos pela qualificação da insolvência;
- Ficam ambos inibidos, pelo período de 5 anos, para administrar patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
- Determina-se a perda de quaisquer créditos que eles detenham sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, a existirem, e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
- Condena-se os mesmos, solidariamente, a indemnizar os credores, no montante dos créditos não satisfeitos até às forças do respectivo património, relegando-se a determinação do montante dos prejuízos sofridos para liquidação de sentença, sendo os critérios a utilizar para a determinação dos mesmos a consideração do património dos devedores sem a oneração do imóvel com a hipoteca constituída em 16-12-2015.
- Ordena-se o registo da inibição dos requeridos para o exercício do comércio na Conservatória do Registo Civil.
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Custas (da Apelação) pelos recorridos.
Notifique e DN.

Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Ana Cristina Duarte
2º Adjunto: Fernando Fernandes Freitas
19.9.2019