Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | LÍGIA VENADE | ||
| Descritores: | TÍTULO EXECUTIVO RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS CONTA CORRENTE | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 06/04/2020 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | PROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 1.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I Numa reclamação de créditos deve o reclamante apresentar-se munido de título exequível. II O contrato de abertura de crédito em conta corrente, prevendo uma prestação futura –a efetiva disponibilização de fundos- distingue-se do contrato de mútuo em que a entrega de coisa fungível integra o contrato. III O contrato de abertura de crédito celebrado por documento particular não era, no âmbito do artº. 46º do C.P.C. de 10961, e não é, no âmbito do atual artº. 703º do C.P.C. título executivo. IV A escritura pública de constituição de hipoteca anterior ao contrato de abertura de crédito que apenas prevê essa relação obrigacional como uma das fontes de responsabilidades garantidas, não é por si só título, nem em conjunto com o documento particular de abertura de crédito. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães: I RELATÓRIO. Caixa ..., com sede na Rua … Lisboa, veio, por apenso à execução instaurada contra J. C., residente na Rua …, em Fafe e O. P., residente na Rua …, Fafe reclamar os seus créditos, peticionando, a final, se considere verificados “os créditos da Reclamante sobre os Executados, no montante global de €118.176,39 (cento e dezoito mil, cento e setenta e seis euros e trinta e nove cêntimos) acrescidos dos juros vincendos desde 2019/03/09 até efetivo e integral pagamento, a calcular sobre os valores de capital em dívida às taxas contratuais aplicáveis, bem como a cláusula penal vincenda, comissões, despesas e demais encargos que a Reclamante entretanto venha a suportar, até efetivo e integral pagamento, quantias que igualmente se reclamam para obter pagamento nos autos” e bem assim, se gradue tal crédito no lugar preferencial que legalmente lhe compete, para ser pago pelo produto da venda dos bens hipotecados, e agora penhorados na presente execução. Fundamenta a sua pretensão no facto de o reclamado/executado J. C. ter constituído, a favor da reclamante, hipoteca sobre o imóvel penhorado nos autos para garantia do pagamento das quantias devidas pelas obrigações contraídas pela sociedade X – Importação e Comércio de Automóveis, Lda, tendo esta empresa incumprido um contrato de financiamento sob a forma de conta corrente, estando em dívida a quantia reclamada. Cumprido o disposto no nº 1 do art. 789º do Cód. Proc. Civil, veio o reclamado oferecer impugnação, alegando, em suma, ser a hipoteca nula por indeterminabilidade do objeto e não ter sido recebido qualquer montante disponibilizado ao abrigo do contrato de conta corrente e, consequentemente, não ter sido utilizado o mesmo. Sem prejuízo, invoca a prescrição dos juros vencidos antes dos cinco anos que antecederam a dedução da reclamação. A reclamante exerceu o contraditório quanto às exceções invocadas, pugnando pela improcedência das mesmas e pela condenação do reclamado como litigante de má-fé. Dispensada a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador, no qual se julgou improcedente a arguida nulidade da hipoteca, se relegou para a decisão final o conhecimento da excepção de prescrição de juros e se declarou, no mais, a regularidade da instância. Fixou-se o objecto do processo e os temas da prova, por despacho que não mereceu reclamação. Procedeu-se à realização da audiência final. Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a reclamação decidindo A. Julgar verificado o crédito da reclamante quanto aos seguintes valores: a) €: 48.158,24 a título de capital; b) €: 1437,99 de impostos; c) juros vencidos sobre a quantia de capital desde 15/3/2014, julgando-se improcedente a restante reclamação. B. Graduar o crédito reclamado, no valor de €: 49.596,23 (quarenta e nove mil, quinhentos e noventa e seis euros e vinte e três cêntimos) e exequendo para serem pagos pelo produto da venda da fração descrita na Conservatória de Registo Predial ... sob o número .../19890925-.. da seguinte forma: 1º - Custas da ação executiva e apensos; 2º - Crédito exequendo, garantido pela hipoteca registada em 6/4/1999, até ao limite, nomeadamente temporal, da mesma; 3º - Crédito da reclamante Caixa..., no valor de €: 49.596,23, garantido pela hipoteca, até ao limite da mesma; 4º - Crédito exequendo, na parte não garantida pela hipoteca, garantido pela penhora. C. Julgar improcedente o pedido de condenação do reclamado/executado como litigante de má-fé. * Mais determinou que as custas são na proporção do decaimento, por reclamante e reclamados, fixando-se o decaimento da reclamante em 60% e o decaimento dos reclamados em 40% – art. 527º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil – sem prejuízo do apoio judiciário concedido.* Inconformados, os reclamados/executados apresentaram recurso, terminando as suas alegações com as seguintes- CONCLUSÕES – PRIMEIRA: Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou verificado o crédito da reclamante no montante de 48.158,24€ a título de capital, e de 1.437,99€ de impostos. SEGUNDA: Ao assim ter decidido o Tribunal de 1ª Instância violou as mais elementares regras do ónus probatório e decidiu mal a matéria de facto em discussão nos autos. TERCEIRA: Com efeito, como é sabido, incumbia à autora o ónus da prova dos factos por si alegados e, em especial, e para o que aqui interessa, a prova de que, efetivamente, tinha posto à disposição da sociedade, X – Impostação e Comércio de Automóveis, Lda o montante do capital mutuado e que este valor tivesse sido utilizado a título de empréstimo. QUARTA: Na Oposição, o ora recorrente alegou não ter sido posta à disposição da sociedade o capital mutuado e impugnou a força probatória dos documentos juntos pela reclamante, inclusive o suposto extrato de conta, desde logo, por se tratarem de documentos da autoria da reclamante, reproduzidos e emitidos em data muito posterior à da ocorrência dos factos. QUINTA: Entretanto, atendendo ao previsto na cláusula 1ª do aludido contrato, junto sob a forma de documento 3 com a Reclamação de Créditos apresentada, e designadamente que o crédito desde já se considera à disposição da parte devedora; mas que a abertura de crédito funciona através de uma conta própria, sendo a utilização do crédito aberto, bem como as restituições à conta, feitas através da conta de depósito número 171.10....-2, aberta no balcão da Caixa... em …, em nome da parte devedora, mediante ordens de transferência ou de pagamento dadas sob a forma escrita à Caixa..., SEXTA: O ora recorrente requereu fosse o banco reclamante notificado para juntar todas as ordens de transferência ou de pagamento dadas sob a forma escrita pela parte devedora, no caso a supra mencionada sociedade, ao banco reclamante. SÉTIMA: A VERDADE É QUE TAIS ORDENS ESCRITAS NUNCA FORAM JUNTAS PELO BANCO RECLAMANTE QUE SE LIMITOU, APENAS, E NÃO OBSTANTE TER SIDO EXPRESSAMENTE NOTIFICADO PARA O EFEITO, A JUNTAR UM NOVO, MAS IGUAL, EXTRATO DE CONTA CORRENTE, AGORA COM DATA PRÓXIMA DA REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO. OITAVA: Não obstante, tendo por referência apenas estes alegados extratos de conta bancária, emitidos pelo banco reclamante em datas contemporâneas, veio o Tribunal a dar como provado que o montante do capital mutuado foi disponibilizado à referida sociedade e por ela utilizado a título de empréstimo (sic. alínea J) dos Factos Provados) e que, Em face do incumprimento contratual por parte da mutuária … encontra-se em dívida à data de 08.03.2019 a quantia de €48.158,24 a título de capital e €1437,99 de imposto de selo (sic. alínea K) dos Factos Provados); e, concomitantemente, a dar como não provado que A quantia mutuada nunca foi entregue à mutuária (sic. ponto 2 dos Factos Não Provados) e que O reclamante, por si ou na qualidade de legal representante da sociedade mutuária, nunca deu qualquer ordem de transferência ou pagamento para a conta da sociedade X, Lda (sic. ponto 3 dos Factos Não Provados). NONA: Para motivar esta decisão de facto, o Tribunal mencionou que No que concerne à disponibilização do montante mutuado – alínea j) e pontos 2) e 3), o tribunal teve como muito relevantes os depoimentos das testemunhas J. J. e S. M., ambos funcionários do reclamante e que … auxiliaram o tribunal na interpretação e concatenação dos documentos juntos, mormente à petição de reclamação e em 24/09/2019. DÉCIMA: Não será preciso muito, para se perceber que efetivamente jamais se poderá conceber que a prova da disponibilização de fundos se faça pela mera prova testemunhal, de auxílio à interpretação de documentos, que não tinham sequer conhecimento direto dos factos DÉCIMA PRIMEIRA: Na verdade, como se alcança da transcrição dos depoimentos das testemunhas, estas limitaram-se a analisar os documentos, sem que tivessem acrescentado o que quer que seja em termos de conhecimento pessoal e direto dos factos. DÉCIMA SEGUNDA: Mais se constata que são as próprias testemunhas quem referem que os documentos por si analisados comportam anomalias e contradições: A primeira testemunha quanto ao valor do capital reclamado, que reconhece, ela própria, não poder ser aquele que o banco reclamante fez constar, indevidamente, no recibo de cobrança; e a segunda, quanto ao valor das despesas mensais de contencioso, que ele próprio referiu, não existirem … DÉCIMA TERCEIRA: Daí que não poderá ser pelo depoimento das testemunhas que o Tribunal poderia ter levado à matéria dos Factos Provados a factualidade constante das alíneas j) e k) e, ao invés, ter levado à matéria dos factos não provados a factualidade reproduzida nos pontos 2) e 3). DÉCIMA QUARTA: E, seguindo-se o entendimento e orientação jurisprudencial relatada no douto e bem elaborado Acórdão deste mesmo Tribunal da Relação, datado de 2 de novembro de 2017, no processo com o n.º 4972/15.2T8GMR.G1, em que foi relator o Exmo. Juiz Desembargador Pedro Alexandre Damião e Cunha, que aqui se dá, por brevidade, por integralmente reproduzido, mormente na parte em que expressamente esclarece as diferenças entre o contrato em causa – igual ao dos presentes autos – e o contrato de empréstimo bancário; DECIMA QUINTA: E bem assim na parte em que define o contrato de abertura de crédito como uma operação bancária prevista no artigo 362º do Código Comercial, tratando-se dum … “contrato pelo qual um banco se obriga a colocar à disposição do cliente uma determinada quantia pecuniária … não representando, assim, a mera celebração do mesmo a constituição e/ou o reconhecimento de qualquer dívida por parte dos subscritores do contrato, porquanto não há efetiva entrega do capital DÉCIMA SEXTA: E fundamentalmente na parte em que nesse mesmo Aresto se lê que Quanto ao contrato de abertura de crédito, decorre da sua própria natureza que a entrega de qualquer quantia só ocorreria se os RR. (creditados) tivessem efetivamente utilizado a linha de crédito acordada com a Autora, sendo que, tal como neste autos, não existe qualquer prova documental que aqueles o tivessem efetuado (segundo o estabelecido no contrato, tal utilização seria efetuada por meio de letras, livranças ou quaisquer outros escritos particulares representativos dos créditos utilizados) sendo que no dos presentes autos, de igual modo, a utilização da linha de crédito haveria de ser feita com recurso a cheques pós datados. – cfr. cláusula 1ª do contrato de abertura de crédito celebrado. DÉCIMA SÉTIMA: Assim, tal como ali foi decidido, também nestes autos se exigia que a reclamante, por qualquer meio de prova, demonstrasse que o montante que consubstanciava o contrato de crédito tinha sido efetivamente entregue e utilizado pela sociedade mutuária. DÉCIMA OITAVA: O que, manifestamente, a reclamante não logrou fazer, pois que não será por extratos impressos nesta data e da autoria da reclamante, nem tão pouco pelos esclarecimentos e ensinamentos por parte das testemunhas no que toca à interpretação de tais extratos que o Tribunal poderia dar como provada a factualidade vertida nas alíneas j) e k) dos Factos Provados. DÉCIMA NONA: Por tal motivo, vai impugnada a decisão proferida a respeito da matéria de facto, quanto àqueles concretos pontos de facto acima enunciados, devendo, em consequência, ser levada à matéria dos factos não provados a factualidade vertida nas alínea j) e k) dos Factos Provados e, ao invés, a factualidade levada à matéria dos Factos Não Provados sob os pontos 2) e 3) deverá ser levada à matéria dos Factos Provadas. VIGÉSIMA: Procedendo, como se espera, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, deverá a reclamação de créditos apresentada ser julgada totalmente improcedente. Concluem pela procedência da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e pela procedência do recurso com a revogação da sentença proferida por outra que julgue totalmente improcedente a reclamação de créditos. * A recorrida “P. J., S.A.” respondeu às alegações, apresentando as seguintes -CONCLUSÕES- I. Após a notificação das alegações de recurso a que ora se responde foi a P. J. S.A. habilitada a intervir nos autos na posição da Caixa ..., sendo que a mandatária subscritora tem poderes para representar ambas, conforme procurações juntas aos autos. II. Motivo pelo qual se entende que a actual Recorrida será a P. J. S.A. eque esta tem legitimidade para apresentar as presentes contra-alegações. III. No entanto, caso assim não se entenda, e no âmbito dos poderes conferidos, deverão considerar-se as presentes contra-alegações apresentadas em nome da Caixa ..., o que desde já se requer. IV. Vem o Recorrente interpor Recurso da Douta sentença de verificação e graduação de créditos proferida pelo Tribunal de primeira instância, com a referência 165626917, datada de 05-11-2019, que julgou verificado o crédito da reclamante no montante de 48.158,24€ a título de capital, e de 1.437,99€ de impostos. V. Resumidamente, o Recorrente entende que não ficou provado que tivesse sido colocado à disposição da sociedade X – Importação e Comércio de Automóveis Lda., o montante de capital mutuado e que este valor tivesse sido utilizado a título de empréstimo. VI. Não cabe razão ao Recorrente. VII. O Recorrente não põe em causa a celebração com a Caixa... de um contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente celebrado por escrito particular em 27/01/2004 e do qual emerge a divida reclamada nestes autos. VIII. Ao contrário do que o Recorrente alega, dos documentos juntos aos autos resulta provado que o valor mutuado foi efectivamente creditado na conta da sociedade acima identificada e foi colocado à sua disposição, nos termos ali acordados entre as partes. IX. Aliás, como consta do próprio contrato, nomeadamente, sobre quando foi colocado o valor mutuado à disposição da reclamada e ainda a finalidade do mútuo, veja-se a cláusula 1.ª. X. A Reclamante juntou aos autos não apenas o contrato de abertura de crédito, mas também uma nota de débito que apresenta o saldo final da conta, tal como juntou ainda o extrato bancário de onde decorre que, foi efectivamente disponibilizada à sociedade a quantia referida no contrato de abertura de crédito. XI. Sucede que o aludido contrato entrou em incumprimento. XII. A sociedade, conforme alegado e provado, tinha total conhecimento da situação de incumprimento e da sua responsabilidade pelo pagamento dos valores vencidos, porquanto se trata de obrigações de prazo certo, não podendo deixar de ter conhecimento dos compromissos que contratualmente assumiu perante a Recorrida, e que porém não cumpriu. XIII. Conforme resulta do contrato, a abertura de crédito funcionaria através de uma conta própria, sendo a utilização do crédito aberto, bem como as restituições à conta, feitas através da conta de depósitos à ordem de que era titular a sociedade X – Importância e Comércio de Automóveis Lda, sendo que da prova produzida resultam verificados movimentos de crédito e débito que demonstram tanto a disponibilização, como a utilização do valor mutuado. XIV. O Recorrente alega que impugnou o crédito reclamado e a força probatória dos documentos juntos pela Caixa..., mas não sustentou tais impugnações, aproveitando os documentos juntos e os valores transferidos naquilo que entendeu ser do seu interesse, mas desvalorizando-os quando já não seriam. XV. Por outro lado, o Recorrente ou a sociedade em causa também não juntaram nos autos quaisquer documentos nem produziram prova contrária ao alegado pela Reclamante na sua reclamação, sendo que tinham a possibilidade de juntar aos autos os extractos que são remetidos para os clientes com informação que pudesse ser, eventualmente, contraditória, o que não fizeram. XVI. Aliás, e conforme resulta da transcrição que o Recorrente fez nas suas alegações do depoimento da testemunha J. J., ficou demonstrado que foram utilizadas as verbas disponibilizadas na conta e que só os intervenientes no contrato o poderiam ter feito, sem que tais movimentos tivessem sido colocados em causa em momento algum, nomeadamente, o levantamento de € 20.000,00 em notas e a entrega de cheques para abatimento à dívida. XVII. Ora, se os interessados levantaram dinheiro e abateram uma parcela da dívida através de cheques, então não faz sentido algum virem alegar que o dinheiro que usaram não lhes foi disponibilizado e na mesma lógica resulta o montante total em dívida, conforme prova produzida. XVIII. Pelo que, ficou claramente demonstrado que o valor reconhecido foi disponibilizado, quer pela prova documental, quer pela prova testemunhal (da qual destacamos o minuto 07:31 e seguintes, do depoimento da testemunha J. J., transcrito pelo Recorrente nas suas alegações), bem como que o mesmo foi utilizado. XIX. Com efeito, e na tentativa de confundir o Digníssimo Tribunal, veio o Recorrente invocar alegadas contradições nos testemunhos prestados, mas o que é certo é que quanto à questão em apreço no presente recurso, não houve qualquer equívoco por parte das testemunhas que confirmaram que o valor reconhecido foi colocado à disposição da sociedade e que os valores foram movimentados por aquela. XX. Ora, e considerando o alegado pelo próprio Recorrente na oposição à reclamação, se a obrigação do creditado só surge depois, no momento em que, por conta de crédito aberto, faz algum levantamento ou movimenta determinada quantia, sendo aí que surge o empréstimo definitivo e consequentemente nasce a dívida, tais movimentos estão confirmados, pelo que não restam dúvidas quanto à disponibilização dos valores e à existência da dívida. XXI. Aliás, ao longo dos depoimentos, é possível verificar que o Recorrente não coloca em causa especificamente a disponibilização das várias tranches de valores até perfazer a quantia mutuada que foi reconhecida, mas antes questiona o valor total reclamado, assumindo assim e afinal os valores em causa. XXII. Pelo que a Credora Reclamante, aqui Recorrida, fez prova das disponibilizações e utilizações do crédito, conforme documentos juntos e analisados em Tribunal pelas testemunhas apresentadas. XXIII. Pelo que, salvo o devido respeito, o recurso apresentado não tem qualquer fundamento, pelo que deverá ser improcedente, mantendo-se a sentença recorrida. Termina pedindo a improcedência do recurso e a confirmação da sentença recorrida. *** Após os vistos legais, cumpre decidir.*** II QUESTÕES A DECIDIR.Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos. Impunha-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se: -deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto que consta dos pontos dos factos provados j e K e dos pontos dos factos não provados 2 e 3, designadamente no sentido proposto pelos recorrentes; -no caso de procedência da impugnação, se deve ser alterada a decisão proferida no sentido proposto pelos recorrentes. Todavia, e como ressalvamos, impõe-se o conhecimento oficioso de uma questão que é previa às demais e que prejudica a sua apreciação, como veremos. Neste sentido, foi cumprido o contraditório neste Tribunal dando nota da questão em causa, e as partes apresentaram a sua posição. *** III IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.Nenhuma questão de ordem formal obsta à apreciação deste item, uma vez que os recorrentes cumpriram os requisitos da impugnação, nomeadamente indicam os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados –pontos j e k dos factos provados e 2 e 3 dos não provados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões -invocam erro de julgamento e pretendem a inversão do seu teor, ou seja, o que foi considerado provado devia ser dado como não provado, e o que foi dado como não provado devia ser dado como assente; especificação na motivação dos meios de prova constantes do processo (documentos juntos aos autos) ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; fundando-se a impugnação em parte na prova gravada, indica na motivação as passagens da gravação relevantes; apreciando criticamente os meios de prova, expressam na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas –a decisão respetivamente inversa; tudo conforme resulta do disposto no artº. 640º, nºs. 1 e 2, do Código Processo Civil (C.P.C.) e vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, pags. 155 e 156. * Feitas estas considerações, a apreciação do mérito do recurso parte da prévia definição da estrutura própria e causa de pedir nesta ação. Deixemos pois a impugnação da matéria de facto suspensa. * Nesta ação de reclamação de crédito, e vista a petição inicial, a reclamante alicerçava o seu pedido num alegado empréstimo de € 51.000,00, que a beneficiária (X…) recebeu e de que se confessou devedora. Aí faz-se referência ao “contrato de mútuo” 171.30.100067-4, remetendo-se para o doc. 3 junto com a peça, e a disponibilização e utilização do montante nos termos do doc. 4 –extrato bancário (tendo sido ainda junto novo extrato em sede de audiência de julgamento). Contabiliza-se depois o valor em dívida em € 57.610,27 de capital e € 58.236,64 de juros desde 18/10/2006 a 8/3/2009, bem como € 2.329,48 de imposto de selo, e conclui-se pelo valor total em dívida de € 118.176,39 conforme doc. 5. Independentemente da terminologia e qualificação jurídica feita pela reclamante na sua petição inicial –e o Tribunal não está vinculado às alegações das partes no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, mas tão só à alegação do conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer, expurgados da sua qualificação jurídica, ou seja, os que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito pretendido, ou factos principais: artºs. 552º, nº. 1, d), 5º, nºs. 1 e 3, 574º, nº. 1, e 581º, nº. 4, todos do C.P.C; diz-se então que a nossa lei processual civil consagrou a teoria da substanciação- junto aos autos o contrato que constitui o documento 3, cabe analisar o mesmo nas suas cláusulas, e “reduzir” a ação aos factos. Para melhor compreensão, passamos a elencar a matéria factual que foi tida provada e não provada na sentença proferida, destacando a negrito os que estão em causa na versão dos recorrentes. *** IV MATÉRIA DE FACTO.Estão assim provados os seguintes factos: a) Está penhorada, nos autos de execução a que os presentes se encontram apensos a fracção Autónoma designada pela Letra "..", correspondente a uma habitação, no segundo andar recuado. Sita na Rua …, Fafe, inscrita na matriz predial urbana sob artigo ...º, e descrita na Conservatória de Registo Predial ... sob o número .../19890925-...---- b) A aquisição por compra ao Executado J. C., a favor da executada O. P., da fracção mencionada em a) encontra-se registada desde 2/3/2007.--- c) A penhora referida em a) está registada desde 20/11/2018;---- d) O executado constituiu sobre a fracção referida em a), hipoteca a favor do exequente como garantia do empréstimo por aquele concedido, de €: 48879,48, ao juro anual de 5,06%, acrescido de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal, no montante máximo assegurado de €: 63437,11.--- e) A hipoteca identificada em d) encontra-se registada desde 6/4/1999.-Apurou-se ainda que:-- f) Por escritura pública de hipoteca unilateral, outorgada no dia 19 de Setembro de 2004 no Cartório Notarial de …, a cargo da licenciada M. S., lavrada de fls.61 a fls 62 do livro 680-A, o executado J. C., constituiu hipoteca voluntária unilateral com cláusula de efeito abrangente sobre a Fracção autónoma, penhorada nos autos de execução, designada pelas letras “..”, para habitação, recuado a nascente/poente- sul, à direita da fracção AP, do prédio urbano sito na freguesia e concelho de Fafe e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ... e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo .... (art. 1. da petição de reclamação)-- g) Hipoteca essa constituída para garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade X – Importância e Comércio de Automóveis Lda, até ao montante global de capital de €75.000,00 (setenta e cinco mil euros), acrescidos de juros e despesas, com um montante máximo assegurado até ao montante máximo de capital e acessórios garantido pela hipoteca no valor de €101.100,00 (cento e um mil e cem euros), nos termos constantes do documento junto à petição de reclamação com o número 1 e que se dá por integralmente reproduzido. (art. 2. da petição de reclamação)-- h) A mencionada hipoteca encontra-se registada a favor da ora Reclamante, pela AP. 4 de 2004/01/20. (art. 3. da petição de reclamação)-- i) Por acordo escrito celebrado em 27/01/2004, a Reclamante, no exercício da sua atividade de instituição de crédito, concedeu à identificada sociedade X – Importância e Comércio de Automóveis Lda, um empréstimo, por abertura de crédito em conta corrente, até ao montante de €50.000,00 (cinquenta mil euros) que a mutuária se obrigou a restituir nos termos e condições constantes do documento junto à petição de reclamação com o número 3 e que se dá por integralmente reproduzido. (art. 5. da petição de reclamação)-- j) O montante do capital mutuado foi disponibilizado à referida sociedade e por ela utilizado a título de empréstimo, pelos prazos, juros, formas de pagamento e demais condições constantes no contrato e conforme discriminadamente resulta do extracto de conta que consubstancia o documento junto à petição de reclamação com o número 4 e que se dá por integralmente reproduzido. (art. 6. da petição de reclamação)-- k) Em face do incumprimento contratual por parte da mutuária e nos termos constantes do referido contrato, encontra-se em dívida à data de 08/03/2019 a quantia de €: 48.158,24 a título de capital, juros vencidos sobre tal quantia desde 18/10/2006 e € 1437,99 de imposto de selo. (art. 9. da petição de reclamação)-- l) A utilização do crédito aberto, bem como as restituições à conta, feitas através da conta de depósitos à ordem de que era titular a sociedade X – Importância e Comércio de Automóveis Lda. (art. 16. da resposta à impugnação)-- m) A reclamante foi citada para reclamar créditos no processo de execução fiscal em Julho de 2011, no proc. ……. do Serviço de Finanças de Fafe. (arts. 40. e 41. da resposta à impugnação)-- n) A aqui reclamante reclamou o seu crédito. (art. 43. da resposta à impugnação)— o) A execução fiscal foi extinta com a sentença de graduação de créditos proferida em 18/09/2012. (art. 43. da resposta à impugnação)-- p) A impugnante foi novamente citada em 20-01-2015 para reclamar créditos no processo de execução fiscal nº …….2 do Serviço de Finanças de Fafe. (art. 48. da resposta à impugnação)-- q) A execução fiscal extinguiu–se em Fevereiro de 2015 por pagamento, tendo a reclamação sido extinta por inutilidade. (art. 40. da resposta à impugnação)-- * Factos não provados..1) Em face do incumprimento contratual por parte da mutuária e nos termos constantes do referido contrato, encontra-se em dívida à data de 08/03/2019 a quantia de €: €57.610,27 de Capital, € 58.236,64 de Juros desde 2006/10/18 a 2019/03/08 e €: 2329,48 de impostos. (art. 9. da petição de reclamação)-- 2) A quantia mutuada nunca foi entregue à mutuária. (arts. 10 e 11. da impugnação)-- 3) O reclamante, por si ou na qualidade de legal representante da sociedade mutuária, nunca deu qualquer ordem de transferência ou pagamento para a conta da sociedade X, Lda. (art. 14. da impugnação)-- *** V O MÉRITO DO RECURSO.Vejamos se a matéria de facto elencada, ainda que sem a pretendida reapreciação, permite a apreciação do recurso. Numa ação de reclamação de créditos deve o reclamante –no caso com garantia real sobre o bem penhorado- estar munido do respetivo título executivo (limitando a nossa apreciação a esse pressuposto específico da reclamação de créditos uma vez que os outros –existência de garantia real sobre o bem penhorado e certeza e liquidez da obrigação –não estão aqui em causa). De facto, se toda a execução tem por base um título –artº. 10º, nº. 5, C.P.C.- a reclamação de créditos tem por base um título exequível face ao artº. 788º, nº. 2, C.P.C. –processada por apenso à execução, sendo um processo declarativo de estrutura autónoma, mas funcionalmente subordinado ao processo executivo –Lebre de Freitas, pag. 365 de “A ação executiva à luz do código de processo civil de 2013, 7ª edição. O próprio artº. 788º prevê as situações em que não será bem assim, permitindo ao credor que não disponha ainda de título no termo do prazo para a reclamação peça que a graduação de créditos aguarde a sua obtenção em ação já proposta ou a propor, se o mesmo não resultar já do mecanismo previsto no nº. 2 do artº. 792º do C.P.C.., tudo como previsto no mais desse mesmo artigo 792º. Não foi por isso adotada no nosso código a posição que permitiria a apreciação da existência do crédito na própria reclamação –veja-se a posição do autor citado quanto a essa matéria, a pags. 364, nota 29. Em conformidade, dispuseram os nºs. 4 e 5 do artº. 789º quanto aos fundamentos da impugnação de créditos. Visto por este prisma, não cabia aqui discutir a existência do crédito, ele tem de estar comtemplado num título exequível. Quanto ao título, feita a ressalva da previsão do artº. 792º, colocam-se as mesmas considerações que numa ação executiva. Em causa nos autos está o doc. 3. Apesar de ser feita referência na petição inicial a “contrato de mútuo” e a “empréstimo”, e se aludir ainda a confissão de dívida, o doc. contratual junto aos autos pela reclamante é pelas partes denominado “contrato de abertura de crédito em conta corrente”. A nossa apreciação centra-se por isso na alínea i) dos factos provados, que não foi aqui posta em causa e que contém a realidade fáctica necessária à apreciação do recurso –o conteúdo, o clausulado, do documento apresentado na reclamação. Conforme análise feita de forma exaustiva no Ac. desta Relação de 2/11/2017, citado pelos recorrentes (publicado na dgsi.pt), este contrato diverge e não se confunde com o mútuo bancário. Como ai se diz, o contrato de abertura de crédito, nominado embora atípico na medida em que não tem regime legal próprio, é uma das operações bancárias previstas no artigo 362º do Código Comercial, tratando-se dum “…contrato pelo qual um banco se obriga a colocar à disposição do cliente uma determinada quantia pecuniária (acreditamento ou “linha de crédito”), por tempo determinado ou não, ficando este obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões…”, conforme ensinam José A. Engrácia Antunes, in “Direito dos Contratos Comerciais”, pág. 501, e Calvão da Silva, in” Direito Bancário”, pág. 365, não representando, assim, a mera celebração do mesmo a constituição e/ou o reconhecimento de qualquer dívida por parte dos subscritores do contrato, porquanto não há efectiva entrega de capital. Este contrato de abertura de crédito apenas fixa os termos e condições em que os creditados podem utilizar o crédito concedido pelo creditante, sem que exista efectiva entrega de dinheiro àqueles primeiros, sendo por isso meramente consensual, uma vez que a sua validade e perfeição não se encontra dependente de qualquer acto de entrega do montante pecuniário; ao invés do empréstimo bancário (em que se pode estipular a efectiva entrega do dinheiro pelo banco ao cliente), a abertura de crédito fica perfeita com o mero acordo tendente à disponibilização daquele montante, o qual de resto poderá nem sequer vir a ser movimentado pelo cliente creditado -José A. Engrácia Antunes, in “Direito dos Contratos Comerciais”, pág. 503, nota 961. Comparativamente, quer o contrato de abertura de crédito, quer o mútuo, quer o desconto bancário, todos são contratos de concessão de crédito, na medida em que encerram um acordo mediante o qual uma entidade, que, pode ser bancária como foi nos autos, coloca à disposição de outra, temporariamente, determinada quantia em dinheiro, com a obrigação de o devolver (além da situação da retribuição –juros, comissões- e despesas que serão abarcadas). Porém, no mútuo a entrega do dinheiro é elemento constitutivo do contrato (artº. 1142.º do C.C.); no contrato de abertura de crédito essa entrega de dinheiro necessariamente pode, ou não, ocorrer –cfr. Ac. da Rel. de Guimarães de 17/12/2015. Citando ainda Sofia Gouveia Pereira, in “O contrato de abertura de crédito bancário”, págs. 43 e 44,a distinção é feita em função de dois critérios: a abertura de crédito é um contrato consensual; o mútuo é um contrato real (uma vez que exige a entrega do dinheiro ou da coisa fungível mutuada); aquele primeiro contrato é, em regra, bilateral ou sinalagmático; o mútuo é um contrato unilateral ou não sinalagmático (pois gera obrigações apenas para uma das partes, uma vez que a entrega da coisa pelo mutuante integra o próprio contrato, nasce apenas uma obrigação para o mutuário de restituição). Trata-se, pois, de um contrato “…através do qual um banco, creditante, constitui a favor do seu cliente, creditado, por um período de tempo, determinado ou não, uma disponibilidade de fundos que este poderá utilizar se, quando e como entender conveniente…”. “Assim, é concebível uma abertura de crédito em que o creditante constitui uma disponibilidade a favor do creditado mas que este nunca vem efectivamente a utilizar…” –cfr. Sofia Gouveia Pereira, obra citada, pags. 7 e 14. Refere-se nesse primeiro Acórdão a duas fases distintas no contrato de abertura de crédito: a fase da disponibilidade e a da disponibilização efetiva dos fundos (…). Esta diferença dos contratos assume relevo por exemplo e ainda no modo de contabilização dos juros, como nesse Acórdão é também referido (…). Assim sendo, conclui-se que a celebração desse contrato específico não significa sem mais que houve entrega de dinheiro e por isso não representa a constituição ou reconhecimento –muito menos confissão- de qualquer dívida. Analisadas então as cláusulas do documento 3, o que efetivamente as partes celebraram foi um contrato de abertura de crédito –em conta corrente- como o denominaram. A instituição bancária abriu um crédito em conta corrente até ao montante de € 50.000,00 que colocou à disposição da “X…”. Mais foi previsto o fim visado: liquidação do contrato 171.30.100031-0 e reforço da sua tesouraria com antecipação de receitas com recurso a cheques pós datados. Foi também previsto o modo de concretização da disponibilização dos fundos: através de uma conta própria –contrato de depósito nº. 171.10....-2 –onde seria aberto o crédito e feitas as restituições à conta. E ainda uma condição para a utilização do crédito : entrega pela parte devedora de cheques pós datados de clientes desta última (…). E por último e mais importante para esta ação, ficou prevista a forma de efetivo pedido e utilização do crédito: seria concretizado mediante ordens de transferência ou de pagamento dadas sob a forma escrita à instituição bancária, as quais serão subscritas pela parte devedora ou por quem a represente. De facto, face ao que foi exposto a propósito da nomenclatura e das características do contrato em causa, fácil será concluir que aí se prevê uma prestação futura –a que corresponderá a dita segunda fase do contrato, da efetiva disponibilização de fundos –ainda que esta possa temporalmente coincidir com aquele, não deixa de ser uma outra e distinta operação. Ora, é aqui que este caso se define e afasta do caso citado pelos próprios recorrentes e tratado no Ac. de 2/11/2017 citado: é que naquela situação estávamos perante uma ação declarativa comum em que cabia à A. a prova da sua causa de pedir que consistia, nesses termos, na celebração de um contrato de abertura de crédito, e o seu alegado incumprimento, com a consequente operatividade da garantia de hipoteca constituída a seu favor no âmbito desse contrato (e em que, além do contrato, podiam ser oferecidos meios complementares de prova para o efeito pretendido). Este caso é mais similar ao tratado no Ac. desta mesma Relação de 16/4/2015 também publicado na dgsi.pt (sendo relator o Exmº. Drº Heitor Gonçalves), precisamente porque sendo uma reclamação de créditos a reclamante tem de estar munida de título exequível, mas diverge também do mesmo porque ali o contrato (apresentado á execução, embora a diferença a destacar não radica neste ponto) foi formalizado em escritura pública, logo tinha e podia ali provar que foi efetivamente entregue e utilizado o montante relativo ao crédito que se pretendia ver executado/reconhecido, prova essa a fazer por meios complementares nos termos do atual artº. 707º do C.P.C. (-que competia à reclamante) para assim estar munida de um título exequível que lhe permitiria invocar o crédito (e ver reconhecido no caso de uma reclamação); aqui contudo o contrato está formalizado em mero documento particular. Temos de introduzir aqui uma outra discussão que tem que ver com a data a que se afere se a parte, neste caso a reclamante, tem título. À partida a data que releva deve ser a da entrada da execução ou reclamação –cfr. Artº. 6º, nº. 3, da Lei 41/2013 de 26/6. Então, face ao artº. 703º do C.P.C. os documentos particulares não são atualmente –e à data da entrada da presente reclamação- título executivo. Reitera-se que o documento 3 junto com o requerimento inicial que serve de suporte à reclamação é um documento particular. Porém, o Ac. do Tribunal Constitucional nº. 408/2015 de 23/9 (DR 1ª série, nº. 201, de 14/10/2015, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703º do C.P.C., aprovado em anexo à Leio nº. 41/2013 de 26/6, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artº. 46º, nº. 1, c), do C.P.C. de 1961, constantes dos artºs. 703º C.P.C. e 6º, nº. 3, da Lei nº. 41/2013, por violação do princípio da proteção da confiança –artº. 2º Constituição da República Portuguesa. Também no Ac. desta Relação de 18/10/2018 se tratou em caso idêntico desta matéria (dgsi.pt). Sendo o documento 3 junto aos autos datado de 27/01/2004, ao tempo da sua celebração ele seria título executivo por força daquela artº. 46º, nº. 1, c), se, estando assinado pelo devedor, importasse a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético. Ou seja, se efetivamente fosse um mútuo, conforme o classificava a reclamante. Já vimos contudo que assim não consideramos, e por isso, sendo antes um documento em que se convenciona uma obrigação futura, em primeiro lugar, para ser título, teria de ter sido exarado ou autenticado por notário e, só assim, em conjugação com o artº. 50º do C.P.C. na mesma redação (atuais artºs. 703º, nº. 1, e 707º), podia a reclamante provar que a obrigação prevista foi efetivamente constituída. Ainda assim, e mais uma vez analisado o contrato, e perante as exigências deste artigo, o mesmo prevê a forma de concretização da utilização do crédito: ordem escrita de transferência ou pagamento dada pela sociedade ou quem a represente. Ou seja: no caso de ser junto um documento exarados ou autenticado por notário (…) em que se convencionem prestações futuras ou se preveja a constituição de obrigações futuras, estes podem servir de base à execução desde que se prove, por documento passado em conformidade com as cláusulas deles constantes ou, sendo aqueles omissos, revestido de força executiva própria, que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio ou que alguma obrigação foi constituída na sequência da previsão das partes. Daqui se conclui que, ainda que nesta hipótese, a prova que a reclamante tinha de ter apresentado em conjugação com o doc. 3 eram essas ordens de suporte às alegadas utilizações do crédito. E foi isso que os recorrentes pediram que fosse junto ao processo e foi deferido por despacho no mesmo proferido: extratos e documentos de suporte desde a data da celebração da abertura de crédito em cota corrente. Sucede que, como referem os recorrentes, a reclamante limitou-se à junção de extratos. Ora, o extrato não serve para os fins do artº. 707º do C.P.C.. Os extratos representativos dos movimentos da conta corrente corporizam as operações realizadas, tão só. No sentido de que o anterior atº. 50º não se aplicava aos documentos particulares pronunciou-se o Ac. do STJ de 21/2/2002 (Agro. nº. 214/2-2ª, Sumários, 2/2002). Veja-se também sobre a mesma questão o Ac. da Rel. de Évora de 24/4/2014 (dgsi.pt). O extrato serviria sim, em conjugação eventualmente com outra prova, designadamente a testemunhal, para numa ação declarativa provar a existência de um crédito, abarcada pela causa de pedir respetiva. A título de nota diremos apenas que na cláusula relativa á previsão da resolução prevê-se o extrato como meio probatório -em ação declarativa e para esse efeito, nada tendo que ver com a situação que aqui tratamos. Referiu a reclamante em sede de contraditório que dispõe da hipoteca, celebrada por escritura pública, a qual não pode ser dissociada do contrato de abertura de crédito em conta corrente que subjaz à dívida, e que garante esse mesmo crédito reclamado, constituindo título executivo à luz do artº. 46º do C.P.C. de 1961 e artº. 703º do atual C.P.C.. Não se discute a autenticidade deste documento junto com a reclamação. A escritura pública documenta a constituição da garantia, sendo no caso anterior à constituição da alegada prestação do credor, estando devidamente registada. Note-se que a escritura é de janeiro de 2004 e não de setembro de 2004 como certamente por lapso é referido ao longo dos autos pela reclamante. Em causa está uma hipoteca unilateral, pela qual J. C. oferece as frações identificada como garantia de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pela “X” (…), nomeadamente quantias que a credora venha a emprestar através da abertura de crédito (cfr. alínea b) da cláusula 1ª da escritura), tudo conforme o documento 1 junto à reclamação. Conclui-se logo “a priori” que a escritura não importa a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação, quando muito prevê a constituição de uma obrigação futura, no caso que aos autos interessa –a abertura de crédito. Efetivamente a obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura –artº. 686º, nº. 2, do C.C.. Somos por isso uma vez mais remetidos para o artº. 50º do C.P.C. de 1961, que deve ser conjugado com o artº. 46º, b), do mesmo, de molde a aferir se a reclamante, ainda assim, estaria munida de título. Ora, a escritura prevê ou identifica a relação negocial que pode servir de base á dita obrigação futura –a abertura de crédito (entre outras possíveis e eventuais fontes), e não propriamente a previsão da constituição da obrigação futura. Mas ainda que se enverede por este prisma, a escritura nada diz contudo quanto ao modo da sua formalização. Na escritura não se convencionou atribuir a qualquer documento passado em conformidade e relacionado com a mesma, a qualidade de título executivo. O artº. 50º exigiria, para que a escritura pudesse servir de base á execução, que se provasse por documento passado em conformidade com as suas cláusulas, a constituição da obrigação; como no caso essa previsão não foi feita, então o documento relativo à constituição da obrigação – a abertura de crédito- teria de estar ele próprio revestido de força executiva –e já vimos que não está. Por isso, ainda que analisada a escritura de constituição de hipoteca em conjugação com o contrato de abertura de crédito, a celebração deste não comprova que a obrigação foi efetivamente contraída e por isso essa unidade documental não constitui também título bastante (desde logo porque não existe uma verdadeira ligação entre a escritura e aquele contrato em específico). E assim a escritura esgota-se na constituição da garantia que prevê. Situação que entendemos ser diferente tratou o Ac. da Rel. do Porto de 14/12/2017 (dgsi.pt), uma vez que se previa na escritura pública de constituição de hipoteca uma outra cláusula, que aqui não está prevista, relativa ao que seriam “títulos ou documentos respeitantes” à mesma escritura. Situação mais similar a esta foi tratada no Ac. da Rel. de Coimbra de 21/03/2013 (publicado também na dgsi.pt). Em suma, sendo a escritura meramente comprovativa da constituição da garantia real, não dispensava a reclamante de necessidade de estar munida de título executivo, valendo por isso as considerações feitas a propósito da natureza do contrato de abertura de crédito. Resulta do exposto que a reclamante não cumpriu o requisito formal necessário para avançar com a presente reclamação e consequente reconhecimento do alegado crédito: a demonstração de título executivo, para o que não releva a prova documental ou a prova testemunhal produzida. A falta de título é matéria de conhecimento oficioso também na reclamação de créditos: cfr. artºs. 788º, nº. 2, e 791º, nº. 4, C.P.C.. Assim sendo, a reclamação de créditos deve improceder por falta de título, sem necessidade de apreciação da prova produzida uma vez que o facto em causa –disponibilização e utilização pela reclamante do montante reclamado-, na falta desse título, não pode ser objeto de apreciação nesta ação, mas numa ação declarativa a propor, sendo que o ónus da prova caberá sempre à entidade que pretende ver o crédito reconhecido (e nunca à parte contrária fazer prova do contrário –cfr. artº. 342º, nº. 1, C.C.). Tem vindo a ser posição do Tribunal de recurso que, por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal da Relação não deve reapreciar a matéria de facto quando os factos objeto da impugnação não forem suscetíveis de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, terem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual inútil (artºs. 2º, nº. 1 e 130º, do C.P.C.). Logo não é necessária a reapreciação da matéria de facto através da análise da prova produzida e que se destinava precisamente, na pretensão dos recorrentes, a afastar da matéria provada a disponibilização e utilização do crédito e consequente incumprimento, prova que não cabe fazer nesta ação. Por isso e embora por fundamentação diversa –falta de título exequível-, conclui-se pela improcedência da reclamação do crédito –considerando o mesmo não verificado e por isso não o graduando-, e pela procedência do recurso interposto. Relativamente à posição manifestada pela reclamante quanto à oportunidade de conhecimento desta matéria, reitera-se que foi por este Tribunal cumprido previamente o contraditório, não constituindo esta e nessa medida uma decisão surpresa, sendo de apreciação oficiosa. *** VI DISPOSITIVO.Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, conceder provimento à apelação e revogar a sentença recorrida, considerando não reconhecido o crédito reclamado na sua totalidade. Custas do recurso pela recorrida (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.). * Os Juízes DesembargadoresGuimarães, 4 de junho de 2020. * Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade 1º Adjunto: Jorge dos Santos 2º Adjunto: Heitor Pereira Carvalho Gonçalves (A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas) |