Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4417/20.6T8GMR-A.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
CRÉDITOS LABORAIS
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Da conjugação dos artigos 335.º e 334.º ambos do CT. resulta desde logo que os gerentes e sócios das sociedades respondem solidariamente por montantes pecuniários resultantes de créditos laborais, desde que se verifiquem os pressupostos dos artigos 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais.
II - O direito do trabalhador de pedir a condenação solidária do gerente no pagamento de créditos abrangidos pelo art.º 335.º do CT. está dependente da alegação e prova dos seus pressupostos, ou seja, depende da alegação e prova dos factos que nos permitam saber se o gerente (administrador, etc.), no exercício de gestão afectou indevidamente património da sociedade, em violação das leis destinadas a proteger os credores sociais, e que o património restante da sociedade se tenha tornado insuficiente para satisfação desses credores sociais.
III – Tais pressupostos, como constitutivos do direito a que o Autor/Recorrente se arroga, terão que ser por ele alegados e provados (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
IV – O Réu é parte legitima quando tem interesse em contradizer, exprimindo-se este pelo prejuízo que advenha da procedência da acção, avaliado em função do pedido e da causa de pedir formulados pelo Autor, independentemente da veracidade ou não do alegado.
Decisão Texto Integral:
APELANTE: AA
APELADOS: R..., Lda., BB

Tribunal da Comarca ..., Juízo do Trabalho ..., Juiz ...

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

AA, residente na Travessa ..., freguesia ..., concelho ..., instaurou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra:
M..., Unipessoal, Lda., com sede na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ...;
R..., Lda., com sede na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ...; e
BB, sócio gerente de ambas as pessoas colectivas acima indicadas e com domicílio profissional em ambas as respectivas sedes e peticiona o seguinte:

- que se declare verificada a existência de justa causa para resolução do contrato por iniciativa do trabalhador, e em consequência serem as Rés condenadas no pagamento das quantias devidas, respectivamente, bem como ser o Réu condenado solidariamente no pagamento da quantia global de 13.401,61€ (treze mil quatrocentos e um euros e sessenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, até integral pagamento.

Alega em síntese, que celebrou contrato de trabalho com a M..., Unipessoal, Lda., em 07 de Abril de 2020, empresa do ramo da construção civil, desempenhando as funções de pintor. A mando da entidade patronal, desempenhou as suas funções em ... auferindo a título de retribuição €1.700,00 mensais, a que acresciam ajudas de custo, no valor médio mensal de €300,00. Em final de Janeiro de 2020, o 3.º Réu, BB e sócio gerente das demais Rés, deu a assinar ao autor um novo contrato, agora celebrado com a 2ª Ré, tendo o Autor continuado a desempenhar as suas habituais funções de pintor, sempre mantendo contacto com o Réu BB. O Autor trabalhou até ao dia 16 de Março, juntamente com demais colegas de trabalho. Em finais de Abril estava por liquidar o pagamento parcial de Janeiro, o pagamento de Fevereiro e Março, por isso o A. decidiu pôr termo à situação, tendo dirigido à entidade empregadora carta comunicando a resolução do contrato de trabalho com fundamento no não pagamento do salário por período superior a 60 dias. Não obteve resposta à carta, tendo apenas recebido promessas incumpridas por parte do Réu BB. Devido à falta de pagamento pontual da retribuição, o A. viu-se carenciado, em absoluto, de meios de subsistência, tendo pedido emprestado, ao longo de cerca de 4 meses, a quantia de 950,00€. Ficaram por lhe liquidar diversos créditos laborais. E por fim reclama o pagamento de indemnização por dano não patrimonial.
Conclui pedindo a condenação das Rés, na parte da responsabilidade que lhes caiba, e pela condenação solidária do Réu BB, atenta a aparência de continuidade para que contribuiu e vista a responsabilidade solidária por causa da dupla qualidade de sócio e de gerente, ao abrigo dos art.º 335º nº 1 e n.º 2, respectivamente, do Código de Trabalho (CT) e 78º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), art.º 78º, n.º1 e 79º do CSC, art. 335º do CT e art. 483º do Código Civil (CC), no pagamento da quantia global de 13.401,61€ (treze mil quatrocentos e um euros e sessenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, até integral pagamento.
Os Réus contestaram, por excepção e por impugnação. Alegam a ilegitimidade do 3.º Réu, BB, dizendo em resumo, que o mesmo é/foi legal representante das Rés, não tendo individualmente celebrado com o autor qualquer contrato de trabalho. Apesar da demanda solidária das rés no pagamento do pedido de €13.401,61, não vem alegado que a atuação do 3.º Réu tenha constituído inobservância culposa de disposições legais ou contratuais destinadas a proteger os interesses dos credores sociais, que o restante património da sociedade se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos credores sociais e que se verifique nexo causal entre o ato do sócio/gerente e a insuficiência de satisfação de credores sociais, constituindo estes pressupostos elementos constitutivos de um direito que visa garantir os créditos do trabalhador, cujo o ónus de alegação e prova da verificação concreta dos aludidos elementos, compete ao autor, de harmonia com a regra geral estatuída no artigo 342º, nº1 do Código Civil.
O Autor respondeu à deduzida excepção, concluindo pela sua improcedência.
A 1.ª Ré “M..., Unipessoal, Lda.” foi declarada insolvente e por despacho proferido em 25.01.2022 foi a instância declarada extinta relativamente à Ré Insolvente.

Posteriormente, foi proferido despacho saneador, no qual se apreciou a excepção da legitimidade passiva do Réu, nos termos que agora reproduzimos:

“(...)De acordo com o que dispõe o artigo 30.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer, interesses que se expressa, respetivamente, no benefício e prejuízo que da procedência da ação advenha.
O n.º3 do mesmo normativo legal, por seu turno, sufragando a tese subjetivista propugnada por Barbosa de Magalhães e pondo termo à questão do estabelecimento do critério de determinação da legitimidade das partes, deu corpo legal à aferição da legitimidade processual pela titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor, abstraindo-se da efetiva titularidade do direito ou interesse material
que se pretende valer.
Assim, o que importa, para aferir da legitimidade como pressuposto processual, não é a relação material controvertida em si, mas sim a posição em que o autor se coloca perante esta, assim se dispensando a legitimidade substantiva.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23/01/1942 «o conceito jurídico da legitimidade das partes ainda hoje se ajusta (...) à fórmula consagrada de que as partes serão legítimas quando forem os sujeitos da relação hipotética controvertida, com interesse direto na sua declaração ou resolução».
Visando a legitimidade processual assegurar que estejam na causa os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica e no desfecho da mesma, exprime uma relação da parte com o objeto da ação, consistindo na posição que a parte detém perante determinada ação, posição essa que permite deduzir uma determinada pretensão ou defesa face à mesma.
Seguindo os ensinamentos de Manuel de Andrade, diremos que a legitimidade consubstancia uma certa posição das partes face à relação material «(…) que se traduz no poder legal de dispor dessa relação por via processual».
Deste modo, será “apenas pelo exame da petição inicial (sujeitos, pedido e causa de pedir) que há de decidir-se das exceções dilatórias em causa”, nomeadamente a legitimidade.
Sendo este o quadro legal, é cristalino, para nós que o réu BB não tem interesse em contradizer. Com efeito, a causa de pedir invocada pelo autor, nesta parte atinente e na presente fase processual, é a resolução do contrato celebrado com a ré R..., Lda., por incumprimento do pagamento pontual de dois meses de retribuição (causa invocada na carta resolutiva de 05.05.2020) e em decorrência, deduz os pedidos de condenação da mesma no pagamento dos créditos vencidos e não pagos na execução do contrato com ela celebrado em janeiro de 2020, bem assim, de uma indemnização por danos não patrimoniais.
A concreta atuação imputada ao réu BB, nesta relação laboral, foi a omissão de entrega de uma cópia do contrato celebrado em 23.01.2020 e a circunstância da sua assinatura ter ocorrido sem lhe ter sido dado tempo para proceder à leitura do contrato. Assim sendo, como é, não se vê qual o fundamento legal para o mesmo poder ser responsabilizado a título pessoal pelo pagamento das quantias peticionadas pelo autor o que só pode suceder em situações muito específicas (como nos termos previstos no arte. 335º do Código do Trabalho ou no art. 78º do Código das Sociedades Comerciais), dependendo sempre de alegação e prova pelo credor dos respetivos pressupostos legais (cfr., a contrario sensu, o disposto, quanto às sociedades por quotas, no art. 197º do Código das Sociedades Comerciais), o que não sucede neste processo.
De facto, o autor não invoca, qualquer facto de onde se possa extrair a possibilidade da condenação deste réu, a título pessoal, no pagamento das quantias ao autor não bastando para o efeito o “simples” facto de ser o mesmo gerente da ora ré e da M..., Unipessoal, Lda., sociedades com quem celebrou dois contratos de trabalho sucessivos, mormente o ultimo nas alegadas condições. Assim, em face da causa petendi tal como foi configurada pelo autor (efetivação de créditos laborais subsequente à denuncia do contrato) é esta réu parte ilegítima para intervir neste processo, não podendo ser condenado a final.
Pelos fundamentos expostos, considerando verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva do BB, absolvendo-o da instância, prosseguindo esta ação apenas quanto à outra ré R..., Lda.”
*
Inconformada com esta decisão, dela veio o Autor interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões:

“A- Por despacho saneador, proferido em 21/06/2022, foi julgada procedente a excepção de ilegitimidade processual do R. BB, em suma, por ter o tribunal a quo entendido que não foram alegados factos que integrem o fundamento legal para responsabilização deste, conjuntamente com a R. R..., Lda..
B- Não se conformando com tal, vem o A. apresentar o presente recurse de apelação, circunscrito à decisão que julgou procedente a excepção de ilegitimidade passiva do R. BB.
C- O A., na PI, e no que toca aos factos que entende justificarem a responsabilidade pessoal e solidária do R., alegou, em 9º, 12º, 22º, 23º, e 41º, descrevendo um conjunto de factos através dos quais, no seu entender, a conduta do R. BB contribuiu, directa e necessariamente, para o agravar da situação económica do A. e prejuízos sofridos por este, bem como apontando a dupla qualidade de sócio e de administrador único da R. R..., Lda.
D- O A. demandou o R. BB pela sua qualidade de sócio e de gerente na M..., Unipessoal Lda., tendo este sido determinante para o incumprimento das responsabilidades contratuais para com o A. ao fazer transitar os objectos e ferramentas de trabalho para a nova empresa, a R. R..., Lda., sem previamente liquidar as obrigações contratuais pendentes, a que o A. se referiu de 1º a 8º da PI.
E- Ainda que a M..., Unipessoal Lda., tenha sido declarada insolvente, e absolvida nos presentes autos, a responsabilidade do seu sócio e gerente único, pessoal e solidária, não se extinguiu, antes se lhe comunicou, motivo pelo qual o A. o demanda, ao abrigo dos arts. 335º nº 1 do CT e 78º do CSC.
F- O R. BB, na sua dupla qualidade de sócio e de administrador único da R..., Lda., causou danos ao A., agindo de forma culposa, nos termos alegados de 9º a 40º da PI, pelo que é também responsável, a título pessoal e solidário pela forma como exerceu a administração, ao abrigo do art. 335º nº 2 do CT e 79º do CSC.
G- O facto de uma sociedade ser composta por um único sujeito, traduz-se inevitavelmente na prossecução de uma única vontade – a do sócio titular da participação social única, o que se verificou, sem margem para dúvidas no caso da M..., Unipessoal, e se verifica, quanto à R..., Lda., porquanto o R. BB sempre foi o único decisor, agindo com poderes para vincular para a empresa, confundindo-se a vontade de actuação numa só pessoa.
H- A verificação de uma situação de défice patrimonial para pagar ao A., atestada pela insolvência da M..., Unipessoal, a confusão entre património da empresa e do sócio-gerente, a actuação dissimulada e deliberada do R. BB, e a coincidência simultânea da qualidade de sócio e de gerente e de administrador, respectivamente, constituem elementos que concorrem para a responsabilidade do mesmo, a título pessoal, ilimitado e solidário.
I- Nos termos do art. 30º nº 1 e nº 3 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por força do art. 1º, nºs 1 e 2, alínea a) do Código de Processo de Trabalho (CPT), “ O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.” e “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”.
J- O A. imputa ao R. BB a responsabilidade por diversos factos, que lhe são pessoais, e diversos da relação trabalhador» entidade patronal, ainda que em vários momentos os mesmos se interceptem e se confundam.
K- Com base nos factos alegados na PI, o R. BB, por si, mas também por causa da sua      qualidade de sócio/gerente/administrador, susceptível de responsabilização nos termos dos citados arts. 78º e 79º, ambos do CSC e nos termos gerais, tem interesse em contradizer.
L- Contra o afirmado a págs. 2 e 3 da sentença, o A. não se limitou a afirmar que a responsabilidade do R. BB decorre do “simples” facto de ser o mesmo gerente da ora ré e da M..., Unipessoal, Lda.”.
M- Tendo também alegando a mistura de patrimónios, pessoal e da sociedade anónima, bem como a unicidade e confusão da figura de sócio e de gerente/administrador, além da imputação de condutas específicas lesivas dos seus direitos contratuais e legais, que imputou, ab initio, especificadamente a cada um dos RR., além dos factos que integram cada um dos pressupostos da responsabilidade, contratual e civil do R. BB.
N- Acham-se alegados, já desde a PI, os factos respeitantes quer à responsabilidade contratual, quer à responsabilidade civil, e, por conseguinte, os factos que, quod probandum, sustentarão a responsabilidade solidária, pessoal e ilimitada do R. BB.
O- Mesmo que, quanto à responsabilidade solidária enquanto sócio e administrador da R..., Lda., se não entenda verificados os pressupostos de aplicação dos arts. 335º do CT e 78º e 79º do CSC, sempre a responsabilidade directa e pessoal do R. BB pode ser atingida com base no instituto da desconsideração da personalidade jurídica, atenta a mistura de patrimónios entre este e aquela sociedade e ainda a confusão, no mesmo, da qualidade de sócio, de gerente e de administrador nas respectivas sociedades.
P- Achando-se, também para esta via, alegados os factos que integram a responsabilidade tanto contratual como civil, os quais deverão ser discutidos em julgamento e, eventualmente, levar à sua condenação.
Q- A decisão recorrida violado os arts. 335º nº s 1 e 2 do CT, os arts. 78º e 79º, ambos do CT e o art. 30º nºs 1 e 2 do CPC.
R- Deve a decisão recorrida ser revogada, determinando-se a improcedência da excepção de ilegitimidade passiva do R. BB, prosseguindo os autos também quanto a este.
S- Caso se entenda que o alegado na PI, para o efeito ora pretendido, é obscuro, insuficiente ou deficiente, nomeadamente por se entender que não foram inteira ou correctamente alegados todos factos que constituem os pressupostos da responsabilidade do R. BB e, por isso, da sua legitimidade passiva, sempre deveria o tribunal a quo ter notificado o A. a fim de corrigir a PI, cf. nº 4 do art. 590º do CPC, o que no presente não sucedeu.
T- Pelo que, subsidiariamente, se considera violado este preceito, devendo, em conformidade, baixar os autos à 1ª Instância, a fim de ser ordenada a notificação do A. para tal.
U- De qualquer modo, mantendo-se em discussão as quantias reclamadas na PI, as quais perfazem o valor inicial indicado de 13.401,61€ (treze mil quatrocentos e um euros e sessenta e um cêntimos).

Termina peticionando a revogação da decisão recorrida, com o consequente prosseguimento dos autos contra o Réu BB, ou caso assim não se entenda, que os autos baixem à 1ª instância a fim de ser proferido despacho destinado a permitir ao A. a correcção da PI com os elementos, de direito, que justificam a responsabilidade do R.
Os Réus contra alegaram pugnando pela manutenção da decisão recorrida e pela improcedência da apelação.
O recurso foi admitido como apelação a subir imediatamente em separado e com efeito devolutivo.
Remetidos os autos à 2ª instância, foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87º n.º 3 do C.P.T., tendo a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitido douto parecer no sentido da improcedência da apelação.
Não foi apresentada qualquer resposta ao parecer do Ministério Público.
Colhidos os vistos dos Exmos. Desembargadores Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

II – OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões do Recorrente (artigos 635º, nº 4, 637º n.º 2 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), coloca-se à apreciação deste Tribunal da Relação uma única questão que consiste em apurar da (i)legitimidade do Réu BB relativamente aos pedidos de pagamento de indemnização por perda de ganhos e por danos não patrimoniais.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Aos factos materiais relevantes para a decisão da causa são os
que constam do relatório que antecede.

IV - APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Da ilegitimidade do Réu BB

Insurge-se Autor com o facto de no despacho saneador se ter considerado verificada a exceção dilatória de ilegitimidade passiva do BB, tendo o mesmo sido absolvido da instância.
Indica como factos que entende justificarem a responsabilidade pessoal e solidária do R., os que constam dos artigos 9º, 12º, 22º, 23º, e 41º da p.i., dos quais resulta que a conduta do R. BB contribuiu, directa e necessariamente, para o agravar da sua situação económica e dos prejuízos por si sofridos, bem como apontando a dupla qualidade de sócio e de administrador único da R. R..., Lda. Tudo o que mais que alega são factos novos desprovidos de interesse para apreciação do recurso.
Vejamos, então se a decisão recorrida violado os arts. 335º nº s 1 e 2 do CT, os arts. 78º e 79º, ambos do CSC e o art. 30.º nºs 1 e 2 do CPC.
As disposições legais com relevo para a apreciação a questão suscitada prescrevem o seguinte:

Artigo 335.º do Código do Trabalho
Responsabilidade de sócio, gerente, administrador ou director
1 – O sócio que, só por si ou juntamente com outros a quem esteja ligado por acordos parassociais, se encontre numa das situações previstas no artigo 83.º do Código das Sociedades Comerciais, responde nos termos do artigo anterior, desde que se verifiquem os pressupostos dos artigos 78.º, 79.º e 83.º daquele diploma e pelo modo neles estabelecido.
2 – O gerente, administrador ou director responde nos termos previstos no artigo anterior, desde que se verifiquem os pressupostos dos artigos 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais e pelo modo neles estabelecido.

Artigo 334.º do Código do Trabalho
Responsabilidade solidária de sociedade em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo
Por crédito emergente de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, vencido há mais de três meses, respondem solidariamente o empregador e sociedade que com este se encontre em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, nos termos previstos nos artigos 481.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais.

Artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais
Responsabilidade para com os credores sociais
1 – Os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos.
2 – Sempre que a sociedade ou os sócios o não façam, os credores sociais podem exercer, nos termos dos artigos 606.º a 609.º do Código Civil, o direito de indemnização de que a sociedade seja titular.
3 – A obrigação de indemnização referida no n.º 1 não é, relativamente aos credores, excluída pela renúncia ou pela transacção da sociedade nem pelo facto de o acto ou omissão assentar em deliberação da assembleia geral.
4 – No caso de falência da sociedade, os direitos dos credores podem ser exercidos, durante o processo de falência, pela administração da massa falida.
5 – Ao direito de indemnização previsto neste artigo é aplicável o disposto nos n.ºs 2 a 6 do artigo 72.º, no artigo 73.º e no n.º 1 do artigo 74.º

Artigo 79.º do Código das Sociedades Comerciais
1 – Os gerentes ou administradores respondem também, nos termos gerais, para com os sócios e terceiros pelos danos que directamente lhes causarem no exercício das suas funções.
2 – Aos direitos de indemnização previstos neste artigo é aplicável o disposto nos n.ºs 2 a 6 do artigo 72.º, no artigo 73.º e no n.º 1 do artigo 74.º

Artigo 30.º do Código do Processo Civil
Conceito de legitimidade
1 – O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 – O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 – Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Dos citados dispositivos legais, designadamente da conjugação dos artigos 335.º e 334.º ambos do CT. resulta desde logo que os gerentes e sócios das sociedades respondem solidariamente por montantes pecuniários resultantes de créditos laborais, desde que se verifiquem os pressupostos dos artigos 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais.

Ou seja, para que se verifique a responsabilização do administrador/gerente da sociedade nos termos referidos, é necessário:

- que a actuação do administrador/gerente tenha constituído inobservância culposa de disposições legais destinadas a proteger os interesses dos credores sociais;
- que o restante património da sociedade se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos credores sociais;
- que se verifique nexo causal entre o acto do administrador/gerente e a insuficiência de satisfação de credores sociais.

Estamos assim perante duas situações distintas da responsabilidade dos gerentes. A primeira tem a ver com a insuficiência do património da sociedade para satisfazer os respectivos créditos, enquanto a segunda se reporta aos casos em que sejam diretamente causados danos aos sócios ou terceiros; quer uma quer outra partilham um aspecto comum, ou seja, a responsabilidade do gerente depende de uma actuação culposa. A lei exige, para este tipo de responsabilidade a que alude o art. 78.º do CSC, a violação das normas de protecção aos credores, violação essa que seja causa de insuficiência patrimonial. E para a responsabilidade a que alude o art. 79.º do CSC exige a observância de todos os requisitos de que, nos termos do art.º 483º/1 do CC, depende a obrigação de indemnizar – inobservância da disposição legal (destinada a proteger o interesse dos credores, a culpa, o dano do credor e a causalidade entre a violação do dever legal e o dano (importando que o dano se tenha produzido no âmbito de protecção da norma). Acresce a necessidade da actuação dos gerentes ser determinante da insuficiência do património social para a satisfação dos respectivos créditos.
Trata-se de uma responsabilidade extracontratual para com o credor, na medida em que anteriormente a tal inobservância culposa de disposições legais ou contratuais destinadas à protecção de credores não existia qualquer direito de crédito do credor perante o administrador ou gerente.
Como refere a Prof. Joana Vasconcelos em anotação ao art.º 335 do CT., no Código do Trabalho Anotado “… trata-se de responsabilidade civil extra-contratual, fundada numa conduta ilícita e culposa do sujeito que se pretende demandar e num dano por esta causado ao trabalhador- não de mera responsabilidade patrimonial ou de garantia, como a prevista no artigo anterior.”  
A responsabilidade solidária prevista no art.º 335.º do CT., independentemente do crédito a que respeite, depende necessariamente de uma actuação ilícita e culposa do gerente ou administrador, que será o resultado da prática de determinados factos que impõe concretização.
Assim, o direito do trabalhador de pedir a condenação solidária do gerente no pagamento de créditos abrangidos pelo art.º 335.º do CT. está dependente da alegação e prova dos seus pressupostos, ou seja, depende da alegação e prova dos factos que nos permitam saber se o gerente (administrador, etc.), no exercício de gestão afectou indevidamente património da sociedade, em violação das leis destinadas a proteger os credores sociais, e que o património restante da sociedade se tenha tornado insuficiente para satisfação desses credores sociais.
Tais pressupostos, como constitutivos do direito a que o Autor/Recorrente se arroga, terão que ser por ele alegados e provados (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
O Autor/Recorrente veio dizer que tais pressupostos foram por si suficientemente alegados nos artigos 9º, 12º, 22º, 23º, e 41º da p.i.
Dos citados artigos consta o seguinte:
9º- Em final de Janeiro de 2020, num momento fugaz e em dia que o A. não sabe precisar, em que BB, R. acima identificado e sócio gerente das pessoas colectivas indicadas como co-Rés, com a desculpa de ter um avião para apanhar e que era necessário proceder à assinatura de novo contrato, apresentou novo documento ao A. para que este assinasse, sem sequer lhe dar tempo de ler, por ter o avião para apanhar.
12º- Desconhecendo o motivo da necessidade de assinatura de novo contrato, o A. continuou a desempenhar as suas habituais funções de pintor, sempre mantendo contacto com o R. BB, partindo, em 8 de Fevereiro de 2020, para ... para desempenhar as suas funções.
22º- Até ao momento, não recebeu qualquer quantia, por parte da R. R..., qualquer pagamento, apesar de várias promessas feitas pelo R. BB de que iria proceder à regularização dos ordenados em atraso.
23º- Inclusive tendo este afirmado ao A., e a outros trabalhadores, que tencionava voltar a levá-los para ... para uma nova obra, e que assim regularizaria todos e quaisquer valores em dívida.
41º- Requer, em consequência, sejam ambas as Rés, na parte da responsabilidade que lhes caiba, respectivamente, e o Réu BB, solidariamente, atenta a aparência de continuidade para que contribuiu e vista a responsabilidade solidária por causa da dupla qualidade de sócio e de gerente, ao abrigo dos art. 335º nº 1 e nº2, respectivamente, do Código de Trabalho (CT) e 78º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), art.º 78º, n.º1 e 79º do CSC, ut art. 335º do CT e art. 483º do Código Civil (CC), condenados no pagamento da quantia global de 13.401,61€ (treze mil quatrocentos e um euros e sessenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal em vigor, até integral pagamento.
Ora, salvo o devido respeito, por opinião em contrário, cabe-nos dizer que a factualidade trazida aos autos nos permite desde logo concluir que ónus não foi cumprido pelo recorrente, já que não resulta minimamente alegado qualquer facto do qual resulte o comportamento ilícito e culposo do gerente e sócio das Rés, que consubstancie a sua responsabilidade pessoal, nem foi formulado pedido do qual possa vir a resultar numa condenação do Réu/gerente.
No que respeita ao Réu pouco mais refere a petição inicial para além da sua qualidade de único gerentes das duas sociedades, querendo extrair da falta de pagamento das retribuições uma responsabilidade praticamente automática que a lei não consente.
Na verdade, da factualidade alegada pelo autor não resulta que o gerente tenha praticado qualquer acto que envolvesse violação dos direitos dos credores sociais, concretamente do Autor, nem resulta que a actuação do gerente tivesse tornado o património das sociedades insuficiente para a satisfação dos credores sociais, pois o facto da 1.º Ré ter sido declarada insolvente, tal não significa que não possua bens para satisfazer o crédito do Autor.
Ainda numa outra perspectiva, tendo presentes os pressupostos da responsabilidade civil (cfr. artigo 483.º do Código Civil), importa referir que a factualidade alegada pelo autor não decorre a prática de qualquer acto ilícito por parte do 3.ª Réu, para se poder accionar a sua responsabilidade pessoal.
De retorno à questão da legitimidade do Réu BB apraz dizer o seguinte:
Como é consabido a legitimidade é o pressuposto processual, atinente às partes, que tem a ver com a relação existente entre estas e o objecto da acção, definindo-se pela titularidade dos interesses em litígio na concreta acção.
Do transcrito artigo 30.º do CPC. resulta que as partes, tal como o autor as determina ao propor a acção contra o(s) réu(s), devem ser aquelas que, perante os factos descritos na petição apresentada em juízo, o direito substantivo considera como sendo aquelas que podem ocupar-se do objecto do processo. Se não forem, há ilegitimidade processual. Neste sentido cfr. José Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa À Luz do Código de Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, 3ª edição, pág. 110.    
Assim para apreciar a legitimidade das partes importa apenas aferir quais são os sujeitos dessa relação nos termos em que se mostra configurada pelo Autor, não sendo adequado nem necessário, para apreciar esta questão entrar no domínio da discussão do mérito da causa.
Em suma e no que aqui releva, o Réu é parte legitima quando tem interesse em contradizer, exprimindo-se este pelo prejuízo que advenha da procedência da acção, avaliado em função do pedido e da causa de pedir formulados pelo Autor, independentemente da veracidade ou não do alegado.    
Apesar do  Autor configurar a relação material controvertida como emergente de um contrato de trabalho celebrado entre ele inicialmente com a 1ª Ré e posteriormente com a 2.ª Ré., que veio a terminar por sua iniciativa e com fundamento em justa causa, peticionando os demais créditos resultantes quer da verificação da justa causa de resolução do contrato, não se limita a demandar os empregadores, mas também, ao abrigo do preceituado do preceituado no 335º do CT de 2009, demanda o gerente das Rés.
Em face do acima exposto podemos afirmar que para que o gerente possa vir a ser responsabilizado pelo pagamento dos créditos laborais reclamados é imperioso que tal resulte da factualidade alegada pelo Autor, uma vez que é este que pretende valer-se de tal direito.

Ora, no caso a narração dos factos que consta da petição inicial não conduz de forma alguma à imputação de qualquer responsabilidade do gerente pelo pagamento dos créditos de que o autor se arroga, pois tal foi por nós sustentado o autor não alegou os factos que constituem os pressupostos da responsabilidade do Réu BB, sendo a sua qualidade de sócio/gerente, bem como a sua actuação descrita na p.i. manifestamente insuficiente para o efeito.
Em face do exposto resta-nos concluir que bem andou o tribunal a quo ao julgar o Réu BB parte ilegítima no que respeita aos pedidos formulados pelo autor decorrentes da resolução com alegada justa causa do contrato de trabalho que manteve com as Rés, pois não sendo o Réu sócio/gerente titular da relação controvertida, tal como é configurada pelo Autor na petição inicial, no que respeita aos referidos pedidos, da sua procedência não lhe adviria qualquer prejuízo, ainda que viesse a ser demonstrada toda a factualidade aí alegada, que apenas poderá conduzir à condenação da 2.ª Ré, na medida do que se vier a apurar em sede de julgamento.
Por fim, quanto ao aperfeiçoamento da petição inicial agora reclamado pelo Recorrente e que se encontra previsto no art.º 590.º n.º 2 al. b), 3 e 4 do CPC., apenas se nos suscita dizer que o despacho de aperfeiçoamento é um convite ao suprimento de exposição deficiente ou concretização da matéria de facto alegada, por insuficiência ou imprecisão da mesma e tal não compreende a falta de exposição ou a omissão de alegação do núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir, como sucede no caso em apreço.
Em suma, não se pode corrigir o que não existe – cfr. Acórdão RL de 24.01.2019, processo n.º 573/18.1T8SXL.L1.6, consultável www.dgsi.pt.
Em face à ilegitimidade do Réu, bem como à impossibilidade de sanação ou suprimento de tal vicio, improcede o recurso e é de manter o despacho recorrido.

V - DECISÃO

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87º do C.P.T. e 663º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso de apelação do Autor AA e consequentemente confirma-se o despacho recorrido.
Custas pelo Apelante – artigo 527.º do CPC.
Notifique.
Guimarães, 2 de Março de 2023

Vera Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Francisco Sousa pereira