Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | CONCEIÇÃO SAMPAIO | ||
Descritores: | EMBARGOS DE TERCEIRO CARÁTER PREVENTIVO TEMPESTIVIDADE COMODATO TRÂNSITO EM JULGADO TÍTULO EXECUTIVO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 11/09/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I - Assentando a detenção do terceiro num contrato de comodato celebrado com o ex-proprietário (ou com quem como tal se arrogava), ao exequente não pode ser negada a entrega efetiva da coisa, e os embargos de terceiro deduzidos pelo detentor têm, necessariamente, de fracassar. II - Sendo o comodatário titular de um mero direito pessoal de gozo, com a posição de mero detentor, a invocação desse título só vale perante o comodante não sendo oponível ao terceiro atual proprietário, in casu, ao exequente e embargado. III - Tendo o executado, comodante, celebrado com os embargantes comodatários, o contrato de comodato após a prolação da sentença que declarou ser o exequente (e não ele executado) o proprietário do bem imóvel, o executado não tinha o poder de dispor do bem e aquele que com ele contratou nada podia obter, de acordo com o princípio nemo plus iuris transferre potest quam ipse habet. V - A interposição do recurso, quando tenha efeito meramente devolutivo, não obsta à execução da sentença. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES I - RELATÓRIO Por apenso à execução para entrega de coisa certa (imóvel) que AA move contra BB, vieram CC e DD intentar embargos de terceiro pedindo o reconhecimento do contrato de comodato celebrado e o direito dos embargantes a residir no imóvel, bem como serem os autos de execução suspensos, alegando, resumidamente, que em causa está um imóvel lhes foi emprestado pelo executado BB, passando a ser a sua casa de morada de família e que a prossecução dos termos da execução põe em causa o seu direito. Os embargos de terceiro foram recebidos e, em consequência, foi ordenada a suspensão dos termos do processo de execução determinando a não realização da diligência de entrega do imóvel. * Do despacho de recebimento dos embargos de terceiro vem o exequente/embargado recorrer, formulando as seguintes conclusões (transcrição):1. O despacho que admitiu liminarmente os embargos de terceiro não teve em consideração duas questões essenciais: 1.1. Os embargos de terceiro devem ser deduzidos nos 30 (trinta) dias seguintes à data da realização da diligência à qual os embargantes se opõem, por serem titulares de um direito com ela incompatível (art. 344.º n.º 2 do Código de Processo Civil). 1.2. A diligência à qual os embargantes se opõem consiste na entrega do prédio sito no Lugar ..., ..., União das Freguesias ... e ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...87.º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19. 1.3. No dia 13 de março de 2023, a Agente de Execução nomeada nos autos principais de execução realizou a diligência de entrega deste imóvel, que só não foi bem-sucedida porque os embargantes se recusaram a abandoná-lo – cfr. auto de diligência, junto aos autos principais a 16 de março de 2023 e com a referência eletrónica n.º ...53. 1.4. A partir desta data, contava-se o prazo de 30 (trinta) dias para os embargantes/recorridos deduzirem embargos de terceiro. 1.5. Os embargantes/recorridos apresentaram os seus embargos de terceiro no dia 22 de maio de 2023, quando aquele prazo já estava mais do que ultrapassado (art. 344.º n.º 2 do Código de Processo Civil). 1.6. Estando ultrapassado o prazo legalmente estabelecido, o Tribunal a quo deveria ter indeferido, liminarmente, os embargos de terceiro (art. 345.º do CPC). a) a primeira relativa à tempestividade/intempestividade da dedução de embargos; b) a segunda referente à incompatibilidade do direito invocado pelos embargantes face à diligência de entrega de um imóvel que é objeto dos autos principais de execução. 1.7. Porém, o Tribunal a quo não só não indeferiu os embargos de terceiro, como nem sequer apreciou a sua tempestividade/intempestividade. 1.8. A omissão de pronúncia sobre a tempestividade/intempestividade dos embargos de terceiro acarreta a nulidade do despacho objeto de recurso, por força do art. 615.º n.º 1, al. d) do CPC. 1.9. Ainda que os embargos de terceiro tivessem sido apresentados dentro do prazo estabelecido, continuariam a não ser admissíveis, pois o direito invocado pelos embargantes não constitui fundamento para a sua dedução, à luz do art. 342.º n.º 1 do CPC. 1.10. O direito pessoal de gozo de que os embargantes se arrogam titulares emerge de um contrato de comodato, supostamente celebrado com o executado BB em 1 de novembro de 2022. 1.11. Mais de um ano antes, a 14 de setembro de 2021, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou o acórdão da Relação de Guimarães (datado de 5 de novembro de 2020), que condena o executado BB a entregar o prédio sito no Lugar ..., ..., União das Freguesias ... e ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...87.º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19 ao seu legítimo proprietário, isto é, o exequente/recorrente AA - cfr. traslado que consta como documento n.º ... com o requerimento executivo que deu início aos autos principais de execução. 1.12. Para atrasar o trânsito em julgado deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o executado BB arguiu a sua nulidade, o que não produz quaisquer efeitos suspensivos. 1.13. Por isso, o executado BB sabe, pelo menos desde 14 de setembro de 2021, que tem de entregar ao exequente/recorrente o imóvel que ocupa ilicitamente desde fevereiro de 2016. 1.14. Mesmo sabendo que tinha de entregar este imóvel ao exequente/recorrente, o executado BB terá, segundo diz, autorizado os embargantes a ocupá-lo. 1.15. Porém, a ser verdade, o contrato de comodato tem eficácia meramente obrigacional, não sendo oponível a terceiros, nomeadamente ao exequente, enquanto legítimo proprietário do imóvel. 1.16. Além disso, sendo ilícita a posse do executado, é também ilícita a situação de facto de ocupação do imóvel por parte dos embargantes, que, também por esta via, nunca poderia opor-se à entrega. 1.17. Na falta de um direito incompatível com a diligência de entrega de imóvel objeto dos autos principais de execução, os embargantes não preenchem o pressuposto previsto no art. 342.º n.º 1 do CPC, o que obrigava, igualmente, o Tribunal a quo a indeferir liminarmente a sua pretensão (art. 345.º do CPC). 1.18. O Tribunal a quo admite os embargos de terceiro, limitando-se a dizer que "o alegado é fundamento" da sua dedução, mas não explicita em que medida é que o direito invocado pelos embargantes/recorridos seria incompatível com a diligência de entrega objeto dos autos principais. 1.19. A não especificação dos fundamentos da decisão acarreta, igualmente, a sua nulidade, como decorre do art. 615.º n.º 1, al. b) do CPC, por violação do art. 154.º n.º 1 do mesmo Código. 1.20. Em conclusão, o Tribunal a quo deveria ter indeferido, liminarmente, os embargos de terceiro. 1.21. Não decidindo desta forma, o Tribunal a quo violou os arts. 154.º n.º 1, 342.º n.º 1, 344.º n.º 2, 345.º, 350.º n.º 1, 615.º n.º 1, als. b) e d) do Código de Processo Civil e os arts. 1129.º e 1253.º, al. b) do Código Civil. Pugna o Recorrente pela revogação da decisão recorrida que deve ser substituída por outra que indefira liminarmente a petição de embargos de terceiro. * Foram apresentadas contra-alegações defendendo os recorridos a manutenção do decidido.* Foram colhidos os vistos legais.Cumpre apreciar e decidir. * II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSOSão duas as questões postas no recurso: a) prazo para a dedução de embargos de terceiro; b) eficácia meramente obrigacional do contrato de comodato não sendo oponível ao terceiro proprietário do imóvel. * III – FUNDAMENTAÇÃOOs factos a considerar são os que resultam do relatório supra. * a) Prazo para a dedução de embargos de terceiro.A primeira questão a apreciar consiste em saber se está precludido o direito de oposição à diligência de entrega do imóvel por intempestividade dos embargos de terceiro. Para tal importará saber se estamos perante embargos de terceiro preventivos ou repressivos. Os embargos de terceiro constituem o meio processual idóneo para a efetivação de qualquer direito do embargante incompatível com uma diligência de cariz executório, não tendo que ter, necessariamente, por fundamento a posse, mas a existência de qualquer direito incompatível com a diligência judicial ordenada. O que releva é o direito que o embargante invoca como sendo incompatível com o ato de cariz executório judicialmente ordenado e, por conseguinte, suscetível de lhe ser oposto e prevalecer sobre o direito acautelado através do ato de apreensão/restituição de bens (inviabilizando-o na sua totalidade ou circunscrevendo-o a certo âmbito ou extensão)[i]. Como refere Salvador da Costa, «(…) A estrutura dos embargos de terceiro é essencialmente caracterizada, não tanto pela particularidade de se consubstanciarem numa acção declarativa que corre por apenso à acção ou ao procedimento de tipo executivo, com a especificidade de inserirem uma sub-fase introdutória de apreciação sumária da sua viabilidade, mas, sobretudo, por a pretensão do embargante se inserir num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de algum acto judicial de afectação ilegal de um direito patrimonial do embargante[ii]. Os embargos podem ser repressivos ou preventivos. Os embargos repressivos são uma reação contra diligência já materializada e os preventivos têm como objetivo evitar o esbulho tendo por fundamento o justo receio.[iii] Conforme a sua natureza, assim difere o conteúdo da circunstância despoletadora da reação – no primeiro caso, conhecimento da concretização de diligência ou dos contornos da ofensa materializada (n.º 2 do art. 344.º do CPC), no segundo, perspetivação de penhora ou qualquer ato «judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bem», por ter sido determinada mas ainda não executada a injunção judicial de realização da diligência entrevista como atentatória de direitos constituídos nos termos previstos na lei ( n.º 1 do art. 350 e n.º 1 do art. 342.º, ambos do CPC). Aos embargos preventivos são aplicáveis as regras dos embargos repressivos, com as devidas adaptações. E uma das adaptações é, necessariamente, a relativa ao prazo de propositura em função das diferentes finalidades. Tem sido entendimento jurisprudencial que o prazo definido na 1.ª parte do n.º 2 do art. 344.º do CPC não se aplica aos embargos de terceiro com função preventiva[iv]. Logo, o prazo de caducidade de embargar de terceiro a que se reporta o artigo 344º, nº 2, do CPC só é aplicável aos embargos de função repressiva, não prevendo a lei prazo fixo para a dedução de embargos de terceiro de função preventiva, podendo deduzi-los entre a data do despacho que ordena a diligência e a sua efetiva realização. Na situação presente o direito de que os embargantes se arrogam titulares é um direito sobre o imóvel, de usufruição, que lhes adviria do contrato de comodato celebrado com o executado e cuja entrega coerciva foi pedida pelo exequente/embargado e ordenada pelo tribunal sem que se mostre ainda efetivada. Os embargos em questão foram deduzidos com carater preventivo, podendo ser apresentados enquanto a diligência ofensiva da posse ou do direito do terceiro não se mostrar executada. Este meio processual deve ser deduzido antes de realizada (terminus ad quem), mas depois de ordenada (terminus a quo) a diligência de penhora ou de apreensão ou entrega de bens. Daqui resulta que, nos embargos de terceiro de vocação preventiva não há prazo, mas limites processuais. Como afirma Salvador da Costa1 a lei não prevê prazo fixo para a dedução deste tipo de embargos, mas tão só dois limites processuais, ou seja, a data do despacho judicial determinante da diligência ofensiva da posse ou de outro direito incompatível com a sua realização ou âmbito, e a data da sua efetivação: o terminus a quo da dedução dos embargos é a data em que for proferida a decisão judicial de cobertura da diligência afetante do direito do embargante, e não aquele em que foi notificada aquela decisão; o terminus ad quem da dedução dos embargos vai até ao momento em que a referida decisão seja executada, ou seja, até ao momento em que se operou a diligência judicial de afetação do direito do embargante, independentemente da data do registo[v]. Estes dois limites vêm justificados por Marco Carvalho Gonçalves ao referir que por um lado, os embargos de terceiro só podem ser deduzidos depois de ordenada a penhora ou a diligência judicial de entrega ou apreensão de bens, dado que, antes de tal momento, não existe qualquer justo receio de ofensa; por outro lado, só podem ser deduzidos até à realização dessa diligência, sob pena de, não se verificando tal imposição legal, os embargos perderem a sua natureza preventiva[vi]. Em jeito de conclusão dir-se-á que os embargos preventivos não podem ser deduzidos antes de ordenada a diligência ou depois da sua realização, mas podem sê-lo, depois de ordenada, em qualquer momento, enquanto não for efetivamente realizada. Assim, no caso, não se mostrando realizada a diligência de entrega os embargos de terceiro foram deduzidos tempestivamente. b) Eficácia meramente obrigacional do contrato de comodato não sendo oponível ao terceiro proprietário do imóvel. Os embargantes invocam como fundamento dos embargos de terceiro um contrato de comodato que outorgaram com os executados relativamente a um imóvel cuja propriedade foi anteriormente à data daquele contrato judicialmente reconhecida ao exequente. Pretendem os embargantes, na qualidade de terceiro, que seja impedida a entrega judicial do imóvel ao exequente, na medida em que ofende o seu direito de comodatários. Não lhes assiste razão. O contrato de comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir – art. 1129.º, do Código Civil. Uma das características relevantes deste tipo contratual é a produção de efeitos meramente obrigacionais. Da sua celebração, aquilo que é atribuído ao comodatário é, somente, um direito pessoal de gozo, isto é, um direito de crédito que envolve o gozo de uma coisa e nunca um direito real sobre a coisa. Pese embora alguns pontos em comum que se verificam entre os direitos reais e os direitos pessoais de gozo, nos primeiros dominam as características da sequela e da eficácia ou oponibilidade erga omnes, ao passo que dos direitos pessoais de gozo irradiam efeitos que, por regra, apenas vinculam os respetivos sujeitos, nos termos do art. 409º do CC[vii]. Tratando-se de um direito de crédito, o exercício do direito do comodatário nunca poderá ser considerado como posse, de acordo com o art. 1252º do Código Civil, porque não corresponde ao exercício de um direito real. A “posse” do comodatário é uma posse precária nesse sentido, pois não corresponde ao exercício de um direito real, sendo a coisa usada pelo comodatário por via da cedência do titular do direito real sobre a mesma. Permite, no entanto, o art. 1133º nº2 do Código Civil que o comodatário privado ou perturbado no exercício do seu direito possa usar, mesmo contra o comodante, dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276º e seguintes, entre os quais os embargos de terceiro previstos no artigo 1285º. Todavia, como afirma Lebre de Freitas a «atribuição ao possuidor em nome alheio de legitimidade para embargar, só se compreende como medida de tutela directa do interesse de terceiro (pessoa diversa do executado) que através dele possui, na medida em que dele dependa o interesse do embargante».[viii] Contudo, quando o comodatário possui a coisa em nome do executado, os embargos de terceiros não são admissíveis, visto que, no conflito entre o direito real e o direito de crédito, este, independentemente da data da sua constituição, terá de ceder perante o primeiro. Aqui está a resposta para a situação em que a coisa pertence ao exequente, mas sobre ela incide a mera detenção de um terceiro. Assentando a detenção do terceiro num contrato de comodato celebrado com o ex-proprietário (ou com quem como tal se arrogava), ao exequente não pode ser negada a entrega efetiva da coisa, e os embargos de terceiro deduzidos pelo detentor têm, necessariamente, de fracassar[ix]. O fundamento material de tal solução resulta do art. 406º, nº2, do Código Civil, de acordo com o qual em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei. Como exemplo de casos especialmente previstos na lei de eficácia dos contratos relativamente a terceiros, temos a já referida norma do art. 1133º nº2 do Código Civil que permite ao comodatário defender-se da ação de terceiros se o seu direito for perturbado, norma esta que tem correspondência para o arrendamento, no art. 1037º nº2 do mesmo diploma. Outro exemplo é o caso do art. 1057º do Código Civil, que, no contrato de arrendamento, estabelece que o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador. Todavia, como se escreveu no Ac. da Relação de Lisboa de 01.02.2012 não existe qualquer norma que, à semelhança do artigo 1057º no arrendamento, preveja a transmissão da posição do comodante para um terceiro adquirente da coisa[x]. Como afirma Augusta Ferreira Palma “inexistindo para o comodato normas paralelas às dos arts. 824º e 1057º do CC, o comodatário não se poderá opor à pretensão do exequente. Aliás, a regra básica ao nível da eficácia contratual é a da sua relatividade”.[xi] Assim, no contrato de comodato, o direito do comodatário só vale perante o comodante e não perante terceiros, nomeadamente perante terceiros que venham a adquirir o prédio. Logo, o comodatário que, como os embargantes, têm o direito de se servir do prédio, só o poderão fazer enquanto o prédio estiver dentro da esfera jurídica do comodante, mas já não depois de o prédio ser transmitido a terceiro, podendo este exigir a sua restituição. Em consequência, eventuais situações de confronto entre o novo titular do direito de propriedade e outros possuidores ou detentores da mesma coisa não sujeitos a um regime especial, como o que decorre previsto para o arrendamento no art. 1057º do Código Civil, deverão ser resolvidos a favor do proprietário, nos termos do art. 1311º do CC. Dito de outro modo, uma vez reconhecido o direito de propriedade, o detentor deve restituir a coisa ao proprietário, a não ser que demonstre a existência de um título que, sendo eficaz em relação a este, legitime a recusa de restituição[xii]. Tal não ocorre quando se invoque, como ocorre no caso, a outorga de um contrato de comodato com o (alegado) anterior proprietário do bem cuja propriedade veio a ser reconhecida ao exequente. Conformemente, sendo o comodatário titular de um mero direito pessoal de gozo, com a posição de mero detentor, a invocação desse título apenas seria legítima relativamente ao comodante, de acordo com o regime legal do contrato de comodato, mas já é inoponível ao atual proprietário, in casu, ao exequente e embargado. Na esteira do que afirma Andrade Mesquita os terceiros não estão vinculados a realizar o direito do comodatário, o contrato cessa caso o direito com base no qual foi constituído seja transferido para terceiro[xiii]. Assim, tendo sido reconhecido ao exequente e embargado o direito de propriedade ao abrigo do qual foram assumidas as obrigações do comodante e executado, as mesmas não transitam para a esfera jurídica do primeiro, prevalecendo face ao comodatário os poderes que emergem do direito de propriedade e que implicam o direito de obter a restituição do bem na detenção de terceiro. Outro fundamento se pode somar ao merecimento da pretensão do apelante. O executado, comodante, celebrou com os embargantes comodatários, o contrato de comodato após a prolação da sentença que declarou ser o exequente (e não ele executado) o proprietário do bem imóvel. Portanto, o executado quando celebra o contrato não dispunha de poderes para o efeito. Ninguém pode emprestar aquilo que não tem. Nisto se traduz o brocardo “nemo plus juiris ad alium transferre potest quam ipse habet – ninguém pode transferir para outro um direito que o não tenha como seu. Este princípio traduz a impossibilidade de o adquirente obter qualquer direito se nenhum direito pertence ao transmitente, nem obter mais direitos do que ele tinha. Ora não sendo o comodante proprietário da coisa não tinha o poder de dispor dela e aquele que com ele contratou nada podia obter, de acordo com o já referido princípio ‘nemo plus iuris transferre potest quam ipse habet. Contrapõem os recorridos que a sentença (acórdão) que reconheceu o exequente como proprietário e que serve de título executivo ainda não transitou em julgado. O fundamento contende com o efeito e amplitude do trânsito em julgado da decisão judicial para que possa servir de título executivo. A decisão condenatória pode funcionar como título executivo em duas situações: (i) quando se verifique o trânsito em julgado da decisão ou, no caso de este ainda não se ter verificado em virtude da interposição de recurso, (ii) quando esse recurso tenha efeito meramente devolutivo. A sentença transitada em julgado goza já da plena segurança jurídica, por se tornar definitiva, sem prejuízo, naturalmente, da eventual interposição de recurso extraordinário de revisão. Desta definitividade já não goza a sentença que foi objeto de recurso com efeito meramente devolutivo. No entanto, nem por isso o legislador deixou de permitir que esta fosse executada. Assim, conforme se retira da conjugação do disposto no art. 647.º, n.º1, do CPC, que prevê o efeito devolutivo dos recursos, como regra, e do artigo 704.º, n.º1, a execução provisória da decisão foi uma opção legislativa à qual não pode o intérprete e o julgador ser alheio quando se trata de se pronunciar sobre questões que podiam determinar o indeferimento liminar do requerimento executivo, caso a ele houvesse lugar (cf. arts. 726.º e 734.º do CPC). Compreende-se que assim seja. De contrário esvaziar-se-ia de sentido o efeito devolutivo, dando azo à interposição de recursos sucessivos com intenção meramente dilatória e como forma de protelar o trânsito em julgado, com prejuízo para o credor da prestação. Há, no entanto, que atentar que, neste caso, a exequibilidade da sentença depende da interposição efetiva do recurso e que o mesmo seja recebido com efeito meramente devolutivo. Quer a doutrina quer a jurisprudência têm considerado ser esta uma das condições para a efetiva exequibilidade da sentença. Na doutrina Marco Carvalho Gonçalves refere que não basta que da sentença condenatória caiba, em abstrato, recurso, sem que o mesmo tenha sido efetivamente interposto, nem que ao recurso correspondente, em abstrato, nos termos da lei, caiba efeito meramente devolutivo[xiv], posição sufragada por Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, quando afirmam que a decisão condenatória só deverá ser executada depois de transitada em julgado, ou sendo objeto de recurso, este tenha sido admitido com efeito meramente devolutivo[xv]. Na jurisprudência, entre outros, o acórdão desta Relação de Guimarães de 25/11/2021, processo n.º 503/21.3T8VNF.G1, relator Joaquim Boavida; da Relação de Lisboa de 23/02/2023, proferido no processo 6853/21.1T8LRS-A.L1-6, relatora Teresa Soares e de 01.10.2020 processo n.º 5993/19.1T8LSB-A.L1-8, relatora Maria do Céu Silva, e da Relação de Évora de 28/09/2017, processo n.º 1749/14.6T8LLE-A.E1, relator Tomé Ramião[xvi], fazem depender a exequibilidade das sentenças condenatórias não transitadas da efetiva interposição de recurso, ao qual deve ser atribuído efeito meramente devolutivo. A exigência de efetiva interposição de recurso com atribuição de efeito devolutivo, para além de ser a interpretação que encontra amparo no elemento literal do art.º 704.º, n.º 1 do CPC, é, ademais, o sentido interpretativo que permite ao recorrente requerer a atribuição de efeito suspensivo ao recurso mediante a prestação de caução (art.º 647.º, n.º 4 e 650.º do CPC), faculdade processual esta que seria frustrada se fosse possível ao credor executar (e penhorar) de imediato o devedor, logo que notificado da sentença condenatória[xvii]. No caso, a sentença foi proferida em 31/8/2019 e foi interposto recurso que lhe atribuiu efeito meramente devolutivo (cf. documentos juntos com o requerimento de 10/4/2023). Como tal, não pode colher como argumento a falta do trânsito em julgado da sentença condenatória, porquanto a mesma é, já, exequível, ao abrigo do disposto no art. 704.º, n.º1, do CPC. Assim sendo, conclui-se que, em virtude da inoponibilidade do direito de garantia do comodatário ao direito real do exequente, os embargos de terceiro deduzidos são, segundo todas as soluções plausíveis de direito, manifestamente insusceptíveis de procedência. Em face do exposto, a apelação terá de proceder, sendo de revogar a decisão recorrida e, em consequência, rejeitados os embargos de terceiro. * SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)I - Assentando a detenção do terceiro num contrato de comodato celebrado com o ex-proprietário (ou com quem como tal se arrogava), ao exequente não pode ser negada a entrega efetiva da coisa, e os embargos de terceiro deduzidos pelo detentor têm, necessariamente, de fracassar. II - Sendo o comodatário titular de um mero direito pessoal de gozo, com a posição de mero detentor, a invocação desse título só vale perante o comodante não sendo oponível ao terceiro atual proprietário, in casu, ao exequente e embargado. III - Tendo o executado, comodante, celebrado com os embargantes comodatários, o contrato de comodato após a prolação da sentença que declarou ser o exequente (e não ele executado) o proprietário do bem imóvel, o executado não tinha o poder de dispor do bem e aquele que com ele contratou nada podia obter, de acordo com o princípio nemo plus iuris transferre potest quam ipse habet. V - A interposição do recurso, quando tenha efeito meramente devolutivo, não obsta à execução da sentença. * IV - DECISÃOPelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e, em consequência, indeferir liminarmente a petição de embargos de terceiro. Custas pelos Recorridos Guimarães, 9 de Novembro de 2023 Assinado por: Rel. – Des. Conceição Sampaio 1º Adj. - Des. Sandra Melo 2º Adj. - Des. Conceição Bucho [i] Neste sentido, Ac. da Relação do Porto de 27/06/2022, Proc. 1588/19.8T8OVR-B.P, Relator Joaquim Moura, disponível em www.dgsi.pt. [ii] In Os Incidentes da Instância, 5ª edição, pág. 225. [iii] Alberto dos Reis, «Processos Especiais, vol. I, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1982, pág. 436. [iv] A título meramente exemplificativo, o Ac. STJ de 09/02/2006, Proc: 06B014, Relator Salvador da Costa; Ac. da Relação de Guimarães de 24/09/2015, Proc: 1129/09.5TBVRL-H.G1, Relator Jorge Teixeira; Ac. Relação de Évora de 11/04/2019, Proc. 924/14.8TLLE-G.E1, Relator Elisabete Valente, todos disponíveis em www.dgsi.pt. [v] In Os Incidentes da Instância, 5ª edição, Almedina 2008, pág. 241. [vi] In Embargos de Terceiro na Acção Executiva, Coimbra Editora, 1ª edição, pág. 338. [vii] Neste sentido, Ac. do STJ de 30-3-17, proferido no proc. nº 149/09.4TBGLG-E.E1-A.S1 em que foi relator Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt. [viii] In A Acção Executiva à Luz do Código Revisto, 2001, pág. 239. [ix] Miguel Mesquita, Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiro, 2ª Edição Revista e Aumentada, pág. 273. [x] Proferido no proc. nº 1961/08.7TVLSB-A.L1-6, em que foi Relatora Maria Teresa Pardal, disponível em www.dgsi.pt. [xi] In Embargos de Terceiro, Almedina, pág. 70. [xii] Como se decidiu no já referido acórdão do STJ de 30-3-17, proferido no proc. nº 149/09.4TBGLG-E.E1-A.S1 em que foi relator Abrantes Geraldes, disponível em www.dgsi.pt. [xiii] In Direitos Pessoais de Gozo, pág. 163. [xiv] In Lições de Processo Civil Executivo, 4.ª Edição, Almedina, pág. 73. [xv] In A Ação Executiva Anotada e Comenda, 3.ª Edição, Almedina, pág. 179. [xvi]Todos disponíveis em www.dgsi.pt. [xvii] Como se refere no acórdão desta Relação de Guimarães de 25/11/2021, processo n.º 503/21.3T8VNF.G1, relator Joaquim Boavida, disponível em www.dgsi.pt. |